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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.20 no.1 São Paulo enero./jun. 2018
DOSSIÊ
O instinto de morte e o "além do princípio do prazer": um diálogo entre Sabina Spielrein e Gilles Deleuze
Death instinct and "beyond the pleasure principle": a discussion between Sabina Spielrein and Gilles Deleuze
Aline Sanches*
Universidade Estadual de Maringá
RESUMO
Em um artigo de 1912, Spielrein apresenta ideias que se tornarão fundamentais para Freud a partir de 1920: o instinto de morte e a suposição de que haveria um funcionamento psíquico mais primitivo do que aquele regido pelo princípio do prazer. Já no final dos anos 1960, o filósofo Deleuze apoia-se nos argumentos de Freud, particularmente no texto Além do princípio de prazer (1920), para conceber o instinto de morte como princípio transcendental. O objetivo deste artigo é aproximar estes dois autores, Spielrein e Deleuze, que se conectam por meio do conceito de instinto de morte, justamente no ponto em que mais parecem se afastar das concepções freudianas. Apesar de desenvolverem suas ideias em diálogo com Freud, tanto Spielrein como Deleuze divergem dele ao insistirem na proposição de um inconsciente impessoal e na dissolução do eu como fundamento da criação.
Palavras-chave: instinto de morte; Spielrein; Deleuze; princípio de prazer; devir.
ABSTRACT
In an article of 1912, Spielrein presents ideas that will become fundamental to Freud in 1920: the death instinct and the assumption that there would be a more primitive psychic operation than the one governed by the pleasure principle. In the late 1960s, the philosopher Deleuze relies on Freud's arguments (more specifically on the 1920's essay Beyond the Pleasure Principle) to conceive the death instinct as a transcendental principle. The aim of this article is to bring together Spielrein and Deleuze, who are connected through the concept of the death instinct precisely at the point where they seem to most distance themselves from Freudian conceptions. Although they develop their ideas in dialogue with Freud, both Spielrein and Deleuze diverge from him by insisting on the proposition of an impersonal unconscious and on the dissolution of the self as the foundation of creation.
Keywords: death instinct; Spielrein; Deleuze; pleasure principle; come-into-being.
1. Introdução
No texto "A destruição como origem do devir" (1912), Sabina Spielrein concebe a existência de um "instinto de morte" (Todesinstinkt) no funcionamento psíquico. Uma análise detalhada desse texto de Spielrein revela que outras ideias suas se aproximam de aspectos fundamentais da teoria formulada por Freud a partir da publicação de Além do princípio de prazer (1920), como a suposição de que haveria um funcionamento psíquico mais primitivo do que aquele regido pelo princípio do prazer.
Considerado um de seus textos mais difíceis e controversos, Além do princípio de prazer (1920/2010) foi responsável por uma grande reviravolta na obra de Freud, sendo alvo de inúmeras interpretações posteriores. O filósofo Deleuze (1967) o reconhece como a maior obra-prima de Freud, nele se inspirando para desenvolver seu próprio conceito de inconsciente transcendental. Curiosamente, as perspectivas teóricas indicadas por Deleuze a partir deste texto freudiano aproximam-se bastante das considerações que Spielrein tece em defesa do conceito de instinto de morte. O objetivo deste artigo é aproximar estes dois autores, Spielrein e Deleuze, que se conectam por meio do conceito de instinto de morte justamente no ponto em que mais parecem se afastar das concepções freudianas, ao insistirem na elaboração de um inconsciente impessoal e na dissolução do eu como fundamento da criação.
Podemos começar contextualizando o momento em que se deu a produção intelectual de Spielrein, que aos 19 anos fora internada em um hospital psiquiátrico na Suíça com graves sintomas histéricos1. Tratada por Jung e envolvendo-se amorosamente com ele alguns anos depois – aliás, Spielrein costuma ser mais conhecida por isso do que pela sua inteligência e atuação no movimento psicanalítico –, não somente recupera-se de sua doença como começa a se interessar academicamente pela loucura e pela psicanálise, formando-se em medicina aos 26 anos. Spielrein defende sua tese em 1911 que é publicada, neste mesmo ano, na revista oficial do movimento psicanalítico, o Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen, intitulada "Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia" (1911). Nessa mesma edição, Freud publica seu texto sobre o caso Schreber, e seria interessante, em um trabalho futuro, analisar as convergências e divergências entre estes dois textos que visam à interpretação psicanalítica do delírio e à compreensão da demência precoce. Freud fica bastante impressionado com a tese de Spielrein, a ponto de convidá-la para integrar a Sociedade Psicanalítica de Viena. Ainda neste mesmo ano de 1911, Spielrein escreve o ensaio em que sugere o conceito de instinto de morte.
Seu ponto de partida é questionar-se por que a pulsão de procriação traz consigo sentimentos negativos – tais como angústia e aversão – ao lado de sentimentos positivos, mostrando que uma série de autores tem se ocupado com esta relação entre atração sexual e repulsa. Alguns autores, como Freud, encontram respostas na moral e na repressão, associando os desejos sexuais apenas aos afetos positivos, enquanto os afetos negativos derivariam da repressão. Outros, como Stekel, reconhecem uma espantosa associação entre desejo sexual e representações de morte, mas entendem a presença destas últimas como símbolo da decadência moral. É Jung quem sugere algo próximo da hipótese original que Spielrein irá desenvolver. Em As metamorfoses e símbolos da libido, Jung (1911) menciona um "outro lado" da libido, um "elemento destruidor da força criadora"2, já que o fato de "sermos fecundos significa que destruímos a nós mesmos".
Este texto de Jung também havia sido publicado no mesmo Jahrbuch de 1911 citado anteriormente. E este é um texto que irá se tornar muito célebre, justamente por marcar a ruptura teórica com Freud, ao sugerir dissociar a libido da sexualidade e o inconsciente do indivíduo. Portanto, estamos em um contexto em que as relações entre Freud e Jung estão bastante estremecidas, já se vislumbrando no horizonte o fim iminente desta parceria anteriormente tão fecunda. Ao mesmo tempo, dá-se uma grande aproximação entre Spielrein e Freud. Conhecer a fundo este contexto nos parece importante, pois nos leva a indagar sobre este posicionamento de Spielrein entre Jung e Freud, tanto pessoalmente quanto teoricamente. Nos anos que se seguem, Spielrein endereça, a ambos, cartas em que faz várias tentativas de reaproximá-los3. Será que, de algum modo, essa tentativa de reaproximação também se expressa em seu legado intelectual? O texto "A destruição como causa do devir" retoma várias teses freudianas, ao mesmo tempo em que é considerado por ela como o "filho simbólico" da sua relação com Jung (Carotenuto, 1984, p. 115).
Estas questões são colocadas não no intuito de desconsiderar a originalidade de Spielrein, como se sua produção fosse mera síntese ou reflexo do brilho destes dois homens; esta mulher de origem rica e culta, fluente em várias línguas desde criança e com sólida formação musical, tem seu próprio brilho, e estudos têm demonstrado cada vez mais sua influência não só no movimento psicanalítico, mas também na psicologia de Piaget e Vygotsky4. Mas é possível que, ao explorarmos o contexto teórico em que Spielrein desenvolve sua concepção do instinto de morte, dialogando tanto com Freud quanto com Jung, encontremos dados interessantes para compreender as ressonâncias com o pensamento deleuzeano algumas décadas depois. É possível que Deleuze, em sua leitura crítica de Freud, tenha reavivado questões não muito diferentes daquelas com as quais Jung já confrontava a psicanálise, elaborando, contudo, um percurso filosófico distinto deste último e aparentemente em bastante continuidade com as hipóteses de Spielrein.
Vamos então ao texto de Spielrein, que desenvolverá a tese de que os sentimentos de perigo presentes na atividade sexual – "a pessoa sente o inimigo em si mesmo" – seriam advindos dos "componentes destrutivos do instinto sexual", o instinto de morte (Spielrein, 1912, pp. 230-232).
2. Spielrein: biologia, psicologia e mitologia
A argumentação de que é necessário supor um componente destrutivo no instinto sexual apoia-se inicialmente em uma reflexão sobre "fatos biológicos". Na reprodução, as células unitárias se fundem e, consequentemente, são destruídas dando origem a uma nova vida. Existem espécies inferiores que morrem após se reproduzirem; já em seres mais complexos, somente uma parte do organismo é destruída – as células germinativas –, embora esta parte represente o organismo inteiro. A fusão do componente masculino com o feminino promove a reorganização e assunção de uma nova forma. Nesse caso, diz Spielrein:
É improvável que o indivíduo não tenha no mínimo uma suspeita, traduzida em afetos correspondentes, sobre a existência desses processos de destruição e reconstrução em seu organismo. A angústia e aversão, presentes na atividade sexual, são afetos que correspondem aos componentes destrutivos do instinto sexual. (Spielrein, 1912, p. 232)
Em seguida, alguns "fatos psicológicos" também são apresentados para apoiar seu argumento em defesa do instinto de morte. Primeiramente, ela retoma a tese freudiana de que, do ponto de vista psíquico, não vivemos nada no tempo presente. Isto significa que somente somos afetados por um acontecimento presente na medida em que este desperta conteúdos e experiências vividas anteriormente. Para ilustrar esta relação do presente com o passado, e da consciência com o inconsciente, são mencionadas as experiências realizadas por Silberer, que demonstraram como um pensamento abstrato inconsciente torna-se acessível à consciência por meio de imagens e símbolos.
A referência que Spielrein faz a Silberer neste texto é curiosa, na medida em que Freud transcreverá essas mesmas experiências em seus acréscimos à Interpretação dos sonhos (1900), realizados em 19145. Freud considerava que essas experiências ilustravam sua teoria dos sonhos, na medida em que "visões" e imagens irrompem no pensamento manifesto em substituição a um pensamento latente abstrato. Assim, tanto Spielrein quanto Freud visam demonstrar o princípio de que há duas correntes paralelas e simultâneas de pensamento, presente e passado, consciente e inconsciente. Tal como ocorre nos sonhos, o pensamento consciente apresenta, por meio de símbolos e "imagens plásticas pictóricas", sua assimilação da corrente inconsciente atrelada ao passado. Símbolos e imagens são substitutos de pensamentos inconscientes abstratos e condensados, que somente são compreensíveis neste processo de assimilação do passado pelo presente.
E, segundo a psicanálise freudiana, é pela via do princípio de prazer e das vivências de satisfação que se dá a relação do passado com o presente. Lembramos que no mesmo Jahrbuch de 1911 supracitado, Freud publica seu artigo intitulado "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico", no qual, "pela primeira vez, após um intervalo de mais de dez anos, novamente empreendeu o exame das hipóteses teóricas gerais que se achavam implícitas em suas descobertas clínicas" (Strachey, 1996, p. 233), isto é, o domínio irrestrito do princípio de prazer sobre a vida psíquica, mesmo quando este se desdobra em princípio de realidade.
Spielrein está de acordo com Freud quando este atribui ao princípio de prazer a base de todas as nossas produções psíquicas e a força motriz de nosso Eu consciente e inconsciente. Mas é na maneira de conceber o passado a ser assimilado pelo presente que Spielrein começa a se distanciar de Freud e do princípio de prazer: enquanto, para Freud, o passado remonta a experiências vividas na infância, para ela, "a linha de pensamentos adaptadas ao presente é assimilada no inconsciente às 'vivências' anteriores de várias gerações", ao passado filogenético (Spielrein, 1912, p. 234). Spielrein defende então a hipótese de que talvez algumas "experiências primitivas desconhecidas", que povoam nosso inconsciente e constituem nosso passado, extrapolam a psique individual, o que a leva a enunciar a seguinte questão: seria a vida psíquica limitada ao Eu e às experiências de prazer a ele relacionadas? Diferentemente do Freud desta época, que "não estuda como é o sentimento de prazer ou como ele surge" (Spielrein, 1912, p. 263), e que estrutura a teoria psicanalítica a partir deste estágio em que o princípio de prazer já foi estabelecido, Spielrein dirige suas investigações para além do princípio de prazer.
Freud tem razão quando supõe o anseio pela obtenção do prazer e pela supressão do desprazer como base de todas as produções psíquicas. O prazer remonta a fontes infantis. Resta, contudo, a questão se toda nossa vida psíquica consiste nessa vida do Eu. Afinal, não existem forças pulsionais em nós que colocam nosso conteúdo psíquico em movimento sem se preocuparem com o bem-estar e o sofrimento do Eu? Será que as pulsões básicas conhecidas, a pulsão de autoconservação e de conservação da espécie, também significam para toda vida psíquica aquilo que significam para a vida do Eu, ou seja, a fonte do prazer e do desprazer? Decididamente tenho de defender a visão de que a psique do Eu, inclusive a inconsciente, é guiada por moções que se encontram ainda mais profundas e não se ocupam nem um pouco com nossas reações emocionais às demandas impostas por elas. (Spielrein, 1912, pp. 236-237)
Por esta citação, vemos que Spielrein delineia de modo bastante pertinente as limitações do princípio de prazer na compreensão dos processos psíquicos. Mais ainda, ela indica as limitações da psicanálise quando esta centra sua compreensão do inconsciente apenas no campo das experiências individuais. Na sequência de seus questionamentos, ainda serão sugeridos outros temas caros a Freud posteriormente, quando ele próprio se ocupará em rever sua teoria pulsional: a compreensão do Eu como instância inconsciente e como objeto da vida psíquica – tal como no narcisismo – e a compreensão do masoquismo original. O Eu aparece identificado à capacidade de extrair prazer das situações mesmo quando estas atentam contra a pulsão de autoconservação, e em conflito com essa força maior que é indiferente ao princípio de prazer:
[…] em nosso âmago há algo que, por mais paradoxal que isso possa soar a priori, busca o autoprejuízo, uma vez que o Eu reage a ele com prazer. O desejo do autoprejuízo, o regozijo pela dor é, no entanto, completamente incompreensível se considerarmos apenas a vida do Eu, o qual só quer ter prazer. (Spielrein, 1912, p. 237)
Logo, vemos que o Eu não pode ser identificado às pulsões de autoconservação, como Freud tentava sustentar neste período. Na lógica da primeira dualidade pulsional, Freud explica o conflito psíquico por meio da oposição entre a conservação da espécie (pulsão sexual) e a conservação do indivíduo (pulsão do Eu). Para Freud, o Eu seria um conjunto de representações que se opõe às pulsões sexuais, tal como havia sido enunciado, pela primeira vez, no artigo de 1910 intitulado "Concepção psicanalítica do transtorno psicogênico da visão". Para Spielrein, o Eu ocupa uma outra posição neste conflito, sendo considerado como o próprio objeto desse jogo de forças entre o indivíduo e a espécie; não se trata, portanto, do Eu opor-se às pulsões sexuais, mas de se opor a essa força que impele à sua própria dissolução, a essa força de fusão e de indiferenciação: "cada partícula de nosso ser deseja voltar a se transformar em sua fonte original, a partir da qual então o novo devir volta a emergir" (Spielrein, 1912, p. 235).
Trata-se então de uma força pulsional que não busca sua resolução na dinâmica objetal do princípio de prazer, mas no retorno a um estado primevo não diferenciado. A mitologia começa então a aparecer como o terceiro pilar de sua argumentação, ao lado da biologia e da psicologia. Em várias mitologias e culturas, encontram-se associadas as imagens da mãe e do mar; tais imagens seriam os representantes simbólicos desta força que impele à não diferenciação e do próprio inconsciente, este "algo eternamente sendo":
A imagem do mar (mãe) é ao mesmo tempo a imagem das profundezas do inconsciente, o qual vive concomitantemente no presente, passado e futuro, ou seja, fora do tempo, para o qual todos os lugares se fundem (transformando-se no lugar da origem) e para o qual os opostos têm o mesmo significado. Nessa mãe primeva (o inconsciente) toda representação diferenciada dela quer se desvanecer, ou seja, ela quer retornar ao seu estado não diferenciado. (Spielrein, 1912, p. 234)
A demência precoce é o paradigma clínico desta concepção. Na análise detalhada dos conteúdos delirantes de sua paciente, Spielrein (1911) encontra, assim como Freud, conteúdos incestuosos e desejos sexuais reprimidos como núcleo central da doença. Mas estes seriam apenas símbolos de vivências filogenéticas impessoais, em que a repugnância pela sexualidade se justifica pela simbologia de morte a qual está intrinsecamente associada.
Na esquizofrenia, observa-se que o Eu, enfraquecido em sua atividade, revela que não é uma unidade, mas uma soma de complexos que disputam a prioridade entre si: "o âmago de nossa psique não conhece o Eu, mas apenas o seu somatório, o nós" (Spielrein, 1912, p. 238). Logo, o conflito inconsciente fundamental não se daria entre libido do Eu e libido objetal, como defende Freud, mas "entre os dois fluxos antagônicos da psique da espécie e da psique do Eu" (Spielrein, 1912, p. 240), entre uma força que impele à impessoalidade e diluição, e uma força oposta, defensiva, de conservação do indivíduo. A esquizofrenia é um estado que encarna esta batalha, em que o Eu ameaçado tenta se fixar transferencialmente em qualquer associação adjacente. Como consequência da falta de atividade do Eu, as imagens egoicas são transformadas em imagens objetivadas, tal como sua paciente que dizia "A terra foi perfurada", em vez de "eu fui penetrada"; "A terra tornou-se suja com urina", em vez de "eu me tornei suja com o ato sexual" (Spielrein, 1912, p. 239).
Haveria então uma psique pessoal e uma psique mais profunda, coletiva. A psique pessoal, identificada ao Eu consciente e inconsciente, seria governada pelo princípio de prazer, em um circuito pulsional fundado sobretudo em experiências objetais do passado individual. O princípio de prazer é coerente com o instinto de autoconservação, em sua função de proteger o indivíduo da dor e da destruição física e psíquica. Contudo, o inconsciente não conteria apenas experiências do passado individual, mas também seria formado pelas experiências de inúmeras gerações. Tal psique coletiva teria primazia sobre a psique pessoal e obedeceria ao instinto de conservação da espécie, sendo indiferente ao sofrimento ou gozo do indivíduo. Desta perspectiva, deixa de ser tão incompreensível o liame entre prazer e dor encontrado em manifestações, patológicas ou não, em que há desejo de humilhação, autoagressões ou capacidade de extrair o gozo do sofrimento, pois entende-se que o ser humano não deseja unicamente o prazer, na medida em que é impelido também por desejos coletivos e impessoais. Estes desejos equivaleriam ao desejo de transformação embutido no instinto reprodutivo, que, em última instância, atende aos imperativos do instinto de conservação da espécie.
Se a esquizofrenia demonstra a dissolução do Eu na batalha entre a psique coletiva e a psique do Eu, as produções artísticas atestam um outro resultado, na medida em que, diante da dissolução, "a partícula do Eu submersa volta a emergir travestida de novas representações, mais rica do que nunca" (Spielrein, 1912, p. 242). Além da tendência conservadora do instinto, haveria uma força de transformação que exige uma dissolução do Eu para que este possa ressurgir "em uma nova forma, talvez mais bela" (Spielrein, 1912, p. 242).
3. Deleuze e o instinto de morte como princípio transcendental
Encontramos uma grande proximidade entre as teses defendidas por Spielrein em 1912 e algumas concepções do filósofo Deleuze desenvolvidas a partir de sua leitura de Além do princípio de prazer (Freud, 1920). No final dos anos 1960, Deleuze engaja-se em um debate com a psicanálise cujo ponto de partida é o tema do masoquismo e a sua compreensão do texto freudiano Além do princípio do prazer (1920) sob uma óptica transcendental. Deleuze critica a psicanálise por ainda sustentar uma concepção simplista da morte, como acontecimento empírico e restrita ao campo da objetividade e da pessoalidade: ao entender a morte apenas como retorno qualitativo ou quantitativo ao inanimado, ou seja, a morte reduzida ao modelo objetivo de uma matéria indiferenciada, a qual o vivente "retorna" e da qual não há um protótipo para o inconsciente, a psicanálise deixa de reconhecer o seu caráter de vivência subjetiva. Assim, enquanto Freud teria recusado dotar a morte de qualquer representação no inconsciente – embora o tenha feito no caso do nascimento e da castração – Deleuze quer fazer da morte um protótipo para designar a criação do absolutamente novo pelo inconsciente.
Assim, a morte não deve se referir ao desaparecimento da pessoa, algo que pode ser objetivamente representado como morte que "vem sempre de fora", mas apresenta uma outra face.
[…] designa o estado das diferenças livres quando elas já não estão submetidas à forma que lhe davam um Eu [Je], um eu [moi], quando elas se desenvolvem numa figura que exclui minha própria coerência da mesma maneira que a de uma identidade qualquer. Há sempre um "morre-se" mais profundo do que o "eu morro". (Deleuze, 1968, p. 167)
A morte refere-se a esta "potência interna que libera os elementos individuantes da forma do Eu [Je] ou da matéria do eu [moi] que os aprisionam" (Deleuze, 1968, p. 362). Freud (1920) já havia sugerido que o organismo quer morrer, mas morrer à sua maneira. Assim, "há uma inadequação necessária entre a morte como acontecimento empírico e a morte como 'instinto', como instância transcendental" (Deleuze, 1968, p. 362). A morte subjetiva é como uma fissura do Eu, que dissolve sua coerência assim como toda e qualquer identidade, em nome da afirmação do múltiplo.
Lembremos que Deleuze busca extrair da psicanálise alguns elementos para compor o seu próprio conceito filosófico de inconsciente, que não é mais um inconsciente psicológico e individual ou intersubjetivo, mas um inconsciente transcendental e impessoal. E toda a sua visada crítica à psicanálise vai de certa maneira orbitar em torno da ideia de que a psicanálise seria muito mais interessante e inovadora se não reduzisse a sua concepção de inconsciente a algo meramente psíquico, uma vez que o fundamento do inconsciente estaria além do psíquico, mas repousaria neste fundamento transcendental e impessoal que ele prefere chamar de instinto. Instinto de morte, pois se trata de uma força que ignora o Eu e o princípio de prazer (Deleuze, 1967, p. 114).
Deleuze (1967, pp. 109-114) demonstra que, com o texto Além do princípio de prazer, Freud penetra em uma reflexão propriamente filosófica e transcendental, já que se trata de uma investigação sobre o problema dos princípios, ou seja, de buscar responder o que submete a vida psíquica à dominação do princípio de prazer. Neste sentido, o funcionamento inconsciente passa a ser compreendido a partir de dois registros diferentes: independente ou submetido ao princípio do prazer; transcendental ou psicológico.
Deleuze (1967; 1968) retoma a noção freudiana de que há uma atividade de ligação e uma compulsão à repetição independentes do princípio de prazer para compor as suas "sínteses transcendentais do tempo". A repetição, concebida em sua positividade e não como repetição de algo prévio ou idêntico, seria uma síntese do tempo, pois é a partir desta "atividade de ligação" que o antes e o depois, o passado e o futuro, se constituem, e o prazer passa a ser buscado e a dor evitada. Isto mostra que a gênese do princípio de prazer se manifesta também como a outra face da imposição da temporalidade empírica no psíquico. Encontra-se aí o delineamento de uma questão filosófica importante, que diz respeito ao vínculo entre a repetição, a imposição do princípio de prazer e a imposição da temporalidade na vida psíquica. Afinal, é devido a uma certa organização temporal que a repetição passa a se manifestar em função de um prazer passado ou futuro.
O que seria, então, a repetição como "terrível força independente" do prazer e da temporalidade psicológica? É esta força que Deleuze chamará de instinto de morte, que também se apresentará como a forma pura do tempo. O tempo em sua forma pura são as sínteses transcendentais, ou seja, presente, passado e futuro antes que uma temporalidade psíquica e circular, organizada pelo princípio de prazer, se imponha. Trata-se de ideias apresentadas em Diferença e repetição (1968), que aqui serão expostas resumidamente.
A respeito do presente, estabelece-se que sub-repticiamente a este presente que vivenciamos, presente que sempre é situado em relação a uma memória do passado e a uma expectativa futura, presente que sempre é referenciado a um Eu que vive, sente e experimenta, ocorreriam sínteses passivas do presente em sua forma pura, ou seja, contrações de instantes que se sucedem uns aos outros com uma rapidez inconcebível, em perpétuo fluxo e movimento, e que são indiferentes ao Eu e a qualquer princípio organizador. Na verdade, é preciso entender que o Eu e o princípio de prazer se fabrica a partir daí, o que já se trataria de sínteses ativas assentadas sobre esta passividade fundamental. Das sínteses passivas de ligação emergem as sínteses ativas da memória e do entendimento, as faculdades da representação e da reflexão. É este momento constitutivo que sinaliza a passagem do além do princípio de prazer ao princípio de prazer.
Já em relação ao passado puro, Deleuze irá retomar as teses de Bergson a respeito da memória para dizer que, além deste passado-lembrança que acessamos por meio de nossa memória psicológica, haveria uma espécie de memória virtual coexistindo com o presente, um "passado que nunca passou", mas que diz respeito a uma totalidade indivisa, onipresente, que transcende os limites da individualidade e da pessoa. Espécie de memória ontológica subterrânea à individuação, anterior à diferenciação dos seres e que se impõe como um excesso virtual em relação à atualização no presente. Passado puro que se constitui de objetos virtuais parciais destacados da experiência, jamais totalizáveis e dispostos em articulações independentes do princípio de prazer e de realidade.
É neste sentido que Deleuze desenvolve as sínteses transcendentais do tempo, que se situam além do princípio do prazer e que são fundamentos do psíquico e da organização e atividade do Eu. Ou seja, trata-se de sínteses passivas impessoais que inevitavelmente são sobrepostas por sínteses ativas. Na primeira síntese, isto acontece quando o passado e o futuro se tornam desdobramentos psicológicos do presente puro, como lembrança de um objeto de satisfação passada e expectativa de reencontro do objeto no futuro. Na segunda síntese, o passado puro que coexiste virtualmente se atualiza, tornando-se um passado que passou, uma memória psicológica funcional.
Nota-se que o filósofo está colocando em questão o problema de como a pulsão articula-se ao objeto; afinal, segundo o princípio de prazer, a pulsão visa o objeto capaz de reproduzir uma satisfação anteriormente experimentada, assim como foge daquele que é ameaçador. Assim, Deleuze dedica-se à tarefa de elaborar o que seriam as sínteses do inconsciente além do princípio de prazer, por meio de um casamento bastante interessante entre as teorias psicanalíticas e a filosofia.
Em suas elaborações, o conceito de instinto de morte torna-se fundamental, em um sentido mais próximo do que foi sugerido por Spielrein do que por Freud. A terceira síntese do tempo, o futuro em sua forma pura, será chamada de instinto de morte, postulado necessário para que o funcionamento passivo e impessoal seja garantido, já que, como vimos, elas caminham inevitavelmente a um funcionamento ativado pelo princípio de prazer. Se as duas primeiras sínteses conduzem ao princípio do prazer e à atividade que se deixa referenciar por um Eu, a terceira síntese permite que algo sempre escape e trabalhe independentemente de qualquer organização, garantindo que nada se imponha como princípio infalível, fazendo todas as dimensões do tempo atuar em sua forma pura, passiva e transcendental. Na perspectiva de Deleuze, o instinto de morte impõe-se como resistência às sínteses ativas, impelindo ao seu funcionamento no modo passivo.
A síntese do futuro será chamada de instinto de morte porque "há uma experiência da morte que corresponde a esta terceira síntese" (Deleuze, 1968, p. 168). Ou seja, para entendermos o futuro como realmente a criação de algo novo e não como mera repetição de algo prévio, é preciso avançarmos na compreensão da morte que acompanha esse processo de produção do novo.
"A morte está presente no vivente, como experiência subjetiva e diferenciada provida de um protótipo." (Deleuze, 1968, p. 166.) Trata-se de reconhecer uma experiência de morte, que se relaciona com "engendrar o ato de pensar no próprio pensamento, talvez sob o efeito de uma violência" (Deleuze, 1968, p. 168). O filósofo insiste neste vínculo entre produção de pensamento e instinto de morte, a fim de retirar da concepção psicanalítica de morte este aspecto por demais simplista da materialidade e da pessoalidade.
Vemos então que nas mãos de Deleuze o instinto de morte torna-se "uma força de procura, uma força questionante e problematizante que se desenvolve num outro campo que não o da necessidade e da satisfação" (Deleuze, 1968, p. 158), que se desenvolve em um tempo puro e vazio, "fora dos eixos" e da figura do círculo. Aí estaria o princípio positivo originário da repetição, o movimento forçado que engendra o pensamento sob o efeito de uma violência, o fundamento criativo e transcendental do inconsciente a partir de onde a metapsicologia deveria ser reposicionada.
Tal concepção traz consequências imediatas para a concepção de inconsciente, pois já não se pode mais pensar os seus fenômenos a partir da "forma simples demais da oposição ou do conflito". Os próprios conflitos seriam resultantes de mecanismos diferenciais e expressões de uma instância mais profunda, a instância dos problemas e das questões:
É verdade que o inconsciente deseja e só faz desejar. Mas, ao mesmo tempo que o desejo encontra o princípio de sua diferença com relação à necessidade no objeto virtual, ele aparece não como uma potência de negação, nem como elemento de uma oposição, mas sobretudo como uma força de procura, uma força questionante e problematizante que se desenvolve num outro campo que não o da necessidade e da satisfação. As questões e os problemas não são atos especulativos que, por esta razão, permaneceriam totalmente provisórios e marcariam a ignorância momentânea de um sujeito empírico. São atos vivos, investindo as objetividades especiais do inconsciente, destinados a sobreviver ao estado provisório e parcial que, ao contrário, afeta as respostas e as soluções. […] Mesmo os conflitos de Édipo dependem, primeiramente, da questão da Esfinge. O nascimento e a morte, a diferença dos sexos são temas complexos de problemas antes de serem termos simples de oposições. (Deleuze, 1968, p. 158)
Deleuze observa que Jung já havia sugerido pensar o inconsciente pelo viés das questões e dos problemas, e sugere que sua querela com Freud talvez possa ser situada em torno de saber se o inconsciente pode ou não fazer outra coisa além de desejar6. Freud, por sua vez, tende a basear suas análises nas emoções regidas pela oposição e nos desejos emergentes nos conflitos, e não no confronto com tarefas ou problemas que forçam o pensamento: "Na verdade, não seria preciso perguntar antes se o desejo é somente uma força de oposição ou uma força inteiramente fundada na potência da questão?" (Deleuze, 1968, p.159, nota 18).
Pensar o inconsciente a partir de uma estrutura oposicional e conflitante seria um dos limites da psicanálise, que Deleuze pretende ultrapassar com a formulação de um inconsciente transcendental, questionante e problematizante.
Freud atribui ao inconsciente três ignorâncias: o Não, a Morte e o Tempo. E, todavia, trata-se apenas do tempo, de morte e de não no inconsciente. Quer dizer somente que eles são agidos sem serem representados? Mais ainda: o inconsciente ignora o não porque vive do (não-)ser dos problemas e das questões, mas não do não-ser do negativo, que afeta somente a consciência e suas representações. Ele ignora a morte porque toda representação da morte concerne ao aspecto inadequado, ao passo que o inconsciente apreende o avesso, descobre a outra face. Ele ignora o tempo porque nunca é subordinado aos conteúdos empíricos de um presente que passa na representação, mas opera as sínteses passivas de um tempo original. É a estas três sínteses como constitutivas do inconsciente que é preciso retornar. (Deleuze, 1968, p. 168; itálicos do autor)
Retornar a estas três sínteses do inconsciente, calcadas em uma diferença pura e uma repetição complexa, para delas extrair uma nova imagem para a filosofia e do que significa pensar. Este é o objetivo de Deleuze no final dos anos 1960, por meio de um fértil encontro entre a psicanálise e a filosofia. As sínteses do tempo são os três para-além do princípio de prazer onde se descobrem as forças que agem sob a representação do idêntico. Forças que não entram em oposição ou conflito, mas que alimentam o instinto de morte, ele próprio "uma força de procura, uma força questionante e problematizante que se desenvolve num outro campo que não o da necessidade e da satisfação" (Deleuze, 1968, p. 158). O instinto de morte torna-se, nas mãos de Deleuze, o princípio positivo da criação, aqui relacionada ao movimento forçado que engendra o pensamento sob o efeito de uma violência.
4. Considerações finais
À guisa de conclusão, cabe a questão: o que se pode extrair de interessante deste diálogo entre autores como Spielrein e Deleuze em torno do conceito de instinto de morte? De certo modo, vemos que, nestes autores, trata-se de situar o instinto de morte como força de dissolução do Eu, indiferente ao princípio do prazer e à individualidade. O que os impele, cada um à sua maneira, a considerar a ação de forças instintivas que atuam além da esfera pessoal e das experiências individuais. Assim, para além de um fundamento meramente biológico, este instinto articula-se com o psicológico e com o mitológico, no caso de Spielrein, ou com sínteses transcendentais do tempo, no caso de Deleuze. Em todo caso, ambos concordam que há uma tendência de autoconservação em todo organismo, relacionada à própria instância psíquica do Eu; mas a criação exige contrariar esta tendência, não para retornar ao inorganizado ou inorgânico, mas para possibilitar a emergência do novo, em organizações mais fluídas.
Observamos que tanto Spielrein como Deleuze dotam o instinto de morte de uma propriedade positiva, relacionando-o diretamente à criação e ao devir. Neste sentido, divergem significativamente da teoria freudiana, que propõe a pulsão de morte justamente para compreender um processo de fixidez e imutabilidade dos processos psíquicos, ou seja, a incapacidade de criar e de se transformar a partir das novas experiências, no contexto clínico da compulsão a repetição e do trauma. Contudo, as hipóteses acerca da positividade da pulsão de morte lançada por estes autores não deixam de ser pertinentes e merecedoras de maior consideração. Ao desvincular o instinto de morte do retorno ao inanimado e da morte biológica, abre-se a possibilidade de pensar clinicamente alguns estados de dessubjetivação e de despersonalização como um trabalho a favor da vida, em seus aspectos mais criadores que conservadores7 embora trazendo consigo os riscos da esquizofrenia.
5. Referências
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Deleuze, G. (1968). Différence et Répétition. Paris: PUF. (Ed. Bras.: Diferença e Repetição (L. B. L. Orlandi e R. Machado, Trads.). Rio de Janeiro: Graal, 2006). [ Links ]
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Strachey, J. (1996). Nota do editor inglês. In Sigmund Freud. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Zaltzman, N. A pulsão anarquista. São Paulo: Ed. Escuta, 1993. [ Links ]
Endereço para correspondência
Aline Sanches
E-mail: psicoaline@yahoo.com.br
* Universidade Estadual de Maringá. E-mail: psicoaline@yahoo.com.br.
1 Os dados biográficos que se seguem foram embasados em Carotenuto (1984) e Cromberg (2014).
2 No original: "die zerstörende Eigenschaft der schaffenden Kraf" (Jung, 1911, p. 218).
3 Em carta a Freud, provavelmente enviada em 15 de abril de 1914, Spielrein escreve: "Em todo caso, não o desprezo [Jung] de modo algum, mas o censurei muito, ou, se quiser, desagradou-me muito o seu comportamento em relação ao senhor, Professor, e a posição que assumiu face à associação. Não pude perdoar a Jung a sua atitude em face da associação, menos ainda do que pude fazê-lo no meu caso pessoal. […] Quero bem a Jung, apesar de todas as suas confusões, e gostaria de trazê-lo de volta ao nosso meio. O senhor e ele, Professor, realmente não sabem o quanto estão intimamente ligados, muito mais do que se possa pensar. Este devoto desejo não é uma traição à nossa associação! Todos sabem que me declaro pertencente à associação de Freud, e Jung não pode me perdoar por isso. Nada a fazer!" (Carotenuto, 1984, p. 189).
4 Spielrein foi analista de Piaget em 1921, e ambos faziam parte do mesmo Instituto de Psicologia Experimental e de Investigação do Desenvolvimento Infantil em Genebra, chefiado por Clarapède (Cromberg, 2014, pp. 40-41). Em 1923, Spielrein volta para a Rússia, onde posteriormente colabora nas investigações sobre pensamento e linguagem com Vygotsky e Luria (Cromberg, 2012).
5 Herbert Silberer (1882-1923) foi um jornalista que fazia parte da Sociedade Psicanalítica de Viena. Ele publicou um artigo no Jahrbuch de 1909, intitulado "Relatório sobre um método para provocar e observar certos fenômenos alucinatórios", em que relata o seguinte exercício: quando se encontrava extremamente cansado e sonolento, tentava resolver um problema filosófico altamente complexo, como por exemplo a crítica de Schopenhauer aos argumentos transcendentais de Kant. Ele verificou algo que apoia Freud em seus argumentos sobre o inconsciente, que "muitas vezes, um pensamento lhe escapava e em seu lugar surgia uma imagem, que ele então podia reconhecer como um substituto do pensamento" (Freud, 1900/1996, p. 376).
6 Em "As etapas da vida humana", Jung (1931) indica que a vida psíquica "não pode ser concebida senão em termos de problema", fruto da tensão entre o instinto e a inteligência. Ele apresenta o raciocínio de que os instintos se impõem sob a forma de problemas vitais, persistentes e insolúveis, que se esbarram nos limites da consciência inteligente. "Os grandes problemas da vida nunca são resolvidos de maneira definitiva e total. […] Parece-me que a significação e a finalidade de um problema não estão na sua solução, mas no fato de trabalharmos incessantemente sobre ele". Haveria, assim, uma forma de pensamento instintiva, um pensamento das imagens primordiais que são os "dados irracionais, condições a priori da imaginação que simplesmente existem", pensamento independente da consciência inteligente, mas que deve, contudo, se harmonizar com esta.
7 A psicanalista Nathalie Zaltzman constrói seu pensamento teórico-clínico considerando que a pulsão de morte tem entre seus componentes a pulsão anarquista, força que diz respeito a experiências-limites que visam, em última instância, afirmar a potência do Eu. Daí a falta de compromisso da pulsão de morte com os componentes eróticos, com a alteridade ou com a autoconservação. Esta autora propõe uma clínica centrada na pulsão de morte, que não busque negligenciá-la ou domá-la por meio de Eros (Zaltzman, 1993).