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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.7 n.2 São Paulo dic. 2005
ARTIGOS
O natural e o humano no pensamento do jovem Heidegger
The natural and the human in the thought of the young Heidegger
José Carlos Michelazzo
Psicoterapeuta, Doutor em Filosofia pela Unicamp
Coordenador da Sociedade Brasileira de Fenomenologia (SBF), Seção São Paulo
RESUMO
Embora saibamos que, nos passos iniciais do itinerário do pensamento de Heidegger, não haja um tratamento formal do conceito de natureza, existe, contudo, uma interpretação crítica do conceito naturalista do ser, pertencente à tradição metafísica, que o filósofo quer ultrapassar em direção a uma outra perspectiva de pensamento, guiada por uma fenomenologia hermenêutica e nascida do caráter humano de ser do homem, isto é, das condições ontológico-fácticas de sua existência. O presente artigo procura indicar o contraponto entre esses dois modos de interpretação do ser, o natural e o humano, acompanhando os passos mais significativos dados pelo jovem Heidegger entre 1907, época de seu despertar para a filosofia, e meados dos anos 20, ocasião de suas pesquisas sobre o cristianismo primitivo e sobre escritos práticos sobre Aristóteles.
Palavras-chaves: Natural; Teórico; Metafísica; Espírito vivo; Humano; Facticidade.
Abstract
Despite we know that there is not a formal treatment of nature′s concept in the initial steps of Heidegger′s thought, there is, although, a critical interpretation of the naturalist concept of Being, concerning to metaphysical tradition, which the philosopher wants go beyond to another perspective of thought. That perspective is guided by a hermeneutic phenomenology and born from human character of being of man, that is, from ontological and factical conditions of your existence. The present paper intends to indicate the counterpoint between these two ways of the interpretation of Being, the natural and the human, following the more expressive steps given by young Heidegger between 1907, age of his awakening to philosophy, and the early twenties, time of his researches about primal Christianity and Aristotle′s practical writings.
Keywords: Natural; Theoretical; Metaphysics; Alive spirit; Human; Facticity.
No início do itinerário de pensamento de Heidegger - entre 1907 e os primeiros anos da década de 20 do século passado -, não aparece propriamente o tema da natureza e sim a idéia do natural pertencente à tradição metafísica, que é sempre tomada de maneira crítica, uma vez que procura representar o ser dos entes no quadro de uma perspectiva ôntica e substancialista, presente tanto na forma especulativa (filosofia) quanto na empírica (ciências).
A crítica de Heidegger a esse pensar natural da metafísica deve, portanto, ser sempre compreendida em dois níveis: primeiro, como um apontar para o caráter reducionista desse pensamento que interpreta o ser de forma entitativa e, especialmente, o ser do homem como um ente entre entes simplesmente dados (Vorhandenheit); segundo, como um esforço em iniciar um modo de pensar que se encaminha para fora desse horizonte naturalista em direção a um outro, mais fundante e originário, que se propõe a apreender o ser dos entes a partir daquilo que constitui o elemento vivo da experiência de ser humano, oriundo das condições primordiais da existência fáctica, histórica. A nossa exposição, por conseguinte, estará sempre ligada ao contraponto entre estes dois pólos paradigmáticos - o natural e o humano -, enquanto tradução do empenho do jovem filósofo para fazer com que o pensamento encontre um caminho de acesso ao "espírito vivo" (lebendiger Geist) desse caráter propriamente humano e histórico, tentando superar, por assim dizer, seguindo uma certa simetria, o "espírito morto" (gestorbener Geist) que pairaria, segundo o filósofo, sobre o pensamento ocidental moderno, cristalizado secularmente por essa perspectiva naturalista e substancialista da tradição.
Apesar de nos referirmos a um período relativamente curto do pensamento de Heidegger - cerca de oito anos se considerarmos o tempo entre o seu trabalho de habilitação (1915) e o início de sua pesquisa sobre Aristóteles (1923) -, tal período está, contudo, "carregado" de poderosas intuições e densas experiências, boa parte delas recolhidas em vários volumes de sua obra completa (Gesamtausgabe - do GA 56/57 ao GA 63). Uma tal quantidade de informações faz com que, nesta nossa exposição, não possamos ir além de algumas indicações dessa polarização (entre o natural e o humano), apresentadas aqui, de forma bastante sucinta, por meio de cinco grandes passos desse itinerário inicial de Heidegger: o impulso inicial para a questão do ser (1); o trabalho de habilitação: Duns Scotus (2); a ruptura com a metafísica da tradição (3); o espírito vivo no cristianismo primitivo (4); e o espírito vivo nos escritos práticos de Aristóteles (5).
1. O impulso inicial para a questão do ser
Em Heidegger, o impulso inicial de sua vocação para a ontologia já está presente desde 1907, quando recebe de presente o livro de Franz Brentano Sobre o sentido múltiplo do ente em Aristóteles (1862). Por meio desse livro, o filósofo se sente tocado por uma questão que o próprio Estagirita deixou indeterminada. Se o ser se diz com muitos sentidos (tò ón legethai pollachós), indaga Heidegger, "qual é, então, a determinação dominante, simples, unificadora do ser que permite todos os seus múltiplos sentidos? O que significa, pois, ser?" (Richardson 1974, prefácio de M. Heidegger, p. XI).
Todavia, nesta pergunta de Heidegger - o que significa ser? _, persiste algo de insólito. Por um lado, separado do ente, ele não pode ser determinado e isso aparece em toda tentativa de apreendê-lo diretamente como objeto, cujo resultado oscila sempre entre algo evidente por si mesmo e algo indefinível; por outro lado, entretanto, ele é sempre compreendido em nossa linguagem e em nossos pensamentos cotidianos.
Com isso, constatamos que essa questão do ser em geral em Heidegger, ou seja, do ser anterior às suas múltiplas manifestações entitativas, não pode ser tomada no sentido tradicional - enquanto uma busca que alimentaria a expectativa de aportar em algum lugar, em alguma finalização -, mas, antes, pelo único viés de acesso até ele, ou seja, pelo seu sentido, palavra-chave que nos inclui nessa investigação. Sentido aqui, no entanto, é sempre um compreender prévio, indeterminado, pré-ontológico, ainda não tematizado do ser desse ente que somos nós mesmos, numa espécie de círculo de co-pertinência (Zusammengehörigkeit) entre o ser e nós. Por meio desse círculo, perguntar pelo sentido do ser e colocarmo-nos a nós mesmos em questão fazem parte de uma única e mesma experiência.
Estamos, entretanto, nos primeiros anos do século XX e muitos outros ainda deverão se passar para que o jovem filósofo ganhe alguma clareza sobre a originalidade e complexidade desses problemas. Nesse ínterim, ele segue seus estudos acadêmicos aproximando-se do neokantismo e da fenomenologia, durante os quais acontecem encontros decisivos com a poesia (Hölderlin, Rilke, Trakl) e a filosofia (Husserl, Nietzsche, Dilthey, Rickert, Lask) [Heidegger 1978, GA 1, p. 56].
O que atraía Heidegger para a leitura desses autores, além do profundo interesse do jovem Heidegger em relação ao misticismo medieval, especialmente o de Mestre Eckhart, aos trabalhos de Novalis e Schlegel, presentes na conclusão de seu trabalho de habilitação, bem como a atração pelos românticos alemães? O que propriamente lhe provocavam essas leituras? Tudo indica que se trata daquela dimensão que será a marca de seu pensamento - presente não só nos seus trabalhos juvenis, tal como o de Duns Scotus, que veremos a seguir, mas ao longo de seu itinerário até os seus escritos da maturidade - a saber, o caráter da experiência viva, concreta e histórica da vida contra o "cinza-cinza" da filosofia" (ibid., p. 203), presente tanto na lógica pura quanto no pensamento teológico-especulativo. Um exemplo de experiência viva Heidegger vai encontrar no modo medieval de vida, objeto de investigação do seu trabalho de habilitação intitulado de Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns Scotus, "A doutrina das categorias e do significado de Duns Scotus".
2. O trabalho de habilitação: Duns Scotus.
Escrito entre 1915-16, o trabalho de habilitação sobre Duns Scotus serve - mesmo que sobre ele pese o fato de ter sido elaborado sob o horizonte das correntes filosóficas tradicionais de maior expressão da época - de marco inaugural propriamente dito do caminho de Heidegger, produzindo ecos em seus trabalhos posteriores até Ser e tempo.
Esse trabalho pretendia ser uma contribuição ao movimento de renovação do neo-escolasticismo, presente nos círculos acadêmicos católicos alemães desde o início do século XX, no interior dos quais estava Carl Braig, professor de teologia dogmática de Heidegger entre 1909 e 1911, anos em que foi estudante de teologia na Universidade de Freiburg. Trata-se de uma cruzada antimodernista que parece ter influenciado bastante o jovem Heidegger, tal como atestam os seus escritos em jornais católicos, como o que escreve no Allgemeine Rundschau, em agosto de 1910, para participar das homenagens de inauguração do monumento dedicado ao conhecido pregador agostiniano do início do século XVIII, Abraham a Sankta Clara (Heidegger 1983, GA 13, p. 3).
O seu trabalho sobre Duns Scotus se proporia, então, a uma espécie de apropriação de um modelo ideal de vida, o medieval, atualizado por meio do pensamento cristão dos primeiros anos do século XX e de conceitos da filosofia moderna como o neokantismo e a fenomenologia. Por meio desta última - guiado especialmente por seu lema: Zu den Sachen selbst, "às coisas mesmas" -, Heidegger acreditava que poderia aproximar os autores do "mundo vivido", presente em suas leituras de estudante, do método rigoroso da pesquisa filosófica. É a esse caráter do vivido, pensava o filósofo, que toda filosofia deve estar vinculada, pois o trabalho verdadeiramente criador em torno dos problemas investigados só pode acontecer "[...] a partir de intensa vivência pessoal", de forma que toda concepção filosófica fosse sempre interpretada como "[...] uma tomada de posição pessoal do filósofo em questão" (Heidegger 1978, GA 1, pp. 191 e 196).
É isso que faz Heidegger se interessar pelos escritos da Idade Média, apreendido por ele na "literatura mística, moral-teológica e ascética da escolástica medieval" (ibid., p. 205). Esses escritos se mostram um exemplo de harmonia que ele não vê mais no pensamento moderno entre a vida vivida (mística) e a filosofia (escolástica). Neste, ao contrário, reina uma desarmonia, pois o pensamento perdeu sua força no âmbito do supra-sensível (filosofia), ficando muito próximo da realidade sensível, fragmentado numa multiplicidade infindável de ciências e conhecimentos técnicos empregados no manejo das atividades práticas dos negócios humanos, sobrando, desse modo, pouco ou nenhum espaço para a transcendência da vida vivida, distendida numa "amplitude fugaz e vazia. Nesta atitude de vida superficial e dispersa, as possibilidades de uma crescente insegurança e completa desorientação são extremamente grandes, mais até, são sem limites [...]" (ibid., p. 409).
Nesse escrito sobre Duns Scotus, observamos Heidegger contrapor dois horizontes de pensamento, o moderno e o medieval, procurando fazer uma síntese por meio de uma espécie de dupla desconstrução.1 Por um lado, ele quer reconduzir o pensamento moderno a um modo mais originário de harmonia e convivência, tal como acontece, na sua opinião, com a escolástica e a mística que, longe de constituírem duas tendências divergentes,
[...] se co-pertencem essencialmente no interior da concepção de mundo medieval. [De tal forma que] os dois pares de opostos: racionalismo-irracionalismo e escolástica-mística não se correspondem. E onde uma tal equiparação é tentada, sustenta-se sobre uma extrema racionalização da filosofia. Filosofia, enquanto construção racionalista, desligada da vida, é impotente [machtlos]; mística, enquanto vivência irracional, é sem objetivo [ziellos]. (ibid., p. 410).
Mas, por outro lado, Heidegger não quer ser ingênuo de desconsiderar as contribuições do pensamento moderno, especialmente as da filosofia transcendental. Nesse sentido, seu propósito era passar esse pensamento medieval harmonioso por um processo de atualização ou modernização, a fim de poder ser melhor compreendido e incorporado pelo nosso Zeitgeist, uma vez que lhe faltaria uma noção tematizada do sujeito como um princípio sintetizador da consciência. E isso se dá, segundo Heidegger, porque "o homem medieval não é próximo de si mesmo no sentido moderno - ele se vê sempre posicionado no interior da tensão metafísica; a transcendência o impede de assumir uma atitude meramente humana diante do todo da realidade" (ibid., p. 199). A síntese almejada por Heidegger entre pensamento medieval e pensamento moderno seria realizada, portanto, por meio da desconstrução do caráter limitador de um, reconstruindo-o com o auxílio das qualidades do outro.
Como nos referimos anteriormente, ambas as atitudes refletiriam, então, o traço harmônico entre vida e pensamento, piedade e conhecimento, ascese e epistemologia, enquanto expressão daquilo que atraía tanto Heidegger para os medievais: o elemento vivo da experiência da vida concreta, histórica.
3. A ruptura com a metafísica da tradição
Este projeto de filosofia do jovem Heidegger - que almejava recuperar "o espírito vivo [der lebendige Geist]" de uma época medieval teocêntrica e cristã, enquanto uma "verdadeira concepção de mundo [wahre Weltanschauung]" (ibid., pp. 407-408), atualizada pelo pensamento católico e com a ajuda do pensamento moderno - irá sofrer uma profunda crise em contato com a experiência da Primeira Grande Guerra. Uma das principais conseqüências desse acontecimento será o desmoronamento das estruturas então vigentes na filosofia sobre as quais o seu projeto se apoiava, ou seja, o neokantismo rickertiano e a fenomenologia husserliana, dando, assim, o início ao seu conhecido tema da desconstrução da metafísica. Todavia, o que nesse projeto lhe é mais próprio, isto é, o que é fruto das genuínas intuições do filósofo, ficará mais forte e seguirá por um caminho mais pessoal em direção a uma nova concepção de metafísica.
Heidegger testemunhou com seus contemporâneos a crueldade das mortes e o saldo terrível de traumas e prejuízos de toda ordem causados pela guerra. Entretanto, diferentemente da maioria dos de sua geração, todo esse banho de sangue em que mergulhou o seu país e demais nações da Europa tinha para ele uma interpretação bastante clara: era o agonizar do mundo moderno, calcado no brilho das conquistas das ciências da natureza e da tecnologia que proporcionavam bem-estar e conforto à vida, fazendo brotar no coração dos europeus a crença de que tais conquistas eram a base de sustentação da ordem política, econômica e social e, como conseqüência, a fé inquestionável no progresso.
Por trás de todo esse brilho, pensava Heidegger, o espírito do Ocidente estava profundamente enfermo. A guerra queimou tudo, mas foi ele - o espírito dos ocidentais - que, em última instância, a guerra destruiu. Por isso a reação de Heidegger diante do cenário pavoroso de uma Europa em decomposição não é a de um abatimento paralisante ou, como para a da maioria dos alemães, de desorientação e de desespero. Na verdade, esse cenário parece reforçar em Heidegger a convicção de que a guerra, apesar de deixar a vida incerta, fez apenas o que deveria fazer: expor para os europeus o seu espírito agonizante e destruí-lo. No final da guerra, em novembro de 1918, Heidegger escreve à sua amiga Elizabeth Blochmann:
Como a vida se organizará após este fim que tinha de vir e que é nossa única salvação, tudo isso é bem incerto. O que é seguro e inabalável é a exigência que se dirige aos homens verdadeiramente espirituais de não fraquejar, justamente agora, mas, ao contrário, de assumir resolutamente o papel de guias e de educar o povo à sinceridade e a uma autêntica avaliação dos legítimos bens da existência. Tenho, na verdade, uma alegria de viver, mesmo que tenha de contar com algumas privações e certas renúncias; estetas, porém, interiormente pobres e homens que se contando entre os melhores "espíritos" - e que não têm feito até o presente senão brincarem com o espírito, como outros o fazem com dinheiro ou prazer -, irão agora desmoronar e naufragar, desamparados, no desespero; nada de seguro e de diretrizes preciosas se poderá esperar deles. (Heidegger 1996, p. 212)
Mas há, ainda, uma segunda convicção em Heidegger, a mais importante. Trata-se da certeza de seu próprio caminho de pensamento, ou seja, a de estar entre aqueles que estão dispostos a não fraquejar na busca do espírito vivo que guiará e educará o povo para a sinceridade e para os autênticos bens da existência, devolvendo-lhe, assim, tal com sente vibrar em si mesmo, a alegria de viver. E a sua trincheira particular após o término da guerra será o combate incessante contra o academicismo reinante na filosofia, ao qual ele imputa considerável responsabilidade pelo colapso espiritual do Ocidente.
Na opinião de Heidegger, os seus representantes, ao invés de guardarem o espírito da sabedoria herdada desde os gregos, brincaram com ele na medida em que se mantiveram por meio de seus modelos e construções metafísicos numa atitude puramente natural, ôntica, teorética, distanciada da vida concreta, interpretando a essência do homem como um ente ao lado dos demais, dotado de natureza substancialista, compacta, imóvel, um ser simplesmente dado. Tal atitude - presente tanto nas alturas da especulação filosófica quanto na aderência aos entes do mundo empírico das ciências - sempre foi, na opinião do jovem filósofo, instrumentada por uma lógica vazia e um diletante jogo de conceitos à busca de valores e conhecimentos abstratos e universais em nome de uma pseudo-objetividade. Seis meses depois, em maio de 1919, escreve novamente Heidegger à sua amiga:
"A nova vida que queremos ou, antes, que pode germinar em nós renunciou a ser universal, isto é, inautêntica e superficial - [...] [para] participar do original, não o artifício das construções, mas a intuição total, tal como ela se impõe com evidência (ibid., p. 216)".
Esse é, portanto, o ideal de vida para o jovem filósofo; uma vida não escravizada pelo culto artificioso de um saber universal - guiado por uma razão teórica desenraizada e fragmentada em uma multiplicidade de disciplinas fechadas em si mesmas -, mas sim dirigida por aquele saber que se mostra como intuição total ao interrogar apaixonado do ente em sua totalidade, cuja evidência brota das entranhas da vida concreta e histórica. E é para esse saber que o caminho de pensamento de Heidegger se volta e com o qual a Academia deveria, verdadeiramente, se interessar e se responsabilizar.2 Tais experiências e intuições são os ingredientes básicos que preparam uma profunda metamorfose de seu pensamento, considerados por alguns especialistas a sua primeira Kehre, de tal forma que a outra viravolta, a do início dos anos 30, "tenha sido possível por uma espécie de retorno ao, e repetição de, seu pensamento juvenil" (Van Buren 1993, p. 134).
"A nova vida que queremos" - aquela que deve brotar do inte-rior da vida histórica e que traduz o espírito vivo do humano - é, então, cunhada por Heidegger numa expressão: faktisches Leben, "vida fáctica", que, a partir de 1919, começa a ter em seus trabalhos um uso técnico. "Espírito vivo" e "vida fáctica" são agora tomados como expressões sinônimas e representariam, desse modo, o aspecto atraente e até mesmo revolucionário da volta heideggeriana "às coisas mesmas" - ou seja, um regresso ao "fato originário" (Ur-Faktum), a "algo originário" (Ur-Etwas), à "questão originária" (Ur-Sache) - da vida. Todas essas expressões, enquanto reveladoras dos múltiplos sentidos dessa sua palavra-guia, falariam, portanto, da busca do filósofo de uma nova origem, de um novo fundamento para a questão "vida", enquanto manifestação daquilo que constituiria a essência do humano no homem.
O espírito vivo, aprendido agora a partir dessa nova noção de facticidade, serve, ao mesmo tempo, de divisor de águas que distanciará, daí por diante, o seu pensamento tanto do neokantismo de Rickert quanto da fenomenologia de Husserl. Mesmo que pesassem entre si diferenças doutrinárias, essas duas perspectivas de pensamento compartilhavam, todavia, do ideal de uma filosofia científica que abandonaria sempre mais o âmbito instável do fenomênico para se instalar numa consciência transcendental, fonte de todo a priori que qualquer teoria que se quer rigorosa tem de alcançar como fundamento.
Era imperioso, portanto, destruir isso que Heidegger interpretava como o "espírito morto" (gestorbener Geist) dessas duas posturas de pensamento que sempre ensejaram um indisfarçável fascínio pelo teórico, um incansável empenho para ver objetividades - seja na perspectiva de uma consciência ideal (o eidos de Husserl), seja na perspectiva de uma consciência geral (o Bewusstsein überhaupt de Rickert) - por estarem, cada uma à sua maneira, afastadas do mundo histórico. Tanto a fenomenologia quanto o neokantismo tinham dado grande contribuição à pesquisa acadêmica antes da guerra, mas, em tais posições teóricas, pensava o jovem Heidegger, o espírito vivo do pensamento, como tal, desaparece, uma vez que elas são incapazes de se aproximarem da experiência fáctica da vida, enquanto existência. Pensado desse modo, o sentido da vida "não pode ser autenticamente apreendido em uma perspectiva teórica" (Heidegger 1976, GA 9, p. 29).
Todavia, destruir - e Heidegger desde os primeiros passos de seu pensamento insiste para que as palavras destruição (Destruktion) ou desconstrução (Abbau) sejam corretamente compreendidas - não deve ser interpretado em seu mero sentido negativo, ou seja, como pura e simples rejeição da tradição, mas como uma luta contra esse fascínio pelo teórico, contra a obsessão pela generalização, contra a idolatria pela objetividade. O jovem filósofo não tem outra ambição senão a de quebrar essa pseudo-segurança de um pensar absorvido na contemplação de seus próprios traços. Só assim o pensamento poderia, então, abrir espaço não apenas para acolher a vida em sua ampla totalidade, contemplando a sua dimensão concreta, vivida - sempre expulsa do pensamento metafísico sob pretexto do perigo de "contágio" do relativismo e do ceticismo -, mas ir além disso, ou seja, dar a essa vida a primazia e um lugar privilegiado para todos os pontos de partida da reflexão filosófica.
É assim, então, que Heidegger _ na sua busca do espírito vivo, o único capaz de apreender o autenticamente humano no homem -, se aproxima da experiência fáctica da vida dos primeiros cristãos.
4. O espírito vivo no cristianismo primitivo
No final da Primeira Guerra Mundial, as leituras de Heidegger continuam ainda voltadas para os místicos medievais (Francisco de Assis, Bernardo de Claraval, Mestre Eckhart, Thomas de Kempis) e para o misticismo paulino. Sente também grande interesse pelo filósofo romântico e teólogo protestante Friedrich Schleiermacher, aquele que, no entender de Heidegger, descobriu o cristianismo primitivo (Urchristentum) como a religião que floresceu nos primeiros três séculos de nossa era e que encarnava a verdadeira essência do religioso, distinta da metafísica, moral e doutrina teológica que incorporou posteriormente.
Com Schleiermacher, Heidegger encontra, então, um aliado - e, adiante, mais outros dois, os teólogos Kierkegaard e Lutero -, para o seu próximo projeto: a pesquisa do espírito vivo presente no cristianismo primitivo. Esse projeto de Heidegger é fortalecido quando descobre que estes três aliados têm também uma profunda ligação com a mística medieval por verem nela o espírito remanescente do cristianismo primitivo, ou seja, aquele elemento vivo da vida tão investigado por ele. Kierkegaard e Lutero, por outro lado, são os que se insurgem contra a escolástica medieval aristotélica por ser esta um elemento de infiltração estranho ao espírito do cristianismo primitivo. Desse modo, os cursos de Heidegger logo após o término de guerra, entre 1919 e 1921, perseguem um novo projeto - o de empreender uma "fenomenologia da religião" -, procurando reunir mística medieval, desconstrução da escolástica medieval, cristianismo primitivo e fenomenologia.
Para apreender essa vida vivida, Heidegger substituirá a fenomenologia transcendental por uma fenomenologia hermenêutica. Esta, no entanto, não deve, segundo Heidegger, ser entendida de modo corrente, ou seja, como o interpretar dos fenômenos a partir de modelos teóricos tomados a priori, mas apreender tais fenômenos como as próprias mensagens, de maneira que elas próprias pudessem fazer aparecer a coisa mesma. E como o filósofo acredita ter encontrado essa coisa mesma da vida por meio de sua noção de facticidade, o programa de Heidegger dedicado à fenomenologia será, portanto, praticar uma "hermenêutica da facticidade", num esforço de compreender a vida concreta como fenômeno, tal como preconiza a fenomenologia, isto é, como ela se mostra por si mesma, deixando-a aparecer em sua essência, em seu ser.
A necessidade de praticar essa hermenêutica da facticidade - com vistas a apreender uma nova ontologia que coloque a questão do ser em uma outra perspectiva - fará Heidegger se interessar pelo projeto de uma fenomenologia da religião dos primeiros cristãos. Seu propósito será, então, circunscrever e salvar o elemento vivo da vida de influências estranhas que se infiltraram tanto na mística medieval quanto no protocristianismo. O aparecimento da patrística e, a fortiori, da escolástica seriam, em última instância, no entender de Heidegger, a consolidação dessas influências estranhas. No seu curso de semestre de inverno de 1919-20, Heidegger diz que aquela experiência inicial da vida cristã dos primeiros três séculos de nossa era "[...] foi deformada [verbildet] e soterrada [verschüttet] por meio da antiga ciência no interior do cristianismo" (Heidegger 1993, GA 58, p. 205).
Felizmente, diz Heidegger, sempre tem aparecido vozes e movimentos nascidos de dentro do próprio cristianismo que procuraram resgatar essa experiência inaugural cristã, desvencilhando-a dessas influências estranhas da antiga ciência. Tais vozes, afirma Heidegger, "[...] se impõem em poderosas erupções", tal como é manifestado "[...] em Agostinho, em Lutero, em Kierkegaard" e é "apenas daqui (do protocristia-nismo) que a mística medieval pode ser compreendida" (idem). Para essas vozes, resgatar esse elemento vivo da vida, presente no cristianismo inicial, era, segundo Heidegger, o mesmo que lutar "contra a antiga ciência, a de Aristóteles acima de todas", que, na virada para o segundo milênio, deveria se tornar "[...] o filósofo do cristianismo oficial", fazendo com que "[...] as experiências internas e a nova atitude de vida [do cristianismo primitivo] fossem forçadas [a se adaptar] às formas de expressão da antiga ciência" (ibid., p. 61).
É para essa impregnação aristotélica da escolástica que se dirige, especialmente "religiosa e teologicamente, o contra-ataque de Lutero" (Heidegger 1985, GA 61, p. 7), um desses lutadores mais ferrenhos contra a theologia gloriae, nome que dava a esse conhecimento, emprestado da metafísica grega que quer ver Deus como o summum ens, a Causa primeira, envolto em glória, poder, esplendor e majestade. Nessa teologia, diz Heidegger, Lutero via nada além de uma especulação quietista, ocular e estética, carregada de presunção e soberba que, em última instância, escondia o desejo de poder e domínio. A essa teologia, Lutero contrapõe a theologia crucis, que fala de um Deus oculto no sofrimento da cruz, sobre o qual nenhum conhecimento pode exercer qualquer forma de apreensão teórica ou objetificação conceitual, restando apenas uma fé vigilante e inquieta que, sem segurança alguma, é capaz de "[...] se entregar à influência de coisas que não vemos" (Heidegger 1972, p. 107).3 Por isso, afirma Heidegger em suas notas do curso não ministrado de 1919 sobre mística medieval - "Os fundamentos filosóficos da mística medieval" (Die philosophischen Grundlagen der mitteralterlichen Mystik) -, em consonância à theologia crucis de Lutero: "[...] eu não preciso de rastro algum de filosofia da religião enquanto homem religioso" (Heidegger 1995, GA 60, p. 309).
É, portanto, sob esse horizonte luterano de disputa contra a escolástica aristotélica, incluindo a de Kierkegaard também, que Heidegger investiga o fenômeno originário do religioso. Na verdade, mais do que os aspectos críticos ou negativos, o seu interesse está muito mais sintonizado com as análises positivas da vida cristã inicial desses teólogos (mistério, tempo kairológico, parousia, queda), uma vez que elas lhe servem de matriz ôntica para o seu modelo ontológico, pois estão presentes na experiência em geral da vida fáctica.
Essa tomada de posição de Heidegger _ assumindo a vida cristã inicial como matriz _ repousa na sua interpretação de que "o paradigma histórico mais profundo para este processo, digno de nota - [isto é, o] da transferência do centro de gravidade (Schwerpunktes) da vida fáctica e do mundo da vida para o mundo do si mesmo e para o mundo das experiências interiores -, nos é dado com o nascimento da cristandade" (Heidegger 1993, GA 58, p. 61).
Este será, portanto, o foco de sua fenomenologia da religião: mostrar como a vida fáctica, a vida vivida no mundo concreto, histórico, é transferida, na cristandade primitiva, para experiências vivas no interior do si mesmo, em profundo contraste com a visão naturalista e substancialista da antiga ciência dos gregos. Nesse sentido, o propósito de Heidegger será, então, a destruição do arcabouço conceptual grego do pensamento teológico tradicional, que teria penetrado no mundo do cristianismo primitivo, com o intuito de apreender as experiências religiosas da vida cristã em seu caráter originário, distorcidas por categorias e conceitos de um modo de pensar estranho à essência dessas experiências.
Assim, o Deus do paradigma escolástico, que aparece para a teologia especulativa como summum ens, deverá ser desconstruído em prol de uma experiência mais fundamental de Deus, presente no Novo Testamento como Deus absconditus, que é acessível apenas para uma fé inquieta e em alerta dentro do tempo kairológico. Mas Heidegger não quer apenas desconstruir a teologia escolástica ao reconduzi-la a uma experiência mais originária, oculta para ela mesma, presente, porém, na vida cristã inicial; ele pretende também promover uma inversão desconstruidora por meio da qual ele poderia mostrar que, por trás dessa experiência no âmbito do religioso (ôntica, cristã), existe uma outra mais ampla, pertencente à condição humana (ontológica, geral).
Nesse sentido, a fenomenologia da vida religiosa que Heidegger quer praticar é muito mais um deixar o fenômeno da religião aparecer por ele mesmo, sem "o quê" (Was) de seu conteúdo confessional, mas apenas um certo "como" (Wie) de suas conexões originárias. Na verdade, o que o jovem filósofo quer mostrar é que "o fenômeno da religião não é a religião. Ele começa a aparecer quando a religião é vista como vida fáctica no coração do si mesmo" (Fédier 1997, p. 158). Tal acontecimento se dá quando a vivência religiosa significa o mesmo que "unidade interior da vida" (Heidegger 1995, GA 60, p. 322). Esse foi o motivo pelo qual a escolástica, no entender de Heidegger, se armou tanto da metafísica teórico-naturalista de Aristóteles, pois o seu intuito era fazer uma "forte pressão - com o conseqüente esquecimento da religião por força de teologia e de dogmas - contra a "imediatidade da vida religiosa" (ibid., p. 314).
Entretanto, por volta de 1921, Heidegger se distancia desse projeto, talvez pela impossibilidade de estudar a teologia fenomenológica regional sem antes pensar numa ontologia fenomenológica geral do ser que lhe fornecesse as novas bases ou, então, por influência do trabalho de Franz Overbeck, surgido no final do século XIX, que insistia na impossibilidade de tratar a cristandade em uma ciência. O interesse de sua pesquisa se voltaria, então, para Aristóteles. Neste grande pensador, Heidegger descobre que não existem apenas conceitos teórico-naturalistas, tal como pensava Lutero e Kierkegaard, mas também conceitos da vida prática por meio dos quais suspeita poder encontrar "dicas" do espírito vivo para o seu projeto de construção de sua ontologia da facticidade.
5. O espírito vivo nos escritos práticos de Aristóteles
No semestre de inverno de 1921-22, ainda em Freiburg e, dois anos depois, a partir do semestre de inverno de 1923-24, quando inicia seus cursos em Marburg, Heidegger entra em contato com o terceiro pólo de influência em seu pensamento (além do da fenomenologia e do da cristandade): o seu encontro com Aristóteles que, evidentemente, tal como veremos a seguir, foi bastante diferente do que ocorreu nos tempos de estudante do ginásio, por meio da obra de Brentano (1907).
Agora - uma vez abandonado o projeto anterior de iniciar uma nova ontologia que requeria a dimensão da fé (horizonte paulino-agostiniano) -, Heidegger se volta inteiramente para a ontologia aristotélica, num intenso engajamento com as obras do Estagirita. Instrumentado pelos textos críticos de Lutero e Kierkegaard sobre o aristotelismo escolástico e sobre o próprio Aristóteles e com a ajuda da fenomenologia, Heidegger procura, na verdade, ter duas atitudes básicas na sua pesquisa de Aristóteles: uma de descontrução e outra de aproveitamento, com as quais nos ocuparemos a seguir.
A primeira procura dar continuidade ao seu projeto de desconstrução da metafísica, presente especialmente nos escritos teóricos de Aristóteles, ou seja, desmantelar o traço naturalista do ente simplesmente dado (Vorhandenheit), presente nas categorias do ser, especialmente da ousía, que Heidegger interpreta como "presença constante", mostrando que ela está na base das idéias aristotélicas sobre "teoria" (theoria), causa (aitia), tempo (chronos), Deus (theós), etc. Esse caráter natural por trás dessas palavras-guia está, segundo Heidegger, absolutamente distante do caráter vivo, temporal e histórico do ser, tal como ele se apresenta na vida fáctica.
E é assim que Heidegger, com a ajuda de Kierkegaard - a quem reconhece que, nos temas relativos à singularidade da condição humana, "fortes impulsos [...] vieram do trabalho de Kierkegaard" (Heidegger 1988, GA 63, p. 30) _, procura refletir sobre a idéia de um ser humano (Menschsein) singular que brota de forma exclusiva da experiência fáctica da vida, cujo caráter essencial é o de ser em um mundo (Sein in einer Welt) e em cuja cotidianidade (Alltäglichkeit) suas vivências são superficiais, envoltas na publicidade (Offentlichkeit), no falatório (Gerede), na mediania (Durchschnittlichkeit), no impessoal (Man) (ibid., p. 31), mascarando, assim, o seu ser mais próprio. Tudo isso, no entender de Heidegger, fica muito distante do ser humano tal como o conceito aristotélico de homem - zõon lógon échon e a sua tradução latina em animal rationale - procura apreender por meio de seu traço naturalista e universal, no interior do qual, e aí o filósofo fala por meio das palavras de Kierkegaard, "[...] um ser humano significa: pertencer, enquanto exemplar, a uma raça [Geschlecht] dotada de razão, de modo que a raça, a espécie [Art], seja superior ao indivíduo ou que haja apenas exemplos e não indivíduos" (ibid., p. 108).
Desse modo, somente se decidindo por uma "filosofia enquanto "vivência'" (Heidegger 1985, GA 61, p. 35) poder-se-ia, verdadeiramente, ter diante de si a coisa (Sache) digna de ser posta em questão (Fragewürdig), se esse perguntar por ela estiver enraizado num solo vivencial do mundo concreto e nascer da inquietude e do espanto originários " que nunca são neutros, nem nunca chegam de fora - da existência fáctica. Infelizmente, diz Heidegger, o que acabou se consolidando na tradição foi a interpretação aristotélica do ser como ousía que tem "o significado efetivo [...] de propriedade [Besitzstandes], do que [é] ambientalmente disponível para o uso" (Heidegger 1989, p. 253), ou seja, o caráter ôntico-entitativo de nossa relação como o ser das coisas. No interior de uma tal interpretação, percebemo-nos cercados de simples coisas que estão aí em sua presença constante - sejam elas os pertences de uma família, as construções da cidade-estado ou as estrelas do cosmos -, apreendidas em sua mera manifestação e visibilidade permanentes.
Todavia, essa atitude de desconstrução em relação aos escritos teóricos de Aristóteles não é a única de Heidegger. A outra atitude, a de aproveitamento, descobre nos escritos práticos do Estagirita um pensamento diferente, mais próximo do caráter fáctico da vida. Ao contrário da atitude de desconstrução, o propósito de Heidegger aqui é fazer uso - tal como ele o fez em sua pesquisa do cristianismo primitivo - do modelo ôntico das análises aristotélicas da vida moral como categorias de sua nova ontologia da facticidade. Esse outro pensamento é, por sinal, reconhecido pelo próprio Aristóteles ao admitir dois modos de pensar, o nous theoretikós e o nous praktikós, cuja diferença se deve, em suma, segundo o filósofo grego, ao fato de o último modo de pensar ser sempre dirigido para um fim, uma vez que "[...] todo aquele que produz alguma coisa o faz com um fim em vista" (Aristóteles 1979, Ética a Nicômaco, Livro VI, 1139b, p. 142). Ora, esse nous interessado e orientado para a obtenção de um determinado fim no âmbito da práxis humana é o que Aristóteles chama de "movimento" (kínesis) que, por sua vez, produz a transição entre a possibilidade (potentia) e a atualidade (actum).
Heidegger descobre, então, que precisa "jogar" com os dois escritos de Aristóteles, ou seja, colocar os seus escritos práticos contra os seus próprios escritos teóricos. Na verdade, as duas atitudes de Heidegger acabam por se interligarem, uma vez que o aproveitamento dos escritos práticos passa a ser usado como ponto de referência para reconduzir os conceitos-chave de seus escritos teóricos no seu processo de desconstrução, pois aqueles, segundo Heidegger, são mais fundamentais e originários, porque mais próximos da experiência fáctica da vida.
O próprio Aristóteles, afirma Heidegger, já faz esse exercício de desconstrução em sua Ética a Nicômaco em pelo menos duas ocasiões. A primeira, ao destruir a idéia de "bem" (agathón) de Platão quando diz que "[...] como a palavra "bem" tem tantos sentidos quantos "ser" [...] está claro que o bem não pode ser algo único e universalmente presente, pois se assim fosse não poderia ser predicado em todas as categorias, mas somente numa" (ibid., Livro I, 1096a, p. 53). A segunda, quando afirma que na filosofia prática não se deve começar nas alturas, mas "[...] pelas coisas que nos são conhecidas, a nós. [...] Porquanto, o fato é o ponto de partida e, se for suficientemente claro para o ouvinte, não há necessidade de explicar por que é assim" (ibid., Livro I, 1095b, p. 51).
Por conseguinte, das múltiplas relações vivenciais ligadas ao "fato", pensa Heidegger, brotaria, então, todo genuíno conteúdo do conhecimento, mas este, por sua vez, também deverá voltar para essas vivências fácticas para melhor explicitá-las, fazendo com que esse conhecimento esteja, dessa maneira, permanentemente preso a um círculo de interpretação, uma vez que ele "nasce de uma tal facticidade e para essa facticidade retorna [...]" (Heidegger 1985, GA 61, p. 115).
Há, ainda, em Aristóteles duas "virtudes dianoéticas" (dianoetischen Tungenden): a sabedoria (sophía) e a prudência (phrónesis). Ambas pertencem ao intelecto (nous); ambas também, poderíamos afirmar, são um modo de sabedoria. Sophía, por um lado, é a expressão do intelecto voltado para uma sabedoria filosófica (nous theoretikós), aquele modo de apreensão do ser que se dá ao puro olhar na forma de um puro perceber (reines Vernehmen). Phrónesis, por outro, está voltada para uma sabedoria prática (nous praktikós), ou seja, está mais presente nas atividades e negócios humanos que segue a vigência do tempo, isto é, ela é uma sabedoria dotada de presença provisória, alteridade e historicidade.
Heidegger entende que este conceito prático de Aristóteles, phrónesis, é muito próximo de sua noção de facticidade e é esta virtude da sabedoria prática do Estagirita que, na sua opinião, conduziria o "como" (Wie) da lida da existência humana para a guarda de seu próprio ser. Portanto, é a partir da phrónesis, assim ontologicamente interpretada, que deverão ser interpretados todos os demais conceitos práticos de Aristóteles, tais como: os dois tipos de verdade, a teórica (theoretiké) e a prática (praktiké); o de apropriado" (hikanós); o de meio-termo (mesótes); o de excesso (hyperbolé); o de falta (elleípsis); o de privação (stéresis) etc. Todos esses conceitos nasceriam, em última instância, do interior da vida prática em que o ente no seu todo se revela no "como" intencional da lida cotidiana, presente na existência fáctica.
6. Conclusão
Ao final desta exposição, em que pudemos acompanhar os primeiros passos de Heidegger em direção ao problema do ser, anteriores ao aparecimento de Ser e tempo, em 1927 - o seu encontro com Aristóteles em 1907, o seu trabalho de habilitação sobre Duns Scotus, a sua experiência da guerra, o seu afastamento do neokantismo e da fenomenologia de Husserl e, ainda, a sua pesquisa experimental tanto do cristianismo primitivo quanto dos textos práticos de Aristóteles -, procuramos tornar visível o esforço do jovem filósofo no seu propósito de realizar uma passagem entre dois importantes padrões de pensamento: o natural e o humano.
Tal esforço teria, tal como vimos anteriormente, duas frentes. Por um lado, uma luta encarniçada para desconstruir o modo naturalista de pensar que prima, desde o início da tradição metafísica, por uma interpretação objetificadora do ser e por um "humanismo" que visaria a "domesticação" e controle do real na tentativa de alcançar o asseguramento e a autoconservação do homem contra a estranheza e o perigo de sua própria existência. Por outro, apontar para a existência de uma outra parte esquecida da nossa experiência de pensamento, que abriria para o homem o acesso a um novo tipo de humanidade mais sutil e originária. Todavia, para apreender esse outro tipo de humanidade, é preciso renunciar a todas aquelas imagens e conceitos do pensamento metafísico que ensejaram, ao longo da sua história, um ver e um saber representativo do ser, dando lugar a um compreender o ser a partir de uma experiência direta daquilo que nós mesmos somos. Desse modo, pensar o humano em sua essência, entende Heidegger, não se dá, primordialmente, pelo viés de um saber natural-teórico com o intuito de controlar as faculdades ou capacidades humanas, mas, antes, por um caminhar arriscado na borda de um abismo, porque um tal pensar nunca se desvencilha do perigoso fardo que a essência do humano, o Dasein, é para ele mesmo. Por conseguinte, representar o humano de um modo "urbanizado", tal como fazem o saber filosófico, teológico e científico, seria, em última instância, segundo Heidegger, uma elegante e astuciosa maneira de se esquivar de pensá-lo. Como conse-qüência, a humanitas e a libertas do homem não seriam conquistadas, como sempre acreditou a metafísica, por um modo de pensar que envidasse todos os esforços para "colonizar" o real, mas, justamente o contrário, para aceitá-lo e assumi-lo com o risco que lhe é inerente, do interior do qual brotariam as originárias condições ontológicas de sua humanidade.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail:jocmiche@yahoo.com.br
Recebido em 18 de dezembro de 2004.
Aprovado em 09 de maio de 2005.
1 Embora o procedimento de Heidegger de promover a desmontagem do traço teórico e especulativo, enquanto elemento constitutivo da metafísica - reconduzindo o pensamento ao seu modo mais originário de ser, levado pelos ventos da redução propostos pela iniciante fenomenologia -, já esteja presente nesse trabalho, todavia, o surgimento dos termos "destruição" (Destruktion) e "desconstrução" (Abbau), tomados no sentido técnico, acontecerá apenas nos seus trabalhos a partir de 1919.
2 Essa questão da responsabilidade da Academia - tanto no que se refere ao colapso quanto ao resgate do espírito vivo - é tão presente em Heidegger que um dos cursos que ministra no ano seguinte ao término da guerra, no verão de 1919, intitula-se: "Sobre a essência da universidade e do estudo acadêmico" (Über Wesen der Universität und des akademischen Studiums), recolhido hoje em Zur Bestimmung der Philosophie (Heidegger 1987, GA 56/57).
3 Essa interpretação de Lutero sobre a fé, que nessa conferência Heidegger cita textualmente, é, por sua vez, ancorada na epístola de Paulo aos Hebreus (11, 1).