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Natureza humana

versión impresa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Natureza e normatividade na hermenêutica ontológica de Martin Heidegger - parte I1

 

Nature and normativity in Heidegger's ontological hermeneutics - part I

 

 

Róbson Ramos dos Reis

Departamento de Filosofia - Universadade Federal De Santa Maria

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O tema deste artigo é a abordagem hermenêutica do conceito de natureza na ontologia fundamental de Martin Heidegger. Abordamos inicialmente algumas das críticas feitas por Karl Löwith e Helmuth Plessner à ausência da natureza na analítica existencial. A seguir, identificamos os momentos integrantes de um projeto filosófico que pode ser chamado de "hermenêutica da natureza". Finalizamos a primeira parte do artigo apresentando os dois elementos metodológicos desse programa, a saber: a interpretação privativa e a interpretação circular que se movimenta entre conceitos teóricos das ciências da vida e pressuposições ontológicas. Na segunda parte do artigo, abordaremos os desenvolvimentos positivos na hermenêutica da natureza.

Palavras-chave: Heidegger, hermenêutica da natureza, questões metodológicas.


ABSTRACT

The main topic of this paper is the hermeneutic approach of the concept of nature within Martin Heidegger's fundamental ontology. At first, we deal with some fundamental criticisms of Karl Löwith and Helmuth Plessner regarding the missing of nature in the existential analytic. Then, we identify the compounding moments of a philosophical project that can be named 'hermeneutics of nature'. We conclude thefirst part of the paper presenting the two methodological operations of this program: the privative interpretation and the circular interpretation that runs from theoretical concepts of the life sciences to ontological presuppositions and vice-versa. In the second part of paper we shall consider the positive developments in the hermeneutics of nature.

Keywords: Heidegger, hermeneutics of nature, methodological issues.


 

 

Recentes interpretações do projeto da ontologia fundamental de Martin Heidegger destacaram dois elementos que parecem ser antagônicos ao marco geral da fenomenologia hermenêutica. Contra a objeção da falta de todo elemento normativo na ontologia fundamental e na analítica existencial, enfatiza-se o sentido normativo de ser, que deve ser visto como uma instância reguladora de todo comportamento intencional com entes e objetos. Que o intencional é normativo é uma afirmação que somente poderia ser justificada caso se reconhecesse o sentido normativo dos sentidos de ser que sempre estão compreendidos em toda relação humana com entes. Na analítica existencial, além disso, Heidegger teria dado uma contribuição mais fundamental ao identificar na estrutura do cuidado e na temporalidade finita a fonte originária de toda normatividade (Brandom, 1992; Crowell, 2005, 2007a, 2007b e 2008; Haugeland, 1982; Okrent, 2000).

De outro lado, a tradição da fenomenologia inaugurada por Husserllocaliza-se num amplo contexto de objeção ao naturalismo filosófico, entendido como a recusa de uma distinção entre os domínios temáticos da investigação empírica e aquele próprio à investigação filosófica. O conhecimento filosófico, por sua vez, diria respeito à conceitualização das estruturas não empíricas condicionantes de toda inteligibilidade e comportamento intencional. Na noção de diferença ontológica, também seria visível uma concepção acerca do estatuto não natural das estruturas que devem ser conceitualizadas pela investigação filosófica. Contudo, ao recusar a determinação do âmbito dessas estruturas como sendo um reino não físico nem psíquico de validades necessárias, eao concebê-las como condições da inteligibilidade, sempre apropriadas em compreensões faticamente situadas, Heidegger exibiria uma grande proximidade com o naturalismo filosófico (Rouse, 2005a). Ao propor como ponto de partida da interpretação filosófica a cotidianidade existencial mediana, o que se revelaria seria precisamente a recusa de Heidegger em proceder a uma suspensão redutiva do envolvimento natural com o mundo. Ora, se é correto que a fenomenologia hermenêutica pretende assegurar a irredutibilidade dos problemas e métodos filosóficos em relação a toda investigação empírica, também é correto que a determinação existencial de toda compreensão de ser aparentemente também implicaria uma naturalização contingente das condições da inteligibilidade intencional.

É certo que o uso do termo "naturalização" é justificado apenas contrastivamente em relação a alguma forma de apriorismo transcendental, mas não seria apropriado para qualificar o estatuto ontológico da existência e das estruturas existenciais. Um dos problemas mais fundamentais, apresentado quase imediatamente após a publicação de "Ser e tempo", foi exatamente a objeção de que a analítica existencial fazia a abstração inaceitável de todo elemento natural ou vital na determinação do campo próprio da existência humana. Na medida em que a existência, segundo Heidegger, não deve ser compreendida de acordo com os modos de ser da Vorhandenheit, da Zuhandenheit, nem da vida, mas é essencialmente temporal, segue-se que o domínio contingente das estruturas ontológicas não é o da natureza, mas sim o da existência histórica. Por conseguinte, dado que a abertura de ser viabilizada pela compreensão de ser também seria condicionada pela temporalidade existencial humana, assim também não haveria nenhum resquício de natureza ou naturalidade nos sentidos de ser.

O objetivo deste trabalho consiste em examinar a relação entre natureza e normatividade na obra de Heidegger, tomando por base as lições de Marburg e do início dos anos 1930. O intuito principal consiste em mostrar que é possível identificar e examinar os delineamentos de uma abordagem fenomenológico-hermenêutica da natureza no interiorda ontologia fundamental, apesar da falta de desenvolvimento detalhado da temática. Essa abordagem pode ser denominada de hermenêutica da natureza, e um possível desdobramento de tal projeto seria o reconhecimento da relação entre existência e vida. Além disso, entre as consequências mais fundamentais da hermenêutica da natureza está a admissão de um limite da abordagem ek-stático e horizontal em relação à interpretação do modo de ser da vida. O modo de ser da vida revela-se como o campo privilegiado para a interpretação da natureza, trazendo consigo uma problematização da própria ontologia fundamental. Não seria apressado dizer que o problema ontológico da vida não abala propriamente o ontomorfismo (Plessner, 2003, p. 18) na determinação da existência humana, mas acaba, sim, por conduzir a uma compreensão do problema do ser em termos de um fisiocentrismo.

Iniciaremos este trabalho abordando o problema da relação entre a tematização da natureza e o projeto da ontologia fundamental, considerando as razões que justificam a aparente falta de tratamento ontológico do mundo natural tanto em termos gerais quanto no domínio restrito da analítica da existência. Mostraremos que, a despeito da ausência de desenvolvimento do tema, há o reconhecimento da compatibilidade do problema com os objetivos da ontologia fundamental, assim como uma orientação sobre a direção e a forma de abordagem do fenômeno da natureza. A seguir, apresentaremos os delineamentos de uma abordagem hermenêutica da natureza, destacando os problemas e o modo de tratamento do ser natural no interior de uma fenomenologia hermenêutica. O resultado mais importante na reconstrução do esboço de uma hermenêutica da natureza consiste no reconhecimento da importância do problema da vida para a interpretação do sentido primordial do aparecer da natureza, na medida em que a ontologia da vida põe em destaque o sentido do natural como uma dinâmica de inserção e retraimento da natureza no mundo formado pela existência humana. Concluiremos examinando a acepção normativa dos sentidos do ser natural e a importância primordial do fenômeno da natureza, na medida em que avincularidade do natural na formação de mundo é determinante para a finitude de toda vincularidade aos entes, que é proporcionada pela compreensão de ser. Nossa sugestão - acentuada por Heidegger já no período de "Ser e tempo" - é que a retração da natureza primordial é constitutiva do modo como os momentos da formação de mundo são qualificadores da ligação vinculada aos entes.

 

1. Existência humana e natureza

O debate recente em torno da assim chamada questão do animal (Calarco, 2008, pp. 4-6) destacou com ênfase que uma abordagem da temática comprometida com uma perspectiva da filosofia continental deve iniciar a partir de uma confrontação com a análise da vida animal feita por Heidegger (Calarco, 2004, p. 30). Tal confrontação, no entanto, é definida por uma tomada de posição crítica mais fundamental. Aprofundando a singularidade da existência humana, Heidegger afirmou, em uma debatida passagem da "Carta sobre o humanismo", a distância abissal que separa a essência da vida e a essência ek-sistencial dos humanos. Além disso, o parentesco corporal com os animais abriria um abismo quase inesgotável para o nosso pensamento (Heidegger, 1996a, p. 326). Uma objeção estritamente filosófica2 a essa afirmação diz que a identificação de um abismo entre essências - a essência ek-sistencial doshumanos e a essência vital na natureza - revela um compromisso com uma forma metafísica de antropocentrismo (Calarco, 2004, p. 29, 2005, p. 332, e 2008, pp. 43-53). Além disso, desde a publicação de "Os conceitos fundamentais da metafísica" teria sido estabelecido um ponto de referência incontornável, dado que a tematização ontológica da vida animal revelaria que a crítica ao humanismo não exime o pensamento de Heidegger de um compromisso com a metafísica. A determinação da essência do animal a partir da diferença entre pobreza e formação de mundo ainda manteria uma dívida fundamental com o antropocentrismo (Calarco, 2005).

A despeito da contundência com a qual é apresentada, e até mesmo admitida, em certa tradição da assim chamada filosofia continental, a objeção de antropocentrismo metafísico assume uma série de pressuposições que já foram apropriadamente discutidas na literatura (Winkler, 2007, pp. 522-523; Eldred, 2002; McNeill, 2006). De igual maneira, o comentário crítico de que a fenomenologia da animalidade nos ensinaria mais sobre os humanos do que sobre os animais (Haar, 1993, p. 29) não resiste a uma reconstrução detalhada do marco metodológico que conduz à interpretação da vida ensaiada por Heidegger no curso de 1929-1930.

Em termos gerais, pode-se dizer que o debate recente é uma reedição detalhada, e a partir de fontes documentais mais abundantes, de objeções apresentadas muito cedo desde a publicação de "Ser e tempo".3 Talvez seja justo acrescentar que o debate atual, em grande medida inaugurado pelas objeções desconstrutivas de Derrida, tem um elemento adicional, que consiste em ser estabelecido a partir da aceitação do marcoreflexivo do próprio Heidegger. Esse marco consiste na admissão de uma história do ser como história da metafísica, culminando na época da técnica e da filosofia da subjetividade, da qual o antropocentrismo seria uma derivação. Porém, também é justo considerar o que Karl Löwith apontara com clareza em 1957: que um ser aconteça apropriando-se do ser-aí no homem não é nem um paradoxo nem um enigma, mas mera suposição (Löwith, 1957, pp. 62-63).

Contudo, as objeções iniciais apontam para um déficit fatal que comprometeria, se não a estrutura, pelo menos um dos pilares centrais da temática ontológica desenvolvida na obra de Heidegger: a falta da natureza na ontologia fundamental e a separação entre vida e existência na analítica existencial. Karl Löwith e Helmuth Plessner ressaltaram com muita clareza o problema da abstração da natureza na analítica existencial. Já em 1930, Löwith formulara as bases de uma crítica que seria cada vez mais elaborada, acusando um problema abstrativo muito fundamental na analítica da existência.4 O tema é introduzido a partir do conceito existencial de morte. Nenhuma noção adequada da morte pode desconsiderar a morte como o deixar de viver, e o ser-aí não pode ser isolado de sua morte vital. Em suma, o modo de ser do ser-aí não estará originariamente determinado caso seja feita abstração de uma estrutura de ligação e inseparabilidade, a saber, a inseparabilidade entre a morte como possibilidade livre e a morte como uma necessidade natural. Assim como não se pode abstrair da conjunção problemática entre ser humano e ser-aí, de igual forma não se poderia abstrair da conexão igualmente problemática entre existir e viver (Löwith, 1969, p. 62). A crítica é generalizada para além do existencial ser-para-a-morte, pois Löwith sustenta que a abstração consciente da morte natural na analítica existencial repousa em uma abstração muito mais fundamental. A analítica existencial somente conhece originariedade naquilo que surge do ser-aí como possibilidade existencial, o que, por suavez, é possível pela abstração do factum de que o ser-aí humano está na vida (Löwith, 1969, p. 63). Em suma, se a analítica existencial visa ao seraí no homem, ela não pode então abstrair da constituição vital dos seres humanos sem pagar o preço da perda de originariedade.

Em um ensaio de 1942-1943, Löwith acusava a artificialidade do conceito existencial de mundo apresentado por Heidegger. Entendido como existencial, mundo não é um ente ou conjunto de entes subsistentes, tampouco mundo deve ser determinado como natureza: não há vida autônoma da natureza em "Ser e tempo" (Löwith, 1984a, p. 83). A crítica ainda aponta para uma direção que será posteriormente desenvolvida. A tentativa de reunir mundo e homem em uma unidade seria bem-sucedida apenas sob a pressuposição, recusada por Heidegger, de que o ser humano está aí desde a natureza, que o homem possui uma natureza humana não distinta essencialmente da natureza de todos os entes (Löwith, 1984a, p. 84).

Porém, é no trabalho de 1957 - "Natur und Humanität des Menschen" - que Löwith situará sua crítica ao desacoplamento entre existência e vida no contexto mais substantivo de uma tentativa de recolocar a pergunta sobre a humanidade do homem no interior da pergunta sobre a natureza do homem, diferenciando assim a natureza humana em relação à natureza da vida não humana dos animais (Löwith, 1957, p. 75). Inicialmente, Heidegger é visto como um representante do platonismo cristão, pois a pergunta sobre o que é o homem deve ser antes de tudo uma pergunta pelo ser e pela relação do homem com o ser. O ser humano não seria determinado a partir de uma conexão ambivalente e problemática com os seres vivos, que lhe seriam assemelhados, mas pela transcendência a ser. O que é o homem determina-se pela relação a ser, e não por algum conhecimento sobre o que seriam os homens nascidos da natureza em comparação com os animais igualmente nascidos da natureza (Löwith, 1957, p. 61).

A singularidade do projeto de interrogar sobre a humanidade do homem no interior de uma pergunta sobre a natureza no homem, esobre a natureza humana em última instância, é estabelecida em parte no confronto crítico com a analítica existencial. Segundo Löwith, os impulsos para uma antropologia filosófica teriam sido superados na analítica ontológica do ser-aí. Os fenômenos no nascimento, da vida e da morte teriam sido reduzidos às noções de Geworfenheit, existência e ser-para-amorte, depois que se aceitou o dicto de que o ser-aí existente não seria nem um mero ente subsistente, nem um ente disponível, e que o modo de ser da vida seria acessível apenas pela via privativa, a partir do ser-aí (Löwith, 1957, p. 75). Em suma, o mundo vital, redescoberto por Nietzsche com grande sacrifício, fora novamente perdido no existencialismo. O ser-aí no homem, desprovido de corpo e de gênero sexual, não pode ser originário, caso ele apareça apenas na situação em que a angústia promova a transformação do homem concreto em um puro Da-sein. A pergunta crítica, portanto, é se o resgate do ser humano como transcendência a ser faz justiça a sua específica natureza humana (Löwith, 1957, p. 61).

Já em 1928, Plessner declarava explicitamente a necessidade de manter-se a certa distância das recém-publicadas pesquisas de Heidegger, em razão de uma discordância de princípio. Não lhe era possível reconhecer o princípio fundamental de Heidegger, segundo o qual toda investigação do ser externo ao humano deveria ser precedida por uma analítica existencial do homem. Esse princípio, que estaria implicado não apenas na interpretação privativa da vida, revelaria a filiação de Heidegger a uma antiga tradição presente em diferentes tipos de subjetivismo (Plessner, 2003, p. 12). Essa crítica publicada no prefácio à primeira edição de "Die Stufen des Organischen und der Mensch" ressurgirá com maior elaboração, e com explícita referência às objeções de Löwith, na segunda edição do livro, publicada em 1966.

Inicialmente, Plessner objeta que a analítica existencial não possui apenas uma significação procedimental como método da ontologia fundamental (na medida em que estaria limitada apenas aos fins da interpretação temporal do sentido de ser), pois ela oferece umadeterminação da essência do ser humano. Os humanos são determinados por sua relação a ser. O homem é uma figura da transcendência, pois se determina apenas por sua relação historicamente variável a ser. O ontomorfismo de Heidegger não é apenas um resultado procedimental na ontologia fundamental, mas uma determinação ontológica do ser humano (Plessner, 2003, p. 18). Retomando literalmente a crítica de Löwith acerca da separação entre existência e vida na analítica existencial, Plessner examina as implicações de uma possível defesa da posição de Heidegger, segundo a qual seria legítimo abstrair das condições físicas da existência, dado que a questão a ser elucidada é a questão sobre o sentido de ser e nada mais. A justificativa dessa abstração é que revela o ponto frágil da argumentação, pois repousaria numa antiga tradição que se estende diferenciadamente desde Agostinho e o Idealismo Alemão, com momentos destacados na revolução copernicana de Kant e no conceito husserliano de intencionalidade. Formulado com base na tese de que o modo de ser da vida, da vida ligada ao corpo, somente seria acessível de modo privativo a partir do ser-aí, esse pressuposto que sustenta o primado metodológico da existência é a expressão de uma tradição que toma a direção do interior como a base para a elucidação de todo objetivo e exterior (Plessner, 2003, pp. 20-21).

A pertinência a tal tradição e a tese da interpretação privativa da vida seriam fatais. De fato, na análise puramente existencial da Stimmung, da angústia e do cuidado estaria refletida a exclusão de um genuíno problema: a questão sobre se a existência pode não apenas ser destacada, mas, se ela pode ser separada da vida, em que medida a vida funda a existência? (Plessner, 2003, p. 21). O questionamento de Löwith é ampliado por Plessner, ao deixar explícito que o reconhecimento da impossibilidade de uma dimensão existencial desvinculada implica a necessidade de uma fundação da existência. Como seria essa fundação e qual a sua potência? Quão profundamente ligada ao corpo sustenta-se a dimensão existencial? Com essas questões legítimas não há sequer ocupação na analítica existencial, e a figura do ser-aí assemelha-se ao paradoxo deum anjo angustiado, desconhecendo inclusive que mesmo os animais submergem aos afinamentos das Stimmungen (Plessner, 2003, p. 22). Evidentemente que as implicações dessa abstração não se restringem apenas ao fato de que, como diz Plessner com clareza (2003, p. 22), nenhum caminho anterior ou posterior à Kehre conduz até a antropologia filosófica.

O tema será retomado criticamente por Löwith em um ensaio dedicado aos 80 anos de Martin Heidegger. Recordando a percepção da maravilha com que se lhe apresentava diante do microscópio a organização da vitalidade de um organismo, Löwith registra que sentia a ausência da natureza na interrogação ontológico-existencial: a natureza em torno de nós e a natureza em nós (Löwith, 1969, p. 280). A falta da natureza não seria um déficit qualquer de um ente entre outros, mas dessa forma o todo do ente estaria perdido e jamais seria novamente recuperado por meio de alguma complementação. Em "Ser e tempo", a natureza teria desaparecido na compreensão existencial da faticidade e da Geworfenheit.

Referindo-se novamente a uma parte central da analítica existencial, a interpretação existencial da morte, Löwith identifica a diferença fundamental em relação ao seu próprio ponto de partida e ao seu propósito. A diferença reside em dois temas fundamentais: 1) a possibilidade de isolar o ser-para-a-morte (entendido de modo ontológicoexistencial) do fenômeno natural do viver, portanto do deixar de viver e do morrer; e 2) a interpretação privativa da vida a partir da constituição ontológica da existência como a única possibilidade de compreensão da vida. A falta da natureza na ontologia existencial estaria refletida na falta de consideração de um problema modal posto exatamente pela vida e pela natureza, a saber: que o fim efetivo da existência não é nenhuma possibilidade mais própria, mas uma necessidade natural fixada diante de todos os humanos. Nascimento e morte, o começo e o fim da existência humana não são apreensíveis existencialmente, pois tais fenômenos simplesmente acontecem independentemente das possibilidades existenciais e do poder-ser humano (Löwith, 1984b, pp. 281-282).

Em suma, as objeções de Löwith e Plessner acentuam um déficit não secundário na analítica da existência, mas que repercute necessariamente no projeto ontológico geral. A falta da natureza retira a originariedade da analítica existencial e com isso compromete o problema do sentido do ser como um todo. Afinal de contas, se é apenas na compreensão de ser que os sentidos de ser são desvelados aos humanos, e se a compreensão é a projeção em possibilidades existenciais, então o desconhecimento de uma necessidade não existencial, aquela que resulta do condicionamento natural e vital, compromete um dos pilares da pergunta sobre o sentido do ser. Tomando por base a declaração de Löwith sobre a falta da natureza - em nós e em torno de nós - na analítica ontológica, podemos abrir novamente as atas da questão, dada a situação textual que delimita hoje o horizonte interpretativo da filosofia de Heidegger. Em que sentido a natureza está ausente e quais as razões que justificam tal abstração? É admissível uma abordagem da natureza na ontologia fundamental ou a questão está interditada desde o princípio? Como seria essa abordagem e que problemas seriam formulados? Além disso, deveria ser feita uma tematização do natural em nós e em torno de nós? Não é exagerado afirmar que a retomada desses problemas está justificada não apenas em razão da pesquisa histórica sobre a obra de Heidegger. Talvez seja relevante, para uma situação filosófica profundamente delineada pelos mais diferentes tipos de naturalismos, a inserção em um horizonte hermenêutico que permita o distanciamento crítico capaz de lidar com os problemas originados da experiência humana da vida e da natureza.

 

2. A possibilidade da natureza na ontologia fundamental

Não é difícil compreender por que a natureza é praticamente ausente na analítica existencial e na ontologia fundamental. O projeto como um todo se orienta para uma interpretação temporal dos sentidosdo ser, sem voltar-se para uma ontologia da existência que seja completa ou determinada por uma preocupação antropológica independente. Nesse sentido, o procedimento fenomenológico-hermenêutico corresponde à exigência de originariedade na interpretação da existência. Isto significa não admitir de antemão uma situação interpretativa já comprometida com uma rede conceitual originada de algum sentido de ser que não seja próprio do modo de ser da existência humana. Caso se pretenda justificar a tese de que a existência diz respeito a um sentido de ser autônomo - não redutível a nenhum outro modo de ser -, então fica interditado um caminho que tomasse como ponto de partida a ontologia da natureza. A justificativa para essa posição metodológica não é tanto a interpretação privativa, que Heidegger reserva como um dos momentos metodológicos para uma ontologia da vida e não como orientação geral de uma ontologia da natureza, mas sim a restrição à admissão inicial na analítica existencial de algum modo de ser que não o da existência.

De outro lado, a exigência hermenêutica também impede que se priorize como base da analítica existencial algum tipo de comportamento para com entes distintos da própria existência, por exemplo, a relação com entes e determinações naturais. Apesar da característica relacional da existência, a diferenciação entre modos originários e derivados de comportamentos para com entes representa um risco de transgressão hermenêutica, dado que modos derivados de comportamentos com entes podem impor na ontologia da existência o sentido de ser que os condiciona. Aqui é preciso considerar em detalhe um problema que pode gerar confusões interpretativas.

Na literatura recente, já foi ressaltado um duplo erro na recepção da analítica existencial (Dreyfus & Spinoza, 1999; Brandom, 2002; Glazebrook, 2000; Reis, 2004). De um lado, a crítica ao primado do comportamento teórico, especialmente o descobrimento científico dos entes, não é uma crítica ao aspecto descobridor de tal comportamento, e tampouco a alguma generalização ontológica que estaria implicada no modo objetivante de tematização. A crítica orienta-se para o privilégiofilosófico atribuído a tal comportamento e ao nivelamento filosófico de todos os diferentes sentidos de ser. Nesse sentido, diferentes ciências exigem diferentes projeções do sentido de ser relativo aos seus respectivos domínios de referência. Essa restrição ao nivelamento não implica que o comportamento científico não seja descobridor de modo adequado e que suponha apenas a projeção de um sentido de ser. O caso da Biologia é relevante nesse contexto, pois Heidegger não considerou que o modo de ser da Vorhandenheit (entendido não como o modo de ser dos objetos da Física, mas sim como a determinação dos entes em termos de propriedades e substrato de propriedades) possa ser legitimamente estendido ao modo de ser da vida. Pode existir uma ciência humana que não transgrida a categoria ontológica da existência, bem como uma ciência da vida não reduzida à Física e à Química. Portanto, a ciência pode ser adequadamente fundada, assim como tematizar veritativamente os seus objetos temáticos.

De outro lado, o comportamento teórico é um caso de uma classe mais abrangente de comportamentos com entes. A distinção entre comportamentos derivados e originários não pode induzir o assim chamado modelo da torta na compreensão geral do ser-aí humano (Brandom, 2002, p. 328). Nesses termos, um ente não pode ser tomado como existência ou ser-aí caso não seja capaz de discurso proposicional e predicativo. O comportamento enunciativo e determinante é um modo derivado da compreensão e da interpretação, mas isto não significa que seja superestrutural. Por conseguinte, o comportamento enunciativo e científico é tão genuinamente existencial quanto a decisão antecipatória da morte e a ocupação produtiva com utensílios e metas produtivas. Dessa forma, não seria correto afirmar que a razão da ausência da natureza na analítica ontológica resultaria da consideração de que a natureza possuiria o modo de ser da Vorhandenheit, a qual, por sua vez, somente poderia estar presente a partir de um comportamento derivado: a tematização enunciativa e proposicional dos domínios de entes.

Contudo, uma interpretação filosófica que projete na analítica existencial algum modo de ser adequado para tematizar entes diferentesda existência estaria incorrendo numa transgressão hermenêutica. Se este foi o caso em boa parte da tradição filosófica, então é compreensível que o conceito de natureza não possa ser tomado como base para a ontologia existencial. Pode-se dizer que o procedimento de destruição volta-se para um conceito de natureza entendido apenas como Vorhandenheit, tal como resultante da ciência Física da natureza.5 Não que seja inadequado compreender os entes segundo a Vorhandenheit, mas incorreto é o nivelamento e o ofuscamento das demais diferenças entre os sentidos de ser em nome de uma concepção redutiva (Foltz, 1995, p. 22). Caso se identifique natureza e Vorhandenheit, o que não é a posição sustentada em "Ser e tempo", então é compreensível que o conceito de natureza não adquira estatuto de primeira relevância na ontologia fundamental.

Pode-se compreender por que a natureza é referida apenas em algumas passagens, apesar de centrais, de "Ser e tempo": razões metodológicas e a estruturação do projeto da ontologia fundamental. Contudo, uma objeção mais forte diria que não há tematização da natureza porque o fenômeno não é sequer admissível a partir das pressuposições da analítica da existência. Não apenas não há tematização da natureza, como não pode haver tal consideração: é impossível a admissão de algo como a natureza no contexto existencial da ontologia fundamental. Caso seja correta essa argumentação, então as críticas de Löwith e Plessner seriam possíveis apenas com uma suposição contrária não ao projeto e ao método da analítica ontológica, mas aos resultados efetivamente alcançados por Heidegger. Pode-se formular globalmente a objeção dizendo que as indicações formais postas por Heidegger apontam para a impossibilidade de um conceito hermenêutico de natureza.

Essa linha argumentativa segue uma dupla direção. A primeira resulta em uma posição que podemos chamar de solipsismo históricoexistencial. A natureza é concebida como sendo um ente que nos vem ao encontro no interior de um mundo (Heidegger, 1977, p. 86). De um ponto de vista ontológico e categorial, natureza é um caso limite do ser de possíveis entes intramundanos. A intramundaneidade é uma determinação contingente dos entes naturais, dado que o mundo depende da existência do ser-aí humano, o qual não é necessário (Heidegger, 1976, p. 241). Ora, como sabemos, mundo é um tecido de relações que são finalizadas em possibilidades existenciais impessoalmente estabilizadas, sendo dotado de uma função horizontal de descobrimento. Daqui são extraídas duas consequências que eliminariam, por assim dizer, um sentido independente do ser natural.

Primeira, dado que o mundo torna acessível em primeiro lugar os entes que possuem o modo da Zuhandenheit, então também os entes naturais seriam acessíveis no contexto da disponibilidade e da atuação produtiva. A natureza que nos chega sempre é como um integrante de todo o tecido da Zuhandenheit, até mesmo no caso da natureza não produzida, a matéria-prima. Isto é correto, mas não implica a conclusão adicional de que os entes naturais somente são descobertos e experimentados como sendo eles mesmos entes disponíveis ou definidos por relação à Zuhandenheit. Heidegger admite uma forma de fenomenalização da natureza independente e desligada da Zuhandenheit, quando se refere ao caso da natureza tematizada na Física. Ou seja, a tematização científica permite que encontremos no mundo entes naturais desvinculados do contexto existencialmente finalizado das atividades produtivas humanas. Ao dizer que a natureza assim entendida é o incompreensível pura e simplesmente (Heidegger, 1988, p. 298), e que para tal é preciso a desmundanização, Heidegger não está sustentando que a natureza assim entendida não seja encontrada no mundo. Ela é o incompreensível relativamente à compreensão dos entes a partir da existência humana e da Zuhandenheit.

A segunda consequência é mais restritiva, pois, mesmo admitindo que a natureza possa vir ao encontro com independência da Zuhandenheit, não obstante sempre virá ao encontro como ente intramundano. Mesmo a natureza desconexa da existência humana somente é descoberta em um mundo. Se pensarmos que a natureza tematizada nas ciências também é descoberta e como tal está qualificada como intramundana, então a intramundaneidade lhe conferiria o estatuto ontológico da historicidade. Dado que o ser-aí é o ente histórico por excelência, e que tal determinação é estendida também para entes intramundanos, os entes mundi-históricos (das Welt-Geschichtliche), como os culturais etc., então também a natureza seria historicamente qualificada. A historicidade do mundo e da existência faria que a naturalidade dos entes naturais sempre estivesse retirada do mundo. Em última instância, a natureza em nós e em torno de nós seria histórica e cultural. Portanto, não haveria propriamente natureza como ente intramundano. Intramundaneidade equivale a historicidade, e historicidade significa não naturalidade. Não haveria natureza para o ser-aí, não haveria natureza humana.

O argumento aparenta correção formal e pode encontrar apoio textual. Referindo-se à incorporação dos entes disponíveis (Zuhandenes) e dos entes simplesmente subsistentes (Vorhandenes) na história do mundo, Heidegger afirma que:

Utensílio e obra, os livros, por exemplo, têm seu "destino", construções e instituições têm sua história. Mas também a natureza é histórica. Mesmo que não exatamente quando falamos de "história natural", mas sim como paisagem, região de assentamento e de exploração, como campo de batalha e lugar de culto. Como tal, este ente é histórico... Chamamos este ente de o mundi-histórico (das Welt-Geschichtliche). (Heidegger 1977, p. 513)

Lida com atenção, a passagem admite a historicidade de entes naturais. Contudo, não há uma declaração de universalidade da historicidade da natureza. A qualificação do sentido de historicidade por relação à história natural pode ser entendida em duas direções. Inicialmente,não se deve compreender a historicidade possível para a natureza no sentido em que os naturalistas se referiam à história natural. Porém, a frase também sugere a admissão de um acontecer da natureza - seja ele uma história ou não -, mas que é distinto do sentido que Heidegger está destacando da historicidade da natureza. Ou seja, a historicidade é uma qualificação possível, mas não necessária, dos entes naturais. A continuação da passagem citada aponta para um problema fundamental, que Heidegger denomina de o enigma da mobilidade do acontecer em geral.

A mobilidade dos entes mundi-históricos seria muito própria, ainda não esclarecida, e não deve ser concebida a partir do movimento como alteração de lugar; isso valeria inclusive para as catástrofes naturais (Heidegger, 1977, p. 514). Que as catástrofes naturais também sejam historicamente qualificadas não implica, obviamente, a universalidade da historicidade da natureza. O poder desorganizador da natureza aparece em ligação ao contexto da Zuhandenheit, e tem um sentido claramente histórico. Contudo, a inadequação que reside na tentativa de conceber a mobilidade histórica a partir da mobilidade entendida no sentido físico da mudança de lugar também implica que há uma diferença entre mobilidade histórica e mobilidade local, e, portanto, que Heidegger deixa aberta a possibilidade de uma mobilidade que não seja histórica. Nesse sentido, no problema dos limites da historicidade da natureza deveriam ser consideradas restrições de uma concepção exclusivamente histórica do tempo, do lugar e do espaço.6 A possibilidade de um tempo e espaço não históricos é também a possibilidade de uma natureza que seja intramundana sem ser histórica.

O problema situa-se no contexto temático mais amplo de uma ontologia do histórico, cujos temas e problemas também não foram exaustivamente desenvolvidos em "Ser e tempo". Um tratamentosistemático do problema, que não se limitaria a identificar entes naturais não históricos, deve responder à questão sobre a aceitação e a legitimidade da distinção entre história e natureza, entre entes históricos e entes naturais. A distinção é legítima? Quais os critérios que a estabelecem e qual a sua justificação? Ao recusar o conceito de valor na análise ontológica dos utensílios, Heidegger também seria crítico da distinção entre ciências da cultura e ciências da natureza, tal como originada da Escola de Baden. Nesse sentido, a diferença entre natureza e cultura não seria estabelecida a partir dos conceitos de valor e de interesse. De outro lado, a diferença entre história (cultura) e natureza também não é abordada com base no procedimento reflexivo-transcendental de diferenciação entre ciências ideográficas e ciências nomotéticas. De fato, Heidegger afirmou que as ciências da natureza e as ciências do espírito não representavam dois grupos de ciências, diferenciáveis por seus domínios materiais temáticos ou então por seus procedimentos epistemológicos (Begriffsbildung e modo de justificação). Ao contrário, ambas as ciências podem ser consideradas como possibilidades fundamentais da contraposição livre do ser-aí com o seu mundo. Assim consideradas, essas classes de ciências seriam em si mesmas unificadas (einig) e uma mesma ciência (Heidegger, 1978, p. 279).

A estratégia de diferenciação entre entes naturais e entes mundihistóricos atua não no plano epistemológico, e tampouco na admissão de algum traço ontológico determinado nas categorias da história e da natureza. O critério opera a partir do ser-aí, mais especificamente a partir do traço ontológico da intramundaneidade (Innerweltlichkeit). Na medida em que o ser-aí no homem é um fato contingente, ocorre a formação do mundo e o descobrimento de entes. Os entes sempre são descobertos a partir de seu ingresso no mundo, ou seja, desde um contexto finalizado de relações que qualificam algo como algo. A significância é a marca da intramundaneidade, que acontece juntamente com o factum do ser-aí. No entanto, a intramundaneidade está submetida a uma determinação modal. Há entes que são contingentemente intramundanos, e a intramundaneidade não é uma determinação de seu ser, ao passo que há entes cujaintramundaneidade é necessária, constituindo uma determinação de seu ser. Aqui reside o critério de distinção entre história e natureza. Ao ser da natureza não pertence a intramundaneidade, que é uma determinação apenas possível. Diferentemente dos entes mundi-históricos, aos quais pertence necessariamente a intramundaneidade, os entes naturais são apenas contingentemente intramundanos:

Intramundaneidade não é a estrutura de um ser; dito de forma mais cautelosa, não pertence ao ser da natureza. Dizemos "mais cautelosa", porque precisamos contar aqui com uma limitação, na medida em que há ente que somente é conquanto seja intramundano. Há ainda ente a cujo ser pertence de certa maneira a intramundaneidade. Este ente é tudo aquilo que chamamos o ente histórico, histórico no sentido amplo do mundi-histórico, quer dizer, todas as coisas que o homem, que é e existe historicamente em sentido próprio, cria, forma, cultiva; a cultura e as obras. Entes deste tipo somente são, dito de forma mais exata, somente surgem e somente chegam ao ser como intramundanos. Cultura não é tal como natureza. (Heidegger 1976, p. 241)

Portanto, a diferença entre história (cultura) e natureza não apenas é reconhecida, como fica indicado que a intramundaneidade não elimina a diferença entre entes naturais e entes históricos. A diferença, como dissemos, é localizada na modalidade da característica metaontológica da intramundaneidade. Daqui Heidegger ainda retira uma importante conclusão, que ressalta ainda mais a diferença entre entes naturais e entes históricos. Os entes mundi-históricos estão sob condições ontológicas muito peculiares, pois as condições de seu surgimento são diferentes das condições de seu decaimento (Verfallen) e perecimento (Vergehen). A diferença reside em que o surgimento de entes mundihistóricos depende do acontecer do ser-aí, pelo qual a intramundaneidade torna-se um fato. No entanto, entes culturais continuam sendo intramundanos mesmo que o ser-aí não exista mais. Mesmo se o ser-aí não existir mais, os entes mundi-históricos continuam sendo históricos e intramundanos, ou seja, para surgir como intramundanos eles dependem do ser-aí, mas não dependem do ser-aí para continuar sendointramundanos: "... devemos dizer que se as obras da cultura alguma vez são como intramundanas, até mesmo o mais primitivo dos utensílios, então elas podem sê-lo também quando não existe mais nenhum ser-aí histórico" (Heidegger, 1976, p. 241).

Esta condição representa também uma importante diferença em relação à natureza e aos entes naturais. Entes naturais podem existir sem ser intramundanos, sem que o ser-aí exista e os descubra. Precisamente aqui também há algo notável: que nas ocupações do ser humano com os entes é possível chegar a determiná-los como capazes de subsistir sem que sejam descobertos. O surgimento de entes naturais não depende do ser-aí, nem de que eles sejam intramundanos. Da mesma forma, o seu desaparecimento também não depende do que acontece com o ser-aí. As condições de surgimento e perecimento de entes naturais são as mesmas: não dependem do acontecer do ser-aí e da intramundaneidade, ao passo que com entes mundi-históricos não ocorre o mesmo. A diferença entre natureza e cultura, portanto, reside no fato de que entes mundi-históricos, que sempre surgem como intramundanos, jamais perdem sua intramundaneidade, enquanto os entes naturais podem ganhar e perder sua intramundaneidade.

Retomando o nosso problema, podemos concluir que Heidegger não identifica intramundaneidade com historicidade, e que admite a diferença entre entes naturais e entes mundi-históricos. A despeito dos entes serem descobertos sempre a partir da significatividade do mundo, há uma diferença entre natureza e história, portanto a historicidade do ser-aí e do mundo não implica a exclusão da natureza e a eliminação da diferença entre natureza e história (cultura).7 A segunda linha argumentativa em favor da impossibilidade de um conceito hermenêuticode natureza está em conexão com a anterior, mas é independente. O problema não residiria numa suposta impossibilidade de encontro com entes naturais, fundada na dissolução da diferença entre natureza e história, que seria derivada da intramundaneidade. Nesse caso, o argumento elevase ao nível ontológico categorial, mais especificamente para a estrutura da transcendência.

Bestand, Vorhandenheit e Zuhandenheit, vida e existência tornam possíveis os comportamentos para com entes. Esses diferentes sentidos de ser e sua unidade são compreendidos e projetados na compreensão de ser. No entanto, a transcendência compreensiva desses diferentes sentidos de ser possui uma estrutura que é relativa à existência, ao cuidado e à temporalidade do ser-aí no homem. Desse modo, a transcendência a ser é estruturada pelo modo de ser da existência, ganhando as determinações da temporalidade ek-stático horizontal. Portanto, todos os sentidos de ser estariam definidos estruturalmente pelo modo de ser da existência. A existência seria autoadjudicante (Brandom, 1992, p. 46).

O problema é fundamental e atinge não apenas a questão sobre a possibilidade da natureza na ontologia fundamental. O marco transcendental de formulação do problema ontológico, a despeito da radicalização hermenêutica, traria novamente o espectro do idealismo. Mesmo concedendo a distinção entre estrutura e conteúdo - a estrutura do ser-aí condicionaria apenas a forma da transcendência e não o conteúdo dos sentidos de ser -, a relatividade estrutural ao ser-aí de toda transcendência ainda seria uma consequência da premissa hermenêutica de que ser somente se dá na compreensão de ser. Nesse caso, um princípio explicativo sistemático ameaçaria a própria natureza fenomenológica do projeto. Assim, pode-se considerar que o preço seria muito elevado, e que a perspectiva transcendental deveria ser abandonada, caso seja prioritário um interesse em pensar o desvelamento do ser de modo não relativo. A virada em direção à meditação sobre a verdade do ser e sobre a história do ser seria uma consequência da recusa do alto preço a ser pago na adoçãode um ponto de vista sistemático que se comprometeria com a relatividade ao ser-aí em face de todos os sentidos de ser.8

Um elemento adicional que aponta para o caráter problemático das alternativas equacionadas - relatividade hermenêutica e subjetivismo autoadjudicante da transcendência - reside na determinação finita de ser. Na medida em que progressivamente o conceito de nada é focalizado não tanto na finitude da existência e da temporalidade humanas, mas no próprio ser, então essa reorientação também implica um afastamento do ponto de vista subjetivo. Se entendermos a finitude do ser como a impossibilidade de oferecer uma dedução transcendental que estabeleça nos próprios entes o fundamento de cada sentido de ser, então a negatividade do ser-aí não pode ser vista como a condição da negatividade de ser. Ao contrário, a angústia que desvela a assignificatividade e a determinação finita do próprio ser (e não apenas do ser-aí humano) seria um modo de corresponder a uma estrutura de finitude que não é constituída pela finitude da temporalidade existencial. A conhecida frase de "Que é metafísica?" - "O nada nadifica a partir de si mesmo" - é uma declaração fundamental que indica o reconhecimento de uma estrutura ontológica que não seria constituída pelo ser-aí no homem.9

Em suma, diante de uma consequente interpretação da ontologia fundamental como implicando a relatividade hermenêutica da transcendência, sustentamos que as implicações de tal consistência são contraditórias com um pensamento do ser fora dos marcos de uma tradição subjetivista. A admissibilidade do problema da natureza na hermenêutica ontológica é facultada, portanto, à problematização do marco transcendental do problema do ser. Além disso, também sustentamos ahipótese de que no problema ontológico da vida a natureza adquire uma significação sistemática, porque obriga ao reconhecimento de uma finitude de ser que não é relativa à finitude do ser-aí.

 

3. A ideia de uma hermenêutica da natureza

Caso nossa argumentação seja cogente, então é possível formular o problema da natureza na ontologia fundamental. A despeito da admissibilidade, o próprio Heidegger reconheceu a ausência do tema, numa observação em nota no ensaio "Sobre a essência do fundamento":

Se, porém, falta aparentemente a natureza na analítica do ser-aí assim orientada - não apenas a natureza como objeto das ciências naturais, mas também a natureza num sentido mais originário (cf. para isto "Ser e tempo", p. 65, embaixo) -, então há razões para isto. A razão decisiva reside no fato de não se poder encontrar a natureza no mundo ambiente, nem em geral, primariamente, como algo a que nos comportamos. Natureza está originariamente revelada no ser-aí, pelo fato de este existir como afinado e disposto em meio ao ente (als befindlichgestimmtes inmitten von Seiendem). Na medida, porém, em que afinamento (derelicção) pertence à essência do ser-aí e se expressa na unidade do conceito pleno de cuidado, pode somente aqui ser conquistada primeiramente a base para o problema da natureza. (Heidegger, 1929, p. 36, nota 55)

A passagem permite uma série de conclusões. Ao apresentar uma razão para a aparente falta do problema da natureza, Heidegger reconhece a legitimidade do problema, mas o submete a uma condição metodológica restritiva. Essa condição exige que o problema tome como base o conceito de cuidado. Assim sendo, pode-se concluir que a analítica existencial de "Ser e tempo" é precisamente a propedêutica para o problema da natureza. Além disso, também é afirmada a distinção entre um sentido originário da natureza e outros sentidos, não originários, entre os quais haveria, por exemplo, a natureza como tema das ciências naturais. A declaração de que não é possível encontrar a natureza como algo com que possamos nos comportar não significa que não ocorra um encontro com entes naturais. É a natureza em sentido mais originário que não se desvela nos comportamentos com entes do mundo circundante. Por fim, a afirmação evoca a objeção de Plessner, segundo a qual Heidegger estaria cativo de uma tradição que, voltada para o interior, buscaria as determinações do natural, afastando-se dos entes naturais e examinando o ser-aí humano. Como veremos a seguir, da passagem podemos concluir que é preciso prestar a atenção num fenômeno central, relativo ao ser-aí, e no qual pode ser revelada a natureza em sentido primordial: o existir como afinado e disposto em meio ao ente. Seguindo a análise de Bruce Foltz (1995, p. 38), podemos acrescentar que nessa restrição também se está dizendo que nos comportamentos com entes naturais está retraída a natureza em sentido originário. A importância da observação de Heidegger não reside apenas no reconhecimento da ausência justificada do problema da natureza, mas também porque nela se enuncia um fenômeno de retração que é decisivo na consideração do sentido primordial do natural.

Como vimos, o problema da natureza é possível e deveria tomar como base o conceito de cuidado. Pois bem, tendo por suposto os desenvolvimentos da analítica da existência, como seria a formulação e elaboração de tal problema? Neste ponto, seguimos integralmente as sugestões apresentadas por Manfred Riedel (1989 e 1991) sob o título de "hermenêutica da natureza". Assim, a origem da hermenêutica da natureza remonta ao projeto de uma hermenêutica da faticidade, e nos parece correto afirmar que encontra-se latente no momento estrutural do ser-no-mundo (Riedel, 1989, pp. 161-162). Recordamos que em "Ser e tempo" a faticidade humana relaciona-se com a necessidade do envolvimento humano com os entes e com o ser dos entes. Que o ser-aí seja um factum implica que este ente se encontra ligado, em seu destino, ao ser dos entes que aparecem no mundo (Heidegger, 1977, p. 56). Portanto, a faticidade humana está comprometida com uma relação com entes naturais, e, portanto, com a compreensão de ser requerida para os comportamentoscom a natureza. Descortina-se aqui um projeto: o programa de uma hermenêutica da natureza.

Como hermenêutico, esse programa obedece a uma estruturação. Inicialmente, se procede a uma identificação dos diferentes modos de encontro com entes naturais, para então caracterizar a situação hermenêutica de encontro com o natural. Esse procedimento deve observar uma cláusula não redutiva, ou seja, deve evitar que uma tendência interpretativa desfigure os diferentes modos do aparecer da natureza ao reduzi-los artificialmente a formas mais básicas. A seguir, a hermenêutica da natureza deve identificar e interpretar os diferentes sentidos do natural que condicionam tais comportamentos com a natureza. Além disso, como interpretação ontológica, essa hermenêutica precisa dar contas do problema da unidade dos diferentes sentidos de ser da natureza, dado que o aparecer de entes é sempre em um contexto relacional (Malpas, 2006, pp. 14-16). Embora o problema da unidade dos diferentes sentidos do ser natural deva ser incorporado a esse programa, a abordagem hermenêutica impede que se tome essa unidade como uma acumulação exaustiva de domínios de entes naturais.

É importante ressaltar que um projeto como este não significa a retomada de uma filosofia substantiva da natureza nos moldes do Idealismo ou Romantismo Alemão. A hermenêutica da natureza não concorre com as ciências da natureza, do mesmo modo que a analítica existencial não concorre com a psicologia ou a com a antropologia. Dada a relação entre filosofia e ciência positiva, tal como enunciada repetidamente por Heidegger ao longo dos anos 1920, a hermenêutica da natureza não está habilitada para formular ou discutir dados empíricos e generalizações teóricas das ciências naturais. Como ontológica, no entanto, a interpretação da natureza não se confunde com uma epistemologia das ciências naturais ou com uma filosofia orientada para a elucidação dos conceitos fundamentais de teorias científicas sobre a natureza.

Nesse sentido, uma hermenêutica da natureza não está voltada para a explicitação das cadeias inferenciais originadas do trabalho científico,nem tão somente à avaliação dos marcos metodológicos e epistemológicos das ciências. Dada a significação ontológica atribuída por Heidegger à hermenêutica das ciências, que deveria se concentrar no exame das projeções ontológicas que fundam primeiramente um domínio científico e assim condicionam metodologias de acesso, de justificação e de comunicação da investigação científica, pode-se afirmar que o programa da hermenêutica da natureza volta-se para os fundamentos ontológicos do comportamento científico com a natureza. Contudo, esse programa não se restringe nem é centralizado na hermenêutica das ciências naturais. A relação entre hermenêutica e ciências da natureza ainda deverá ser retomada quando considerarmos mais especificamente as orientações propriamente metodológicas de tal programa.

 

4. Elementos metodológicos

A interpretação ontológica dos sentidos de ser do natural não é hermenêutica apenas por operar uma radicalização da compreensão de ser, mas também em razão de sua orientação metodológica. Como fenomenológica o propósito dessa interpretação é permitir que a natureza possa se mostrar como fenômeno. Para tal, a interpretação deve se assegurar da situação hermenêutica, que é estruturada de acordo com a tríplice configuração de posição, conceitualização e visão prévias. O que é visado na interpretação da natureza são os modos de encontro e os sentidos de ser que regulam tais experiências com o natural. Considerando a passagem citada de "Sobre a essência do fundamento", podemos ressaltar a orientação para uma possível multiplicidade de modos de encontro com a natureza, sem pretender uma análise redutiva. A visada prévia, contudo, deve buscar o sentido originário de desvelamento da natureza.

Em razão dos envolvimentos produtivos e tematizantes com a natureza, as interpretações sedimentadas oferecem um lastro conceitual que mostra a natureza ou como objeto do descobrimento científico oucomo elemento ligado ao contexto ocupacional da Zuhandenheit. Nesse sentido, a interpretação deve operar uma privação nos sistemas conceituais que elucidam a natureza nos termos da objetividade temática ou da presença no mundo humano das ocupações produtivas. Contudo, tal privação não autoriza de imediato o apelo às significações do conceito de natureza que nos chegam desde o Romantismo Alemão, pois estas seriam ontologicamente admissíveis somente a partir do conceito de mundo e da analítica existencial (Heidegger, 1977, p. 88). De fato, aqui reside uma dificuldade muito importante, pois o asseguramento da conceitualidade prévia aparentemente possui um significado quase que exclusivamente destrutivo.

Talvez o ponto decisivo na interpretação da natureza seja o asseguramento da posição prévia. O modo como o natural é recebido na situação hermenêutica é determinante da adequação da interpretação.10 Nesse sentido, uma importante passagem de "Os conceitos fundamentais da metafísica" oferece uma delimitação negativa. Ao final da longa consideração do modo de ser da vida e dos organismos, Heidegger pode afirmar que:

Para a cotidianidade do ser-aí, a natureza vivente e não vivente está simplesmentedada em sentido amplo: isto parece mesmo tão óbvio que se fala desta concepção como a mais natural - uma concepção que veda como que o caminho para ver na natureza mesma o que há de especificamente natural (den Weg dazu verlegt, die spezifische Natürlichkeit in der Natur selbst zu sehen). (Heidegger, 1983, p. 319)

passagem é decisiva, pois se a cotidianidade da existência constitui a posição prévia para iniciar uma analítica da existência, no tocante a uma hermenêutica da natureza ela pode não o ser. Dito deforma mais precisa, na cotidianidade da existência a natureza (viva ou não) é concebida como simplesmente dada e subsistente (numa acepção ampla da noção de Vorhandenheit). Essa concepção veda a visão da naturalidade da natureza. Consequentemente, se tal hermenêutica busca um modo originário de desvelamento da natureza, então a sua posição prévia não pode estar definida exclusivamente pelo modo cotidiano de dar-se da natureza. O ponto deve ser tornado mais preciso, pois não se trata de uma recusa da posição da natureza na cotidianidade pura e simplesmente. Nesse sentido, o foco crítico não é exatamente a cotidianidade existencial, mas sim um modo de conceber a natureza na cotidianidade. Nesse aspecto, a nota de "Sobre a essência do fundamento" é decisiva, pois afirma que a natureza está desvelada em sentido originário no ser-aí, "pelo fato de este existir como afinado e disposto em meio ao ente". Ou seja, a posição prévia para uma hermenêutica da natureza está no ser-aí enquanto situado em meio ao ente: o ser-aí atravessado e disposto por afinamentos disposicionais e afetivos. O tema será retomado a seguir, pois a elucidação do significado da expressão "estar situado em meio ao ente" conduzirá a uma conexão muito especial que concederá à interpretação da vida o foco principal na posição prévia da hermenêutica da natureza. De outro lado, se é importante considerar a relevância metodológica do fenômeno dos afinamentos (Stimmungen) para a questão da posição prévia adequada à hermenêutica da natureza, tal relevância não pode induzir novamente a uma proximidade com a temática romântica dos sentimentos em face da natureza.

Heidegger não nomeia nenhum afinamento afetivo em particular, talvez porque o problema seja difícil. Precisamente ao referirse à percepção e à apreensão das forças naturais, na Preleção de Inverno de 1931, Heidegger indica a dificuldade que circunda o problema da experiência não científica com a natureza:

Aqui de modo algum queremos entrar na discussão da experiência pré-científica e extracientífica da natureza, naquilo que se revela no assim chamado sentimento da natureza (Naturgefühl). A par da dificuldade de apreender e compreender deuma maneira realmente filosófica esse modo de manifestação da natureza, deixamos de lado essas conexões já pelo fato de que esse tipo de experiência vem enredado por uma suspeita muito difundida. (Heidegger, 1990, p. 92)

A suspeita em questão é que esse sentimento da natureza nada mais seria do que uma introdução empática de vivências subjetivas no campo dos eventos naturais, que em si mesmos seriam apenas deslocamentos de partículas materiais. Não podemos examinar agora essa importante questão metodológica. No momento, é suficiente ressaltar que uma abordagem hermenêutica da natureza é necessária, dado que no próprio traço interpretativo da existência humana reside a possibilidade da confusão entre os sentidos de ser. Quando se tem por meta a identificação de diferentes modos de encontro com o natural, então é por uma operação hermenêutico-destrutiva que se previnem as transgressões interpretativas trazidas pelo ser-aí no homem. De outro lado, considerando a contingência da intramundaneidade da natureza, também se pode dizer que o ingresso e a retirada do mundo dos entes naturais são apenas parcialmente dependentes do ser-aí, caso não sejam preponderantemente independentes de sua ação. A retração da natureza obedece a uma legalidade própria que torna necessária uma hermenêutica do natural (Foltz, 1995, pp. 40-42), pois a natureza é o incompreensível em razão de ser o mundo desmundanizado, portanto carente de interpretação. Nesses termos, não é exagerado afirmar que o sentido crítico da interpretação privativa, que Heidegger reserva para a ontologia da vida, estende-se para o asseguramento da situação hermenêutica da interpretação da natureza em geral.11

A questão da situação do ser-aí humano em meio ao ente é importante para compreender mais precisamente a importância de se ter uma adequada posição prévia para a interpretação do desvelamento da natureza em sentido originário. Limitamo-nos aqui a abordar apenas os aspectos metodológicos do tema, dado que a elucidação fornecida por Heidegger conduzirá a um resultado não formal, a saber: a importância da vida para a hermenêutica da natureza em geral. Após a publicação de "Ser e tempo", Heidegger sugere uma mudança na investigação ontológica, que deveria incluir de forma constitutiva uma Metontologie. Essa exigência é formulada a partir da relação de pressuposição entre ser, compreensão de ser, ser-aí e natureza. Vejamos o trecho em sua totalidade:

A necessidade interna que a ontologia retorne para lá de onde partiu pode ser clarificada no fenômeno primitivo da existência humana: o ente homem compreende ser; no compreender de ser está também a realização da diferença entre ser e ente; dá-se ser apenas quando o ser-aí compreende ser. Em outras palavras: a possibilidade de dar-se ser no compreender tem como pressuposição a existência fática do ser-aí, e esta, por sua vez, a subsistência fática da natureza. (Heidegger, 1978, p. 199)

Aqui Heidegger faz a surpreendente afirmação da dependência do ser-aí e da compreensão de ser em relação à existência da natureza. Logo, uma totalidade de entes já deve estar subsistindo para que apareça ser. O ponto é controverso, pois aparenta conter uma noção ambígua de pressuposição. De um lado, certamente não se trata aqui da noção ontológico-existencial de pressuposição; de outro lado, é muito implausível que Heidegger esteja afirmando uma dependência causal da compreensão de ser em relação ao inteiro reino da natureza.12 Uma extensa passagemdo curso "Introdução à filosofia" fornece elementos adicionais para a elucidação do problema:

O ser-aí jamais está essencialmente isolado do ente e nesse caso abandonado "a" ele, mas se encontra como ser-aí em meio ao ente. Isso não significa uma vez mais que ele também ocorre entre outros entes, mas o "em meio a" significa: o ser-aí é perpassado de maneira dominante pelo ente ao qual ele é abandonado. O ser-aí é corpo, corporeidade e vida; ele não tem natureza apenas e pela primeira vez como objeto da consideração, mas ele é natureza. Todavia, isso não se dá de um tal modo que ele apresentaria um conglomerado de matéria, corporeidade e alma; ele é natureza qua ente transcendente, qua ser-aí, transpassado de maneira dominante e afinadora por ela. O ser-aí sempre se encontra a cada vez em meio ao ente que o transpassa de maneira dominante sob o modo de um ser afinado. (Heidegger, 1996b, p. 328-329)

A passagem é muito expressiva, não apenas por afirmar que o ser-aí possui e é natureza e que possui corpo, mas por indicar o conceito originário de natureza: a natureza aparece como aquilo em que a existência humana está lançada e que a domina integralmente. Importantes considerações acerca do acesso à natureza assim concebida podem ser encontradas na abordagem do modo de ser do organismo, apresentada nos "Conceitos fundamentais da metafísica". Não podemos nos deter na exposição detalhada da interpretação heideggeriana dos organismos, mas destacamos alguns resultados que evidenciam o primado metodológico da hermenêutica da natureza viva para a questão do acesso à natureza em sentido originário.

Com a pretensão de elucidar a tese de que o animal é pobre em mundo, Heidegger chega a resultados importantes para a ontologia da vida. A essência da animalidade é apresentada com os conceitos de círculo envoltório e perturbação (cativeiro, Benommenheit). Também os animais possuem uma forma peculiar de abertura para entes, distinta daquela que é própria dos seres humanos, mas não menos caracterizada como uma forma de abertura para entes. Os círculos envoltórios são abertos a partirda perturbação, criando um contexto de interpenetração mútua e diferenciada. Nem os animais são entes simplesmente dados, nem os entes que aparecem na abertura dos círculos envoltórios para os animais podem ser tomados como subsistentes ou simplesmente presentes.

O decisivo para o problema metodológico é que a interpretação do modo de ser da vida animal revela uma classe de intencionalidade que permite qualificar os animais como dotados de um campo ambiental. Assim sendo, é possível a confluência da abertura humana de mundo com a abertura orgânica. Estar em meio ao ente significa, portanto, estar transposto para a abertura dos círculos envoltórios. Segundo Heidegger, acontece uma transposição do ser humano para a engrenagem dos círculos envoltórios do animal. Na continuidade da passagem antes citada está o ponto decisivo para a questão metodológica:

E, no entanto, vista metafisicamente, a relação ontológica do homem com a natureza é uma relação totalmente diversa. A natureza não se encontra ao redor do homem cheia de objetos, ela não é assim compreensível. Ao contrário, o seraí humano experimenta em si uma peculiar transposição para o interior do contexto do círculo envoltório próprio ao vivente... Não, os círculos envoltórios entre si não são absolutamente comparáveis, e a totalidade da engrenagem dos círculos envoltórios respectivamente manifestos não cai para nós apenas sob o ente que está habitualmente manifesto, mas nos mantêm presos de uma maneira específica. Nós dizemos, por isto: o homem existe de uma forma característica em meio ao ente. Em meio ao ente significa: a natureza vivente mantém-nos presos enquanto homens de uma forma totalmente específica. Não em função de uma impressão ou influência particulares, que a natureza exerceria sobre nós, mas em função de nossa essência, quer experimentemos ou não esta essência mesma em uma relação originária. (Heidegger, 1983, p. 403)

Assim sendo, o fenômeno de estar situado em meio ao ente não se refere à submissão da existência a correlações causais ou ambientais, mas é a transposição para o interior dos círculos envoltórios da natureza viva. Não se trata apenas da força dos poderes naturais sobre os seres humanos, da influência de suas regularidades e propriedades, mas de umasubmissão (aprisionamento) relativa à abertura de ser que está presente no ser-aí. A posição prévia para uma doação adequada da natureza em sentido originário é delineada, portanto, pelo estar situado em meio ao ente, compreendido concretamente como compartilhamento e acompanhamento na protoabertura dos organismos. Caso a hermenêutica da natureza inicie desde essa posição prévia, ela terá a chance de não perder de vista a naturalidade da natureza.

Um último esclarecimento metodológico concerne à relação entre a hermenêutica da natureza e as ciências da natureza. Dada uma compreensão geral da abordagem existencial da ciência, aparentemente não seria necessário tomar em consideração a investigação científica da natureza, e também as pesquisas de fundamentos nela despertadas. Uma conclusão mais forte diria que a interpretação ontológica da natureza não deve considerar a ciência e os conhecimentos científicos, ocupando-se de modos mais cotidianos ou originários de encontro com o natural.13 Três argumentos apoiariam essa avaliação do papel nulo ou secundário do conhecimento científico no programa da hermenêutica da natureza, e os três são discutíveis.

O primeiro sustenta que o comportamento científico pressupõe uma compreensão de ser da natureza como Vorhandenheit, que não permite o encontro com o fenômeno originário do natural, e também nivela os demais sentidos de ser do natural. Aqui reside uma confusão e uma imprecisão. O comportamento científico pressupõe, sim, uma compreensão expressa do ser do domínio objetual de referência, o que é possível na tematização. Contudo, a tematização não precisa projetar o modo de ser da Vorhandenheit. Há diferentes domínios de investigação científica, e nem todos possuem o modo de ser da simples presença subsistente. De fato, oconceito de Vorhandenheit é ambíguo, e se for entendido em sentido restrito, delimitado pelo modo de ser dos objetos da Física Matemática, então não é correto afirmar que toda ciência pressuponha a compreensão dos entes como simplesmente subsistentes à presença. O antirreducionismo da concepção heideggeriana da ciência bloqueia o fisicalismo, portanto a universalização do sentido de ser da Vorhandenheit (no significado projetado na Física Matemática moderna). E aqui reside a confusão, a saber: não é preciso universalizar a compreensão restrita da Vorhandenheit para que seja possível o conhecimento científico. Caso isso seja feito, trata-se de uma interpretação filosófica, mesmo que operada por não filósofos, e não propriamente científica.

No entanto, em "Ser e tempo" Heidegger se refere a um significado mais amplo da categoria, referindo-se à pura presença subsistente (pure Vorhandenheit). Nesse caso, o termo é entendido como a determinidade dos entes com independência do mundo dos afazeres humanos. Ou seja, os entes projetados como portadores de determinações (propriedades, por exemplo) que os qualificam em si mesmos e sem dependência das possibilidades existenciais. Na medida em que o comportamento científico visa a um descobrimento veritativo dos entes, mostrando-os tal como são em si mesmos,14 então na ciência se pressupõe a compreensão dos entes como dotados de um em si independente da existência. Ora, essa projeção é possível por meio de modificações estruturais nos comportamentos mais originários para com os entes. O segundo argumento sustenta, portanto, que sendo o conhecimento e a ciência um modo derivado do ser-no-mundo, então seria um equívoco incorporar alguma referência à ciência no propósito de interpretar o sentido originário de encontro com a natureza.

Essa argumentação também revela uma confusão. A diferença entre modos derivados e não derivados de ser-no-mundo não implica uma diferença na adequação do descobrimento de entes que acontece em tais comportamentos, e menos ainda uma avaliação sobre a originariedade dos respectivos sentidos de ser neles pressupostos. A comparação estrutural entre tematizar e ocupar-se com um fenômeno natural não significa que a natureza desvelada na ocupação do camponês, por exemplo, seja mais originária do que a natureza desvelada pelo meteorologista. A ocupação com entes utensiliares e disponíveis recobre a cotidianidade mediana de modo não exclusivo, mas a cotidianidade sem derivação estrutural dos comportamentos produtivos não lhes confere um privilégio sobre o modo temático, pelo menos no que tange a uma interpretação da natureza. É certo que Heidegger insiste que, partindo da Vorhandenheit, não há como obter adequadamente a Zuhandenheit, mas o contrário é possível. Contudo, daqui não se segue que um modo derivado de ser-no-mundo não tenha nenhum papel no projeto geral de interpretar os diferentes sentidos do ser natural, e mesmo no objetivo de interpretar o sentido originário de encontro com a natureza.

Ao contrário, considerando que nas ciências é possível descobrir os entes tais como são em si mesmos, então as projeções do natural que nelas estão pressupostas podem ser relevantes para elaborar o sentido originário de a natureza se revelar. O derivado que revela o independente do ser-aí é relevante para apresentar o originário na natureza. Aqui também reside uma confusão: que as ocupações produtivas com a natureza sejam modos não derivados de ser-no-mundo não implica que sejam os modos de encontro com a natureza em sentido originário. É igualmente discutível que a natureza revelada por ligação ao contexto da Zuhandenheit seja a natureza em sentido originário. Antes disso, é mais rigoroso pensar que não é! As vias da hermenêutica da faticidade não precisam ser as mesmas da hermenêutica da natureza, especialmente se para uma interpretação do modo originário de dar-se da natureza for necessário tomar emconsideração as determinações dos entes naturais tais como são em si mesmos. O modo derivado de ser-no-mundo pode ser necessário para ver o natural na natureza.

O terceiro argumento focaliza precisamente a relação de dependência. A dependência entre modos eminentes e deficientes, entre modos originários e derivados, impediria de antemão que o objetivo de interpretar a doação originária da natureza fizesse alguma referência a alguma posição prévia e conceitualidade prévia originadas do modo derivado, que é a tematização científica. Já vimos como o argumento é frágil, pois a tematização científica, por derivada que seja em relação às ocupações e às decisões existenciais, é capaz de descobrir a natureza tal como é em si mesma, e isto não pode deixar de ter relação com o sentido originário do natural. De outro lado, a hermenêutica da natureza deve interpretar e articular os sentidos possíveis do natural, e não apenas aqueles que seriam originários. O argumento torna-se mais complexo quando a dependência em questão não é entre modos derivados e originários, mas entre a dimensão ôntica e as estruturas ontológicas. Nesse ponto, haveria uma transgressão categorial na pretensão de incorporar alguma referência ao conhecimento científico na hermenêutica do natural, dado que a interpretação ontológica focaliza as condições do comportamento científico. A ciência supõe uma projeção ontológica do seu domínio de referência, projeção que é interpretada ontologicamente pela filosofia. Ora, como pretender que o condicionado - o conhecimento científico da natureza - possa ser relevante na articulação de suas próprias condições? O condicionado não pode elucidar a condição. Portanto, hermenêutica da natureza sem ciência da natureza!

O argumento da circularidade tem cogência formal. Contudo, a relação de dependência não pode ser entendida em termos de uma divisão de trabalho teórico e menos ainda como uma relação unidirecional. Heidegger compreendia a dinâmica científica como se transferindo internamente para o plano dos fundamentos e, portanto, da reflexãofilosófica. Ao promover uma revisão em seus conceitos fundamentais, por exemplo, o trabalho científico conduz à filosofia. Nesses termos, seria artificial dizer que os cientistas entram com os fatos e dados empíricos obtidos na pesquisa, e os filósofos agregam a interpretação ontológica. Esse seria um modelo abstrato - o modelo da fábrica (Heidegger, 1983, p. 279) -, que não faz justiça à historicidade da investigação científica e da relação entre ciência e ontologia. A relação entre ciência e ontologia deve observar uma dinâmica que corresponda a uma abordagem existencial da ciência e da filosofia como sendo possibilidades existenciais.

É certo que Heidegger sustentava existir uma diferença absoluta entre ciência de objetos e ciência ontológica, com as evidentes implicações para as diferenças epistemológicas e lógicas entre ambas. O conceito filosófico é de natureza indicativo-formal, assim como sua possível verdade. No entanto, isso não implica que na tarefa de interpretar conceitualmente as projeções de ser supostas na tematização científica não se deva recorrer aos próprios resultados científicos. A relação de dependência transformase numa relação circular quando se passa para o plano de segunda ordem da tematização e conceitualização das estruturas ontológicas. E o próprio Heidegger assim se pronunciou em relação a um caso que não é apenas um exemplo particular: a relação entre ontologia da vida e teorias biológicas.

Heidegger introduziu um procedimento, no início da interpretação ontológica dos organismos e com o propósito de conceitualizar o modo de ser da vida, que pode ser legitimamente chamado de circular. Nessa operação, que complementa a interpretação privativa, são introduzidos conceitos fundamentais e resultados empíricos, com o intuito de articular os supostos projetados nos fundamentos da Biologia. Entendido topologicamente (Malpas, 2007, pp. 125-126), o procedimento consiste em um contínuo exame de conceitos fundamentais a partir de resultados empíricos, e a avaliação retrospectiva desses mesmos resultados a partir das interpretações provisórias alcançadas. Circulando com o olhar dirigido para o centro e não para adiante, o intérprete tem a possibilidade dealternar fundo e frente. Vendo algo sob diferentes aspectos, ele avança na interpretação dos supostos da tematização científica da vida (Heidegger, 1983, pp. 276-277). Há uma cooperação entre ontologia e ciências (De Beistegui, 2006; Winkler, 2007, pp. 532-532; Reis, no prelo). Temos, portanto, um exemplo paradigmático de uma referência positiva a conceitos e resultados originados da Zoologia no intuito de fazer uma interpretação ontológica do ser da vida animal e da vida em geral.

O exemplo também é paradigmático, porque é diretamente relacionado com a elucidação oferecida por Heidegger acerca do fenômeno do estar situado em meio ao ente. Como vimos, é a partir dessa estrutura que se deve buscar o modo de a natureza se dar em sentido originário. Vimos acima que a situação em meio ao ente é esclarecida como a transposição e acompanhamento humano para os círculos envoltórios dos animais. Ora, a determinação da essência da animalidade como um desenvolver de pulsões que mantém os organismos cativos em círculos ambientais reciprocamente interpenetrados foi obtida a partir de conceitos fundamentais da Biologia, em particular da Ecologia. Sem os avanços nas teorias biológicas não se poderia chegar aos conceitos de organismo e de vida alcançados por Heidegger. Portanto, não seria possível sequer elucidar a estrutura do estar situado em meio ao ente no todo, que é o fenômeno no qual está dada a posição prévia adequada para interpretar o modo de ser originário da natureza. Em suma, não apenas a hermenêutica admite uma referência construtiva ao conhecimento científico da natureza, mas ela precisou fazer isso para elucidar em concreto a situação de doação da naturalidade do natural.15

Uma conclusão importante dessas considerações é que o projeto de uma hermenêutica da natureza precisa de uma cooperação circular entre interpretação e tematização científica. Sabemos que Heidegger tornou-se cada vez mais cético em relação a esse diálogo, motivado por sua concepção da história do ser e do destino da técnica, segundo a qual a essência técnica da ciência estaria fechada para qualquer pensamento que não o calculador.16 Não obstante, considerado no momento de transição no projeto da ontologia fundamental e também na abordagem existencial da ciência, o programa não desenvolvido de uma hermenêutica da natureza podia e precisava fazer referência ao conhecimento científico. Não seria artificial afirmar que, caso ainda se pretenda a continuidade de tal projeto, então a referência à circularidade na relação entre ciência e ontologia precisa ser mantida. Aliás, a circularidade hermenêutica faria desse projeto uma tarefa sempre em aberto, a ser renovada na própria formulação de indicações formais.

É certo que o modo de presença da natureza a partir do comportamento teórico e científico não possui nenhum primado em relação às demais classes de descobrimento de entes naturais. De um ponto de vista ontológico, não há dependência ou derivação dos sentidos de ser, que devem ser vistos em sua emergência unificada a partir da temporalidade de sua compreensão, preservando assim sua identidade e diferença.17

Contudo, a dependência dos comportamentos em relação aos sentidos de ser não é incompatível com a possibilidade de um comportamento que tematize e descubra os entes tais como são em si mesmos. Portanto, apesar de controverso, pode-se dizer que um realismo científico não é incompatível com a analítica ontológica de "Ser e tempo" (Reis, 2004).

Em relação às ciências naturais, inicialmente Heidegger acreditava que a Física Matemática seria um corpo lógico, epistemológico e metodológico homogêneo, capaz de ser examinado em sua dependência em relação à ontologia hermenêutica de base. Gradativamente ele concebeu uma desunificação na Física Matemática, pois a Física Atômica não cairia sob esse enquadramento. Por fim, sob a perspectiva da história do ser, é possível visualizar a continuidade na diferença interna à história da Física Matemática, o que habilita novamente um discurso sobre o campo homogêneo da ciência moderna da natureza. Em última instância, é preciso reconhecer que nem mesmo com a categoria da Vorhandenheit se faz justiça à necessária compreensão de ser que conduziria à tematização física da natureza. Na próxima seção, consideraremos em linhas gerais as indicações minimamente esboçadas por Heidegger para um programa de hermenêutica da natureza. Ficará evidente que, para a hermenêutica da natureza viva, é indispensável o recurso construtivo às ciências biológicas, o que conduz a resultados ontologicamente decisivos.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: reis@smail.ufsm.br

 

 

Enviado em 30/7/2010 Aprovado em 01/9/2010

 

 

1Este trabalho recebeu o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Brasil.
2 Não consideramos aqui a objeção científica, originada do pensamento evolutivo, que nos ensina que a diversidade da vida não é fixa. A imagem darwiniana da árvore das espécies apresenta uma evolução unificadora estendendo-se retroativamente no tempo, chegando a um ancestral comum do qual todas as espécies são descendentes. Portanto, não há abismo entre as espécies vivas, pois, ao longo de sua história, a vida evoluiu a partir de ancestrais comuns. A resposta quase automática consiste em dizer que a diferença afirmada por Heidegger não está no plano de determinação das espécies vivas, mas sim num contexto ontológico que não lida com uma noção usual de essência, e sim com diferentes sentidos de ser.
3 Pouca atenção é dada à detalhada contribuição de Beelmann (1994) a respeito da hermenêutica da vida na obra de Heidegger. Uma importante consideração do tema da natureza tem lugar a partir da recepção da obra de Heidegger no assim chamado diálogo com o pensamento oriental. Não incorporamos essa análise no presente trabalho, mas agradecemos a Antônio Florentino Neto pelo acesso às principais fontes do debate, especialmente aos ensaios editados por Cho e Lee (1999).
4
No ensaio "Phänomenologische Ontologie und protestantische Theologie", publicado originalmente em 1930 e republicado em 1967 e 1969.

5 A situação é mais complexa, pois, ao tomar conhecimento da Física de Bohr e Heisenberg, Heidegger reconheceu que o desenvolvimento na ciência matemática da natureza não implicava necessariamente a projeção do modo de ser da Vorhandenheit (Chevalley, 1992).
6 Jeff Malpas (2009) tem insistido na especificidade da concepção heideggeriana do espaço, diferenciando-a de outras abordagens que acentuaram a dimensão subjetiva (e mesmo biológica) da espacialidade humana.
7 Não podemos abordar agora o problema de como se dá, em um mundo histórico, um comportamento adequado aos entes naturais enquanto entes naturais. Para tal, seria necessário considerar o modo científico de descobrimento, pelo qual é possível descobrir os entes tal como efetivamente são, ou seja, com independência do ser-aí humano. O problema demanda o exame da relação entre o conceito lógico e o conceito existencial de ciência, assim como da relação entre ciência e Weltanschauung.
8 O tema foi analisado por Malpas (2007, pp. 123-130), que o descreve como uma mudança da perspectiva transcendental para um ponto de vista topológico. Ver também Brandom (1992, p. 47).
9 Sobre o problema da finitude de ser e os limites do marco transcendental, ver Pippin (2007).
10 Agradecemos a Alejandro Vigo pela consulta ao seu trabalho ainda inédito, "Tenencia previa y génesis ontológica. Observaciones sobre algunas estrategias metódicas en la analítica existenciaria de Sein und Zeit", no qual o significado metodológico central da Vorhabe é examinado em detalhe e com profundidade. Parece-nos que também no caso da hermenêutica da natureza a posição e a doação prévias representam a pedra de toque da verdade da interpretação.
11 A respeito da interpretação privativa há uma grande confusão, pois ela tem sido tomada como a obtenção das determinações ontológicas da vida por abstração das características existenciais. Tanto Plessner quanto Löwith parecem entender a privação nesse sentido, assim como boa parte da literatura crítica sobre o tratamento heideggeriano da vida e dos animais. Sobre a interpretação privativa, cf. Reis & Silveira, no prelo.
12 O ponto é controverso, e tem levado a um esforço analítico produtivo. Ver, por exemplo, Crowell, 2000. De fato, a própria noção de uma metontologia parece ser superada juntamente com o projeto da ontologia fundamental (Crowell, 2000, p. 329).
13
Caso se aceite a avaliação crítica da Plessner, por exemplo, segundo a qual a interpretação privativa da vida exibiria a pertinência da obra de Heidegger com a tradição subjetivista originada em Agostinho e enfatizada no Idealismo Alemão, a natureza deveria ser buscada na via para o interior, com desconsideração das tematizações para fora, entre as quais se pode incluir o descobrimento científico.

14 Neste ponto não acompanhamos a crítica de Tugendhat (1967, § 15) à insuficiência do conceito proposicional de verdade apresentado em "Ser e tempo ", pois a abordagem existencial do comportamento científico preserva um conceito de verdade como descobrimento regrado pela estrutura do assim como.
15
Heidegger afirmou que em 1928 ainda não havia surgido o Galileu para a ciência da vida (Heidegger, 2006, p. 11). De outro lado, também considerou que as disciplinas que tratam do ser vivo estavam em reestruturação, assegurando a autonomia da vida (Heidegger, 1983, pp. 277 e 282; Heidegger, 1996a, p. 38). Salvo melhor juízo, ainda não há um estudo detalhado sobre a importância de conceitos evolutivos na interpretação heideggeriana dos organismos, e a relação Heidegger-Darwin permanece ainda não estudada.
16 Friedman (2000, p. 151 n. 207) afirmou categoricamente que uma caracterização dos avanços na Matemática, na Lógica Matemática e na Física Matemática em termos de simples cálculo é uma distorção manifesta. Rouse (2005b, pp. 186-187) apresentou dois casos na história recente das ciências naturais - sendo um deles relacionado com a síntese neodarwiniana - que não podem ser adequadamente considerados como resultantes de uma orientação para o controle calculador da natureza. Nesse sentido, a concepção existencial de ciência do período de "Ser e tempo" aparenta ser mais consistente com uma concepção não essencialista da ciência, essencialismo que aparentemente está presente no pensamento tardio de Heidegger sobre o conhecimento científico.
17
McDonough (2006) inaugurou uma interpretação emergentista de toda a obra de Heidegger. Mesmo sem examinar essa hipótese, certamente tão discutível como toda temática da superveniência, é correto que uma abordagem não reducionista pode ser aproximada a uma atitude anticientífica apenas quando não se compreende o marco geral de uma abordagem fenomenológica e hermenêutica da ciência.