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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008
ARTIGOS
Recepção e diálogo - Heidegger e a filosofia japonesa contemporânea1
Reception and dialogue - Heidegger and comteporany Japonese philosophy
Antonio Florentino Neto
Universidade Federal de Uberlândia, pesquisa financiada pela FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais)
RESUMO
O pensamento japonês contemporâneo (Escola de Kyoto) surge e se consolida em diálogo com a tradição filosófica ocidental. Nishida se confronta com os principais problemas da história da filosofia ocidental. Com Tanabe a Escola de Kyoto entra em contato com Heidegger, que se torna o principal interlocutor ocidental de todas as gerações posteriores: Hisamatsu e Nishitani, Ueda e Tsujimura, e por último, Ohashi. As questões filosóficas tratadas por Heidegger, principalmente sua reflexão sobre a linguagem, torna-se um dos principais pontos de partida para o início do diálogo entre o pensamento japonês contemporâneo e a filosofia ocidental.
Palavras-chave: Pensamento japonês, Escola de Kyoto, Heidegger, Recepção e Diálogo.
ABSTRACT
Contemporary Japanese thought (Kyoto School) emerges and engages in dialogue with Western philosophical tradition. Nishida is confronted with the main problems in the history of Western philosophy. With Tanabe, the Kyoto School comes into contact with Heidegger, who becomes the main Western interlocutor with all subsequent generations: Hisamatsu and Nishitani, Ueda and Tsujimura and, finally, Ohashi. The philosophical issues addressed by Heidegger, especially his reflection on language, become the main points of departure for the start of a dialogue between contemporary Japanese thought and Western philosophy.
Keywords: Japanese thought, Kyoto School, Heidegger, Reception and Dialogue.
Heidegger esteve ao longo de sua carreira acadêmica em contato com o pensamento e pensadores asiáticos. Desse contato se desenvolve um dos mais instigantes e fecundos intercâmbios da história da filosofia contemporânea. Uma troca de idéias, nessa dimensão, pode ser compreendida, por um lado, quando se percebe o alcance da influência do pensamento de Heidegger no universo acadêmico oriental, principalmente na China, Coréia e Japão. Por outro lado, quando se constata que no século XX a ida dos mais importantes pensadores asiáticos, principalmente japoneses, para a Europa está vinculada direta ou indiretamente a Heidegger, como mostrarei neste texto. Portanto, o caráter geral deste artigo se justifica pela amplitude do tema e pela inexistência2 de publicações no Brasil que abordem, ainda que introdutoriamente, estas questões.
Seis anos antes da publicação de Ser e tempo, no ano de 1921, os cursos de Heidegger são freqüentados, pela primeira vez, por um estudante japonês. Yamanouchi vai para a Alemanha para assistir as aulas de Husserl e entra em contato com Heidegger, que nesta época era professor assistente em Freiburg. Um ano depois seguem outros dois japoneses para a Alemanha: Kiyoshi Miki e Hajime Tanabe. Ambos têm vínculos diretos com o mais influente pensador japonês contemporâneo - Kitaro Nishida3 - e freqüentariam os cursos de Husserl sob sua recomendação. A relação entre o pensamento de Heidegger e o de Tanabe permanece desconhecida pela filosofia alemã até hoje, enquanto que, para o pensamento japonês do século XX, este encontro representa um marco significativo, visto que a filosofia heideggeriana exercerá forte influência no pensamento de Tanabe, que por sua vez influenciará, direta e indiretamente, todas as gerações posteriores da Escola de Kyoto.
Em 1924, Tanabe publica no Japão um artigo com o título A nova reviravolta na Fenomenologia - A fenomenologia da vida de Heidegger4. Esse artigo, que é ao mesmo tempo um relato e comentário de Tanabe sobre as conferências de Heidegger intituladas Hermeneutik der Faktizität, proferidas no semestre de verão de 1923, é o primeiro escrito sobre o pensamento de Heidegger e marca o início da recepção da fenomenologia hermenêutica no Japão. Nesta publicação Tanabe aponta o pensamento heideggeriano como uma nova direção dada à fenomenologia, direção considerada como sendo a superação da perspectiva “idealista” da Fenomenologia Transcendental de Husserl. Esta relação precoce entre Tanabe e Heidegger e seu desdobramento em forma de influência tem resultados imediatos na receptiva cena intelectual japonesa do início do século XX, como é o caso de Shuzo Kuki.
O mais conhecido encontro de Heidegger com um filósofo japonês se dá em 1927, na casa de Husserl, onde Heidegger entra em contato pela primeira vez com Kuki (cf. Light, 1987, p. 6). Esse encontro será seguido por vários outros e resulta na publicação de escritos fundamentais para os dois filósofos: A Estrutura do Iki5 de Kuki e o texto mais particular de Heidegger com o título De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador (Heidegger, 2004, pp. 71-120), que Heidegger escrevera no final da década de 50, em forma de diálogo. Neste texto, as questões que Heidegger e Kuki discutiram são retomadas e postas em primeiro plano, o que faz de Kuki o personagem principal desse texto-diálogo
de Heidegger.
A influência de Heidegger sobre o livro de Kuki poderia parecer insignificante se considerarmos que o desenvolvimento da escola de Kyoto não seria imaginável sem o pensamento heideggeriano. Pode-se observar na análise de Kuki sobre o termo Iki a intensidade da troca de idéias entre a filosofia japonesa e a alemã, quando Kuki recorre claramente a conceitos e métodos do pensamento ocidental, não somente, mas principalmente, de Heidegger, em sua análise do termo japonês Iki. O livro de Kuki é publicado em 1929. Porém, seus manuscritos datam de antes da publicação de Ser e tempo, e o primeiro encontro entre Kuki e Heidegger ocorre depois de 1927, o que mostra que Kuki já estivera em contato com a hermenêutica ontológica antes deste primeiro contato direto com Heidegger e antes mesmo da publicação de Ser e tempo. O que se explica, todavia, pelo fato de Kuki ter lido a publicação de Tanabe sobre Heidegger.
Diretamente ligado ao encontro de Heidegger com Kuki está o encontro de Heidegger com o germanista japonês Tomio Tezuka, em 1954, na cidade de Freiburg. Heidegger descreve em seu texto-diálogo De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador, a conversa que tivera com Tezuka6. Este texto-diálogo tem início com o comentário sobre a morte precoce de Kuki e se desenvolve com a retomada dos temas que Heidegger tratara com Kuki, no final da década de 1920, principalmente sobre a estética e sobre a língua japonesa. Apesar das imprecisões de Heidegger sobre certos aspectos abordados neste texto (ver, por exemplo, May, 1989, p. 27), ele se torna uma das fontes e referências mais fecundas para o diálogo entre o pensamento oriental e ocidental na filosofia alemã do século XX.
As idéias que Heidegger desenvolve neste texto-diálogo surgem não só destas primeiras conversas com Kuki. Muitos outros encontros importantes entre Heidegger e pensadores japoneses acontecem antes de 1959, ano da publicação desta obra. Entre outros, quero ressaltar, em especial, o encontro de Heidegger com Nishitani, um dos principais expoentes da segunda geração da Escola de Kyoto, que aos 24 anos de idade conclui seu trabalho de doutorado com o título O ideal e o real em Schelling e Bergson, na Universidade de Kyoto. Em 1938/39 Nishitani freqüenta os cursos de Heidegger, em Freiburg, onde apresenta um seminário sobre Nietzsche e Mestre Eckhart.
Nishitani marca o início da radicalização da análise do “nada absoluto” da Escola de Kyoto a partir da crítica de Heidegger ao niilismo europeu, e ele apresentará um ousado trabalho nos cursos de Heidegger sobre o conceito “nada” em Nietzsche e Mestre Eckhart (Ohashi, 1989a, p. 34). Além de Nishitani, vários outros interlocutores japoneses dessa geração, tais como Daisetz Teitaro Suzuki7 e Hisatamatsu, contribuíram diretamente para a formação das referências de Heidegger sobre o pensamento japonês.
Em seu texto-diálogo, Heidegger faz não só a sua melhor auto-interpretação, mas também coloca, de maneira clara, a pergunta sobre a essência do pensamento oriental. Este texto-diálogo é, além disso, o auge da fase taoísta-zenbudista de Heidegger, que tem início com seu trabalho, em conjunto com Hsiao, na tradução do Tao-te-king. O envolvimento de Heidegger com a tradução deste livro clássico, do chinês para o alemão, ocorrido no verão de 1946, explica, em parte, a freqüente recorrência de Heidegger a conceitos e elementos taoístas8 a partir de então, e é, pelo que se sabe até hoje, a única experiência de Heidegger com a interpretação de textos em uma língua oriental. Esta experiência mal sucedida, interrompida por dificuldades previsíveis, visto que Heidegger não possuía o menor conhecimento do chinês ou japonês, se expressa em sua forma mais elaborada em seu texto-diálogo.
No início do texto-diálogo, Heidegger pergunta ao interlocutor japonês, ou seja, a Tezuka, se os orientais precisavam recorrer a conceitos europeus para analisar sua arte, como Kuki fizera.
Cito a seguir um trecho deste diálogo:
J - Ao voltar da Europa, o conde Kuki proferiu em Kyoto várias conferências sobre a estética da arte e da poesia japonesa, publicadas posteriormente. Procurou considerar a essência da arte japonesa valendo-se da estética européia.
P - Mas será que para tal propósito devemos lançar mão da estética?
J - Por que não?
P - A palavra estética e o que ela evoca provêm do pensamento europeu, da filosofia. A consideração estética deve ser, assim, estranha ao pensamento oriental.
J - O senhor tem toda razão. Mas nós japoneses precisamos recorrer ao préstimo da estética.
P - Para quê?
J - A estética nos empresta os conceitos necessários para apreender o que nos chega na arte e na poesia.
P - Vocês precisam de conceitos?
J - Provavelmente sim. O encontro com o pensamento europeu revelou uma incapacidade de nossa língua. (Heidegger, 2004, pp. 71-72)
Esta passagem do texto-diálogo toca em um ponto central da discussão sobre a diferença entre o pensamento ocidental e oriental. Heidegger utiliza ali a expressão “estética européia” e com isso parece deixar em aberto a possibilidade de uma “outra estética”. Ao mesmo tempo é afirmada a impossibilidade de um olhar estético oriental, visto ser a estética um recurso exclusivo do pensar filosófico ocidental. Isto é, na verdade, uma decorrência das afirmações de Heidegger, de que o conceito de “filosofia ocidental” seja uma tautologia (Heidegger, 1973a, p. 212), visto ser a filosofia essencialmente greco-européia. A seqüência do diálogo torna -se ainda mais interessante, quando Heidegger pergunta ao seu interlocutor japonês, se ele utiliza um olhar estético filosófico para compreender a arte japonesa. A resposta afirmativa é seguida pelo argumento de que
a língua japonesa não estaria em condições de entrar no mundo da filosofia ocidental. A língua japonesa, ao entrar em contato com o universo cultural europeu, teria revelado a sua deficiência.
P - Há algum tempo, com muita timidez, chamei a linguagem de casa do Ser. Se, pela linguagem, o homem mora na reivindicação do ser, então nós europeus, pelo visto, moramos numa casa totalmente diferente da oriental.
J - Na suposição de que essas línguas não apenas são diferentes, mas que possuem fundamentalmente outra essência.
P - Assim a conversa de uma casa para outra se torna quase impossível.
Heidegger chama a linguagem de casa do Ser (Heidegger, 1973b, p. 371) pela primeira vez no texto “Carta sobre o Humanismo”, de 1947, ou seja, pouco depois de seu trabalho de tradução de parte do Tao-te-king, em colaboração com Hsiao, do chinês para o alemão. Esta denominação é repetida posteriormente, no texto-diálogo. Estes dois momentos se dão após um contato muito próximo de Heidegger com o universo do pensamento oriental e das línguas ideogramáticas.É importante ressaltar que o trabalho de tradução do Tao-te-king é interrompido, como Heidegger argumenta, em carta a Jaspers (Heidegger & Jaspers, 1992, p. 181), por ser, para ele, a essência da língua chinesa totalmente estranha.
O pressuposto de Heidegger sobre estranheza da diferença essencial entre as línguas européias e as línguas orientais, especificamente do chinês e do japonês, é o que o permite levantar o problema da impossibilidade da comunicação entre essas duas casas tão distintas e conseqüentemente da possibilidade de se traduzir do alemão para o japonês.
Tezuka, o interlocutor no texto-diálogo, publicou em japonês, no ano de 1955, sua versão sobre seu encontro com Heidegger, que somente no final da década de 1980 seria traduzido para o alemão. O relato de Tezuka diverge em alguns pontos do diálogo de Heidegger, e são justamente estas divergências que permitem uma instigante análise sobre a postura de Heidegger diante do universo oriental, principalmente sobre a língua japonesa. De acordo com o relato de Tezuka, ele fora questionado por Heidegger sobre o caráter da língua e da arte japonesa. Diante da resposta de Tezuka de que a arte japonesa aspira à “espiritualidade” e à “sensibilidade”, Heidegger teria lhe perguntado se este aspirar à “espiritualidade” não seria de natureza metafísica (Tezuka, 1989, p. 89). Tezuka responde que sim e Heidegger teria concluído a reflexão comparando este “aspirar” da arte japonesa com o caráter metafísico das idéias em Platão.
Para Tezuka, Heidegger teria reconhecido o caráter metafísico da arte japonesa, o que significaria, conseqüentemente, o reconhecimento da metafísica como a manifestação do pensamento não somente greco-europeu, mas também oriental. A análise de Tezuka sobre o diálogo com Heidegger não aponta dificuldades significativas que pudessem inviabilizar o diálogo entre o universo oriental e ocidental, e ele não se refere em momento algum a uma “deficiência” da língua japonesa para considerações estéticas. De acordo com Tezuka, a reação de Heidegger aos seus comentários deixa claro que os dois pensadores interpretaram de maneiras muito distintas os principais temas tratados no encontro.
Hisamatsu e Nishitani são os principais representantes da segunda geração da escola de Kyoto e marcam também uma nova fase da recepção do pensamento de Heidegger. Tanto Hisamatsu quanto Nishitani têm como ponto de referência fundamental o zen-budismo em diálogo com a tradição filosófica ocidental, principalmente com a mística de mestre Eckhart e as reflexões de Heidegger sobre o nada e o niilismo ocidental.
A nova fase da filosofia japonesa moderna, que surge com Nishitani, marca também o momento decisivo da passagem para a terceira geração da Escola de Kyoto que dialoga com Heidegger. Com Nishitani são preparados os fundamentos para uma nova geração de pensadores japoneses, que estarão em contato direto com todas as questões filosóficas importantes para Heidegger. Ele é o último filósofo japonês da Escola de Kyoto que pode ser considerado interlocutor de Heidegger, marcando tanto o fim do diálogo direto com Heidegger, como também a passagem de Nishida e Tanabe para uma nova geração, que surge com Ueda e Tsujimura, este último, considerado o primeiro “discípulo” japonês de Heidegger e também o representante mais importante da terceira geração da Escola de Kyoto.
A análise de Tsujimura sobre a relação entre a “Pergunta sobre o Ser” em Heidegger e o “nada absoluto” da Escola de Kyoto permanece ainda dentro da perspectiva de Hisamatsu e Nishitani9. Porém, a radicalidade de sua reflexão se mostra ao admitir que com Heidegger a perspectiva zen-budista se depara com a eminente necessidade de se propor a pensar, também, a questão da essência da técnica no mundo moderno (Tsujimura, 1983, p. 165). De acordo com Ohashi, nenhum outro filósofo japonês teria sido tão fortemente influenciado pela filosofia de Heidegger como Tsujimura (Ohashi, 1989a, p. 35), tendo ao mesmo tempo permanecido vinculado à perspectiva inicial da escola de Kyoto.
Em 1969, quando Heidegger comemora seu aniversário de 80 anos, Tsujimura é escolhido como orador da comemoração. Quase 50 anos depois do encontro com Miki e Tanabe, quase meio século de constantes contatos entre Heidegger e o pensamento oriental, será um filósofo japonês quem terá a palavra na festa comemorativa do aniversário do mais influente filósofo alemão do século XX. O motivo para isso não poderia ser de cunho pessoal, pois Tsujimura não pertencia ao restrito grupo de amigos íntimos de Heidegger. A relação entre os dois pensadores se limitava ao plano profissional. Portanto, não existe outro motivo para este convite, a não ser o reconhecimento de uma intensa e frutífera discussão filosófica que Heidegger manteve, permanentemente, com o pensamento japonês.
Em seu discurso Tsujimura ressalta a importância do pensamento de Heidegger para a filosofia japonesa. Ele fala ainda sobre o perigo de uma pura europeização do pensamento japonês, que recebia, há mais de um século, fortes influências da filosofia européia. Para ele, a europeização do Japão foi um passo necessário na direção do mundo moderno, da inevitável difusão da ciência e da técnica ocidental. Em seu discurso, ele fala de um “perigo” que deve ser combatido, o perigo da pura substituição da tradição japonesa, do zen-budismo, pelos valores europeus. Neste sentido o pensamento de Heidegger significa, para Tsujimura a possibilidade de uma profunda discussão entre o mundo tradicional oriental e a filosofia moderna ocidental.
Ainda no discurso, Tsujimura trata da questão referente às proximidades e às distâncias entre o pensamento de Heidegger e o zen-budismo. Esta abordagem mostra que Tsujimura tinha claro a fronteira entre as duas correntes de pensamento. Para ele, a filosofia de Heidegger não apresenta influências consideráveis do pensamento oriental, mas o pensamento japonês, especificamente o zen-budismo, pode alcançar, em diálogo com o pensamento de Heidegger, um novo plano. Tsujimura ressalta tanto as semelhanças como as diferenças entre o pensamento de Heidegger e o zen-budismo, para mostrar que, com a filosofia heideggeriana o pensamento tradicional japonês pode problematizar também a técnica moderna do mundo industrial.
Como agradecimento ao discurso de Tsujimura, Heidegger menciona o fato de ter tido a sua conferência de1930, O que é metafísica?, traduzida para o japonês pelo então estudante do ciclo básico Yuassa, e que esse mesmo estudante teria sido o único que não confundira sua reflexão sobre o “nada” com o niilismo ocidental (Heidegger, 1989, p. 166). A afirmação de Heidegger de que um estudante japonês tenha compreendido com excelência sua conferência aponta o reconhecimento, por parte de Heidegger, de certa proximidade de sua filosofia com o pensamento japonês. O fato de que essa conferência tenha sido interpretada como niilismo pelos pensadores europeus representa para Heidegger um mal entendido. Suas reflexões sobre o nada, no entanto, tornam-se tema principal para muitos outros pensadores japoneses que estiveram em contato com o seu pensamento.
A quarta geração10 da Escola de Kyoto se distancia significativamente das preocupações originais e se dedica aos mais variados temas, tais como: estética, história da filosofia ocidental, técnica, linguagem, tradutibilidade, e principalmente sobre a influência do pensamento oriental sobre a filosofia ocidental, em particular sobre Heidegger.
O problema da tradutibilidade da filosofia européia, em especial da filosofia heideggeriana, para o japonês, torna-se uma questão central para Ogawa (Ogawa, 1989, pp. 181-196) e Ohashi (Ohashi, 1989b, pp. 203-214), que escrevem vários artigos sobre esse tema. A afirmação otimista de Ogawa quanto à possibilidade de se traduzir a filosofia de Heidegger para o japonês é, na verdade, uma resposta à dúvida de Heidegger quanto a esta possibilidade. Ogawa afirma que o ceticismo de Heidegger sobre a possibilidade de se traduzir seu pensamento para o japonês se funda em uma concepção equivocada de Heidegger sobre as línguas ideogramáticas, principalmente sobre o japonês (cf. Ogawa, 1989, p. 192).
Com sua tentativa de neutralizar a dura crítica de Heidegger e com isso tornar possível a tradução, sem com isso ter que renunciar a toda filosofia de Heidegger, Ogawa se depara com a discussão entre a concepção japonesa e a concepção européia de linguagem e suas respectivas teorias sobre tradução. Em sua análise ele apresenta novos elementos gramaticais, históricos da língua japonesa e suas experiências com traduções, que permitem uma reflexão mais pontual sobre as objeções que podem ser feitas aos limites das línguas ideogramáticas em relação ao pensamento ocidental, referidos no diálogo de Heidegger.
As reflexões de Ogawa sobre a tradutibilidade e as conseqüências destas reflexões representam um bom exemplo do início de um diálogo entre o pensamento oriental e o pensamento ocidental. Ele parte do princípio de que o ceticismo de Heidegger não é completamente sem fundamento, porém mostra também que as afirmações de Heidegger conduzem a paradoxos ainda mais complexos. De qualquer modo, o provocativo texto-diálogo de Heidegger pode ser considerado o texto que suscitou as discussões mais importantes nesta perspectiva e que podem ser caracterizadas como as condições necessárias para o inevitável início do diálogo entre o pensamento ocidental e oriental.
Referências
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_____(1973b). Sobre o “Humanismo”. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
_____(1989). Aus Martin Heideggers Dankansprache. In Japan und Heidegger. Sigmaringen: Thorbecke. [ Links ]
_____(2004). A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora Vozes. [ Links ]
_____& Jaspers, K. (1992). Briefwechsel, 1920-1963. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann. [ Links ]
Light, S. (1987). Shuzo Kuki and Jean-Paul Sartre, Influence and Counter-Influence in the Early History of Existential Phenomenology. Carbondale and Edwardsville: Southerb Illinois University Press. [ Links ]
May, R. (1989). Ex oriente Lux. Stuttgart: Franz Steiner Verlag. [ Links ]
Ogawa, T. (1989). Heideggers Übersetzbarkeit in ostasiatischen Sprache - Das Gespräch mit einem Japaner. In Pöggeler/Papenfuss (Ed.), Zur Philosophischen aktualität Heideggers. Frankfurt am Main: Vitorio Klostermann. [ Links ]
Ohashi, R. (1989a). Die frühe Heidegger-Rezeption in Japan. In Japan und Heidegger. Sigmaringen: Thorbecke. [ Links ]
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Tezuka, t. (1989). Eine Stunde bei Heidegger. In May, Ex oriente lux. Stuttgart: Franz Steiner Verlag. [ Links ]
Tsujimura, K. (1983). Martin Heideggers Denken und die japanische Philosophie. In Japan und Heidegger. Sigmaringen: Thorbecke. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: floraneto@hotmail.com
Enviado em 25/5/2008
Aprovado em 30/6/2008
1 Este trabalho foi apresentado no II Colóquio sobre o pensamento japonês que ocorreu no dia 15 de dezembro de 2007, na sede da Fundação Japão, em São Paulo.
2A afirmação categórica da inexistência de publicações nessa área se restringe ao universo da filosofia e especificamente ao pensamento japonês contemporâneo.É provável que existam artigos sobre o pensamento oriental no Brasil, mas o pensamento japonês, particularmente a escola de Kyoto permanece, com exceção do grupo de pesquisa sobre o pensamento japonês, que se reúne na Fundação Japão de São Paulo, coordenado pelo Prof. Zeljko Loparic, muito pouco conhecido no meio acadêmico brasileiro.
3Kitaro Nishida é tido como o precursor do pensamento japonês contemporâneo e o principal fundador da chamada Escola de Kyoto, que surge no Japão a partir da reabertura do país para o mundo ocidental. O Japão, que rompera completamente as relações com todos os outros países ocidentais, com exceção da Holanda, durante a dinastia Edo (1600-1868), reabre as fronteiras para o mundo ocidental a partir de 1868, data do início da dinastia Meiji. Com a reabertura do Japão, a filosofia ocidental passa a exercer forte influência no meio acadêmico japonês, e o ápice dessa influência é o surgimento da Escola de Kyoto, que se caracteriza grosso modo por uma análise crítica da tradição filosófica ocidental, a partir dos referenciais do zen-budismo japonês.
4 Este texto de Tanabe foi publicado no Japão em 1924 e a primeira versão em alemão “Die neue Wende in der Phänomenologie - Heideggers Phänomenologie des Lebens” só é publicada em 1985, em Japan und Heidegger, uma coletânea de artigos dedicada à relação de Heidegger e a Escola de Kyoto, editado por Hartmut Buchner, em comemoração ao centenário de nascimento de Heidegger.
5 Kuki escreve um trabalho sobre os diversos significados do termo japonês Iki a partir das referências do pensamento ocidental, principalmente de Bergson e da fenomenologia. La structure de l’iki, Paris 1976. Neste livro, Kuki aponta as dificuldades de se abordar um tema tão particular como este, que está intimamente vinculado à tradição chinesa-confuciana apresentando, ao mesmo tempo, um caráter estético, moral e ainda elementos da vida urbana das gueixas do período Edo.
6 Tezuka também escreveu um relato de seu encontro com Heidegger, que fora publicado em japonês, ainda na década de 50, e só traduzido em 1989 para o alemão. Esse relato, publicado sob o título Eine Stunde bei Heidegger como o posfácio do livro Ex oriente lux - Heideggers Werk unter ostasiatischem Einfluss, de Reinhard May, oferece uma interessante perspectiva de análise, por apresentar uma versão completamente distinta da de Heidegger. Essa diferença será comentada mais à frente, neste artigo.
7Suzuki é um dos principais divulgadores do Zen-budismo no Ocidente. Seus trabalhos já foram traduzidos para quase todas as línguas ocidentais, inclusive para o português.
8O livro de Reinhard May, Ex oriente Lux (1989), traz, pela primeira vez, uma análise sistemática das passagens das obras de Heidegger que se referem ao pensamento oriental.
9Ou seja, ela ainda estaria vinculada aos conceitos metafísicos da Escola de Kyoto, que fora influenciada por Eckhart e Hegel. Principalmente no que se refere ao termo Nada.
10 Ainda é muito cedo para que se chegue a uma clara posição sobre a continuidade da Escola de Kyoto até a quarta geração. De qualquer forma, Ryôsuke Ohashi e Tadaschi Ogawa são os expoentes máximos desta possível geração.