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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.20 no.2 São Paulo jul./dic. 2018
DOSSIÊ
A reconstrução do ambiente traumatogênico a partir da dinâmica transferencial, na clínica winnicottiana
The reconstruction of the traumatogenic environment, based on the dynamics of transference, in Winnicott's clinics
Alfredo Naffah Neto*
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
RESUMO
Este artigo parte da problemática das construções – ou reconstruções – em análise, tal qual postulada por Freud, para então retomá-la, à luz da clínica winnicottiana. Descreve, primeiramente, o tipo de reconstrução freudiana, exemplificando-a com a reconstrução da visão da cena primária, no caso do "homem dos lobos". Em seguida, entra na caracterização da reconstrução na clínica winnicottiana, para distingui-la daquela da clínica freudiana. Por meio de um caso clínico de Winnicott, ligado à fantasia de espancamento, procura evidenciar como a reconstrução do ambiente traumatogênico, apoiada no escrutínio do campo transferencial, pode ser uma ferramenta clínica terapeuticamente eficaz.
Palavras-chave: reconstrução; campo transferencial; ambiente traumatogênico; Freud; Winnicott.
ABSTRACT
This article starts from the problematization of the constructions – or reconstructions – in analysis, such as formulated by Freud, to re-define them in Winnicott's clinics. It describes, firstly, the type of Freudian reconstruction, exemplifying it with the reconstruction of the vision of the primary scene, in the clinical case of "the wolf man". Then it enters the characterization of the reconstruction in Winnicott's clinics, to distinguish it from the Freudian one. By means of a clinical case described by Winnicott, which involved beating fantasy, it tries to evince how the reconstruction of the traumatogenic environment, based on the scrutiny of the field of transference, may be a therapeutically effective clinical toy.
Keywords: reconstruction; field of transference; traumatogenic environment; Freud; Winnicott.
1. Construções em análise, da perspectiva freudiana
Foi tardiamente, num artigo de 1937 (Freud, 1937/1986), que Freud teceu considerações sobre a ferramenta clínica de construção – ou reconstrução – em análise. Eu o cito:
Todos sabemos que o analisado deve ser movido a recordar algo vivenciado e recalcado por ele, e as condições desse processo são tão interessantes, que a outra peça do trabalho, a operação do analista passa, em contrapartida, a um segundo plano. O analista não vivenciou nem recalcou nada que interesse; a sua tarefa não pode ser recordar algo. Em que consiste, pois, a sua tarefa? Tem de deduzir o esquecido a partir dos indícios que ele deixou por trás de si; melhor dizendo: tem de construí-lo. […] Seu trabalho de construção, ou se se prefere, de reconstrução, mostra várias coincidências com o do arqueólogo que exuma alguns domicílios ou alguns monumentos destruídos e sepultados. […] É inquestionável o direito de ambos de reconstruí(-los) por meio da completação e do encaixamento dos restos conservados. (Freud, 1937/1986, pp. 260-261)
Mais adiante, no mesmo artigo, procura, então diferenciar construção – ou reconstrução – daquilo que comumente designamos como interpretação. Eu o cito:
"Interpretação" se refere àquilo que se empreende com um elemento singular do material: uma ocorrência, um ato falho etc. É "construção", em contrapartida, apresentar ao analisado uma peça de sua pré-história esquecida, por exemplo, da seguinte maneira: "Você, até o seu ano x, considerou-se como o único e irrestrito possuidor da sua mãe. Veio, então, o segundo filho e, com ele, uma séria desilusão. A mãe abandonou você por um tempo e, depois, nunca voltou a se lhe consagrar com exclusividade. Seus sentimentos em relação à mãe tornaram-se ambivalentes, o pai ganhou um novo significado para você" etc. (Freud, 1937/1986, pp. 262-263)
Entretanto, poderíamos nos perguntar – e Freud o faz –, como se poderia ter certeza de que a construção é correta e de que não estamos, meramente, sugestionando o paciente. Sua resposta mais cabal é a de que, quando a construção é correta, ela produz trabalho psíquico, ela mobiliza associações no paciente. Além disso, ele nos diz:
Consideramos cada construção uma conjetura, que aguarda ser examinada, confirmada ou desacreditada. Não reclamamos para ela nenhuma autoridade, não demandamos do paciente um assentimento imediato, não discutimos com ele quando, de início, a contradiz. Em suma, comportamo-nos seguindo o arquétipo de um conhecido personagem de Nestroy, aquele mucamo que, para qualquer pergunta ou objeção, tem pronta essa única resposta: "No curso dos acontecimentos, tudo irá se aclarar". (Freud, 1937/1986, pp. 266-267)
Muito embora essas considerações sobre as reconstruções em análise sejam bastante tardias na obra freudiana, Freud já as utilizara muito tempo antes, em especial quando havia grandes dificuldades de recordação por parte do paciente, seja por resistência, seja porque tal acontecimento da sua história pregressa tinha ocorrido numa idade muito tenra, em que seria praticamente impossível a recordação, dado o desenvolvimento precário da criança. É o caso, por exemplo, da análise, bastante divulgada, do "homem dos lobos".
Nesse caso clínico, a partir dos sintomas do paciente e da recordação de um sonho de angústia, que ele teve em torno de quatro anos de idade, com lobos em cima de uma árvore, e das associações que se seguiram – nas quais aparecia um lobo de quem se tinha arrancado o rabo –, Freud reconstrói a visão da cena primária do coito entre os pais, quando o paciente tinha um ano e meio. Faz, então, ponderações sobre as marcas que essa visão havia deixado no paciente e na repercussão dessas marcas tanto na formação dos seus sintomas, quanto na produção do sonho de angústia com os lobos, quando, aos 4 anos de idade, em plena fase edipiana, a ideia encoberta do lobo sem rabo evocou-lhe o complexo de castração (Freud, 1918 [1914]/2010).
Evidentemente, o caso clínico é bastante complexo e fugiria completamente aos meus propósitos alongar-me, aqui, na sua descrição minuciosa, já que isso exigiria longas digressões. Cito, apenas, à guisa de exemplo, a reconstrução que Freud vai realizando da visão da cena primária pelo bebê de um ano e meio, a partir das suas deduções clínicas. Ele conclui que ela aconteceu numa época em que o paciente havia contraído malária e, a partir daí, seguindo pistas clínicas, vai reconstruindo o acontecimento traumático. Eu o cito:
Ele, então, dormia, em sua caminha, no quarto dos pais, e acordou à tarde, digamos que devido à febre montante, às cinco horas talvez, a hora marcada pela depressão. Combina com nossa suposição de um dia quente de verão em que os pais tinham se retirado, semidespidos, para uma sesta vespertina. Quando ele acordou, foi testemunha de um coito a tergo [por trás] repetido três vezes, pôde ver os genitais da mãe e o membro do pai e compreendeu tanto o fato como a sua significação. (Freud, 1918 [1914]/2010, pp. 52-53)
Convém explicar alguns detalhes dessa construção: primeiramente, Freud supõe que o bebê dormia no quanto dos pais porque estava doente, com malária; que a cena ocorreu às cinco horas da tarde, porque era a hora em que ocorriam as mudanças de humor das suas depressões sintomáticas; que o coito dos pais foi repetido três vezes, porque esse detalhe fora trazido pelo próprio paciente, muito embora ele não tenha reconhecido isso e o tenha projetado na interpretação de Freud. Por fim, Freud acrescenta, em nota de rodapé, que a compreensão do ato sexual não ocorreu por ocasião da visão do coito, com um ano e meio de idade, mas na época do sonho, aos quatro anos, comentando: "Com um ano e meio ele recolheu impressões cuja compreensão lhe foi possibilitada na época do sonho por seu desenvolvimento, sua excitação sexual e sua pesquisa sexual" (Freud, 1918 [1914]/2010, p. 53).
Também a visão da genitália feminina é pressuposta em função de sintomas posteriores, como a angústia inexplicável diante de uma borboleta, cujo formato em V evoca duas pernas abertas (supostamente, as pernas da mãe, durante o coito), detalhes esses que foram devidamente analisados e discutidos por Serge Leclaire, como exemplificação do seu conceito de letra, como conjunto de marcas formadoras das zonas erógenas. No caso do "homem dos lobos", segundo Leclaire, a letra básica seria o V das pernas abertas da mãe, que teria se imprimido como marca indelével sobre os olhos do pequeno menino, marcando-os como zonas erógenas (Leclaire, 1977, cap. 4). Em função da interdição incestuosa, a evocação dessa letra, presente nas asas da borboleta, bem como – em sua forma invertida – nas orelhas dos lobos do sonho, provocaria sempre angústia. Mas as considerações de Leclaire apenas explicitam e desenvolvem um pouco mais as descrições do mestre Freud, já que ele, como todo pós-lacaniano, define-se, no fundo, com um bom freudiano.
Por esse exemplo de reconstrução, na análise do "homem dos lobos", bastante típico do procedimento freudiano, é possível perceber que as reconstruções por ele operadas implicavam sempre a história sexual do paciente, seus acontecimentos traumáticos, seus avatares, as marcas e fantasias dela decorrentes e seu papel na formação dos sintomas mórbidos. Com a crescente centralidade que o complexo de Édipo veio a ocupar nas suas teorizações psicopatológicas, é possível afirmar, inclusive, que as reconstruções freudianas versam sempre sobre acontecimentos associados a complicações edipianas não elaboradas.
2. As reconstruções na clínica winnicottiana, como reconstituição do ambiente traumatogênico
Com Winnicott, obviamente, a ênfase muda consideravelmente, pois – muito embora ele não desconsidere as complicações de uma má elaboração do complexo de Édipo, presentes nas neuroses – a questão é muito mais complexa do que isso, já que as neuroses definem apenas as patologias daqueles que conseguiram atravessar a contento as fases de amadurecimento mais críticas – aquelas que antecedem a constituição da pessoa total, de um self integrado –, tendo sido capazes de se apropriar das suas experiências eróticas e agressivo-destrutivas, formando uma sexualidade infantil. Para Winnicott, o problema maior é o dos psicóticos, daqueles que não chegam a existir verdadeiramente, subsistindo apenas seja na casca de um falso self cindido do restante da personalidade, seja num retraimento esquizoide, quando não nos delírios e alucinações de uma esquizofrenia a céu aberto. Nesse contexto, as reconstruções em análise ganham outro estatuto.
Tenho observado, na análise de pacientes de tipo borderline, no sentido amplo do termo1, que – grande parte das vezes –, o paciente, mesmo tendo sofrido grandes falhas ambientais por parte da mãe ou responsável, numa idade muito precoce – e tendo uma 1 Winnicott assim define o termo: "Pelo termo 'caso borderline' pretendo significar um tipo de caso no qual o centro do distúrbio é psicótico, mas o paciente possui suficiente organização psiconeurótica para sempre apresentar desordens psiconeuróticas ou psicossomáticas quando a ansiedade psicótica central ameaça irromper de forma crua (Winnicott, 1968/1997, pp. 219-220). consciência meramente intelectual disso –, ainda assim, sente-se intensamente culpado pelos próprios males, responsabilizando-se, inclusive, pela infelicidade e desajustamento do genitor traumatizante. Isso porque essas falhas ambientais ocorrem muito precocemente, quando o ambiente ainda é vivido pelo bebê como um prolongamento do seu ser, indistinto dele. Assim, quando mais adiante, essas marcas traumáticas ganham algum significado, elas produzem um sentimento de culpa pelos acontecimentos traumatizantes.
Lembro-me, por exemplo, de uma paciente esquizoide que se culpava intensamente por sua mãe tê-la tratado, sempre, como uma filha idealizada, que nada tinha a ver com a pessoa real dela. Ela dizia: "Eu fui uma grande decepção para a minha mãe, desde que nasci. Não era um bebê bonito, nem atraente; isso foi a causa de tudo". Sabe-se, inclusive, que bebês que sofreram esse tipo de traumatismo. Muitos deles tiveram de hipertrofiar a mente para fazer face às falhas ambientais, tornando-se aquilo que Ferenczi (1923/1993, p. 207) veio a chamar "bebês sábios", forçados a um amadurecimento precoce, realizado à custa de um sofrimento emocional intenso.
Para esses pacientes, a reconstrução do ambiente traumatizante – e das falhas ambientais sofridas na infância – ao longo do processo de análise, serve para distinguir o que é do paciente e o que é do ambiente, reduzindo consideravelmente o sentimento de culpa e/ou a falsa responsabilidade pelo que é da competência (ou incompetência) de outrem.
A partir de um caso clínico descrito pelo próprio Winnicott, pretendo mostrar o quanto essa ferramenta é de grande utilidade clínica e, ao mesmo tempo, demonstrar que ela somente pode se realizar apoiada na dinâmica transferencial.
Trata-se do caso descrito num artigo de 1958, denominado "Psychogenesis of a Beating Fantasy" (Winnicott, 1958/1997, pp. 45-48).
Winnicott começa a sua descrição citando o texto freudiano: "Batem numa criança" (Freud, 1919/2010), dizendo que, nas considerações do referido artigo, a fantasia de espancamento está sempre associada a uma fixação na fase anal. Entretanto, propõe que cada caso seja examinado como singular, pois pensa que não haja uma regra que se aplique a todos eles.
Em seguida, começa a descrever um caso clínico, no qual a fantasia de espancamento foi justamente o sintoma que trouxe a paciente ao seu consultório. Ela já havia tido duas análises anteriores – sendo que a primeira havia sido longa – e nenhuma das duas tinha conseguido eliminar esse sintoma. A fantasia de espancamento era usada pela paciente como uma espécie de válvula de escape sexual, muito embora ela não envolvesse nenhum tipo de sofrimento, ao longo de sua ativação fantasiosa.
Vários acontecimentos, na sua história de vida, foram buscados como origem do sintoma, mas todos se revelaram, ao longo da análise, como meras fantasias. Havia a fantasia de ter sido espancada com uma vara, em torno de cinco anos, por uma tal senhora Stickland (observem aí, o nome Stickland, que poderia ser traduzido, para o português, como "terra de vara", portanto um nome bastante sugestivo). Além disso, havia uma outra fantasia, em que a sua mãe, certa vez, tirara uma vara do guarda-roupa para espancá-la; essa segunda encenação tinha inúmeras variações. Por fim, uma terceira fantasia era que o pai a espancara num momento de excitação sexual. Esta última, entretanto, era, segundo Winnicott, uma fantasia encobridora de um acontecimento real, quando a paciente, certa vez, surpreendeu o pai num episódio sexual constrangedor.
A paciente, ao que tudo indica, era alguém com sérios problemas emocionais e passou dez anos em análise com Winnicott, ao longo dos quais sofreu regressões a fases de dependência bastante profundas, chegando ao ponto em que havia apenas "um pequeníssimo ego saudável que permanecia em contato com a realidade externa" (Winnicott, 1958/1997, p. 46). Nessa época, Winnicott teve de atendê-la na casa dela, cuidando dos seus negócios e lhe comprando comida e eventualmente chamando um home help para lhe preparar comida e cuidar dos trabalhos domésticos. Eventualmente, a paciente saía do estado regressivo, fazendo progressos, mas esse processo era constantemente interrompido, o que o tornava bastante doloroso, tanto para a paciente quanto para o analista.
Foi ao longo desse período que Winnicott fez uma descoberta importante. Eu o cito:
Foi de interesse, ao longo dessa profunda regressão e do movimento para frente que a seguia, que a fantasia de espancamento foi a única coisa que permaneceu constante, apesar de pertencer a um estágio posterior de desenvolvimento. Toda vez que a paciente desenvolvia tensão sexual, o alívio era obtido ao longo da fantasia que estou descrevendo. Era, talvez, a única válvula de escape sexual disponível, pois muito cedo, no tratamento, o contato sexual com homens tinha se tornado sem sentido. Tem de ser notado, de passagem, que essa paciente […] não tinha (também) nenhuma homossexualidade manifesta… (Winnicott, 1958/1997, p. 46, grifos nossos)
Ora, uma fantasia de espancamento que permanece constante ao longo de uma regressão tão profunda, apesar de pertencer a um estágio posterior de desenvolvimento, é algo que chama a atenção. Ou seja, aparece aí uma primeira evidência de que ela é algo marginal ao campo analítico. Explico-me melhor: ao longo da regressão profunda, na qual a paciente chegou à condição de um pequeníssimo ego saudável em contato com a realidade externa, portanto, à condição de um pequeno bebê, totalmente imaturo, seria impossível manter a fantasia de espancamento. Portanto, aparece aí uma primeira evidência de que a fantasia de espancamento não pertence propriamente ao cerne da psique da paciente.
Mais do que isso: durante esses dez anos, Winnicott explorou o campo transferencial em toda a sua extensão e variedade e não encontrou nenhum elo significativo que pudesse elucidar o sintoma da fantasia de espancamento no seu interior. Sem dúvida nenhuma, a paciente demonstrava possuir uma fixação anal e manipulava seus gases intestinais como uma especialista no assunto, mas – isso posto – não havia nenhum outro elo significativo que elucidasse a fantasia perversa.
Daí, Winnicott faz uma primeira construção, baseado no material surgido numa das sessões, afirmando que "a ideia de espancamento estava tomando o lugar de uma extrema desesperança de comunicar-se com a mãe num nível anal" (Winnicott, 1958/1997, p. 46). Mas vamos entender melhor o que isso quer dizer.
A mãe da paciente a tinha desmamado e a abandonado aos cuidados de uma babá aos dois meses de idade; isso era um fato conhecido. Portanto, deveria ter havido, também, uma desesperança de a paciente poder comunicar-se com a mãe num nível oral. Entretanto, um bebê de dois meses não é ainda suficientemente organizado – segundo Winnicott – para experimentar pesar ou desesperança. Por isso, somente num nível de organização posterior, o nível anal, a paciente poderia ter sentido essa desesperança. Nesse sentido, a fantasia de ser espancada, como formação substituta, ainda era melhor do que a realidade de nenhum contato com a mãe.
Podemos, também, nos perguntar em que medida essa colocação de Winnicott consiste numa construção. Eu entendo que sim, já que ele segue as pistas clínicas para reconstruir uma parte da história da paciente que somente se faz presente no campo transferencial por meio dos seus efeitos.
Mas essa primeira construção de Winnicott somente adquiriria seu sentido pleno, a partir da segunda, quando ele conclui – e comunica à paciente – que a dinâmica sadomasoquista não pertencia à psique dela, mas sim a uma fixação anal na psique de sua mãe. Ou seja, durante toda a vida, a paciente mantivera um relacionamento direto com o inconsciente recalcado de sua mãe, assumindo como sua uma dinâmica da psique materna.
Por isso, somente por isso, a fantasia de espancamento podia ter permanecido inalterada ao longo de toda a regressão profunda da paciente, mesmo pertencendo a um estágio posterior de desenvolvimento, já que a fantasia não era sua, mas de sua mãe. Também por isso ela não produzia sofrimento, já que o que era operativo era o masoquismo e a fixação maternos.
Essa segunda reconstrução, relativa ao ambiente traumatogênico, realiza precisamente aquele tipo de discriminação de que falei anteriormente, distinguindo o que era da paciente e o que era de sua mãe. Também aí fica mais em evidência o estatuto de uma construção ou reconstrução analítica – diferente de uma interpretação –, já que não há, no artigo de Winnicott, nenhuma evidência de que ele pudesse ter tido algum contato anterior com a mãe da paciente. A reconstrução fora feita mais por exclusão, ou seja, já que o masoquismo não pertencia à paciente – o que a exploração do campo transferencial, durante dez anos, evidenciara – algumas características sadomasoquistas da mãe da paciente, relatadas por ela ao analista, tornavam-na a possuidora mais provável de tal dinâmica. Tudo isso, associado à articulação entre a fantasia perversa e a desesperança e carência de mãe da paciente, formava um conjunto de pistas clínicas a serem articuladas numa conclusão lógica. Além disso, é provável que outros elementos não descritos no artigo tenham entrado na produção da reconstrução winnicottiana, já que as narrativas psicanalíticas – dado o tipo de material inefável e fugidio com que lidam –, são sempre incompletas.
O que foi significativo, entretanto – Winnicott nos conta –, é que essa reconstrução provocou uma mudança significativa na associação que a paciente mantivera com a fantasia de espancamento por toda a vida, permitindo, assim, a finalização da análise. Enfim, ela podia livrar-se de algo extremamente pesado e desconfortável, que carregara toda a vida como se fosse um mecanismo seu, a fim de manter minimamente um contato afetivo com a sua mãe.
Conta Winnicott que, quando a paciente ficou mais velha, a mãe tornou-se disponível, muito embora como uma amiga de qualidade triste e sofredora. O que evidencia que ele acompanhou o caso, após a finalização da análise, durante um bom tempo. Como era, aliás, o seu costume.
3. Concluindo
O princípio de construção ou reconstrução, em análise, remonta à prática do criador da psicanálise, muito embora – devido à centralidade que o Complexo de Édipo veio a ocupar na sua teoria – as reconstruções sejam sempre realizadas com a finalidade de recuperar a história sexual dos pacientes, os acontecimentos traumáticos envolvendo a elaboração edipiana, seus avatares, as marcas e fantasias daí decorrentes e seu papel na formação dos sintomas mórbidos presentes.
Já com Winnicott, a ferramenta psicanalítica ganha uma função diferente, já que pretende abarcar períodos precoces, nos quais o bebê ainda não tem uma sexualidade constituída2, lançado que está, simplesmente, no esforço de manter-se vivo, numa continuidade-de-ser (going on being), sustentado por seu meio-ambiente. Ou seja, envolvendo marcas traumáticas que sequer adquiriram um significado singular, uma representação (no sentido freudiano do termo), para que pudessem ser recalcadas; que permanecem assim, como fantasmas errantes, marginais à psique infantil, dada a imaturidade do bebê quando elas aconteceram. E que dependem, nesse sentido, desse processo de reconstrução transferencial para se processarem como experiência plena e adquirirem algum significado.
Entretanto, a que pesem as diferenças entre as duas práticas, advindas das concepções teóricas distintas dos dois autores, a construção permanece como uma ferramenta clínica de grande utilidade, indispensável a qualquer processo psicanalítico no qual a recuperação da história de vida do paciente ocupe um lugar central3.
Referências
Ferenczi, S. (1993). O sonho do bebê sábio. In S. Ferenczi, Obras completas (Vol. III). São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Freud, S. (1918 [1914]). História de uma neurose infantil ("O homem dos lobos"). In S. Freud, Obras completas (Vol. 14; Paulo César de Souza, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. [ Links ]
Freud, S. (1919). "Batem numa criança": contribuição ao conhecimento da gênese das perversões. In S. Freud, Obras completas (Vol. 14; Paulo César de Souza, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. [ Links ]
Freud, S. (1937). Construcciones en el análisis. In S. Freud. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1986. [ Links ]
Leclaire, S. (1977). O corpo da letra ou o enredo do desejo da letra. In S. Leclaire. Psicanalisar. São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Naffah Neto, A. (2017). A problemática da sexualidade infantil segundo D. W. Winnicott: desfazendo mal-entendidos. In A. Naffah Neto, Veredas psicanalíticas: à sombra de Winnicott. S.l.: Novas Edições Acadêmicas. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1958). Psychogenesis of a beating fantasy. In D. W. Winnicott, Psycho-analytic explorations. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 1997. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1968). The use of an object and relating through identifications. In D. W. Winnicott, Psycho-analytic explorations. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 1997. [ Links ]
Endereço para correspondência
Alfredo Naffah Neto
E-mail: naffahneto@gmail.com
* Psicanalista, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica, autor de vários artigos e livros sobre psicanálise e música (ópera, principalmente).
1 Winnicott assim define o termo: "Pelo termo 'caso borderline' pretendo significar um tipo de caso no qual o centro do distúrbio é psicótico, mas o paciente possui suficiente organização psiconeurótica para sempre apresentar desordens psiconeuróticas ou psicossomáticas quando a ansiedade psicótica central ameaça irromper de forma crua (Winnicott, 1968/1997, pp. 219-220).
2 Essa problemática da sexualidade infantil, no pensamento de Winnicott, é bastante complexa e fugiria completamente aos objetivos desse artigo alongar-me nela, porque já foi tratada de forma exaustiva anteriormente (Naffah Neto, 2017). À guisa de uma explicação resumida, pode-se dizer que, para Winnicott, o bebê só adquire uma sexualidade por meio do processo de amadurecimento e ao longo dele, quando o self infantil já se encontra suficientemente integrado para se apropriar, seja dos seus impulsos instintivos, seja das experiências de prazer advindas da satisfação dos mesmos.
3 Obviamente, estão excluídas daí as clínicas psicanalíticas que trabalham exclusivamente como o "aqui e agora" transferencial e para as quais a reconstrução do passado não adquire qualquer sentido analítico importante.