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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.18 no.2 São Paulo dic. 2016
DOSSIÊ
Como falar de sexo sem ofender as pessoas? Algumas observações sobre a conferência introdutória à psicanálise Das menschliche Sexualleben (1916-1917) à luz da metafísica da sexualidade de Schopenhauer
How to talk about sex without offending other people? Some remarks on the introductory lecture on psychoanalysis Das menschliche Sexualleben (1916-1917) to the light of Schopenhauer's metaphysics of sexuality
Eduardo Ribeiro da Fonseca*
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)
RESUMO
Com o advento das obras de Schopenhauer e Freud, o que é admissível e inadmissível em termos de sexualidade ultrapassa o senso comum e adquire o estatuto de objeto de conhecimento. No caso do segundo, na vigésima das Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917), o texto sintetiza os estudos clínicos e teóricos de Freud a respeito, especialmente no que concerne à conexão entre as perversões e a sexualidade infantil. No caso do primeiro, trata-se de uma indagação metafísica acerca da sexualidade em geral e do homossexualismo em particular. O título do artigo se refere às dificuldades que o tema naturalmente oferece em termos de linguagem e às formas pelas quais os autores contornaram esse problema e estabeleceram seus pensamentos apesar das resistências que enfrentaram junto a seus respectivos públicos.
Palavras-chave: sexualidade infantil; perversão; homossexualidade; linguagem.
ABSTRACT
With the advent of the works of Schopenhauer and Freud, what is admissible and inadmissible in terms of sexuality goes beyond common sense and acquires the status of object of knowledge. In the case of the second, in the twentieth of the Introductory Lectures on Psychoanalysis (1916-1917), the text brings together Freud's clinical and theoretical studies on this, especially regarding the connection between perversions and the sexual life of the children. In the case of the first thinker, it is a metaphysical inquiry into sexuality in general and homosexuality in particular. The title of the article refers to the difficulties that the theme naturally offers in terms of language and the ways in which the authors have circumvented this problem and established their thoughts despite the resistances they faced with their respective audiences.
Keywords: infantile sexuality; perversion; homossexuality; language.
Fuja, meu filho. Fuja dessa loira fatal. Que desgraçou tua vida.
Dalton Trevisan1
As Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (1915-1917) foram escritas e proferidas por Freud para um auditório composto por médicos e leigos e, por essa razão, Freud toma certo cuidado com a forma pela qual se comunica com o público. Esse é um dos principais aspectos dos quais trataremos aqui: a preocupação e os cuidados com a recepção desse público, tendo como contraponto o mesmo tipo de atitude de Schopenhauer em situação semelhante cerca de 73 anos antes, semelhança dada especialmente pelo papel representado pela sexualidade em ambas as obras e pelo repúdio por vezes indignado do público que lhes serve de interlocutores em seus textos.
Nessas conferências de Freud, que organizam o material duramente conquistado (como ele diz) especialmente no período entre os estudos sobre a histeria e a metapsicologia, ocorre, basicamente, uma retomada dos principais temas psicanalíticos de maneira sintética. O objetivo do autor vienense parece ser possibilitar o diálogo do modo mais imparcial possível com um público algo hostil aos seus temas, especialmente, como já dito, às questões ligadas à sexualidade humana. Por isso, escolhemos comentar justamente a vigésima conferência intitulada Das menschliche Sexualleben ("A vida sexual humana"), pois, de fato, ela reúne certas descobertas e conclusões de Freud baseadas na observação clínica de pacientes por um extenso período de tempo, observação essa que produziu resultados inesperados especialmente no âmbito da discussão sobre a normatividade sexual, as assim chamadas perversões e a conexão destas com a sexualidade infantil. Um material que excede bastante o conteúdo do que até então se pensava sobre o assunto, na medida em que Freud estabeleceu um padrão de pesquisa a partir da clínica que não encontra paralelo, nem mesmo nos textos mais polêmicos do filósofo da vontade, que também causou escândalo no século anterior mais ou menos pelas mesmas razões2.
Ainda assim, temos motivos para pensar que Freud encontra uma rara fonte de apoio para seu trabalho em Schopenhauer, mesmo compreendendo as limitações da perspectiva filosófica (na opinião dele) e o fato de que a clínica induz a conclusões em parte muito diferentes do que se pode chegar meramente pela observação empírica ou pelo desenvolvimento conceitual. Por outro lado, se compararmos as descobertas de Freud aos desenvolvimentos da Metaphysik der Geschlechtsliebe ("Metafísica do amor sexual") presente nos Ergänzungen de Schopenhauer (1844) (Schopenhauer, 2014a, p. 239), veremos que sua consideração nos indica o quanto o problemático diálogo de Freud com a filosofia pode ser rico e nuançado, levando-se em conta as antecipações de Schopenhauer no sentido da "sexualidade ampliada" e a discussão do filósofo acerca do homossexualismo e das manifestações sexuais infantis. Logicamente, convém reforçar que a proximidade entre ambos é admitida, embora entendamos que se tratam de obras com características e objetivos diferentes. Além disso, por vezes Schopenhauer, com toda a sua ousadia, com toda a sua intuição de questões psicológicas, ainda não dispõe de todos os recursos da ciência do tempo de Freud e parece compartilhar de diversas superstições de sua época. Há uma forte defasagem entre ambos nesse sentido, o que pode ser percebido com clareza pelo leitor nos "Complementos". Mas, por outro lado, não é preciso exagerar a diferença entre eles para além daquilo que é visível.
1) A metafísica e o interesse da metapsicologia
A percepção de Freud acerca das antecipações de Schopenhauer é capital para manter o foco do interesse "especulativo" freudiano em torno do filósofo, embora ele sempre demarque o território da clínica como ponto de origem da pesquisa que efetivamente o leva à peculiaridade de seus esforços teóricos que partem de conceitos heurísticos, na medida em que procura fazer ciência dentro de uma concepção kantiana, ainda que lhe pareça algo surpreendente que Schopenhauer e outros filósofos (especialmente Nietzsche, um schopenhaueriano dissidente) tenham chegado a muitas conclusões semelhantes às suas pela simples observação e introspecção. Nesse sentido, há uma citação que é valiosa para indicar os termos admitidos por Freud para estabelecer a proporção adequada de uma possível comparação com o filósofo de Frankfurt no âmbito dos temas psicanalíticos, especialmente no que concerne à dificuldade afetiva trazida pelo golpe narcísico representado pela "jovem ciência". O comentário de Freud é extraído do parágrafo final de um texto também de 1917, chamado Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse ("Uma dificuldade da psicanálise"):
Apenas uma minoria entre os homens se deu conta da importância decisiva para a ciência e para a vida do reconhecimento da hipótese da existência dos processos anímicos inconscientes. Porém, nos apressamos a acrescentar que não foi a psicanálise a primeira a dar esse passo inicial. Podemos citar renomados filósofos como precursores, acima de todos [grifo nosso] o grande pensador [große Denker] Schopenhauer, cuja "Vontade" inconsciente [unbewußter "Wille"] corresponde aos impulsos anímicos [seelischen Trieben] da psicanálise. (Freud, 2010, p. 12; 1996, Vol. 3, p. 2436)
É importante ressaltar que a expressão "gleichzusetzen ist" (corresponde, é equiparável), utilizada por Freud, não pode ser desconsiderada de modo algum, ainda mais de modo tão insistente como vimos observando especialmente entre lacanianos, estimulados pelo próprio psicanalista francês, especialmente pelo que este diz no "Seminário 7", sobre "A ética da psicanálise". Em trecho desse seminário, o próprio Lacan, que não parece ter sido leitor direto da obra de Schopenhauer, diz: "Não deem absolutamente relevância ao termo "vontade". Qualquer que seja o interesse que a leitura de Schopenhauer, por sua ressonância, pôde ter despertado em Freud, não se trata de nada que seja da ordem de uma Wille fundamental" (Lacan, 1988, p. 259). Precisamos nos perguntar a quem devemos dar atenção, ao comentador ou ao autor original, ainda mais se aquele confunde a vontade de Schopenhauer com um fundamento. Parece-me que o testemunho de Freud seja mais relevante, especialmente no que concerne às suas próprias opiniões. De qualquer modo, o psicanalista vienense continua seu comentário elogioso da seguinte forma:
O mesmo pensador já alertou as pessoas, aliás, com palavras de veemência inesquecível [unvergeßlichem Nachdruck], quanto à importância ainda tão subestimada de suas aspirações sexuais [Sexualstrebens]. A psicanálise leva apenas a vantagem [voraus] de não haver afirmado essas duas teses tão penosas para o narcisismo, o do significado psíquico da sexualidade [der psychischen Bedeutung der Sexualität] e a da inconsciência da vida anímica [der Unbewußtheit des Seelenlebens] de forma abstrata, mas sim as demonstrou, aplicando-as a um material [Material] que diz respeito a todos nós e nos força a assumir alguma atitude em relação a esses problemas. Mas é precisamente por isso que atrai sobre si a aversão e as resistências daqueles que ainda timidamente evitam o nome do grande filósofo. (Freud, 2010, p. 12; 1996, Vol. 3, p. 2436)
A citação estabelece o princípio de diferenciação percebido por Freud entre o psicanalista e os filósofos: a clínica e suas exigências práticas e ligadas a pessoas determinadas, os analisandos. A partir dela aparecem desenvolvimentos teóricos específicos e uma ética relacionada à atuação do psicanalista. Mas, na verdade, a diferença presumida é uma fronteira que simultaneamente interdita e solicita a passagem, como veremos mais adiante, quando analisarmos a visão de Schopenhauer acerca dessa distinção entre o filósofo e o cientista de acordo com uma concepção de ciência de caráter kantiano.
No sentido do citado "significado psíquico da sexualidade" (Freud, 2010, p. 12; 1996, Vol. 3, p. 2436), é certamente relevante, tanto do ponto de vista do público quanto do diálogo com a filosofia, considerarmos o quanto Freud avança na aceitação e compreensão da sexualidade infantil e, por outro lado, o quanto Schopenhauer sustenta apenas uma compreensão incipiente do tema, ainda que o anuncie pelo menos em uma passagem dos Ergänzungen. No mesmo sentido, observamos o quanto Freud é revolucionário do ponto de vista da compreensão das assim chamadas perversões, mas como ainda se mantém, do ponto de vista da linguagem, "pisando em ovos", exatamente como o filósofo de Danzig no século anterior – até mesmo quando o psicanalista se defende das acusações de ver sexualidade "em todas as coisas" evoca o nome do filósofo, praticamente seu antecessor no campo dessa polêmica.
No prefácio à quarta edição dos Três ensaios para uma teoria sexual, de 1905, acrescentado em 1920, Freud menciona Schopenhauer como precursor no que se refere à sua teoria sexual cerca de 73 anos antes, especialmente no que concerne à acentuação da importância da vida sexual para todas as atividades humanas e à ampliação do conceito de sexualidade, as mesmas coisas que suscitaram sempre as mais apaixonadas resistências contra a psicanálise:
Deixando-se levar [o público] pela inclinação às frases grandiloquentes, chegou-se a falar no "pansexualismo" da psicanálise, lançando-se a reprovação absurda de que pretenderia explicar "tudo" a partir da sexualidade. Semelhante atitude poderia nos assombrar caso esquecêssemos até que ponto os próprios fatores afetivos induzem à confusão e ao esquecimento. Com efeito, já faz um bom tempo que o filósofo Arthur Schopenhauer mostrou aos homens [1844] em que medida seus feitos e interesses são determinados por aspirações sexuais – o sentido corriqueiro da palavra –, e, parece incrível que todo um mundo de leitores tenha conseguido banir de sua mente, de maneira tão completa, uma advertência tão impressionante!" (Freud, SAV, p. 46; ESB VII, p. 127)
A referência é bastante eloquente e diz respeito ao tema crucial dos Três ensaios, livro que, na opinião de Strachey (Freud, ESB, vol. 7, p. 120), é uma das contribuições mais significativas e originais de Freud para o conhecimento humano. De fato, na Metaphysik der Geschlechtsliebe, Schopenhauer escreve que a sexualidade é o assunto mais sério da humanidade (Schopenhauer, 1986, v. 2, p. 682), a característica mais decisiva da animalidade em geral. Em concordância com isso, os órgãos genitais são considerados o foco (Schopenhauer, 1986, v. 2, p. 656) do querer-viver e toda experiência de interesse por outra pessoa carrega essa marca:
Todo se enamorar, por mais etéreo que possa parecer, enraíza-se unicamente no impulso sexual [Geschlechtstriebe], e é apenas um impulso sexual melhor determinado [ein näher bestimmter], mais bem especializado [spezialisierter] e mais bem individualizado [individualisierter] no sentido rigoroso do termo. Quando, então, sem esquecermos disso, consideramos o papel importante que o impulso sexual desempenha, em todas as suas gradações e nuances [Abstufungen und Nuancen], não só nas peças de teatro e romances, mas também no mundo real [wirklichen Welt], onde ele, ao lado do amor à vida [Liebe zum Leben], mostra-se como a mais forte e ativa das molas propulsoras [stärkste und tästigte aller Triebfedern], absorvendo ininterruptamente a metade das forças e dos pensamentos [Kräfte und Gedanken] da parte mais jovem da humanidade. É ele a meta final de quase todo esforço humano [das letzte Ziel fast jedes menschlichen Bestrebens ist]. (Schopenhauer, 1986, v. 2, p. 682)
Para Schopenhauer, a importância do amor é "correlativa à seriedade e ao ardor dos impulsos" (Schopenhauer, 1986, v. 2, p. 682). Desse modo, fica clara a importância dramática que a sexualidade assume para o autor, pois o filósofo amplia o conceito para os mais variados interesses das pessoas (Schopenhauer, 1986, v. 2, p. 682). Vida e sexualidade aparecem aqui unificadas como nunca se viu antes na história da filosofia, o que chama a atenção do psicanalista vienense. A atividade sexual é encarada como a mais importante finalidade da vida humana, e como que uma síntese desta, especialmente devido à interdependência entre a existência individual e a vida da espécie. Ressalte-se que, para o filósofo, toda linguagem e toda cultura no fundo giram em torno do interesse sexual.
Portanto, fica claro que a referência de Freud ao filósofo não é coisa aleatória ou sem importância, denotando a leitura e o reconhecimento da proximidade com o filósofo. Certamente, essa nota foi acrescentada no contexto das suas leituras de 1919, ano em que Freud se aproxima ainda mais extraordinariamente das teses do filósofo de Frankfurt.
Retomando as Conferências, um dos temas mais interessantes no contexto do conceito ampliado de sexualidade (conforme a definição dada por Freud a esse respeito) é o de sua comunicação ao público, posto que a sexualidade é ao mesmo tempo a nossa experiência subjetiva mais presente, nas mínimas coisas, e, por outro lado, a mais caluniada, rechaçada, incômoda e perseguida ao longo da história cultural humana. A moralização das relações humanas, o preconceito contra a sexualidade feminina e contra o homossexualismo e outras práticas sexuais diferentes da norma reprodutiva de certa forma distorceram a importância, a abrangência e o significado da sexualidade humana; esta, devido ao seu caráter pulsional, precisa ser analisada levando em consideração não apenas aspectos biológicos e reprodutivos, mas também a influência da linguagem e, consequentemente, da cultura; a sexualidade atinge, no caso da humanidade, uma amplitude e um significado que não encontra correspondência na animalidade em geral, ainda que vejamos aqui e ali exemplos dessa sexualidade ampliada mesmo no assim chamado reino animal. Porém, quando se amplia a análise do fenômeno para além da simples descrição, exigindo dele uma explicação de acordo com algum parâmetro pelo qual generalizar nossas conclusões, há que se dar o salto sobre o abismo da semântica. Como, via de regra, essas explicações são paradigmáticas, no fundo o que ocorre é o contrário. O elemento metafísico paradigmático já surge antecipadamente, dele resultando o campo de estudos e as próprias perguntas que delimitam este campo, esgotando sua possibilidade de resposta pela definição a priori que oferece. Nesse sentido, ao fundo da pesquisa clínica de Freud estaria a sua metapsicologia, e, ao fundo dela, como grande usina geradora de questões, a metafísica imanente de Schopenhauer.
2) O filósofo e o cientista
Para o filósofo de Danzig, Freud talvez pudesse representar a figura de um daqueles pesquisadores empíricos que, como Cabanis e Bichat, confirmaram as teses fundamentais de sua metafísica. No caso da psicanálise de Freud, isso foi feito principalmente através da metapsicologia, de seus desenvolvimentos posteriores e da compreensão da sexualidade fora de uma norma reprodutiva. Se Cabanis ou Bichat seriam exemplos de pesquisadores empíricos produtores de certos conhecimentos que, por vias distintas da filosofia, "testemunhariam a correção das conclusões obtidas e traduzidas em conceitos na metafísica de Schopenhauer" (Brandão, 2008, p. 121), também o psicanalista faria o mesmo no campo da psicologia profunda, fornecendo os detalhes empíricos e a perspectiva prática.
Verdadeiramente, o que ocorre na compreensão da metafísica da sexualidade de Schopenhauer é o entrelaçamento de perspectivas entre filosofia e ciência, de que resulta a imanência de seu pensamento. É por isso que, para ele, provavelmente, a metapsicologia de Freud estaria "prenhe de metafísica" (Brandão, 2008, p. 122), na medida em que toda e qualquer ciência necessariamente suporia tanto uma subjetividade transcendental, em termos neokantianos, quanto também exigiria, dada a sua própria formulação, a explicação metafísica do mundo; aqui, isso se dá no caso de Freud em termos schopenhauerianos, isto é, pela Wille (vontade) entendida como um ímpeto desejante e originalmente cego, mas que, iluminado pelo intelecto, como que se esclarece e se vê num mundo e, nele, necessitado de objetos de satisfação para o seu querer de fundo metafísico; tais objetos são, no entanto, meros motivos contingentes e não necessários, muitas vezes ilusórios; além disso, vivemos na expectativa de satisfação, mas, para cada desejo satisfeito, mil outros não o são. Por seu lado, Freud parte de conceitos correlatos aos de Schopenhauer no campo do psiquismo humano dentro de uma visão claramente clínica e, nesse sentido, podemos pensar as teorias sistemática e estrutural, bem como os conceitos que giram em torno das noções fundamentais de inconsciente, recalque e da teoria pulsional. Conceitualmente, a psicanálise poderia ser entendida por Schopenhauer como qualquer coisa próxima a uma "especulação filosófica" (Brandão, 2008, p. 122).
Se a aproximação com Schopenhauer apresenta ambiguidades, já que a superposição das noções de sexualidade dos dois autores é apenas parcial (embora existam elementos cruciais que os aproximem), por outro lado, o ambiente comum das considerações de ambos sobre a sexualidade implica na conclusão de que há certo "ar de família" entre eles, ainda que não um regime de equivalência entre seus pontos de vista, na medida em que Freud manifesta preocupações e constrói conceitos clínicos estruturados para uma prática de atendimento a indivíduos reais e o que é analisado é o conteúdo e a dinâmica dos casos desses pacientes. Aliás, como nos recorda Brandão (Brandão, 2008, p. 122), a própria filosofia é tomada por Freud como objeto de análise, o que complica bastante as coisas e talvez soasse, num primeiro momento, como assombroso a Schopenhauer, mas que, num segundo momento, talvez lhe sugerisse que a "análise" freudiana é ainda (pelo menos num certo sentido) um filosofar, e Freud é ainda um "metafísico da vontade". Brandão, nesse sentido, sugere que Schopenhauer estaria a meio caminho entre Kant e Freud, e este, a meio caminho entre Schopenhauer e Nietzsche:
Ele [Schopenhauer] se move, um tanto à moda de Schelling, um tanto eclodindo da, digamos, protodialética de Fichte, um tanto se opondo à dialética de Hegel – porque se move entre a abertura para um inconsciente e as exigências de um plano transcendental para a representação. Poderíamos então talvez imaginar, a partir de um estatuto possível da psicanálise como Naturwissenschaft sem Geistwissenschaft, Freud entre Schopenhauer e Nietzsche ou, para me valer de uma expressão de Gérard Lebrun, entre o avesso parmenidiano e o avesso heraclitiano da dialética. (Brandão, 2008, p. 122)
Percebe-se que Schopenhauer aparece diante de Freud numa relação algo pendular, pois, se, por um lado, o segundo ouve enlevado o canto da imanência da filosofia do primeiro, ainda critica indiretamente as exigências apriorísticas presentes no pensamento de Schopenhauer por influência direta da filosofia de Kant. Para Freud, os filósofos seriam não apenas filosóficos demais, mas também metafísicos demais, o que produziria um claro divórcio epistemológico com a psicanálise. Curiosamente, poderíamos pensar que Schopenhauer até concordaria que Freud adotasse uma postura crítica em relação à filosofia, exatamente devido à posição do psicanalista como pesquisador empírico. Para Schopenhauer, a metafísica é, justamente, "todo suposto conhecimento que vai além da possibilidade da experiência" e, portanto, "para além da natureza ou da aparência das coisas dadas", a fim de dar informações sobre "a razão pela qual, em um sentido ou outro, esta natureza ou experiência é condicionada, ou em linguagem popular, sobre o que está escondido por trás da natureza e torna possível a natureza" (Schopenhauer, 2014a, p. 254). No mesmo sentido, o filósofo de Frankfurt pensa também o lugar da ciência (conhecimento sobre "como" as coisas existem) junto à metafísica (conhecimento sobre "o que" existe) e diz que a essência mais perfeita e acuradamente conhecida com "precisão intrínseca das coisas individuais" exige mais imperiosamente "a explicação do todo e do universal, e esse todo só se apresenta como o mais intrigante e misterioso, na medida em que é mais acuradamente conhecido empiricamente". Nesse contexto, o "simples investigador individual da natureza" em um ramo específico da ciência não está claramente consciente de tudo isso simultaneamente, pois parte de coisas particulares (Schopenhauer, 2014a, p. 273).
3) O x desconhecido
O caminho da ciência seria, nesse caso, menos o de esclarecer a complexidade do todo e mais o de revelá-la. Com isso, longe de deixar-nos menos espantados com a totalidade dos fenômenos universais, isso faria com que ficássemos, isso sim, ainda mais perplexos com o mundo ampliado por descobertas específicas e com a nossa própria existência absolutamente condicional e determinada por acontecimentos fortuitos. De fato, segundo o filósofo, a simples contingência do mundo nos lança um problema que toda metafísica religiosa ou filosófica tenta resolver. Portanto, a agitação que "mantém em movimento inesgotável o relógio da metafísica" (Schopenhauer, 2014a, p. 273) é o conhecimento claro de que a existência nesse mundo é tão possível quanto o seria o contrário. As coisas podem ser como poderiam não ser. E não há desespero teleológico que possa evitar as rupturas e as rachaduras impostas pela efetividade. O mundo é uma espécie de fatalidade, pois a imensa força que possibilitou a existência e a manutenção do mundo pode tanto nos favorecer quanto se voltar contra nós e nossos interesses, e frequentemente assim o faz, e o maior exemplo disso é a relação das pessoas com as exigências e possibilidades tanto da própria sexualidade quanto da alheia. Ficamos perplexos não apenas com a existência da sexualidade em si, mas também com a natureza esperançosa, miserável e melancólica de nossa condição como seres sexuais. Nesse sentido, também a psicanálise se mostra preocupada com a condição sexual humana. Também ela evidencia a agitação pelo sentido e pela coesão do fenômeno do mundo e da existência; por isso, apresenta explicações que não podem ser por si mesmas suficientes. A explicação meramente física é incapaz de se erguer sobre os próprios pés, já que não há nada que obrigue a sexualidade humana a seguir uma norma heterossexual reprodutiva. Portanto, o pensamento acerca dessa questão necessita de uma hipótese metafísica em que se apoiar, seja ela qual for, por mais que se queira aparentar desdém pelas explicações a priori, e por mais arriscadas que essas explicações possam ser, pois a simples física explica os fenômenos por algo mais desconhecido do que eles mesmos: por leis naturais, baseadas em forças naturais (Schopenhauer, 2014a, p. 265).
Esse é o fulcro da questão da sexualidade com a qual se preocupa Freud em suas Conferências introdutórias à psicanálise. Ao fundo do que Freud menciona sobre a sexualidade infantil e as perversões, surgem para nós novas grandezas que necessitariam elas mesmas de explicação e coesão em relação a cada pequeno fenômeno, desde o mais simples ao mais complexo dentre eles. Schopenhauer sugere que tais explicações, por mais extensas e completas que possam nos parecer, estão sempre marcadas por duas imperfeições essenciais que nos remetem invariavelmente a uma explicação de caráter genealógico, com a intenção de determinar a origem e a causa dos fenômenos que aparecem diante de nós e são descritos ou explicados de acordo com a observação natural: 1) o início da cadeia de causas e efeitos nunca pode ser alcançado, mas, pelo contrário, recua incessantemente ad infinitum; e 2) todas as causas eficientes pelas quais tudo é explicado requerem elas mesmas uma explicação.
No primeiro caso, o problema é a escala de tempo; no segundo, o próprio conteúdo insuficiente da explicação. Por exemplo, no caso da interpretação da sexualidade dada na psicanálise freudiana, as próprias explicações necessitariam ser explicadas por algo ainda mais grandioso ao fundo delas. A metapsicologia, nesse caso, é uma mera hipótese contingente de totalização e interpretação dos dados que, ao final, remete-nos novamente à fria meditação sobre a dificuldade de nossos esforços e nos lançam ao desalento quanto à adequação de nossas hipóteses de trabalho e conclusões, que não podem ser essências, coisas em si e fundamentos. Isso faz com que o caminho da ciência freudiana se interrompa exatamente onde a filosofia inicia o seu, e é por isso que Freud oscila entre um território e outro, sempre tentando, o quanto pode, exaurir a explicação científica, antes de iniciar o movimento especulativo, segundo nos parece, quando se avalia o conjunto de sua obra. Em Jenseits des Lustprinzips ("Além do princípio de prazer", 1920), ele escreve sobre uma fria benevolência em relação aos nossos próprios esforços de conhecimento, o que não os invalida propriamente, já que cada nova explicação da ciência precisa sempre novamente se mostrar verdadeira, ou ser descartada.
A imprecisão de todas as nossas discussões sobre o que descrevemos como metapsicologia se deve, naturalmente, ao fato de nada sabermos da natureza do processo excitatório que ocorre nos elementos dos sistemas psíquicos, e a não nos sentirmos autorizados a formular qualquer hipótese sobre o assunto. Estamos, consequentemente, trabalhando o tempo todo com um grande x desconhecido, que somos obrigados a transportar para cada fórmula nova. (Freud, 2010, p. 241)3
Se cada parte do conhecimento científico pudesse ser exaurido e compatibilizado com uma explicação mais geral que fosse ela mesma compatível com a totalidade dos fenômenos, teríamos a partir disso uma ciência equivalente a uma metafísica perfeita, completa e exaustivamente imanente. Toda explicação física requer uma metafísica, que pode fornecer a chave para todos os seus pressupostos sem, no entanto, jamais se misturarem ou se completarem em seus movimentos, o que leva Schopenhauer à fórmula: "Tudo certamente é físico, mas também não explicável" (Schopenhauer, 2014a, p. 267), já que o conteúdo empírico é aparentemente inexaurível e toda totalização causal dos dados efetivos é insuficiente: "Tanto no caso do choque das bolas de bilhar (exemplo de Hume), como também para o conflito dos pensamentos do cérebro, deve ser possível chegar a uma explicação meramente física, de tal forma que o último se torne tão compreensível quanto o primeiro" (Schopenhauer, 2014a, p. 267). No entanto, o primeiro, que nós imaginamos entender perfeitamente, é, no fundo, "tão obscuro para nós como o último" (Schopenhauer, 2014a, p.268). Freud, por outro lado, esteve decidido a aprofundar a explicação física dos fenômenos e isso, como escreve Schopenhauer, não torna as coisas mais fáceis, mas aumenta o nosso espanto, pois, necessitamos contextualizar fenômenos de natureza cada vez mais complexa.
Freud reconhece as dificuldades de seguir pela via da ciência já no prólogo à edição hebraica de 1930 das Conferências introdutórias..., quando fala da situação da psicanálise no momento em que foram escritas e apresentadas ao público. Para o psicanalista, se à época as conferências excediam aos seus propósitos e apresentavam ao público quase a totalidade da teoria, isso já não era mais verdade. Mais de dez anos depois, o psicanalista vienense já havia feito duas revoluções internas às suas concepções. De modo muito resumido, a primeira revolução tem como seu marco a teoria pulsional e o seu principal registro está na obra Jenseits des Lustprinzips ("Além do princípio de prazer",1920), com a introdução do Todestrieb e o reagrupamento dos Triebe sexuais e de conservação da primeira teoria como um único polo do novo dualismo: vida e morte. A segunda tem como seu marco a nova teoria estrutural que aparece em Das Ich uns das Es ("O eu e o isso",1923), que introduz o conceito Überich (supereu). Ao invés de consolidarem a teoria, essas mudanças, em grande medida, geraram desconfiança sobre a necessidade e adequação dos conceitos utilizados por Freud, resultando em grande polêmica que persiste até hoje. Discuto isso extensamente em "Psiquismo e vida: sobre a noção de Trieb nas obras de Freud, Schopenhauer e Nietzsche" (Fonseca, 2012, p. 72 ss.), e não há necessidade de repetições enfadonhas a respeito. O que nos interessa aqui é que, para Freud, no tempo em que escreve o prólogo à edição hebraica, o conteúdo das conferências ainda mantinha legitimidade: "Por um lado, as conferências se tornaram incompletas em alto grau e só agora adquiriram o caráter de mera introdução" (Freud, 1996, v. 2, p. 2124). Em outro sentido, no entanto, ainda na época do mencionado prólogo (1930), ainda não haviam sido "superadas" ou poderiam ser consideradas "antiquadas" (Freud, 1996, v. 2, p. 2124).
Voltando-nos novamente para os principais conteúdos da conferência sobre a vida sexual humana, de um modo geral, e infantil, de modo particular, é exatamente porque a sexualidade não se equipara à genitalidade, mas antes tem sua origem num campo mais amplo, o todo do organismo, que advém a importância da "perversa" (pervers) e "polimorfa" (polymorph) sexualidade infantil (Freud, 2010, p. 97; 1996, v. 2, p. 1205), associada por Freud às condições de pré-prazer (Vorlust) da sexualidade adulta (Freud, 2010, p. 115). A infância não poderá ser percebida por Freud como um período assexuado da vida. Pelo contrário, o desenvolvimento sexual (expressão que equivale a desenvolvimento da libido) segue um longo percurso, análogo à própria experiência do viver.
4) O vínculo entre a sexualidade infantil e as perversões
Freud estuda a noção de sexualidade infantil a partir da percepção de sua natureza autoerótica, que envolve a estimulação do prazer numa zona erógena particular privilegiada e impulsos parciais, isto é, que não estão ainda sob o primado da zona genital. É exatamente a persistência da sexualidade infantil na vida adulta o que faz com que ela seja vinculada na "Conferência XX" à atividade sexual dita perversa. O paralelo entre organismo e psiquismo em Freud se mostra também nas tendências regressivas da libido, que podem se manifestar na vida adulta como fixação em fases evolutivas primitivas ligadas à "sexualidade infantil" (pré-genital), como, por exemplo, no caso das perversões. A extraordinária difusão das perversões em todas as épocas e camadas sociais impôs ao psicanalista a hipótese de que a disposição às mesmas não é uma exceção, mas parte da constituição considerada normal. Nesse sentido, o conceito de perversão nessa conferência significa apenas "toda atividade sexual que, havendo renunciado à procriação, busca o prazer como um fim independente da mesma" (Freud, 1996, v. 2, p. 2319). Assim, toda sexualidade é perversa.
Paralelamente, podemos nos deter um pouco para pensar a relação de Schopenhauer com a infância, e com a ideia de sexualidade infantil. O sistema de Schopenhauer não é próprio para pensar o caráter sexual do querer infantil, muito embora forneça elementos para fazê-lo. Por exemplo, a noção de que o organismo é vontade objetivada poderia nos remeter ao conceito freudiano de zonas erógenas, mas o filósofo associava, no mais das vezes, a sexualidade à genitalidade. Ele atribui a felicidade da infância à ausência do impulso sexual: "Ist die Kindheit die Zeit der Unschuld und des Glückes, das Paradies das Leben" ("A infância é o tempo da inocência e da felicidade, o paraíso da vida") (Schopenhauer, 1986, v. 2, p. 509). O filósofo supõe que o intelecto predomine sobre a vontade na infância, enquanto Freud concebe esse predomínio como consequência do recalque da sexualidade no contexto do Complexo de Édipo.
Para que fique clara a diferença de abordagem entre ambos, mas considerando o predomínio dos impulsos sobre o intelecto que ambos professam, basta a leitura paralela do texto Sobre o gênio, citado anteriormente, e recordando a menção de Freud no prólogo dos Três ensaios para uma teoria sexual (Freud, 2010, p. 46), no qual adverte que já faz tempo que Schopenhauer expôs à humanidade toda a extensão das influências do impulso sexual nas mínimas coisas. Podemos então perguntar qual é o sentido da exclusão da sexualidade infantil do sistema do autor alemão. O fato expõe uma faceta curiosa de seu pensamento. Apesar de admitir a vontade como mola do intelecto e de perceber a sexualidade permeando todas as situações da vida, idealiza tanto a infância quanto o fato estético (e a figura do gênio). Se o filósofo valoriza sobremaneira o corpo (Leib), conferindo-lhe papel central, por outro lado, do ponto de vista estético e moral, enxerga o corpo como uma fonte perene de sofrimentos devido à sua natureza física e, principalmente, porque sua essência metafísica (o querer-viver conectado aos impulsos) não descansa jamais. Mas justamente aí reside o problema. Se a parte metafísica prepondera, parece-nos que o filósofo realiza um corte arbitrário, justificado pelo desenvolvimento e predomínio do intelecto na infância e porque o impulso sexual (entenda-se genital) só despertaria com a vigorosa oposição do intelecto mais maduro da puberdade.
Assim, ele supõe uma economia que faz sentido à maneira de um amadurecimento gradual das funções, tal como ocorre em Piaget: se o que interessa à natureza é a espécie e, portanto, a reprodução, e, por outro lado, o intelecto humano precisa se desenvolver para chegar à sua plena condição como instrumento da vontade, então é justamente na puberdade que essas duas funções encontram uma situação suficientemente desenvolvida para que ocorra uma vigorosa relação ao mesmo tempo de apoio e antagonismo. Mas nisso reside uma visão pessimista da sexualidade. Se, por um lado, ela é o foco da vontade, por outro, justamente por isso, é a fonte do mal, o pecado original, pois serve para propagar a vida. Lembra J. L. Borges, o grande escritor argentino, que escreve detestar os espelhos e o sexo, porque ambos reproduzem o ser humano.
Porém, em outro trecho dos Ergänzungen (no capítulo 19), e isso é interessante, há o reconhecimento, ainda que tangencial, da sexualidade infantil. Se o querer-viver é a própria base (Basis) metafísica do organismo, como também o são as inclinações, as paixões, os afetos e o caráter, expõe-se aquilo que é inalterável na consciência, enquanto o organismo em si mesmo, como coisa física, modifica-se e envelhece, mais cedo ou mais tarde, dependendo das suas capacidades físicas, de fatores externos e do modo de viver, portanto, de acordo com a idade e a resistência orgânica no tempo. Diante desses fatos, Schopenhauer alude à semelhança notada por tantas pessoas, entre as crianças pequenas e os muito idosos. Por exemplo, o profundo desejo por prazer sensual aparecerá na meninice como um carinho pelas guloseimas, na juventude e na idade adulta, como uma tendência à voluptuosidade, e na velhice, uma vez mais, como um carinho pelas guloseimas (Schopenhauer, 2014a, p. 339). Não está aí um reconhecimento, ainda que turvo, da sexualidade infantil, contrariando a idealização que o próprio filósofo faz da meninice? Parece-me interessantíssimo. O trecho citado é talvez o mais significativo para considerarmos a sexualidade infantil na obra de Schopenhauer em termos freudianos, isto é, do ponto de vista de uma sexualidade que surge nas manifestações infantis típicas, e não meramente como genitalidade apenas depois, como é a crença disseminada ainda nos dias atuais. Na verdade, trata-se de uma zona de tensão no íntimo de sua filosofia, no que concerne à questão do predomínio do intelecto na infância sobre a vontade, o que traria o caráter feliz da infância. O filósofo parece não perceber a contradição existente nessa ideia, caso isso abolisse o caráter sexual do querer-viver. Pensado com rigor, o predomínio do intelecto não implica em supressão da sexualidade, ou numa vontade combalida, mas apenas em indefinição de alvos, tal como aparece na própria descrição de Schopenhauer acerca da vontade do recém-nascido, que se agita como um condenado que se lança contra as grades de sua própria prisão. O bebê "quer com veemência, embora não saiba o que quer" (Schopenhauer, 2014a, p. 353).
Se a linguagem do filósofo fosse efetivamente psicanalítica, ele não nos deixaria pensar em ausência de impulso sexual na infância como é sugerido em diversos pontos de sua obra, mas sim, mais precisamente, na ausência de sexualidade genital, a qual efetivamente depende da maturação e do desenvolvimento do organismo, enquanto a sexualidade infantil apresenta manifestações que, em geral, não são reconhecidas como propriamente sexuais e estão vinculadas às zonas erógenas do organismo como um todo – umas mais, outras menos importantes.
5) O homossexualismo como questão teórica na metafísica de Schopenhauer e na metapsicologia
O outro ponto conectado à conferência de Freud, o das ditas perversões, também é antecipado, de certa maneira, pelo filósofo da vontade. Também Schopenhauer, nos seus escritos sobre a metafísica da sexualidade, mostra que o homossexualismo existiu sempre e em todos os lugares, em todos os países e em todas as classes sociais, ainda que sob o véu do mais profundo segredo, e que muitas vezes vem à tona onde menos se espera, sendo, portanto, um fenômeno universal em todas as épocas. Sempre foi assim e nunca foi diferente, apesar de vermos que, em muitas situações, ele foi castigado com a pena de morte "como se fosse uma prática condenável e terrível" (Schopenhauer, 2014b, p. 281, grifo nosso). Para Schopenhauer, a menção e as alusões ao homossexualismo em obras disponíveis de todos os tempos são a prova de que é uma prática encontrada em "todas as épocas" e em "todos os países do mundo" (Schopenhauer, 2014, v. 2, p. 279). Percebendo tudo isso e refletindo com cuidado, nós veremos que a homossexualidade não é nenhuma exceção no mundo humano. Assim, "a natureza universal e a inerradicabilidade persistente da coisa mostram que ela surge de alguma forma da própria natureza humana", já que apenas por causa disso "poderia inevitavelmente aparecer sempre e em toda parte, como uma prova do que escreve Horácio: Naturam expelles furca, tamen usque recurret"4 (Schopenhauer, 2014b, p. 279).
Mas, será que o autor assume isso integralmente e sem preconceitos? De fato, por um lado, ele realmente amplia o conceito de sexualidade e situa o Trieb sexual no centro dos acontecimentos da vida íntima das pessoas e também da vida cultural, mas ainda assim exibe certo preconceito em sua linguagem e em suas concepções. Nesse sentido, mesmo com toda variação sexual existente no mundo humano, tudo está firmemente amarrado em torno da norma reprodutiva, já que isso lhe parece o essencial do ponto de vista da espécie humana, que predomina sobre os interesses sexuais individuais. Todas as variações podem ser vistas como modificações possíveis no interior da própria norma, mas que, no final, servem, ardilosamente, para a preservação da própria espécie. Por isso, o homossexualismo será considerado por ele como algo que se baseia em um impulso no qual o instinto originário foi desviado em sua finalidade. Ele o descreve como um "instinto equivocado" (irregeleiteten Instinkt) (Schopenhauer, 2014b, pp. 253 e 279). Desse modo, poderíamos separar as coisas da seguinte forma: por um lado, caso consideremos apenas a sexualidade dos indivíduos, a experiência efetiva de pessoas específicas no mundo e a individualidade, o homossexualismo está sempre "totalmente em voga" e é frequentemente praticado "em todas as classes sociais, sob o véu do mais profundo segredo"; ele vem à tona "onde menos se espera" (Schopenhauer, 2014b, p. 281), e mesmo quando é punido com o exílio ou com a pena de morte, isso não altera sua participação nas estatísticas da sexualidade. Assim, visto da perspectiva do ser humano concreto, o homossexualismo é parte da "própria natureza humana, já que apenas por causa disso poderia inevitavelmente aparecer sempre e em toda parte" (Schopenhauer, 2014b, p. 281). Para o filósofo, seria mais fácil "ignorar esses fatos", mas, se temos a intenção de proceder de modo aberto e honesto, a conclusão é s de que o homossexualismo é algo natural (Schopenhauer, 2014b, p. 281). Ele vê um inaudito paradoxo em que algo que vá tão violentamente contra a norma reprodutiva deva surgir da própria natureza, o que expõe uma questão difícil, mas que ele vai explicar como um ajuste interno à própria natureza, por exemplo, para evitar a própria reprodução em casos em que isso não seria compensador para a espécie humana, o que impõe a ideia de que o mundo natural, ainda que sem nele identificar um objetivo de aperfeiçoamento, busca ao menos a preservação das características de suas espécies, o que Schopenhauer chama de retificação do tipo da espécie (Schopenhauer, 2014, v. 2, p. 282).
Ou seja, em decorrência disso, os indivíduos são um meio e a espécie é a sua finalidade, ainda que surjam muitos equívocos e desvios nesse processo perene (Schopenhauer, 2014b, p. 283). Os exemplos do jovem e do velho que ele utiliza para argumentar expõem preconceitos evidentes e típicos de uma época em que os aspectos culturais e genéticos dos fatos ainda não estão bem separados, como ocorre com mais clareza apenas a partir de 1905 com os "Três ensaios..." de Freud e das descobertas sobre o código genético e sua expressão natural. Em Schopenhauer, os indivíduos são, portanto, um meio, e em Freud, exatamente porque ele se atém no mais das vezes à genealogia da libido e ao Édipo, a espécie humana não tem uma finalidade no contexto da natureza em geral, e, de um ponto de vista psíquico, tudo é ao mesmo tempo meio e finalidade, ou seja, ele assume mais radicalmente uma perspectiva pulsional no que tange ao processo, ainda que também não consiga escapar à questão ligada à biologia e às hipóteses filogenéticas que, no entanto, ele deixa em segundo plano, como hipóteses especulativas.
Há uma diferença de perspectiva entre os autores. Quando Freud vai buscar recurso na filogenia, não se trata de uma tipologia à maneira platônica, mas meramente de uma história natural e contingente, ainda que regida pela batuta intangível da entropia. É por isso que a linguagem de Freud, na conferência sobre a sexualidade, utiliza-se de uma perspectiva de análise que nos parece mais radical. Se o ponto de partida do discurso é a mesma consideração da necessidade de superar a indignação e considerar a persistência e a abrangência do homossexualismo e de outras formas de sexualidade ao lado da heterossexualidade, bem como a relação da sexualidade que tem como finalidade a simples satisfação com aquela que visa à reprodução (Freud, 2010, pp. 303-304), por outro lado, o psicanalista fala de uma sexualidade "latente" ao fundo da sexualidade normativa, considerando algo ainda mais aversivo do que a mera existência do homossexualismo: o número dos homossexuais declarados é insignificante se comparado ao universo de homossexuais latentes (o que coloca toda a plateia da conferência de Freud sob uma inapelável e "indecorosa" suspeita). O conflito homossexual inconsciente e a sua concomitante manifestação através de sintomas neuróticos que satisfazem essa forma recalcada de sexualidade é constituinte da sexualidade dita normal e envolve também todo um universo de autopunições que os indivíduos vivenciam em função da natureza inconsciente e autocontraditória dessa experiência. Além disso, há o agravante de que o impedimento da satisfação sexual normativa, que ocorre com tanta frequência, também influencia o afloramento de perversões manifestas, pois ocorre, nesse caso, que elas podem aparecer em função das invencíveis dificuldades ocasionadas por circunstâncias passageiras ou por condições sociais permanentes (Freud, 2010, p. 307). Nesse caso, o surgimento do homossexualismo manifesto nos homens mais velhos não se daria propriamente por um cuidado da natureza em relação ao enfraquecimento da capacidade reprodutiva, mas devido aos impedimentos propriamente psíquicos à satisfação, o que, para Freud, produziria o efeito de fazer a sexualidade retroceder de algum modo às suas características perversas e polimorfas originárias. Nesse sentido, Schopenhauer não faz conexão com o que ele mesmo observa (na já citada seção 6 do capítulo 19 do mesmo livro) sobre o gosto das crianças e dos idosos por guloseimas, o que poderia, de certo modo, abrir o seu raciocínio na direção dos avanços de Freud e, por outro lado, partiria ao meio a nau de sua metafísica sexual que ainda está demasiado arraigada à norma reprodutiva em seu pressuposto fundamental, ou seja, no atacado, apesar dos inegáveis avanços que promove quando considerados os indivíduos particulares, isto é, no varejo. Neste último caso, existe um caráter individual, o que faz de cada homem uma espécie em miniatura e deixa muito complexa a trama do que pode satisfazer um querer individual, na medida em que os objetos efetivos são contingentes e desnecessários. Por isso, a própria natureza impele à diferença enquanto a cultura tenta dar um formato determinado de acordo com os interesses humanos estruturados em torno do processo civilizatório que, como em Freud, é um mero verniz colocado sobre a animalidade que nos constitui intimamente.
Se dissemos que em Freud a ordem natural é contingente, há, no entanto, questões limítrofes entre biologia e psiquismo, como a das fantasias originárias e a da arqueologia do inconsciente, que aproximam o pensamento de Freud à noção schopenhaueriana de ideias platônicas. A relação entre ideias imutáveis (representações independentes do princípio de razão suficiente) e o mundo contingente das coisas efetivas individuais, correlato das representações dependentes do princípio de razão suficiente, envolve a adoção de diferentes perspectivas e não se excluem, tendo um paralelo na forma de consideração de Freud acerca do inconsciente por meio de uma ontologia negativa e, em algum grau, a postulação de arquétipos psíquicos, que cobririam a zona cinzenta existente entre o biológico e o que é propriamente psíquico. Em Freud, como em Schopenhauer, o perene e o contingente coexistem na mesma experiência. A imobilidade das ideias platônicas em Schopenhauer é, de certo modo, um correlato da permanência das coisas no inconsciente devido à noção de atemporalidade. Esse é um ponto fundamental. Tudo muda na superfície do psiquismo, mas no inconsciente tudo permanece constante como na metáfora schopenhaueriana do arco-íris imóvel sobre a cascata rumorejante. O arco-íris são as camadas psíquicas preservadas, enquanto a cascata rumorejante pode ser comparada ao fluxo das representações e experiências ligadas à nossa vida consciente. Do mesmo modo, a geologia é usada em Freud para exemplificar a permanência das camadas psíquicas antigas e inconscientes sob as mais recentes e conscientes, que foram transformadas em decorrência da experiência (o que corresponde à noção de caráter adquirido em Schopenhauer). As fantasias originárias que aparecem mencionadas na conferência introdutória 23, que trata da formação de sintomas ("Die Wege der Symptombildung"), caracterizam-se pela sua transmissão filogenética. Nessa conferência, as lacunas da verdade individual seriam preenchidas por uma verdade pré-histórica (Freud, 2010, p. 326).
Schopenhauer poderia ter ido mais fundo nas consequências de seus pensamentos, aproveitando seus próprios desenvolvimentos acerca do caráter individual, projetando sobre o homossexualismo não a noção de um instinto equivocado, como fez, mas sim afirmando sua verdade originária dada na amplitude de possibilidades reveladas ou não no caráter individual em função da experiência, posto que o desejo vislumbrado não é exatamente um correlato do querer inconsciente. Este último só é conhecido na experiência, nos atos especificamente praticados, a posteriori. Podem-se desejar muitas coisas, mas só se quer uma só, que é a satisfação do querer, que corresponde ao caráter de uma vontade transbordante, originalmente cega, e em busca de alvos efetivos. Não está escrito em lugar nenhum que a vontade individual se restrinja à heterossexualidade apenas devido à norma reprodutiva. Isso é literalmente uma opinião de Schopenhauer que se ajusta mal à sua teoria. A norma reprodutiva da natureza não é independente da descrição feita pelo próprio filósofo de uma vontade que é em si mesma e originariamente (ursprünglich), também no caso dos indivíduos das espécies determinadas, inclusive o homem, "sem conhecimento e cega" (erkenntnislos und blind) (Schopenhauer, 1986, v. 2, p. 594). Portanto, a finalidade da espécie ordenada pela ideia platônica não elimina o caráter individual específico, verdadeiramente único ou, do mesmo modo, a ausência de finalidade da vontade em si mesma (senão ela poderia ser descrita como um fundamento como fez Lacan ao comentar Schopenhauer), fato que é admitido de modo transversal no texto sobre o homossexualismo, quando ele adverte que este é parte indissociável da natureza humana e por isso a persistente recorrência na história e em todos os lugares: seja na antiguidade, seja hoje em dia, seja nessa ou naquela classe social (Schopenhauer, 2014, v. 2, p. 281).
6) A questão da comunicação de conhecimentos sobre os quais pesam os preconceitos sociais e morais
Essa ambiguidade entre o filósofo ousado e o homem conservador observada no discurso de Schopenhauer que aparece, a saber, no tratamento simultâneo do homossexualismo como fato natural (o impulso é originariamente cego e se liga aos objetos da experiência) e como Verirrung (aberração) (Schopenhauer, 2014b, p. 279), é digna de nota e podemos presumir que é pressionada pela necessidade de comunicação com uma sociedade hipócrita e rancorosa (produtora da norma sexual e de sua secreta transgressão). Nesse sentido, há um correlato evidente na experiência freudiana ligada às suas conferências introdutórias, de um modo geral, e, em particular na "Conferência XX" de que estamos tratando, sobre a vida sexual das pessoas.
Considerando-se a diferença de quase 75 anos entre as épocas em que os autores publicaram suas respectivas obras, isso se acentua, e talvez a exigência sobre Schopenhauer tenha sido maior e, por isso, ele pareça se expressar de modo mais preconceituoso, ainda que diga que não quis proferir nenhuma advertência moral contra o vício, mas sim apenas obter "uma compreensão adequada da essência da coisa" (Schopenhauer, 2014b, p. 287). Sua obra tem um caráter inaugural no que concerne à sua abordagem franca e filosófica da sexualidade humana, ainda que o filósofo descreva o homossexualismo utilizando expressões que hoje nos parecem ilegítimas, como: "pederastia", "instinto equivocado", "vício", "perversão do instinto" e, a mais forte delas, "depravação repugnante do impulso sexual" (Schopenhauer, 2014b, p. 286). A intenção de Schopenhauer parece ser a de utilizar uma linguagem grave e respeitável e, simultaneamente, inocular mais uma vez o vírus de sua teoria que afirma que todo amor sexual é governado pelo instinto: este detém as rédeas, cria ilusões em prol da conservação da espécie e que todos os aparentes desvios da norma reprodutiva estão de acordo com esse mesmo objetivo. Schopenhauer não se pergunta, no entanto, se todo esse aparente sentido colocado em torno na norma reprodutiva, e do qual as perversões se desviam (para ele como um estrategema que reafirma a norma), não será ele mesmo menos originário do que a ausência de determinação prévia de meios e objetivos, já que a vontade se esconde, de acordo com a mesma teoria, na noite inconsciente do mundo. A preocupação de Schopenhauer com o público leitor se torna evidente no último parágrafo de seu texto, onde ele escreve que, ao expor suas "ideias paradoxais", ele "queria conceder aos professores de filosofia um pequeno favor". Diz que fez isso para lhes dar a oportunidade de o caluniarem, dizendo que ele defende e elogia o homossexualismo (Schopenhauer, 2014b, p. 287). Na verdade, nem defende nem critica, apenas procura expor o assunto, ainda que utilizando uma linguagem em si mesma depreciativa.
O que dizer de Freud nesse sentido? Por um lado, ele dispõe dos importantes exemplos filosóficos de Schopenhauer e Nietzsche e, por outro, atua como pesquisador empírico, como médico, neurólogo, psicanalista e cientista; desse modo, pode exercer um tipo de autoridade diferente daquela concedida a um pensador filosófico. As verdades da psicanálise são conquistadas, como diria Goethe, a partir do chão negro da experiência clínica; são considerações a partir do que efetivamente existe nos casos individuais, mas desenvolvidas tendo como pano de fundo sua metapsicologia de raiz inequivocamente filosófica, tanto no sentido da utilização de conceitos articulados anteriormente por Schopenhauer quanto no sentido de uma concepção de ciência de extração kantiana. Trata-se, no caso de Freud, de uma linguagem e de certo jogo de cena político que considera a existência de um "movimento psicanalítico" e o caráter "provisório" de suas considerações e elaborações teóricas, que envolvem não apenas Schopenhauer e os autores considerados por Schopenhauer, como Lamarck, Cabanis e Bichat, mas também Nietzsche, Darwin e Wallace, entre outros. A perspectiva do cientista faz com que Freud agrupe o homossexualismo ao lado de outras formas sexuais que se diferenciam da norma reprodutiva, segundo ele (falando de um modo geral), apenas pelos seus fins e objetos, ainda que existam exemplos cada vez mais fora da curva da admissibilidade, tais como o da necrofilia. Schopenhauer não amplia tanto assim seu conceito de perversão, pelo menos não no escopo de sua obra publicada.
No entanto, apesar das modificações derivadas das perspectivas do filósofo e do cientista, o problema de linguagem ainda persiste, embora mais nuançado, pois Freud ainda utiliza uma terminologia algo suspeita considerando nossos padrões atuais, valendo-se de palavras como "perverso", "neurótico", "patológico", "repugnância", "monstros informes e grotescos", que aludem mais ao tipo de linguagem com a qual o seu público está familiarizado para tratar de questões sexuais do que necessariamente às opiniões do próprio Freud, já que, por outro lado, ele fala de sexualidade com grande franqueza e naturalidade. Nesse sentido, é muito interessante o recurso que ele utiliza no seguinte trecho de sua conferência: "Eu sei que vocês estão se contendo para não me interromperem e gritarem para mim: '– Chega de horrores'! (Genug der Ungeheuerlichkeiten!)" (Freud, 2010, p. 331). Ao escrever esse início de parágrafo, ele parece antecipar a futura consternação da plateia como um comediante que conhece a reação a uma piada e, jocosamente, trabalha a expectativa dessa reação. Isso mostra o quanto Freud estava calejado com as reações das pessoas e qual expectativa mantinha a respeito delas.
Algo que de certa forma esclarece o que dissemos anteriormente é a sua já mencionada definição de sexualidade perversa como toda aquela que abandona o alvo da procriação e procura o prazer como um objetivo em si mesmo (Freud, 2010, p. 312). Ela proporciona a Freud a possibilidade de ficar numa posição neutra, descritiva, sem a necessidade de se envolver diretamente com a reação da plateia. Se a definição parece ficar demasiado ampla, por outro lado alude precisamente à indefinição da sexualidade pré-genital e à falta de garantias em relação ao seu desenvolvimento rumo aos fins de procriação (Freud, 2010, p. 312). Para Freud, o "momento decisivo" do desenvolvimento da vida sexual reside na subordinação dos fins à finalidade de reprodução, e toda atividade sexual que acontece antes da possibilidade de procriação e que, portanto, não tem essa finalidade ou busca o prazer pelo prazer, é chamada de "perversa". Essa é uma forma de se expressar que inclui uma crítica à hipocrisia social e a imposição de uma verdade que, para ele, não quer vir à luz espontaneamente.
7) Sua majestade, a sexualidade
Ich bin nun zu Ende, meine Damen und Herren...
Freud
É inegável que a primeira e principal semelhança entre Schopenhauer e Freud seja o valor dado à sexualidade, que é vista por ambos no centro dos acontecimentos humanos, ainda que recoberta pelos véus da ignorância e da hipocrisia.
Nesse sentido, ressalte-se a importância dada ao enfrentamento franco e direto das questões relacionadas à sexualidade e às escolhas sexuais humanas em ambos os autores, e a importância dada por eles também à sexualidade no contexto da humanidade; em ambos, a sexualidade é simultaneamente o assunto mais importante, o foco dos esforços humanos e, simultaneamente, o tema mais negligenciado, rejeitado e sublimado no âmbito da linguagem. Para eles, o assunto é constantemente ignorado, repelido, porém, invariavelmente presente nas consciências individuais, o que aparece de inúmeras formas, especialmente as sintomáticas. Este último aspecto se torna de fundamental importância para o surgimento da psicanálise como experiência clínica, sem dúvida a grande peculiaridade prática que diferencia Freud de qualquer autor filosófico, e que gerou também inúmeros outros desdobramentos. Além disso, em ambos há o reconhecimento de inúmeras formas de expressão dessa sexualidade, ainda que Schopenhauer pense claramente em termos mais acentuadamente biológicos do que Freud, devido à sua tese de que o corpo é a própria expressão do querer-viver. Nesse sentido, pelo menos, ele tem um ponto de apoio que facilita, de modo algo enganoso, talvez, a articulação teórica dessas teses sobre o organismo como vontade objetivada e em conexão com o querer do ser coletivo que é, de seu ponto de vista, a espécie. Há como que um jogo entre o ser individual e o ser da espécie no mesmo indivíduo, tendo como ponto focal o próprio organismo. O ponto frágil de sua argumentação é sempre relacionado ou com o desenvolvimento científico de seu tempo (especialmente no que concerne às suas hipóteses sobre a hereditariedade que, para nós, mais parecem uma fantasia cósmica do que um conhecimento propriamente dito) ou com a introdução de preconceitos culturais que o conduzem ao erro e o impedem de ver certas coisas percebidas por Freud com mais ou menos o mesmo material. Por outro lado, parece-nos que a insistência de Freud de considerar o organismo tão somente em termos psíquicos faz com que ele necessite utilizar recursos por um lado mais ousados, do ponto de vista dos conceitos heurísticos, tecendo hipóteses genealógicas e socioculturais e, por outro, veja-se inevitavelmente nas fronteiras dessa biologia que simultaneamente exige uma resposta em termos psíquicos e também remete à série biológica através de hipóteses sobre a evolução do próprio psiquismo e de seus recursos em termos filogenéticos.
A clínica psicanalítica freudiana é um ponto de partida para as psicoterapias de um modo geral como as conhecemos hoje, que abordam a o fenômeno da experiência humana, individual e social a partir de outras preocupações e ênfases que não enfatizam ou até mesmo despotencializam a questão da sexualidade; o que vai além de uma simples reação negativa a conceitos, mas também revela a possibilidade dialética de avançar a partir de contrastes e da tentativa de estabelecer diferentes técnicas terapêuticas que não se baseiam no conceito ampliado de sexualidade estudado tanto em Schopenhauer como em Freud. No fundo, as situações do filósofo e a do psicanalista não são assim tão diferentes caso possamos nos ater especificamente ao lugar ambíguo ocupado pela sexualidade no âmbito da cultura e da linguagem em suas épocas e à franqueza de ambos ao tratar desse tema. Assim, se a sexualidade é apresentada nua, torna-se uma acompanhante tão perigosa como a verdade que porventura a expresse.
O psicanalista efetivamente comenta em outro ponto de sua obra acerca da diferença entre a discussão pública sobre a sexualidade e a prática levada a cabo no consultório. Para Freud, no âmbito da análise, há necessidade de franqueza sobre questões sexuais até mesmo pela regra de livre associação. Na quarta das "Cinco lições sobre psicanálise", o psicanalista vienense expõe a situação em dois contextos: o do consultório, sujeito à exigência de franqueza sobre a sexualidade, e o comum, no qual a franqueza pode pôr em risco a segurança individual: "O sol e o ar em nosso mundo civilizado não são realmente favoráveis à atividade sexual. Com efeito, nenhum de nós pode mostrar aos outros seu erotismo, livre de todo disfarce" (Freud, 1996b, p. 1554).
Os textos de Schopenhauer e Freud nos trazem interessantes exemplos concretos do uso da linguagem para enfrentar ou contornar a resistência do público à verdade sobre a importância ainda tão subestimada de nossa vida sexual. Schopenhauer chega a escrever no capítulo dos "Complementos" dedicado à vida da espécie que o desejo (Wunsch) "constitui (ausmach) a própria essência do homem" (Schopenhauer, 2014b, p. 214). Para o autor, cada indivíduo humano é "impulso sexual concreto" (konkreter Geschlechtstrieb) (Schopenhauer, 2014b, p. 216). Sua origem está no ato sexual e seu maior desejo dentre todos os possíveis (seja ele confesso ou não) é viver sua sexualidade do modo mais pleno possível. O filósofo diz que o impulso sexual sozinho perpetua e proporciona um nexo ao fenômeno da existência humana. Por essa razão, esse Trieb é o coração (Kern) do querer-viver e de acordo com isso está sua primazia sobre todos os desejos possíveis (Schopenhauer, 2014b, p. 216).
Freud não apenas retoma essas teses, mas as aprofunda em função das observações clínicas, descrevendo a vida psicológica com uma amplitude e riqueza de detalhes ímpar para os padrões da época, mas ainda assim censura quem critica a psicanálise por ampliar "excessivamente" a noção de sexualidade. Para ele, esse conceito adquiriu com a psicanálise apenas a ampliação imprescindível para abarcar a vida sexual dos perversos e das crianças, mostrando a conexão entre ambos.
Referências
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Endereço para correspondência
Eduardo Ribeiro da Fonseca
E-mail: eduardorfonseca@uol.com.br
* Professor do programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
1 A epígrafe deste texto é uma homenagem ao extraordinário escritor paranaense Dalton Trevisan, famoso por seus contos em que critica a hipocrisia dos costumes sexuais dos curitibanos e as perversões acarretadas por uma visão distorcida e algo delirante do mundo e da sexualidade.
2 É importante ressaltar que o presente texto não pretende propriamente corroborar ou deixar de atribuir validade às preocupações de Schopenhauer e Freud com relação à sexualidade, que muitos autores sérios consideram exagerada ou distorcida. Há até mesmo, como é digno de nota, certa mitologia de psicanalistas de manual que atribui a Freud tanto "originalidade" quanto "escândalo" em sua teoria sexual, o que, do nosso ponto de vista, é reflexo dos sentimentos comunicados pelo próprio Freud a respeito da recepção de seu pensamento e de sua obra. Nosso objetivo é simplesmente falar da resistência pública em geral, baseada no senso comum. Não se trata, portanto, de fazer um estudo comparativo com opiniões divergentes, algumas delas historicamente muito relevantes, tais como as de Charcot, Breuer, Jung, Winnicott e até mesmo Lacan, que, a pretexto de um retorno a Freud, modifica profundamente os pressupostos do autor. Com relação a Schopenhauer, há também uma profunda discordância com a interpretação moral que esse filósofo nos oferece do fenômeno da sexualidade que, de certa forma, também entra em contradição com Freud. Nietzsche, por exemplo, chega a considerar Schopenhauer como o inimigo público número um da sexualidade. Mas isso não é tema para nós no presente momento. Tratamos um pouco desse assunto em obras passadas e pretendemos fazê-lo detalhadamente no futuro, dedicando ênfase à história dessa contestação e a uma análise dos posicionamentos contemporâneos a respeito.
3 Há grande semelhança entre essa expressão de Freud com o que Schopenhauer diz sobre a ciência em "Sobre a vontade na natureza": 1986, v. 3, Physische Astronomie, p. 416.
4 "Expulse a natureza com um forcado, e ela retornará" (Horácio, Epístolas, livro 1, 10, 24).