Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.19 no.1 São Paulo jul. 2017
RESENHAS
Resenha: Esferas I: bolhas, de Peter Sloterdijk
Peter Sloterdijk (2016). Esferas I: bolhas (José Oscar de Almeida Marques, Trad.). São Paulo: Estação Liberdade. 578 p.
Maurício Fernando Pitta*; José Fernandes Weber **
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Consta, no mito grego de Orfeu, que Eurídice, a amada esposa do poeta, padecera pelos dentes de uma serpente, confinada, assim, ao Hades. Com sua lira e seu lirismo revigorantes, Orfeu descera ao submundo e convencera o deus de lá a permitir a ascensão de Eurídice ao plano dos vivos, com a condição de que, sob vigia de Hermes, o poeta seguisse sempre em frente sem sucumbir à tentação de olhar para trás, para sua insegurança, a fim de certificar-se da presença da amante. Quase na superfície, Orfeu não conseguira conter suas ânsias, e Eurídice, como os deuses de Hölderlin, o deixara a esmo. Em vida, o elo perdido vigorou nos sonetos órficos, e a poesia garantiu sua condição de fazer presente o ausente – para Sloterdijk (2016, p. 353), "[…] toda a linguagem é uma música da separação", um louvor ao parceiro perdido, uma nostalgia da relação pura.
É em torno do eterno drama de separação diante da condição primordial de coexistência humana que gira o primeiro volume da trilogia de Peter Sloterdijk, Esferas I: bolhas, lançado em 1998 pela editora alemã Suhrkamp e que, no segundo semestre de 2016, teve sua edição brasileira publicada pela editora paulistana Estação Liberdade na excelente tradução do professor Dr. José Oscar de Almeida Marques1. Eurídice, para o filósofo de Karlsruhe, é metáfora para o elo que, perdido no nascimento do indivíduo, embasa toda a existência humana, compreendida, nessa obra, em termos de transferência para relações posteriores de coexistência. Assim, para Sloterdijk, é ilusório crer que o humano se dá, de pronto, como um sujeito individual, independente e totalmente autônomo – antes, ele é resultado de uma partilha original, e sua condição existencial de ser em um mundo será sempre a de imersão em um contexto relacional novo, sempre uma supressão da ausência, sempre um "ser-em-esferas".
Com o conceito de esfera, Sloterdijk pretende elaborar uma teoria híbrida – ao mesmo tempo, filosófica, literária, psicanalítica, sociológica, antropológica, cibernética – sobre a transferência para relações de intimidade posteriores diante da perda do companheiro originário. Pode-se dizer também: uma teoria sobre a imersão do humano em ambientes imunológicos novos diante da perda do habitat originário e da expulsão concomitante para o vazio desprotegido da exterioridade. "Esfera" se propõe como conceituação da figura metafísica que serviu, na tradição do pensamento, a representar morfologicamente o lugar de proteção de uma humanidade que, para se proteger, se mura de pedras, armas, canções e ideias. Uma teoria de receptáculos imunológicos que se colocadessa forma deve se propor a servir de base para toda a história da mobilidade humana: desde o acolhimento pelos braços da mãe depois da expulsão do útero até a construção de toda uma civilização depois da expulsão do Éden– ou da dissolução de um povo anterior, em termos seculares. Com a chamada "esferologia", Sloterdijk pretende resolver a questão, hoje urgente, do onde do homem: onde estamos quando estamos no mundo? Com a morte de Deus, a grande esfera protetora da civilização humanista que, perdendo seu caráter local e se estendendo ao infinito, dissolveu suas relações protetoras de intimidade em relações cinzentas formais, a questão se transfigura: onde estamos quando estamos no descomunal, na falta de abrigo da exterioridade absoluta, no vácuo de um universo infinito e impessoal?Para a questão urgente da contemporaneidade, Sloterdijk afirma ser necessário especular sobre como sobrevive e se protege o humano, animal de carências que deixou de possuir habitat para se aventurar na excentricidade da existência2– e a questão de sua morada é também, nesse sentido, a questão da coexistência imunológica: quando alguém está no mundo, está, primeiro de tudo, habitando uma comunidade de cuidado, uma relação de proximidade situada, uma esfera coletivamente criada de animação e proteção.
À teoria das esferas em seu sentido elementar se dedica a microesferologia do primeiro livro. A essas células que constituem o modelo de toda relação de algo com algo em algo, Sloterdijk batiza de bolha, para denotar que o que se pensa por "espírito" ou "alma" é apenas o "ar" da vida insuflado em um espaço partilhado. Isso fica claro já antes de iniciar os capítulos da primeira obra da trilogia, na Reflexão preliminar: Pensar o espaço interior, quando Sloterdijkatesta a pendência de sua microesferologia com relação à psicologia contemporânea, com notada atenção à psicanálise, que subverteu a questão do indivíduo totalmente esclarecido de si e passou a permitir se pensar o surrealismo da espacialidade humana, a saber, de ser conteúdo e continente ao mesmo tempo. Assim, a relação de intimidade própria da microesfera é uma relação de interresonância, interpenetração, intersimbiose: os sujeitos que habitam a bolha só são sujeitos na medida em que se insuflam mutuamente de uma cossubjetividade. É nessa mútua inspiração que o espaço surreal microesférico se constitui– e esse será o tema principal que retornará em todos os capítulos subsequentes da obra.
No primeiro capítulo, "Operação cardíaca ou: Do excesso eucarístico", essa mútua incorporação é descrita em episódios ilustrativos constituintes da tradição europeia da cordialidade. Aqui, a esferologia beira a uma antropofagia mística, e tem por intuito explorar, de início, casos extremos de imersão, no qual se destitui qualquer distanciamento entre os habitantes da relação. Na primeira ilustração, Sloterdijk descreve o episódio escrito no século XIII pelo poeta Conrado de Würzburg, em que o impossível adultério trovadoresco de um cavaleiro e uma dama é levado à concretude somente com a consumação não ciente do coração do rapaz pela moça. Na segunda, é o testemunho de Raimundo de Cápua que ganha coro, no qual Catarina de Siena tem seu coração trocado pelo do próprio Cristo revelado, marcando a comunhão esférica do humano com o divino. A terceira é uma adaptação feita por Marcílio Ficino do Banquete de Platão, na qual fica patente a influência da medicina medieval: Fedro penetra, na adaptação, com vapores sanguíneos que vieram de seu coração e que extrapolaram por seu próprio olhar, os olhos de Lísias, e, com isso, insufla nesse coração seu próprio espírito, tornando-o enamorado de Fedro. Além desses, seguem outros tantos, incluindo o culto do Sagrado Coração de Maria, no qual Cristo e sua mãe constituem um caso de esfera cardíaca bipolar. A crença religiosa na fusão mística e no encantamento fisiológico dos casos descritos por Sloterdijk revelavam o caráter relacional dos corpos humanos, e foram anulados pelo "individualismo anatômico" que começou a surgir com o avanço da dissecação de cadáveres nos séculos XVI e XVII, indicando certa mudança de pensamento que passou a abdicar do caráter relacional originário do humano e que, em favor da autonomia do corpo individual, passaria a embasar posturas sociológicas que concebem a "sociedade" como uma massa de indivíduos só posteriormente e acidentalmente integrados – tema explorado em Esferas III.
O segundo capítulo, "Entre rostos: Sobre o surgimento da esfera íntima interfacial", desenvolve o encantamento exibido pela história de Ficino e explora o espaço de proximidade entre faces em novas ilustrações, dessa vez retiradas da história da arte renascentista e pré-renascentista, como nos afrescos de Giotto para a Cappella degli Scrovegni ou na Madona entronizada, com anjos e santos, de Ambrogio Lorenzetti – que também, aqui, ilustra a comunhão Maria-Cristo. Na espacialidade interfacial, depura-se o excesso explorado pelo capítulo anterior, e a microesferologia passa a alcançar o patamar de relações mais hodiernas entre seres humanos, na qual a distância entre os rostos impede a absorção total e permite pensar, na mônada esferológica, uma díade bipolar. O espaço entre rosto mostra-se, nas ilustrações, como um espaço de magnetismo e ressonância, ao mesmo tempo que indicam, pela exclusividade plástica da facialidade humana, a própria característica de ente singular, insulado em um meio ambiente autógeno que segue na contramão da dinâmica seletiva darwinista, em uma adaptação mais relativa à estética do que à aptidão. Também nesse capítulo, Sloterdijk vai caracterizar o mito de Narciso como "não narcisista", no sentido vulgar: não é pelo próprio rosto que Narciso se apaixona no reflexo do lago, mas pelo rosto de um suposto outro – e sua queda é que possibilita, na frustração por encontrar ali não um outro, mas só um reflexo de si, permitir a autorreflexão e a individuação, e não o contrário, tendo em vista o desconhecimento primário de seu próprio rosto. Seria só na modernidade que o uso costumeiro de espelhos passa a permitir a autocomplementação necessária para uma vida "individual", complementada por um rosto falso, um nãorosto, uma interface.
Em "Homens no círculo mágico: Para uma história das ideias da fascinação pela proximidade", terceiro capítulo da obra, Sloterdijk resgata a época do misticismo, do magnetismo e do mesmerismo, na qual se tinha como certa a atuação sub-reptícia de ressonâncias entre homens na esfera pública. Contando com figuras como Giordano Bruno, Franz Anton Mesmer e Johann Gottlieb Fichte, Sloterdijk explora o desenvolvimento de campos ocultos da psicologia europeia que remontam aos magos do Medievo e que, passando pelo Romantismo, desembocam, segundo afirma o autor de Esferas na única "Digressão"desse capítulo, intitulada "Transmissão de pensamentos", na psicanálise vienense que, embora reconhecendo seus efeitos, teve de optar pelo caminho mais seguro, iluminista e de teor cientificista, a fim de se afirmar no cenário intelectual. Com esse percurso, Sloterdijk demonstra que todas as configurações esferológicas, prenhes de encantamento magnetopático e ressonâncias de proximidade, são subjetividades divididas entre dois ou mais parceiros, e que só na modernidade, com a calcificação do individualismo, passaram a se alojar na consciência pensante e autônoma do sujeito individual.
É no quarto capítulo, "A clausura materna: Para a fundamentação de uma ginecologia negativa", que a tese principal da obra ganha proeminência:o que seria a transferência se não, no limite, uma busca de retomar o estado de satisfação e imersão pura do ventre materno? O desejo de união mística, atesta Sloterdijk nesse capítulo, é o desejo pela reentrada no útero, isto é, pela retomada de um estado de envoltura essencial no qual não havia ainda sujeito e objeto, mas apenas proteção e plenitude. Como, porém, retomar o ponto de vista uterino, originário, sem perder de vista o ponto de partida, a saber, a relação de dois ou mais que, embora em ressonância e imbricação mútua, se diferem e se tencionam no espaço relacional?
É assim que na "Digressão 2 –Nobjetos e não-relações: para uma revisão da teoria psicanalítica das fases" Sloterdijk pretende retomar o fio perdido pela psicanálise devido a seu intento de se legitimar cientificamente. Para constituir uma "ginecologia negativa" que, diferentemente das ginecologias positivas, anatômicas e externas, permita pôr-se parcialmente para dentro de um estado fetal imaginário, ao passo que mantém a sobriedade do já nascido, é necessário se desvencilhar do "preconceito do objeto" apontado pelo antropólogo Thomas Macho como a grande armadilha das psicologias profundas do século XX. Não se pode pressupor, nas relações arcaicas, pré- natais, do infante, e mesmo no recém-nascido, relações objetais. A primeira díade do feto se constitui num estado de imersão quase pleno, em que não se distingue nada para além de sombras. Assim, feto, placenta, sangue placentário, líquido amniótico, cordão umbilical: todos, "nobjetos", entidades não confrontativas e não opositoras que se mesclam com esse "pré-sujeito" em proximidade quase absoluta. O sangue placentário, a acústica uterina, que ecoa a voz da mãe como bom presságio, e o posterior espaço aéreo do nonato, que abre a possibilidade inaugural de autonomia, logo quebrada pela imersão do bebê nos braços dos pais, são os primeiros meios do humano apontados por Sloterdijk, e permitem a transmissão fisiológica e expressiva entre criança e mãe antes do nascimento, bem como a entrada de outros polos à díade mãe-filho no pós-parto. O nascimento, nesse sentido, diz Sloterdijk na terceira "Digressão", sob o título "O princípio do ovo: interiorização e invólucro", representa uma ruptura do invólucro que joga o sujeito à possibilidade de novos invólucros, novos úteros e novas relações.
Um destaque deve ser dado também à quarta "Digressão", "'No Daseinhá uma tendência essencial à proximidade': A teoria heideggeriana do lugar existencial". Nela, Sloterdijk ensaia uma crítica à Martin Heidegger, fenomenólogo do século XX que, sob auspício da questão do ser, desenvolveu a analítica do ser-no-mundo – que, para o autor de Crítica da razão cínica, se tornará "ser-em-esferas". Para Sloterdijk, as investigações heideggerianas sobre a espacialidade do Dasein, conceito de Heidegger para designar o ente que compreende o ser justamente porque "ex-siste", é para fora de si, arremessado às próprias possibilidades, esbarram na insistência do fenomenólogo em forçar a dependência do espaço com relação ao tempo e da coexistência com relação à solidão existencial da angústia diante da morte iminente. Assim, o Dasein de Heidegger, para Sloterdijk, é um ente confuso de seu lugar, jogado em uma exterioridade vaga, imerso em relações cinzentas consigo mesmo e com os outros, sob domínio do "impessoal" (das Man), só adquirindo propriedade existencial quando confrontado com sua condição singular de ser para a morte, e que carece daquilo que, interrompido no parágrafo 24 de Ser e tempo, viria a se tornar algo como "esferas" se a espacialidade do Dasein no seu mundo ambiente (Umwelt) da ocupação viesse a se desdobrar para investigações que excedessem os propósitos ontológicos de Heidegger. Assim, para Sloterdijk, é necessário retomar o projeto de "ser e espaço" escondido nas entranhas da obra heideggeriana no Ser e tempo– e isso pretende Sloterdijk com toda a trilogia, na qual esse projeto deveria se amparar em algo mais do que na pura desconstrução ontológicofenomenológica.
O quinto capítulo da obra, "O acompanhante originário: Réquiem para um órgão rejeitado", utilizando-se de categorias nobjetuais como "aqui", "ali", "com" (indicando o companheiro originário) e "também" (indicando aquele que, mesclado com o "com", preconiza do futuro nascido), todos em um "onde" que, no mundo místico do útero, se confunde com a subjetividade partilhada, retoma alguns existenciais que Heidegger já explorara no parágrafo seguinte àquele que iniciou a analítica da espacialidade e, mesclando considerações psicanalíticas e filosófico-especulativas, na esteira de sua "ginecologia negativa", tenta reaver o perdido projeto de "ser e espaço" do ponto de vista da díade originária. Nesse capítulo, Sloterdijk evoca Béla Grunberger, psicanalista que repensa o problema do narcisismo primário a partir da mônada psíquica intrauterina – essa que engloba uma matriz bipolar, modelo simbiótico pré-edipiano para toda relação psíquica posterior.Aqui, a perda de Orfeu ganha proeminência com o corte do vínculo com Eurídice: o nonato emerge ao mundo sendo cindido, pelo cordão umbilical, de seu companheiro fetal. O aqui perde seu vínculo com o ali que o dava sentido, e assim, por uma cesura originária, o drama da transferência esferológica começa.Desse ponto de vista, toda história de transferência, enquanto história de imersão em um novo espaço interior, será uma tentativa de cantar a Eurídice, isto é, relembrar-se do órgão rejeitado. A "Digressão"que se segue, "A plantação negra: nota sobre as árvores da vida e as máquinas de animação", complementa, nessa guinada, os exemplos simbólicos antigos, já explorados ao longo do capítulo, de comunhão com a placenta após o nascimento, como nos rituais de consumação do restolho do parto ou de plantação dele junto a uma árvore, que acompanharia o crescimento da pessoa como uma entidade gêmea. A modernidade, com o deslocamento de sentido da placenta para mero dejeto obstetrício a ser descartado, mostra-se exemplo de transposição da complementação esférica para meios tecnológicos, dando passo à antropotécnica biotecnológica que Sloterdijk viria a mencionar em Regras para o parque humano.
No sexto capítulo, Sloterdijk aprofunda a análise das tipologias de coexistente do anjo, do gêmeo e do duplo. Sob o título "Compartilhadores do espaço espiritual: Anjos –Gêmeos – Duplos", o autor evoca exemplos de substitutos da Eurídice placentária que se perde no parto e que abre espaço para liberdade humana, como eterna infidelidade órfica. O gênio complementador se mostra, na história das relações de transferência, não como a autoconsciência do sujeito individual, mas como o daimon que oferece proteção e atenção. O alter ego que acompanha o indivíduo nascido funciona, tal qual a placenta rejeitada, conforme mostra o capítulo, como membrana para realizar as trocas metabólico-simbólicas do sujeito com o mundo – e o caso, apontado por Sloterdijk no capítulo, das gêmeas June e Jennifer Gibbons, que se complementavam mutuamente de maneira tão firme que excluíam qualquer contato alheio à relação, demonstra como a mediação do complementador, se muito eficiente, pode levar a uma espécie de "autismo do gêmeo", que aprisiona o sujeito em uma redoma binariamente solipsista. Por outro lado, como aponta o autor na "Digressão 6 – O luto das esferas: Sobre a perda do nobjeto e a dificuldade de dizer o que falta", a falta de uma complementação que tenha sucesso em suprir a ausência do nobjeto complementar, assegurando ao recém-nascido as vantagens de vir ao mundo– como no caso de uma mãe excessivamente ausente que expõe o filho sucessivamente à angústia da falta de atenção– pode levar o indivíduo ao estado de melancolia, compreendida aqui como o luto pela perda do nobjeto. De forma diversa à perda do objeto psicanalítica, na qual o objeto, contingente, deixa o sujeito que o perdeu livre, após o período de luto, para novos investimentos de libido, na perda traumática do nobjeto, o pré-sujeito, que se via atrelado de maneira imersa em seu gênio nobjetal, cessa também de se encontrar e mergulha em um estado profundo de melancolia. Em alguns casos, por outro lado, é o próprio sujeito que se investe das características complementadoras, como o "idiota" da "Digressão 7 – Sobre a diferença entre um idiota e um anjo", em que Sloterdijk explora a figura do indivíduo que, ele mesmo, toma para si, como o Míchkin de Fiódor Dostoiévski, a forma de um complementador total para os outros em suas relações normais. Autismo, melancolia ou fidelidade doentia: aqui foi onde a reflexão esferológica exibiu seus traços psicanalíticos mais fortes, explorando os traumas de uma dejecção ao mundo malsucedida.
O sétimo capítulo, "O estágio das sereias: Sobre a primeira aliança sonosférica",demonstra o outro lado da vinda ao mundo esferológica: das boas-vindas da mãe, meio universal sonoro do recém-nascido, abre-se um mundo em que a promessa de consumação do eu é afirmada e reafirmada. Aqui, é a figura do Ulisses encantado pelas sereias em Odisseia que ilustra a aliança pós-natal: as sereias encantam o herói porque seu canto evoca a glória do mundo todo como exaltação do heroísmo de se aventurar em águas desconhecidas. A saudação da mãe, como o canto das sereias, anuncia o imperativo de felicidade diante da promessa de sucesso no mundo desconhecido em que se emergiu. Com a imersão do bebê na esfera sonora da mãe, se inaugura a história pós-natal da transferência, e se essa passagem do útero ao som obtém sucesso, inaugura-se também uma subjetividade consistente que permite ao indivíduo projetar-se nas relações mais complexas das esferas de maior grado, garantindo sua capacidade integral de transferência.
A "Digressão 8 – Verdades de analfabetos: Nota sobre o fundamentalismo oral" disserta sobre a relação entre consumação do infante do seio da mãe e o apelo sonoro, e, nesse sentido, explicita como a imersão materna perdura em metaforizações posteriores ao acolhimento primário. Em outras palavras, mantém-se a promessa de que, do chamado, virá alguém socorrer, amamentar, alimentar o impulso de consumo do indivíduo, reforçando sua pertença a um meio maternal. Tornar-se adulto, para Sloterdijk, é, por outro lado, compreender paulatinamente a não necessidade de equivalência entre o chamado e o sucesso, e, assim, ter de empreender, pelo trabalho individual, a busca própria do usufruto. No entanto, a noção de pertença a um interior persiste, em nível pré-temático, no indivíduo bem-nascido, como demonstra a última "Digressão", intitulada "A partir de que ponto Lacan se engana". Para o psicanalista francês, o indivíduo já nasce cindido e precisa da autocomplementação do espelho para conseguir se integrar enquanto sujeito. Para o autor de Esferas, no entanto, esse caso se adequa só a extremos patológicos no qual a instalação no mundo não obteve o sucesso das primeiras integrações maternas. As tentativas de reunião com o todo em escala macroesférica, como as grandes religiões, os discursos totalitários ou as discotecas de música pop, são contratendências à maturidade esférica e tentativas de imersão feliz em uma grande esfera de verdade e êxito.Elas demonstram como a certeza pré-eidéticas de um complemento, prévio à noção de um eu que se integra a ver si próprio no espelho, tendem a persistir nas contínuas transferências dos sujeitos bem-nascidos.
O oitavo capítulo, "Mais perto de mim que eu mesmo: Propedêutica teológica para a teoria do interior comum", dá o arremate ao argumento de Sloterdijk, explicitando o modelo-limite das relações fortes microesferológicas na doutrina cristã: a Santíssima Trindade. Na trindade Pai-Filho-Espírito, encontra-se a mesma relação forte da tríade feto-placenta-mãe, que na João Damasceno chamou pelo termo grego, já presente em Anaxágoras, de perichoresis– "interpenetração" ou, como aponta Sloterdijk, "dançar ao redor de alguma coisa", "estar preso em um turbilhão circular". Como explicar a coexistência imbricada de três figuras que se consumam na mesma, três pessoas que são Um e que ocupam o mesmo lugar se não por uma concepção espacial surreal, alheia à geometria extensa cartesiana, na qual a própria relação funda e se confunde com o lugar instaurado por ela? Esse conceito de pericorese também figura na "Digressão 10 – Matris in gremio: Um capricho mariológico", em que a interpenetração aórgica se alia à orgânica na gravidez, em Maria, do Filho de Deus, no qual os dois partilham do mesmo espírito, do mesmo sangue. Nos dois casos – na Trindade e no útero da Virgem –, a interpenetração surreal, que já havia aparecido na Reflexão preliminar, exibe-se como modelo esferológico de toda coexistência humana em uma esfera de proximidade.
Esses modelos de espacialidade coexistencial imanente são, para o autor, o mesmo que, de forma laica e fenomenológica, explicitaria Heidegger com a analítica do ser-em de Ser e tempo, com a diferença, enfim, de que a analítica heideggeriana explicita a destituição das relações fortes na contemporaneidade. A seção final da obra, sob o título "Transição: Da imanência extática", explora a diferença entre a pericorese cristã, que mantém a relação forte dentro dos limites da Trindade, tal qual a pericorese orgânica do útero, exitosa em perdurar a proximidade forte de seus polos, e a pericorese existencialmente decadente do "impessoal" (das Man) heideggeriano, no qual cada qual é o outro e ninguém é si mesmo. Na imanência extática do Dasein, como na coexistência anônima do indivíduo na sociedade de massas, não se encontra a proteção e o cuidado da habitação aconchegante em relações esferológicas, mas apenas as intempéries da mediocridade e da homogeneidade de um exterior desprotegido, que aniquila o interior e despotencializa o indivíduo, tornado ponto indiferenciado da massa. Com isso, Heidegger consegue explicitar, para Sloterdijk, a questão contemporânea de habitar a imensidão, quando as esferas de proteção já não dão mais conta de abarcar a humanidade sem colapsar pela quase ausência de paredes.
Com essas questões, Sloterdijk prepara, ao final de Esferas I, terreno para as duas obras subsequentes, em que se tratará, no primeiro momento, sob a figura do globo, da história da expansão dos espaços imunológicos, sob o auspício das grandes religiões monoteístas, até o ponto em que as macroesferas entram em colapso pela própria ideia de infinitude– quando a "morte de Deus" se mostra "morte da esfera" – e, no segundo, pela figura da espuma, da condição contemporânea de se habitar um todo amorfo de pequenas bolhas autocontinentes, em que a condição normal passa a ser a de se habitar na autocomplementação e no coisolamento. A fim de entender a esferologia como um todo, no entanto, as noções microesferológicas postas no primeiro volume da trilogia são de suma importância, e atestam a necessidade de – a favor ou contra Sloterdijk – repensar as noções clássicas de sujeito, indivíduo, autonomia, consciência etc., levando-se em conta a forma como o humano constrói (e interage com) seu ambiente e em suas relações. Dessa forma, e se levarmos a trilogia como uma provocação necessária para se compreender o mundo contemporâneo, a nova tradução de Esferas I: bolhas para um público que começou, há pouco, a integrar as discussões de Sloterdijk, para além de sua Crítica da razão cínica e de suas polêmicas antropotécnicas, ao panorama geral do pensamento brasileiro, abre caminho para se embasar discussões de caráter político, ético, antropológico, epistemológico e mesmo ontológico a partir da perspectiva diferenciada de imersão do humano em um mundo de complexidades para além da égide do individualismo, no qual pensar o homem é, acima de tudo, resgatar seu complemento – cantar a Eurídice.
Endereço para correspondência
Maurício Fernando Pitta
E-mail: mauriciopitta@hotmail.com
José Fernandes Weber
E-mail: jweber@uel.br
* Mestrando em Filosofia Contemporânea pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)
** Professor adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
1 Antes de Esferas I, Marques já havia traduzido, de Sloterdijk, Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo e Se a Europa despertar: reflexões sobre o programa de uma potência mundial ao final de sua era de letargia política, ambos pela mesma editora.
2 Etimologicamente, "ek-sistens", ser para fora– a influência heideggeriana é patente.