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Natureza humana

versión impresa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.20 no.1 São Paulo enero./jun. 2018

 

DOSSIÊ

 

Constituição da vida, hábitos mentais e instituições sociais

 

Life shaping, habits of mind, and social institutions1

 

 

Michelle Maiese*

Departamento de Filosofia da Emmanuel College de Boston (Massachusetts, Estados Unidos)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

De acordo com a visão enativista da mente, há uma conexão muito próxima entre estar vivo e ser capaz de cognição: estar vivo é ser capaz de envolvimentos cognitivos. O organismo vivo não recebe passivamente, nem processa os estímulos do mundo externo; em vez disto, ajuda a determinar o que conta como informação útil na base de sua estrutura, necessidades, bem como o modo como está estruturalmente ligado a seu ambiente. A doação de sentido é o processo pelo qual ele interpreta os estímulos ambientais em referência a suas necessidades de sobrevivência. Contudo, avaliar o sentido e o significado em um mundo social complexo como o nosso vai muito além da mera sobrevivência e automanutenção e tem muito a ver com adaptar-se e sair-se bem em um contexto sociocultural específico. Para alcançar seus objetivos, os seres humanos precisam de movimentos coordenados que levam à formação de padrões internos de envolvimento e resposta. Com o passar do tempo, esses padrões característicos de movimento e comportamento tornam-se mais enraizados e acabam por abranger o modo de doação de sentido habitual de um indivíduo. O aprendizado e a socialização desempenham um papel significativo, e os hábitos mentais são formados por meio da interação entre valores, normas culturais e as outras pessoas. Uma vez formados e enraizados os hábitos, tem-se o sentido pelo qual as normas sociais são internalizadas e sedimentadas no corpo. Cognição e afetividade podem ser compreendidas assim como socialmente inculcadas e em larga medida moduladas por relacionamentos e normas. Essa influência ambiental pode tanto (i) cultivar hábitos mentais adaptativos que promovam o florescimento humano quanto (ii) contribuir para hábitos mentais mal-adaptados, que alienam as pessoas afastando-as das necessidades humanas mais profundas e interferem no bem-estar geral. A faculdade ou a universidade constituem locais em que os hábitos mentais são profundamente modulados. Dentro das instituições educacionais orientadas pela ideologia neoliberal, os indivíduos são habituados a padrões tóxicos de interação e de avaliação. Em vez de cultivarem o pensamento crítico e a promoção da autorrealização, essas instituições frequentemente solapam tais capacidades. As faculdades e universidades nas democracias neoliberais contemporâneas, tais como nos Estados Unidos, oferecem-nos um exemplo poderoso de como as instituições sociais às vezes servem para cultivar hábitos mentais que impedem o florescimento humano.

Palavras-chave: enativismo; neoliberalismo; educação superior; cognição corporificada; hábitos; normas sociais.


ABSTRACT

According to the enactivist view of the mind, there is close connection between being alive and being cognitive: to be alive is to be capable of cognitive engagements. The living organism does not passively receive and process stimuli from an external world, but rather helps to determine what counts as useful information on the basis of its structure, needs, and the way that it is structurally coupled with its surroundings. Sense-making is the process whereby it interprets environmental stimuli in reference to its survival needs. However, gauging meaning and significance in a complex social world such as ours goes well beyond mere survival and self-maintenance, and has much to do with adapting and faring well in a specific socio-cultural context. The achievement of human goals requires coordinated movement, which leads to the formation of built-up patterns of engagement and response. Over time, these characteristic patterns of movement and behavior become more engrained and come to comprise an individual's habitual manner of sense-making. Learning and socialization play a significant role, and habits of mind are formed via interaction with values, cultural norms, and other people. Once habits form and become more engrained, there is a sense in which social norms are internalized and sedimented in the body. Cognition and affectivity therefore are best seen as socially embedded and heavily modulated by relationships and norms. This environmental influence can either (i) cultivate adaptive habits of mind that promote human flourishing, or (ii) contribute to maladaptive habits of mind that alienate people from deep-rooted human needs and interfere with overall well-being. One setting in which habits of mind are profoundly modulated is the college or university. Inside higher educational institutions guided by neoliberal ideology, individuals are habituated to toxic interaction patterns and modes of valuation. Rather than cultivating critical thinking and promoting self-realization, these institutions often undermine such capacities. College and university settings in contemporary neoliberal democracies such as the United States thereby give us a powerful example of how social institutions sometimes serve to cultivate habits of mind that impede human flourishing.

Keywords: enactivism; neoliberalism; higher education; embodied cognition; habits; social norms.


 

 

1. Introdução

Em Embodied selves and divided minds (2005), recorro a intuições advindas do enativismo e da cognição corporificada a fim de examinar as noções de subjetividade e de individualidade. De acordo com teóricos como Weber e Varela (2002) e Thompson (2007), o enativismo convida-nos a substituir a visão cartesiana da mente em prol de uma abordagem mais aristotélica que enfatiza o caráter biológico da mentalidade (Hutto, 2011, p. 45). Seguindo essa visão, há uma conexão muito próxima entre estar vivo e ser consciente: estar vivo significa ser capaz de envolvimentos cognitivos. Um aspecto marcante dos sistemas vivos é que seus padrões de interação com o meio ambiente têm muito a ver com as restrições impostas às suas viabilidades. Um sistema vivo sempre tem de dar sentido ao mundo e assim complementar por si mesmo aquilo que lhe falta a fim de permanecer viável. O que Varela e Maturana chamam de "cognição" e Thompson refere-se como "fazer sentido" é a geração significativa, que ocorre da perspectiva de um organismo vivo (Froese e Di Paolo, 2011, p. 7), e constitui o processo pelo qual esse organismo interpreta os estímulos ambientais em termos de seu "significado vital". Desse modo, o organismo não recebe e processa passivamente os estímulos do mundo externo, mas sim ajuda a determinar aquilo que conta como informação útil para a base de sua estrutura, de suas necessidades e do modo como está estruturalmente unido ao seu entorno.

É claro que julgar sentido e significado em um mundo social complexo como o nosso vai muito além da mera sobrevivência e automanutenção e tem muito a ver com adaptação e com dar-se bem em um contexto sociocultural específico. Entre os animais humanos com sofisticados sistemas nervosos, objetos de desejo e necessidades, que estão distantes no espaço e no tempo, são considerados "objetivos", e alcançá-los requer movimentos coordenados; ademais, buscar nossos interesses e objetivos frequentemente leva à formação de padrões consolidados de envolvimento e resposta. Com o passar do tempo, esses padrões característicos de movimento e comportamento tornam-se mais enraizados e acabam por consistir na maneira habitual pela qual um indivíduo envolve-se e constrói sentido. A aprendizagem e a socialização, sem dúvida, desempenham um papel enorme; hábitos mentais são formados por meio da interação com os valores, normas culturais e as outras pessoas. Como acertadamente aponta Dewey (1988), hábitos são respostas socialmente adquiridas, formados sob a influência de outras pessoas, os quais acumulamos ao longo de nossas vidas. E por estarmos inseridos causalmente num ambiente social, formamos hábitos mentais de acordo com as exigências desse mesmo ambiente. E à medida que os hábitos se formam e se enraízam, há um sentido pelo qual as normas sociais são internalizadas e sedimentadas no corpo. Nossos corpos vivos, assim, tornam-se "saturados socialmente" e carregados socionormativamente.

Desse modo, a cognição e a afetividade são compreendidas, de um modo mais adequado, como socialmente inseridas, influenciadas ambientalmente e em grande medida moduladas pelos relacionamentos e pelas normas. É importante enfatizar que a influência do ambiente tanto pode ser benéfica quanto prejudicial. As normas e as dinâmicas sociais existentes podem ser (i) hábitos mentais aprendidos que promovem o florescimento humano ou (ii) podem contribuir para hábitos mentais mal-adaptados que afastam as pessoas das necessidades humanas mais profundas e interferem no bem-estar geral.

Uma das "regiões expandidas da vida contemporânea" (Slaby, 2016b, p. 2), na qual os hábitos mentais são profundamente modulados de modo que as disposições cognitiva, afetiva e comportamental de um indivíduo se alinham diretamente às normas sociais vigentes, é o ambiente da faculdade ou da universidade. Quando elas fazem um bom trabalho, a educação superior oferece às/aos estudantes a oportunidade de não apenas aprenderem novas habilidades, mas também de desenvolverem capacidades de "pensar e agir criticamente sobre cada aspecto do mundo social" (Busch, 2017, p. 22). As universidades têm o potencial de cultivar certos hábitos interpessoais (por exemplo, cooperação e escuta atenta) e um tipo particular de instância afetiva, centrada em adotar outras perspectivas, empatia, abertura, curiosidade e imaginação. Contudo, dentro das instituições educacionais superiores, guiadas pela ideologia neoliberal, os indivíduos estão habituados a padrões tóxicos de interação e a modos de valoração. Em vez de cultivar o pensamento crítico e promover a autorrealização, essas instituições frequentemente solapam tais capacidades. Faculdades e universidades, nas atuais democracias neoliberais como os Estados Unidos, oferecem-nos um poderoso exemplo de como as instituições sociais às vezes servem para cultivar hábitos mentais, comportamentos e modos de valoração que impedem o florescimento humano.

 

2. Enativismo, doação de sentido e enquadramento afetivo

O enativismo centra-se nas noções de autopoiese e autonomia e defende que a capacidade mental se enraíza nas dinâmicas estruturais associadas a metabolismo, autorregulação, automanutenção e adaptação2.

Em termos mais simples, autopoiese é o processo pelo qual os processos que constituem os sistemas vivos "produzem os componentes necessários para a continuidade desses mesmos processos" (Thompson, 2007, p. 98). O trabalho de Thompson (2007) explora como a autopoiese serve de base para as mentes conscientes dos organismos vivos e os descreve como agentes autônomos que ativamente geram e mantêm seus próprios padrões coerentes de atividade. A autonomia básica é a capacidade que um sistema tem de gerenciar seu próprio fluxo de matéria e de energia a fim de poder regular e controlar tanto seus processos internos autoconstituídos como também seus processos de intercâmbio com o ambiente (Thompson e Stapleton, 2009, p. 24).

Para essa visão de enativismo, são centrais a noção de doação de sentido e a ideia de que a cognição é um processo de envolvimento contínuo e ativo entre um organismo e seu entorno. É o próprio organismo que determina a quais estímulos no meio ambiente será sensível e receptivo (Merleau-Ponty, 1962), dada a natureza de seus receptores e de seus órgãos corporais. Desse modo, seus próprios fenômenos físicos e químicos internos apenas começam a fazer sentido à medida que se relacionam positiva ou negativamente com a "norma de manutenção da integridade do organismo" (Thompson, 2007, p. 70). Ao definir-se e distinguir entre si mesmo e o mundo, "o organismo cria uma perspectiva que modifica o mundo de um lugar neutro em um Umwelt [em alemão, no original] que sempre significa algo em relação com o organismo" (Weber e Varela, 2002, p. 118).

Colombetti (2014) examinou como a doação de sentido está intrinsecamente relacionada à afetividade, enfatizando que um organismo vivo sempre dá sentido às coisas de um ponto de vista baseado nas perspectivas que lhe importam, à luz de seus interesses adaptativos. É a precariedade dos processos metabólicos, em particular, que se torna crucial ao desenvolvimento de um ponto de vista determinado. A fim de monitorarem e metabolicamente regularem-se no que diz respeito a suas condições de viabilidade, sistemas vivos têm de estar aptos a discernir aquilo que lhes é adequado para sua continuidade (Colombetti, 2014, p. 19). A habilidade de dar sentido às coisas envolve "a capacidade de ser afetado pessoalmente, de ser 'tocado' de um modo significativo por aquilo que o afeta" (Colombetti, 2015). Esse modo mais básico de afetividade, que Colombetti (2014) chama "afetividade originária", está enraizado num nível basal da atividade metabólica adequada. Um ente que está interessado em sobreviver, e preocupado em obter os recursos materiais de que necessita para sua própria continuidade, projeta essa preocupação em seu entorno.

Enquanto muitos teóricos enativistas parecem receptivos à ideia de que organismos de níveis inferiores, como bactérias, são capazes de subjetividade, eu defendo que, embora a vida seja necessária para a mente, não é suficiente, porque tenho dúvidas se esse modo mínimo de doação de sentido é acompanhado de subjetividade ou algo que se pareça com "o ponto de vista do interesse" encontrado entre os humanos ou outros mamíferos. Em vez disso, a subjetividade surge a partir de dinâmicas biológicas vivas no sentido de que se trata de um enriquecimento dessas dinâmicas. Tal enriquecimento não significa que algo externo à vida é adicionado a fim de gerar a subjetividade; em vez disto, "a vida desenvolve-se de um modo que transforma a doação de sentido" (Thompson, 2011, p. 42), de modo que a subjetividade, como também formas mais complexas de cognição, aparece. O que se requer para a evolução, no meu ponto de vista, são as capacidades para coordenação sensório-motora e o desenvolvimento do que chamo de padrões de emolduramento afetivo.

Pode-se descrever o emolduramento afetivo como "um modo afetivo de apresentação", em que "eventos ou situações significativos [são] revelados através de sentimentos corporais difusos e holísticos" (Slaby, 2008, p. 447). O afeto funciona como um "encanto" da consciência, e implica uma "Gestalt dinâmica ou estrutura figura-fundo" pela qual alguns objetos revelam-se numa preeminência afetiva, ao passo que outros tornam-se imperceptíveis" (Thompson, 2007, p. 274). Enquanto o lobo pré-frontal sem dúvida desempenha um papel crucial, o emolduramento afetivo também envolve sistemas metabólicos, respostas endócrinas, mudanças musculoesqueléticas e respostas cardiovasculares. Assim, a noção de emolduramento afetivo enfatiza que os sujeitos personificam sentido e significado pessoais em e por meio de seus corpos sensíveis e, desta forma, chamam a atenção para a afetividade, para a natureza essencialmente corporificada da doação de sentido. As interpretações cognitivo-emocionais que constituem o emolduramento afetivo são fisicamente fundamentadas em "processos orgânicos de autorregulação que visam a sustentar e potencializar a autonomia adaptativa em face de eventos ambientais perturbadores" (Thompson e Stapleton, 2009, p. 27). O emolduramento afetivo harmoniza, de modo seletivo, o organismo ao seu ambiente e permite que ele avalie a relevância de fatores particulares a partir de suas próprias necessidades, dimensão corporal, modos de locomoção e o contexto existente. Isto é fundamental para a sobrevivência na medida em que se torna um meio de concentrar a atenção, o que permite aos organismos vivos lidarem com a complexidade do mundo que os envolve.

De acordo com a perspectiva enativista, a identidade de um sistema autônomo é, de algum modo, autoproduzida e sustenta-se em sua organização dinâmica. Essa identidade pode ser entendida como um "padrão que, dadas as adequadas condições iniciais e limitadoras, repetidamente contribui para sua própria manutenção" (Moreno e Barandiaran, 2004, p. 13). Contudo, as discussões sobre a organização autônoma não deveriam estar limitadas à organização biológica básica ou à automanutenção metabólica. De todo modo, como se pôde observar anteriormente, o envolvimento humano com o ambiente assume uma forma bastante sofisticada, e a adaptação vai muito além da mera sobrevivência e automanutenção. Uma/um sujeita/o3 humano também esforça-se para dar-se bem em um contexto sociocultural específico e tem de navegar pelo mundo social circundante. Assim é que a regulação adaptativa do envolvimento ambiental não está subordinada simplesmente às restrições de viabilidade impostas pelas "condições de sobrevivência", mas também é dirigida pela necessidade de manter a organização neurodinâmica e comportamental. Isto pode ser compreendido em termos da automanutenção (Barandiaran, Di Paolo e Rohde, 2009, p. 11).

Em criaturas como nós, com sofisticados sistemas nervosos que são capazes de propriocepção internamente mediada e movimentos coordenados, desenvolvem-se emolduramentos afetivos duradouros e padrões de sintonia corporal. O modo como uma/um sujeita/o humana/o emoldura objetos e eventos torna-se corporificado em suas expressões faciais, em seus gestos, em suas posturas, em seus movimentos e comportamento corporal geral. A busca por objetivos requer complexas sequências de movimentos e frequentemente leva à formação de modos recorrentes de envolvimento e resposta. Formas e estruturas organizadas anteriormente ausentes aparecem, e dinâmicas corporais vividas exibem certos padrões característicos. Em linha com este argumento, Di Paolo (2005) descreve um tipo de forma dinâmica autossustentável e autogeradora no comportamento animal e na atividade neural e corporal que se reflete em padrões de expressão e resposta corporais, invariantes de percepção e ação organizada. Do mesmo modo, Froese e Di Paolo defendem que a cognição envolve "a preservação adaptativa de uma dinâmica rede de estruturas sensório-motoras mantidas pela interação contínua com o ambiente" (Froese e Di Paolo, 2011, p. 18). Um exemplo paradigmático dessas estruturas autônomas são os hábitos, que abrangem partes do sistema nervoso e dos sistemas fisiológico e estrutural do corpo, bem como os padrões de comportamento. Na mesma linha de argumentação, Sheets-Johnstone (2011) descreve como, ao longo do processo de aprendizado de como movemos nossos corpos, estabelecemos um grande número de padrões dinâmicos que se tornam habituais. Por exemplo, escovar os dentes, aprender a amarrar o sapato e escrever nossos nomes são atividades que se entreteceram em nossos corpos como dinâmicas familiares.

As restrições hierárquicas de "hábitos mentais" são seletivas e reduzem o número de modos pelos quais os aspectos que compõem as dinâmicas de nossos corpos vivos – inclusive atividade cerebral, ritmo cardíaco, processos metabólicos, circulação, etc. – podem operar. A dinâmica corporal anima e forma configurações integradas e, à medida que o animal interage com o ambiente, um padrão global de atividade corporal e neuronal distribuído e coerentemente passa a governar as atividades que lhe permitem a doação de sentido. Isto inclui a operação de sistemas neurossomáticos integrados, processos sensório-motores, hormônios, sistemas circulatório e respiratório. Ao longo do tempo, vários elementos do sistema musculoesquelético tornam-se "engajados", e o corpo humano como um todo, e não apenas o cérebro, comporta-se como um sistema de "formação de padrões, auto-organizado governado por leis dinâmicas não lineares" (Kelso, 1995, p. 6). Contudo, para mim, os hábitos incluem não apenas padrões de movimentos específicos, mas também modos específicos de participar do mundo circundante e de interpretá-lo. Tais padrões constituem a maneira particular corporalmente afetiva ou temperamento de uma/um sujeito/a e a "forma ou estrutura de seu comportamento" (Thompson, 2007, p. 80) pela qual ela/ele modela seu ambiente de um modo significativo. Em seres que são suficientemente complexos neurobiologicamente, esses emolduramentos afetivos e padrões altamente integrados de comportamento tornam-se muito abrangentes e sofisticados, dando azo à forma de vida caracteristicamente humana.

 

3. A tese da constituição da vida

É importante reconhecer que o desenvolvimento de hábitos depende de restrições internas e externas. Biologia, fatores de desenvolvimento e influências ambientais desempenham um papel na constituição dos padrões neurobiológicos animais, nas tendências interpretativas e nas respostas corporais. O aprendizado, sem dúvida, tem um papel enorme; ao longo do tempo, um ser vivo torna-se seletivamente harmonizado com determinados aspectos de seu entorno e desenvolve tendências comportamentais específicas. Entre os humanos, de modo particular, modos habituais de envolvimento e resposta formam-se, modulam-se e transformam-se à medida que um indivíduo interage com seu meio social e modifica seu comportamento de acordo com normas, expectativas e valores culturais. Mas há mais a se dizer sobre as maneiras pelas quais nossos hábitos mentais não apenas estão completamente corporificados, mas também estão socialmente incorporados.

A Tese da Constituição da Vida que defendo sustenta que, uma vez que somos animais sociais essencialmente mentais, os emolduramentos afetivos que abrangem nossa forma de vida humana são todos parcialmente determinados, ou constituídos, pelo nosso ambiente social. Por uma "determinação parcial" ou "constituição" de nossas mentes essencialmente corporificadas por algo X, quero dizer que X afeta-nos e, assim, tem uma influência sobre nós, como animais mentais, de um modo proeminente e significativo que é, ao mesmo tempo,

(i) causal,

(ii) parcialmente determinado ou modelado por meio de respostas cíclicas autorreflexivas e

(iii) irredutivelmente normativo.

O que é influência causal? Defendo que X tem uma influência causal em Y se:

(a) X desempenha algum papel necessário e eficaz na produção, pontual ou temporalmente extensiva, de algumas propriedades mentais ou físicas, ou de fatos sobre Y;

(b) há alguma conexão geral, claramente reguladora ou normativa, que governa a produção das propriedades ou dos fatos de Y;

(c) se X não existisse, então as propriedades ou fatos de Y também não existiriam.

Desta forma, supor que interações e forças sociais têm uma influência causal na mente significa supor que esses fatores sociais desempenham um papel necessário e eficaz na produção dos desejos, crenças, emoções etc. de uma/um sujeita/o, e que sem a contribuição desses fatores sociais, essas várias dimensões da mente não existiriam.

Até agora, essa descrição da "determinação parcial" ou "constituição" é bem parecida com a hipótese da "cognição incorporada" de Rupert (2004), que sustenta que "processos cognitivos dependem, em larga medida e até agora de maneiras inesperadas, de propriedades e dispositivos externos ao organismo e da estrutura do ambiente exterior no qual a cognição acontece" (Rupert, 2004, p. 393). De modo similar, de acordo com a hipótese da mente-andaime de Sterelny, "muitos animais interferem nos seus ambientes, modelando-os de modos que melhoram a capacidade adaptativa entre o agente e o mundo" (Sterelny, 2010, p. 466).

Contudo, enquanto tanto Rupert quanto Sterelny centram-se exclusivamente na cognição, há uma boa razão para se pensar que os recursos ambientais também sustentam e ampliam a afetividade humana. Aquilo que Colombetti e Krueger chamam "nichos afetivos" são "instâncias de ajustamento organismo-ambiente (influências mútuas) que permitem a concretização de estados afetivos específicos" (Colombetti e Krueger, 2014, p. 4). Indivíduos são frequentemente levados a interagir de acordo com uma harmonização ou hábito a padrões de interação que são costumeiros naquele lugar. O que Slaby denomina "afeto relacional" não é, primariamente, um problema da experiência afetiva das pessoas individualmente, mas uma "dinâmica intra-ativa que pertence ao ambiente ou prática social" (Slaby, 2016a, p. 15). Outras pessoas têm uma forte influência sobre nós, e parece claro que "coletividades ativas e comprometidas são capazes de causar um grande impacto afetivo sobre os indivíduos" (Slaby, 2016a, p. 10), e isto constitui seus emolduramentos afetivos e seus hábitos interpretativos.

Há mais. Nem Rupert nem Sterelny examinam o aspecto irredutivelmente normativo da contribuição causal feita pelo ambiente. Num sentido biológico básico, normas estão ligadas a exigências vitais (isto é, automanutenção biológica). Organismos vivos regulam seu ajustamento com o ambiente de acordo com normas estabelecidas por suas próprias condições de viabilidade (Barandiaran, Di Paolo e Rohde, 2009, p. 8). A normatividade origina-se da autoprodução e da automanutenção de um sistema precário; "ao longo de sua individuação, o sistema determina intrinsecamente" quais interações sustentam sua existência contínua, e quais interações ameaçam sua sobrevivência" (Buhrmann, Di Paolo e Rohde, 2009, p. 8). Desse modo, num nível biológico básico, o que é bom ou mau para um ser vivo, ou seja, suas normas de automanutenção, é determinado por sua própria organização interna.

Contudo, a origem das normas sociais não é totalmente dependente do indivíduo. Essas normas são obtidas a partir de outros modos de vida psicológicos ou culturais que são autossustentados. Isto significa dizer que a ação adaptativa num complexo mundo social como o nossos vai muito além da mera sobrevivência e automanutenção. Significa dar-se bem num determinado contexto sociocultural. As normas sociais oferecem uma moldura na qual formamos valores, atitudes e desejos, pensamos e agimos intencionalmente; instituições sociais reforçam determinados padrões de pensamento, de sentimento e de comportamento fornecendo uma moldura normativa que recompensa, reforça ou desencoraja certos tipos de posturas ou comportamentos. Os arranjos materiais e discursivos concretos de um determinado ambiente social (que incluem a forma física, regras explícitas, códigos informais de conduta e modos de interação preferidos) "exercem pressões formativas sobre os indivíduos a fim de que se habituem aos padrões dinâmicos prevalecentes naquele local" (Slaby, 2016a). Algumas interações são boas para o sujeito socialmente situado, e outras são ruins; alguns regulamentos e modos de envolvimento com o mundo sociocultural são adequados e adaptativos, na medida em que permitem que o indivíduo saia bem naquele ambiente social (ter status e reconhecimento social, por exemplo), e outros são mal-adaptados (pois envolvem graves penalidades, sanções ou desaprovação social). Normas sociais, por esta razão, modulam a doação de sentido e modelam o comportamento corporal total das/dos sujeitas/os.

A influência dos fatores sociais não deve ser entendida exclusivamente em termos cognitivistas. Determinadas instituições sociais frequentemente envolvem uma rede de normas e práticas compartilhadas e uma atmosfera afetiva particular que incentiva os participantes a sentirem, pensarem e se comportarem de determinados modos e não de outros. Os indivíduos são frequentemente levados a certos modos de interação pela sintonia afetiva e pelo hábito a padrões de interação e de modos de valoração que constituem a norma naquele contexto. As normas que modelam os sentimentos do participante e os padrões de valoração não são princípios escolhidos pelos indivíduos, mas os "vários princípios lógicos e normativos em operação" que são preponderantes na instituição social em questão – e que a constituem parcialmente" (Slaby, 2016a, p. 15). Enquanto algumas instituições estimulam atividades dialógicas altamente colaborativas, empatia e cooperação, outras encorajam a hipercompetitividade ou as interações grupais tóxicas. Ao participar de uma instituição social, as/os sujeitas/os agrupam-se de acordo com um tipo específico de interação social que se caracteriza por normas específicas e por uma determinada atmosfera afetiva de modo que o ambiente social serve como "um plano de organização" no qual as vidas cognitiva e afetiva dos indivíduos desenvolvem-se" (Slaby, 2016a, p. 21).

E mais. Embora a origem das normas sociais não dependa totalmente do indivíduo, há um sentido no modo como alguém as internaliza. Eu defendo que a noção de hábito auxilia-nos a dar sentido à ideia de que as influências e normas sociais podem sedimentar-se no corpo. Uma vez que nossos hábitos corporais e tendências interpretativas dependem das normas sociais, e como nós damos sentido ao mundo em nossos corpos e por meio deles, as normas acarretam a "constituição da vida". Por meio do desenvolvimento de padrões integrados de comportamento e de atenção, o corpo vivo "fica normativamente carregado pelos costumes e expectativas sociais" (Higgins, 2017). Higgins (2017) destaca o gênero como um exemplo. Devido às expectativas e normas relativas ao enactment4 da atividade "feminina" e "masculina", os indivíduos cotidianamente adotam maneirismos de gênero e habituam-se a considerar e experimentar seus corpos de um modo particular. Partindo destas ideias, eu sustento que "internalizar" as normas de "masculinidade" e "feminilidade" envolve centralmente a adoção de hábitos específicos de interpretação, movimentação, expressividade e resposta. Há maneiras específicas de falar, andar, gesticular, vestir-se e interagir com os outros associados à "feminilidade" e à "masculinidade", e garotas e garotos começam a desenvolver esses hábitos desde a tenra idade.

Os hábitos desenvolvem-se, em parte, porque as instituições sociais encorajam a adoção de determinados padrões corporais e afetivos de envolvimento ao passo que desencorajam ou penalizam outros. No caso do gênero, há sérias punições sociais associadas à demonstração de hábitos que contrariam aquilo que é socialmente prescrito como normas de gênero. Um outro exemplo é o modo como, em ambientes de trabalho, destacam-se determinadas tendências e inclinações afetivas oferecendo uma moldura normativa que recompensa certos tipos de posturas e comportamentos. As pessoas aprovam ou encorajam certos tipos de ações, modelam o comportamento dos outros e, assim, reforçam os tipos de práticas que endossam. Respondendo a estas pressões, as/os sujeitas/os desenvolvem o que Buhrmann e Di Paolo (2015) chamam "estratégias sensório-motoras" ou "esquemas". Esses "esquemas" podem ser entendidos como organizações de várias coordenações (hábitos) sensório-motoras que se posicionam, de um modo típico, contra o pano de fundo de alguns emolduramentos normativos (por exemplo, ao se considerar a eficiência) e são influenciados fatores sociais e contextuais.

É importante destacar que a relação entre os hábitos mentais e as práticas normativas é recíproca. Defendo que algo X é, por si mesmo, parcialmente determinado ou constituído por meio de respostas cíclicas autorreflexivas apenas quando as propriedades e os fatos característicos de X são parcialmente determinados ou constituídos de modo recíproco por nossas próprias contribuições ativas ou reativas e nossas respostas a X. Uma/um sujeita/o mental não é constituída/o apenas pelo mundo social, mas também auxilia a constituir o ambiente social por meio de suas contribuições e respostas ativas e reativas. O comportamento individual e os padrões de atenção estão ambos ancorados nessas práticas normativas compartilhadas e contribuem com elas. Quando as pessoas aceitam normas predominantes e sancionam ou encorajam determinados tipos de comportamento, elas reforçam essas práticas e normas. Os indivíduos começam a se comportar em conjunto de maneiras que são favoráveis às sutis operações do contexto social em questão, e, por meio da ampla participação de muitos indivíduos diferentes, "o sentido é representado coletivamente e se alinha com os princípios de funcionamento" e com os valores daquela instituição social em particular (Slaby, 2016a, p. 17). É importante notar, contudo, que embora as/os sujeitas/os de fato ajam no intuito de reforçar determinadas práticas e normas sociais, elas/eles também têm a capacidade de desafiá-las e enfraquecê-las de modos bem diferentes e em níveis variados. Às vezes a contribuição dada por uma/um determinada/o agente ou grupo de agentes pode resultar numa modificação do contexto social, de modo que as normas que predominaram em algum momento começam a desaparecer e novas práticas, normas e valores socioculturais começam a estabelecer-se. Embora os indivíduos frequentemente fiquem "engessados" em determinadas maneiras de movimentação e envolvimento, à medida que os emolduramentos afetivos tornam-se mais enraizados, esses padrões não são reunidos de um modo fixo ou estático, mas mais livremente (Colombetti, 2015) e são suscetíveis a mudanças contínuas. Isto significa que sempre existe alguma possibilidade para que as pessoas possam modificar seus emolduramentos afetivos e desenvolver novos hábitos de atenção, pensamento, sentimento e respostas corporais.

Nas obras filosóficas que se dedicam à contribuição do contexto social, há uma preocupação em descrever como nossas vidas cognitiva e afetiva estão "escoradas" e sustentadas pelas instituições e relações sociais. Por exemplo, Gallagher e Crisafi (2009) descrevem como nossos sistemas cognitivos estão emaranhados nas "instituições mentais", tais como sistemas legais e práticas científicas, e são por elas tornados possíveis. No caso dos sistemas legais, juristas, juízes e advogados confiam nos princípios, jurisprudências e procedimentos utilizando-os como ferramentas que lhes auxiliam a resolver as demandas. Como resultado disto, não precisam pensar sozinhos cada caso, mas podem basear-se em outros trabalhos cognitivos anteriores. De modo semelhante, a prática da comunidade científica de compartilhar e comparar teorias e hipóteses fornece aos cientistas os recursos cognitivos e as ferramentas com as quais também podem contar e, assim, modificarem a pesquisa científica. De acordo com sociólogos, cientistas políticos e cientistas da cognição contemporâneos, a inteligência coletiva5 é uma propriedade emergente constituída pelas capacidades e atividades cognitivas de um grupo de pessoas, e que inclui, de modo especial, raciocínio grupal, pensamento em conjunto (brain-storming) e inovação, produção social de textos escritos e outros tipos de mídia social, deliberação em grupo e tomadas de decisão conjuntas. Quando há um nível de coordenação social relativamente elevado, criatividade, solução de problemas e produtividade, as pessoas frequentemente tornam-se capazes de atingir coisas que, de outro modo, não conseguiriam sozinhas, e de demonstrar o que podemos chamar de "sabedoria coletiva".

Contudo, precisamente porque as instituições sociais têm a possibilidade, de modo positivo, de escorar, sustentar e contribuir com os processos cognitivos e afetivos, também podem distorcê-los e, assim, desviarem-se do bem-estar. Ao passo que estruturas sociais "capacitadoras", "trabalham no intuito de estabelecer padrões mentais que se tornam, com o correr do tempo, empoderadoras [e] úteis para o florescimento individual e coletivo", "as instituições sociais deformadoras criam dependências insalubres, ligam-nos a rotinas opressivas, mantêm a desigualdade, destroem os laços comunitários ou levam a […] hábitos mentais que são prejudiciais para nós e nossos semelhantes" (Slaby, 2016b, p. 11). A noção de que se pode formar "maus hábitos" convivendo com "pessoas erradas" é um excelente exemplo. Ademais, às vezes os hábitos e os emolduramentos afetivos, que são adaptativos no curto prazo, na medida em que ajudam a/o sujeita/o a lidar com seu entorno (por exemplo, fumar como um meio de aliviar o estresse ou adotar uma postura competitiva a fim de progredir no ambiente de trabalho) mostram-se danosos ou mal-adaptativos no longo prazo. E mais, algumas instituições sociais modelam sistematicamente nossas vidas de tal modo que nos alienam ou até mesmo minam nossa saúde mental. Conseguem isso por meio do cultivo de hábitos mentais e de comportamentos que impedem as pessoas de satisfazer suas necessidades humanas mais profundas travando o florescimento humano.

Se esses padrões afetivos prejudiciais tornam-se mais arraigados, a continuidade deles pode tornar-se um objetivo em si mesma (Froese e Di Paolo, 2011, p. 19), o que causa uma crescente dificuldade para os indivíduos modificarem seus "maus hábitos". De fato, algumas instituições sociais escravizam mentalmente as pessoas cultivando hábitos que são prejudiciais para seu bem-estar fundamental e ainda assim incrivelmente difíceis de lhes opor resistência. Em parte, isto se deve ao fato de que as pessoas são recompensadas ao adotar esses hábitos e punidas por rejeitá-los. Ademais, esses hábitos de atenção, valoração e resposta constituem o modo como as pessoas percebem o que é relevante e importante e com resultados tão extensivos que se torna difícil até mesmo questioná-los ou imaginar as coisas sem eles.

Fica claro que o hábito e a constituição dos emolduramentos afetivos é resultado da influência de uma variedade de instituições sociais e prolonga-se ao longo da vida. Aprendemos quem somos, em larga medida, por meio das interações com os outros, e todas as instituições sociais são parte desse processo de autocriação. Mas algumas instituições sociais "procuram" os indivíduos a fim de "torná-los expoentes de bona fide dos processos operativos locais" e os encorajam a se conformarem com as rotinas e exigências daquele contexto (Slaby, 2016a, p. 2). Tais instituições cultivam padrões e hábitos mentais de modelamento que exercem uma grande influência nas/nos sujeitas/os envolvidas/os e as/os comprometem com as obras dessas instituições "mesmo que isso vá de encontro a seus interesses declarados ou seja, de vários modos, prejudicial para seu bem-estar ou florescimento" (Slaby, 2016a, p. 8). Nesses casos, afetam as funções como um "astuto mecanismo [para] manter as/os sujeitas/os presas/os a condições opressivas ou patológicas" (Slaby, 2016a, p. 8).

Para ilustrar o modo como "coletividades envolvidas e ativas são capazes de exercer uma poderosa influência afetiva nos indivíduos" (Slaby, 2016a, p. 10) de maneiras que vão de encontro a seus interesses e dão lugar a formas de vidas insalubres, tomo como exemplo a educação superior nos Estados Unidos. Minha proposta é de que os hábitos mentais, comportamento e modos de valoração que são cultivados pela universidade neoliberal são prejudiciais ao aprendizado, solapam o florescimento humano e servem como um poderoso exemplo do que Slaby (2016b) chama de "invasão da mente". Entre aqueles que participam dessas instituições, "o afeto é profunda e irresistivelmente constituído, frequentemente de modos contrários àqueles como os indivíduos sentiriam, agiriam e se comportariam" (Slaby, 2016a, p. 24) se não estivessem unidos pelas normas daquelas instituições.

 

4. Neoliberalismo

Para que se possa compreender o que quero dizer com "universidade neoliberal", é importante destacar alguns pontos da lógica operativa e dos princípios normativos que governam tais instituições. O conceito de neoliberalismo é um conjunto de conceitos multifacetados e, quando esse conjunto de conceitos é aplicado ao mundo real, suas diretrizes efetivas e suas práticas operam nos níveis local, estadual, nacional e global. Enquanto esses fatos podem dificultar a definição da ideologia neoliberal, há algumas crenças e compromissos mais amplos que unem essas várias ideias, práticas e diretrizes.

Primeiramente, o neoliberalismo é um retorno ao ramo laissez faire da teoria econômica capitalista. Seus pressupostos centrais sustentam que o livre mercado é benevolente, a intervenção estatal e a regulação da economia devem ser mínimas e o indivíduo deve ser visto como um ator econômico racional. Partindo dessa visão, o mercado é eficiente, de modo inerente, e a competição naturalmente leva ao crescimento econômico e à prosperidade que necessariamente beneficiarão todos os indivíduos. Qualquer desigualdade que porventura surja será devida ao "trabalho duro" e às habilidades naturais dos indivíduos. Quaisquer intromissões no mercado deveriam ser evitadas, dado que elas restringem suas operações características e impedem os indivíduos de se envolverem livremente nele.

O segundo ponto a ser destacado é que o mercado é visto como o mecanismo dirigente que deve abranger todos os aspectos da vida social. Assim, a ênfase na racionalidade econômica aplica-se não somente ao mercado, mas também à esfera social. Como resultado, "no mundo neoliberal, não há mais uma distinção entre o mercado e o Estado, entre o público e o privado" (Saunders, 2010, pp. 45-46). Os indivíduos, cada vez mais, passam a ver tudo o que fazem em termos de maximização do seu "capital humano". Esse tipo de "fundamentalismo do livre mercado" enfatiza "o ganho a qualquer custo, uma competitividade cruel, hedonismo e individualismo" (Giroux, 2010, p. 185). No contexto da educação superior, algumas das tendências que refletem uma postura neoliberal incluem o apoio decrescente para cursos que não estejam orientados para os negócios, redução de apoio para pesquisas que não aumentam os lucros, a substituição de formas de gerenciamento compartilhado por modelos de gestão empresarial, a contínua exploração do trabalho do corpo docente e o uso do poder de compra dos estudantes como uma medida vital de sua identidade e de seu valor (Giroux, 2014, p. 22).

Pode-se argumentar que a educação superior sempre serviu ao capitalismo, intencionalmente ou não, e de um modo marcante em grande medida. Contudo "o que há de novo na universidade neoliberal são o âmbito e a extensão desses fins corporativos e voltados para o lucro, como também o número de estudantes, corpo docente e gestores que sustentam explicitamente e mesmo abraçam esses objetivos e prioridades capitalistas" (Saunders, 2010, p. 55). Fazem isso quando, por exemplo, falam do "mercado da educação", "retorno de investimento" e "valor financeiro". Contudo, essa defesa explícita de atitudes neoliberais quase sempre acontece sem que as pessoas nem sequer mencionem o termo "neoliberalismo". Administradores, corpo docente e estudantes raramente afirmam que são neoliberais ou que acreditam na ideologia neoliberal. Então, como essa ideologia pode ter tanta influência? Na verdade, é precisamente porque as pessoas não reconhecem o impacto da ideologia neoliberal que esta se torna capaz de exercer uma grande influência. O neoliberalismo regula nossos hábitos mentais de tal modo que "define nossas crenças de senso comum e se torna inseparável de nossas ideias e suposições" (Saunders, 2010, p. 49). Esses padrões de emolduramento afetivo tornam-se "molduras orientadoras" particularmente influentes, duradouras e profundamente enraizadas, e influenciam muitos das nossas concepções momentâneas e dos nossos padrões temporários de atenção.

Alguns padrões do nosso compromisso cognitivo-afetivo alinham-se convenientemente com um determinado grupo de atividades, interações e expressões que são esperadas ou permitidas no contexto da universidade neoliberal, ao passo que outras não. Essas que realmente se alinham são recompensadas ou encorajadas de modo efetivo, enquanto as que não se alinham são efetivamente desencorajadas. O resultado é o cultivo de um tipo particular de "estilo corpóreo-afetivo" (Colombetti e Krueger, 2015) e modelos afetivos particulares que são estruturados e sancionados pela instituição social. Isto acontece, em parte, por causa do "contágio emocional, das várias respostas sincrônicas e miméticas num nível corpóreo-afetivo" e "pelas demandas e sanções explícitas da parte dos membros do grupo dominante" (Slaby, 2016b, p. 9). As pessoas que se inserem na universidade neoliberal reforçarão uma orientação cognitivo-afetiva voltada para o mercado "por meio da imitação, dos gestos [e] dos costumes afetivo-corporais que sinalizam aprovação ou desaprovação, encorajam ou desencorajam, recompensam com uma conexão aconchegante ou punem com uma sutil hostilidade" (Slaby, 2016b, p. 9). Os novatos irão se habituar aos padrões afetivos presentes na instituição.

Note-se que não se trata de tipos específicos de afetos que acompanham ou dão cor à nossa experiência humana habitual na universidade neoliberal. Pelo contrário, podemos falar acertadamente de uma "infraestrutura mental" de largo alcance, uma que envolve "padrões complexos de afeto e de relações afetivas" (Colombetti e Krueger, 2015) que modelam e estruturam as tendências afetivas das pessoas e os modos de se relacionarem umas com as outras. Particularmente, o neoliberalismo encoraja as pessoas a se verem como agentes isoladas/os, motivadas/os a todo momento pela razão instrumental bem como a considerarem tudo em moldes de competição. Ele as encoraja a se concentrarem na dimensão econômica da vida humana enquanto minimiza outros valores sociais e de relacionamento pessoal como empatia, cooperação e colaboração, bem como a encarar todos seus objetivos meramente como meios de aumentar seu "capital humano" e alcançar seus fins econômicos.

A disseminação e a normatização da lógica econômica capitalista e a expansão da razão instrumental nas esferas cultural, política e social ajudam a criar a aparência de que essa é a forma "natural" de se aproximar do mundo – é assim que as coisas são. Isto porque a ideologia neoliberal "infiltrou-se nas nossas instituições, no discurso e no senso comum" (Saunders, 2010, p. 53), tragou as tendências modeladoras das pessoas e, assim, permeou todos os aspectos da vida. Isto resulta na "saturação da nossa consciência, de modo que o mundo educacional, econômico e social que vemos e no qual interagimos, bem como as interpretações de senso comum que damos a ele o tornam […] o único mundo" (Apple, 2004, p. 4). As concepções fundamentais do neoliberalismo estão incrustradas nas nossas consciências por meio de emolduramentos afetivos enraizados que abrangem padrões de pensamento, de valoração e de comportamento habituais.

 

5. Neoliberalismo e Educação Superior

Volto-me agora para a discussão do modo como a ideologia neoliberal chegou a conduzir faculdades e universidade nos Estados Unidos, e como a comoditização e a mecanização resultantes da educação superior contribuem para uma falsa consciência e uma infelicidade generalizada.

Comoditização

O neoliberalismo insta-nos a considerar todas as instituições sociais como mercados nos quais fazemos inúmeras escolhas, investimentos e cálculos da relação custo-benefício. A/O sujeita/o inserida/o numa universidade neoliberal enquadra e organiza tudo o que diz respeito à sua vida social como algo bom de ser comprado e vendido, mesmo que isto deturpe o verdadeiro valor do objeto em questão e distorça seu significado para o indivíduo. As pessoas acabam por conceber a educação superior como "a produção de créditos pelo corpo docente (entrada) e o consumo destes pelos estudantes (saída), normalmente na forma de unidades padronizadas chamadas cursos ou módulos" (Lorenz, 2012, p. 612). À medida que a educação é considerada de acordo com as normas e valores do mercado, as/os estudantes passam a se ver como consumidoras/es, enquanto as faculdades e universidades enfatizam o "bom uso do [seu] dinheiro".

O objetivo principal da educação é garantir um emprego, e o foco da educação superior torna-se, de modo crescente, o "retorno do investimento – em termos monetários – na forma de uma maior renda futura" (Busch, 2017, p 26). Uma/um estudante que tenta decidir-se por uma determinada universidade pesará, por exemplo, a classificação que ela tem em mais de um quesito, por exemplo, o sucesso dos egressos em arranjar emprego adequado. Especializações, currículos e pesquisa acadêmica são julgados em primeiro lugar em termos de suas habilidades em contribuir para os interesses privados e de mercado. O corpo docente é visto como os fornecedores de uma commodity como um diploma, um conjunto de habilidades profissionais ou alguma outra qualificação. Professores universitários também são vistos, por quem olha de fora, como vendedores dessa mercadoria. Se o corpo docente não "comercializa" suficientemente seus cursos, e os estudantes não se matriculam em números suficientes, então o corpo docente é responsabilizado pelo fracasso e julgado pelos gestores de acordo com esses fracassos (Lorenz, 2012, p. 622).

À medida que a educação passa a ser compreendida como uma relação de fornecedores-consumidores de serviço, as universidades ficam obcecadas com o lugar que ocupam nos níveis de avaliação, com a diferenciação dos produtos que oferecem e com a "inovação". Há uma voz corrente acerca das escolas "competidoras", do "mercado" da educação superior e da necessidade de se envolver com campanhas publicitárias e mercadológicas a fim de promover "a marca". Os gestores fingem explicitamente que estão preocupados com a qualidade e com o valor intrínseco da instrução, contudo, seu objetivo principal está voltado para o retorno financeiro que os professores geram para a universidade, seja por meio da captação de bolsas de pesquisa financiadas por recursos externos, seja por meio de "aumento das matrículas" também conhecido como colocar traseiros nas cadeiras (Washburn, 2009, p. 227).

Também são comoditizados os resultados das pesquisas, descobertas e criações: cada vez mais definimos os usuários como "consumidores" de informação e tratamos o conhecimento como uma forma de capital. Enquanto a comunidade acadêmica tradicionalmente mencionava as "contribuições" para a literatura que pode ser acessada e compartilhada por todos, os direitos da propriedade intelectual tratam a informação e o conhecimento como uma forma de propriedade privada. Isto, por sua vez, inibe de modo significativo a criatividade e o progresso nas pesquisas. Os frutos das pesquisas não constituem mais partes integrantes de uma busca generalizada pelo conhecimento, mas, em vez disto, tornam-se unidades de "propriedade intelectual". As pesquisas com financiamento público são mais e mais privatizadas e vendidas com vistas a obter lucro no mercado aberto. Devido a essa comoditização do conhecimento e da informação, há cada vez menos oportunidades para pesquisas colaborativas e menor valor dado às "comunidades de pesquisadores estudiosos"; isto solapa a pesquisa acadêmica como um bem público e como parte das "obras do espírito para todos".

Ademais, a pesquisa torna-se mais e mais dominada pelos fins econômicos: em vez de se perguntar se ela faz nosso conhecimento do mundo avançar ou se proporciona algum bem público, ela está, cada vez mais, regida por interesses corporativos e comerciais e pelos objetivos dos setores produtivos. Ideias e produtos resultantes de pesquisas são validados e avaliados "por sua capacidade em atrair financiamento externo enquanto desenvolvem fortes laços com os poderes corporativos" (Giroux, 2010, p. 187). A produção de conhecimento também é um meio de promoção e de manutenção do emprego e, assim, parte dos anseios do trabalho assalariado e das promoções na carreira; "o valor da informação e do conhecimento como um bem público para o progresso intelectual e social é secundário em face do principal, o aprimoramento da lógica econômica" (Lawson, Sanders e Smith, 2015, p. 15), seja para o pesquisador individual, seja para a instituição.

Mecanização

À medida que as universidades vão sendo dominadas pelos mecanismos de mercado, os processos sociais orgânicos são transformados em processos codificados, mecânicos. No contexto do neoliberalismo, as coisas são moldadas em termos quantificáveis e avaliadas em termos de eficiência baseada no modelo entrada-saída e da maximização dos lucros. Devido a este enfoque crescente sobre a eficiência, os sistemas de gestão compartilhada são eclipsados pelos modelos mais hierárquicos, comercialmente orientados.

No passado, os gestores normalmente eram acadêmicos [professores], mas um número cada vez maior de universidades passou a contratar administradores com experiência de gestão cujo enfoque é sobre a "eficiência" e com vistas a fazer a instituição mais "competitiva". Isto se dá porque "a redefinição dos problemas educacionais como problemas econômicos retira a necessidade daqueles que têm conhecimento em educação como membros importantes do processo de tomada de decisão" (Saunders, 2010, p. 59). Ademais, o direcionamento para o mercado e para a competição "levou os administradores a gerenciarem as universidades cada vez mais com base nos números" (Busch, 2017, pp. 43-44). Currículos, professores e informação são transformados em partes de uma engrenagem (Giroux, 2014, p. 36). Medidores econômicos puramente instrumentais são utilizados para avaliar as universidades, e termos como "eficiência" e "sustentabilidade" são a tônica do programa de gestão acadêmica, da carga horária do curso e da reestruturação dos departamentos acadêmicos. Por exemplo, o "desempenho" de um departamento/curso é medido pelo número de egressos, pelo número de estudantes ensinados e pelos resultados acadêmicos (publicações ou citações, patentes ou bolsas obtidas pelo departamento/curso). As informações sobre a "eficiência" da universidade em utilizar recursos do Estado, a taxa de formação de estudantes, o tempo necessário para se integralizar o currículo e os salários dos recém-egressos frequentemente são utilizados para determinar a posição no ranking podem ser traduzidas em recompensas ou sanções financeiras para determinados departamentos acadêmicos ou instituições.

O neoliberalismo também nos força a assumir que em todas as organizações, inclusive nas faculdades e universidades, há indivíduos que ou fazem apenas o mínimo para garantir o pagamento de seus salários, ou se envolvem em atividades que estão, em larga medida, distantes dos objetivos das universidades. Uma vez que os indivíduos investem seu capital humano apenas no que é necessário, simplesmente com vistas a maximizar seus objetivos pessoais e não aqueles do empregador, isto cria um "risco moral" (Busch, 2017, p. 19). A "solução" do problema é o aumento do gerenciamento e da vigilância na forma de auditorias, revisões dos programas dos departamentais/cursos, medidas de desempenho e mecanismos de autoavaliação. A fim de aprimorar os resultados financeiros, a eficiência e a transparência, os administradores são instados a amealhar uma enorme quantidade de dados sobre a "produtividade" do corpo docente da universidade. A retórica que enfatiza "resultados financeiros" requer que o corpo docente forneça documentação comprobatória de sua "produtividade" por meio de normas e medidas estabelecidas por seus "gerentes". Uma vez que precisam fornecer muito frequentemente a prova de seus esforços, o corpo docente, em alguma instância e algum momento, perde sua capacidade de determinar suas próprias regras comportamentais e suas tomadas de decisão acerca de como melhor utilizar seu tempo. Em vez disto, os docentes têm de dedicar uma proporção crescente de seu tempo a tarefas administrativas e a preencher uma aparentemente infinita quantidade de formulários com praticamente todos os aspectos de seu trabalho. Tais formulários "encorajam aqueles que são fiscalizados para pensar seu trabalho e agir de certos modos, a perceberem de que forma suas atividades ajustam-se (ou não) a determinadas regras implícitas nos formulários" (Busch, 2017, p. 36). A informação fornecida pelo corpo docente é então utilizada pelos administradores para conceder ou negar a sua permanência ou promoção, conceder ou rejeitar pagamentos por mérito e "fazer o que comumente se conhece como ajustes de mercado nos salários dos docentes" (Busch, 2017, pp. 38-39). Aqueles que se amoldam são recompensados, enquanto aqueles que remam contra a corrente ou que resistem a ser fiscalizados sofrem sanções ou são demitidos.

O resultado é que faculdades e universidades são cada vez mais geridas pela retórica do livre mercado e pelas práticas intensivas e coercitivas de controle gerencial. Parece que "a ilusória solução para a crise fiscal na educação superior é monitorar, regular e reduzir os custos da produção intelectual, mas a fim de se fazer isto torna-se necessário um aparato administrativo sempre crescente e cada vez mais coercitivo" (Busch, 2017, p. 36). A tendência associada a isto inclui aumento no número de administradores, reorganização estrutural, a constante ameaça de cortes orçamentários, maior ênfase em publicidade e geração de negócios, mudanças baseadas em recompensa financeira por desempenho e no ranking de citações (Lorenz, 2012, p. 607). A gestão compartilhada entre o corpo docente e os administradores decresce e há muito poucas tentativas de se defender o corpo docente como um grupo de intelectuais que tem autonomia e poder. Quaisquer críticas às práticas centrais são interpretadas como falta de lealdade para com a instituição e, assim, consideradas como fundamentalmente subversivas (Lorenz, 2012, p. 610). Vistos como "desobedientes criadores de problemas", intelectuais com postura crítica estão em perigo real de terem sua estabilidade negada, de serem demitidos, publicamente detratados e colocados em listas negras, ou são relegados a atividades de meio-período que têm uma baixíssima remuneração (Giroux, 2014, p. 31). Ao mesmo tempo, há gordas recompensas associadas à submissão e à conformidade.

Falsa consciência

No contexto da universidade neoliberal, as/os sujeitas/os experimentam uma transformação no conjunto de seus desejos – incluindo desejos instrumentais e não instrumentais – em um conjunto rígido de desejos totalmente instrumentais cuja estrutura espelha os objetivos da instituição que são completamente instrumentais e externamente impostos. O que antes constituía uma estrutura dinâmica de emolduramentos afetivos livremente reunidos é substituída por um rígido conjunto de valores e normas cultivadas pela instituição. Identidades, desejos e modos de subjetividade são moldados de acordo com valores, necessidades e relações de mercado (Giroux, 2014, p. 15).

As/os estudantes aprendem que seu destino é apenas uma questão de responsabilidade individual, e são ensinadas/os a adotar a autopromoção e a hipercompetitividade; a importância dos laços sociais e do raciocínio coletivo começa a se erodida e sobra pouco, ou mesmo nada, espaço para compaixão, empatia ou considerações éticas não egoístas. Enquanto estudantes são naturalmente curiosas/os e querem aprender coisas novas, os valores neoliberais deturpam esse amor natural pelo aprendizado. As/os estudantes são encorajadas/os a verem a educação universitária como um simples meio para se atingir um fim voltado para o capitalismo: conseguir um emprego no grande sistema econômico capitalista que lhes garantirá uma "boa vida". De modo semelhante, o corpo docente, que anteriormente dava valor à pesquisa por si mesma, como intrinsecamente valiosa, começa a considerá-la apenas como um meio de garantir a segurança no emprego, a promoção na carreira, o status profissional. A remuneração de acordo com o desempenho substitui a satisfação interior e o desejo de contribuir com seu campo de investigação em nome de um sistema de recompensas voltadas para fora e uma visível necessidade de competir.

Como resultado disso tudo, as/os sujeitas/os que participam das instituições de educação superior neoliberais gradativamente começam a acreditar, falsamente, que o conjunto de desejos impostos de fora, rígidos, estáticos que é incentivado é-lhes próprio e passam a desenvolver uma falsa consciência de serem fontes de sua ação quando estão sendo, de fato, manipulados exteriormente por esses desejos. Em outros termos, começam a "comprar" esse novo conjunto de emolduramentos afetivos cultivados pela faculdade e pela universidade que se torna totalmente normalizado – é assim que as coisas são. Os hábitos mentais e de atenção da/o sujeita/o tornam-se parte do problema. Nos estabelecimentos educacionais, este tipo de "invasão mental" torna-se especialmente problemático dado que as/os próprias/os sujeitas/os, cujas habilidades de pensamento crítico precisam questionar, criticar e desafiar o que está acontecendo, "são elas/eles mesmas/os os 'alvos' – e, ao fim e ao cabo, os 'produtos' – dessas influências formativas" (Slaby, 2016b, p. 11). Isto resulta em que o espaço para a autocrítica dos integrantes da educação superior encolhe drasticamente e pode, inclusive, desaparecer totalmente. A própria universidade, em vez de defender a importância da educação para uma cidadania engajada, corre o risco de se tornar um "baluarte ideológico dos valores, interesses e práticas corporativos" (Giroux, 2010, p. 189), que cultiva hábitos mentais necessários para a manutenção do mercado.

Entre os professores, há uma tendência a aceitar e adotar a visão de que a universidade é, primeira e primariamente, um lugar onde se preparam estudantes para se tornarem competitivos no mercado de trabalho global. Muitos também acabaram por acreditar que as mensurações econométricas e os modelos quantitativos de avaliação refletem verdadeiramente a qualidade da pesquisa, e que o propósito principal da educação é ajudar a conseguir um emprego, assim, as áreas que não preparam diretamente as/os estudantes para determinadas profissões (por exemplo, os cursos voltados para as humanidades) têm menos valor. Fala-se, sem pestanejar, de "mercado" e de escolas "competidoras", e, de modo irrefletido, consideram-se as/os estudantes como consumidoras/es cuja satisfação tem de ser incentivada a todo momento. E como "devem obediência aos interesses corporativos, à construção de suas carreiras e aos discursos insulares que acompanham o conhecimento especializado" muitos professores sentem-se à vontade nessa universidade baseada no modelo das corporações e com os novos modos de gerência neoliberal (Giroux, 2014, p. 17).

Entre os estudantes há um perigo sério, pois a ideologia neoliberal cria "um tipo de amnésia social que elimina o pensamento crítico, a análise histórica e qualquer compreensão das relações sistêmicas mais amplas" (Giroux, 2014, p. 2). Centrando-se na maximização do seu capital humano e na abordagem custo-benefício para sua formação, as/os estudantes começam a perder a capacidade de "imaginar um modo de subjetividade diferente e mais crítico" ou a verem o mundo de outra forma (Giroux, 2014, p. 14). Na medida em que a "melhor manobra" do neoliberalismo é "convencer as pessoas a permanecerem presas ao conjunto de ideologias, valores, modelos administrativos e políticas que geram imensos sofrimentos e dificuldades" (Giroux, 2014, p. 2), tal ideologia faz com que as/os estudantes desafiem esses emolduramentos afetivos enraizados que são nocivos ao seu bem-estar geral.

 

6. Conclusão

Em vez de incentivar o diálogo colaborativo e o pensamento crítico, o funcionamento da universidade neoliberal normalmente deforma o pensamento e o sentimento das pessoas, levando-as a considerarem o conhecimento e a educação unicamente em termos restritivos, redutivistas e puramente instrumentais. À medida que as pessoas passam a configurar as coisas do modo como a universidade neoliberal explícita ou implicitamente exige, são alijadas de algumas de suas necessidades humanas mais básicas e profundas e podem começar a odiar aquilo que costumavam amar. Aristóteles defendia que todos os animais racionais, isto é, todos os seres humanos, desejam conhecer. Contudo, sob a influência do neoliberalismo, muitas/os estudantes são apartadas/os de seu amor natural pelo aprendizado e de seu desejo inato de compreender a si mesmas/os e a seu mundo. Estudantes que veem sua educação como um bem público-privado e extremamente caro, e que encaram seus cursos como um mero meio de conseguir um trabalho que lhes pague um salário decente, podem tornar-se insatisfeitos com o processo de aprendizagem. Como atores econômicos racionais, as/os estudantes alteram seus objetivos "daquilo que era em grande medida intrínseco, como desenvolver uma filosofia de vida que seja significativa, para objetivos extrínsecos, incluindo aí o sucesso financeiro" (Saunders, 2010, p. 54). Isto resulta na perda da curiosidade intelectual e na diminuição do entusiasmo pela aprendizagem. Enquanto isso, o corpo docente vivencia um cinismo crescente naquilo que considera como ridículas tarefas de fiscalização. O próprio modo de lidar com as novas medidas de desempenho torna-se um tipo de desempenho, e dançar de acordo com a música dessas medidas de desempenho satisfatório torna-se uma estratégia proveitosa e lucrativa num cenário no qual apenas as aparências importam (Lorenz, 2012, p. 620). A introdução do controle coercitivo que permanente sobre o corpo docente também instaura uma cultura de desconfiança permanente e uma atmosfera de competição de "soma zero". Aqueles capazes de sobreviver no sistema, em algum momento, tornam-se alienados de seus desejos mais profundos de conexão social, cooperação e colaboração; à medida que mais e mais tarefas são vistas simplesmente como meios de se atingir algum fim econômico, as motivações intrínsecas dos professores de adquirir sabedoria e conhecimento são, de modo crescente, substituídas por recompensas extrínsecas como, por exemplo, promoção na carreira, estabilidade e recompensa financeira. Isto acarreta uma crescente desmoralização, a perda de motivação e reduzida satisfação com o trabalho.

Em suma, a influência da ideologia neoliberal e a comoditização da educação superior sistematicamente cultivam e sustentam hábitos mentais que solapam o florescimento humano. O exemplo da educação superior nos Estados Unidos auxilia-nos a ilustrar como a ideologia predominante às vezes constitui os padrões de pensamento, sentimento e comportamento das pessoas de modos prejudiciais.

 

7. Referências

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Endereço para correspondência
Michelle Maiese
E-mail: maiesemi@emmanuel.edu

 

 

* Departamento de Filosofia da Emmanuel College de Boston (Massachusetts, Estados Unidos).
1 Traduzido pelo Prof. Dr. Luizir de Oliveira, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Piauí.
2 Teóricos como O'Regan e Noë (2001) elaboraram uma teoria alternativa do enativismo que se centra no modo como a percepção baseia-se no conhecimento das contingências sensório-motoras. Contudo, neste artigo, meu enfoque é primariamente voltado para o que alguns teóricos chamam de enativismo "autopoiético" ou "autônomo".
3 Ao longo de todo o texto, a autora utiliza sempre o pronome feminino. Como em português o substantivo sujeito/a admite os dois gêneros, optei por deixar sempre essa duplicidade a fim de deixar mais clara a ênfase da autora no feminino. (Nota da tradução).
4 Trata-se de um termo difícil de se traduzir. Possui a ideia de encenação, representação, realização, constituição, mas também tem uma conotação jurídica, significando algo com força de lei, um decreto ou alguma coisa que tem de ser obedecida. Assim, optei por deixar em inglês, aliás como tem sido utilizado em nosso país. Neste contexto, nós encenamos nossos papéis sociais como algo inevitável, como se houvesse uma lei ou decreto que nos forçasse a tanto. Ademais, como se trata de uma relação intersubjetiva, perde-se a conotação depreciativa, digamos, pois todos estão participando, ao mesmo tempo, do processo. Para mais detalhes, cf. Cassorla, Roosevelt M. S. (2013), "Afinal, o que é esse tal de enactment?" Jornal de psicanálise, 46(85). Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352013000200017>. Acesso em jul. 2018. (Nota da Tradução)
5 Ver, por exemplo, Wikipedia, "Collective Intelligence". Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Collective_intelligence>. Acesso em jul. 2018.

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