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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo enero/jun. 2019
ARTIGOS DE FLUXO CONTÍNUO
Mal-estar no parque humano: da crise do humanismo à biotecnologia
Discontent in the human park: from the humanism crisis to biotechnology
Rafael Nogueira Furtado*
UFJF
RESUMO
O artigo discute criticamente a tese de Peter Sloterdijk, segundo a qual a crise contemporânea do humanismo contribuiria para a emergência da biotecnologia como instrumento de formação humana. Este trabalho compreende duas etapas. Primeiramente, busca-se elucidar o papel do humanismo no processo civilizatório ocidental e os fatores envolvidos na crise identificada pelo autor. Trata-se de articular o pensamento de Sloterdijk aos escritos de Heidegger e Nietzsche, refletindo-se sobre a superação do humanismo, tal como abordada por estes filósofos. Por conseguinte, a segunda etapa do trabalho problematiza os efeitos antropogênicos da biotecnologia. Para isto, o pensamento de Sloterdijk será articulado a debates recentes sobre as implicações éticas do melhoramento humano. Espera-se, com este artigo, ponderar sobre as aplicações aceitáveis da biotecnologia.
Palavras-chave: Sloterdijk; humanismo; biotecnologia; bioética; tecnologias genéticas.
ABSTRACT
This article critically discusses Peter Sloterdijk's thesis that the contemporary crisis of humanism would contribute to the emergence of biotechnology as an instrument of human formation. This work comprises two steps. First, it tries to elucidate the role of humanism in the Western civilizational process and the factors involved in the crisis identified by the author. For the consecution of this step, Sloterdijk's thought will be articulated to the writings of Heidegger and Nietzsche, allowing us to reflect on the overcoming of humanism. Therefore, the second stage of this work problematizes the anthropogenic effects of biotechnology. Sloterdijk's thinking will be articulated to recent debates on the ethical implications of human enhancement technologies. Through this analysis, it is intended to recognize acceptable applications of biotechnology.
Keywords: Sloterdijk; humanism; biotechnology; bioethics; genetic technologies.
1. Introdução
O pensamento de Peter Sloterdijk é marcado pelo esforço de realizar uma antropologia filosófica, procurando responder à questão sobre o que é o homem. Esta marca pode ser encontrada em diversas publicações. Em obras como "Crítica da razão cínica" (1983), "No mesmo barco" (1993) e nos três volumes de "Esferas" (1998; 1999; 2004), o autor opera um recuo na história do ocidente, investigando os acontecimentos e forças que nos tornam humanos.
Destaca-se, em suas análises, o papel da técnica e dos artefatos tecnológicos como responsáveis por criarem, no interior da própria natureza, um distanciamento entre homem e mundo natural. Deste distanciamento surgem "esferas", nas quais os sujeitos vivem, produzindo a si e a outros homens. Estas esferas consistem na própria civilização humana, em constante tensão com o ambiente à sua volta (Sloterdijk, 2009).
Através de "incubadoras técnicas" (Castro-Goméz, 2012, p. 66), os homens desenvolvem-se e se imunizam contra as ameaças naturais. Para o autor, "[...] a climatização simbólica do espaço comum é a produção originária de qualquer sociedade" (Sloterdijk, 2011, p. 46) e nelas encontram-se as condições de nossa antropogênese. Sobrevivendo neste meio artificialmente climatizado e imunizado, a espécie humana expulsa o ambiente externo, podendo assim se autoproduzir.
Poucas análises de Sloterdijk, entretanto, suscitaram reações tão polêmicas quanto aquelas presentes na conferência por ele proferida em 1999, na Alemanha, à ocasião de um colóquio dedicado a Heidegger e Lévinas. Nesta conferência, o autor problematizava a criação e aprimoramento, nas civilizações contemporâneas, de tecnologias destinadas à seleção genética das características humanas.
Paulatinamente, colocar-se-ia diante de nós a opção de, mediante as antropotécnicas modernas, interferir de modo deliberado sobre o curso evolutivo da espécie (Sloterdijk, 2000). Uma tomada de poder sobre o acaso dos nascimentos não controlados, rumo ao planejamento biológico de futuros indivíduos. Para o filósofo, não se tratava de discutir a possibilidade mesma destas tecnologias, posto a inevitabilidade de seu desenvolvimento e aplicação. Importaria reconhecer sua presença crescente em nossa sociedade, formulando um código que regulasse seu uso (Sloterdijk, 2000).
As declarações de Sloterdijk foram recebidas de forma colérica por outros intelectuais. Para estes, em especial Habermas (2010, p. 31), afirmações dessa ordem são "[...] especulações ferozes [...]" sobre um "[...] futuro pós-humanista [...]" que "[...] satisfazem, de modo provisório, apenas o espetáculo da mídia [...]". De acordo com o filósofo, deve-se recusar de modo radical qualquer tentativa de legitimar práticas extraterapêuticas de manipulação genética. Do contrário, assistiríamos ao surgimento de novas formas de segregação e dominação, cujas consequências seriam nefastas.
Transformados em mercadoria, recursos desta natureza se submeteriam à lógica própria do mercado, acessíveis apenas a uma fatia da população (Habermas, 2010). O planejamento genético dos sujeitos conduziria à erosão das relações éticas, fundamentadas, conforme o autor, na vulnerabilidade e precariedade biológicas compartilhadas pelos homens (Habermas, 2010).
Sloterdijk vê nas antropotécnicas genéticas o desdobramento da cultura e valores humanistas. O humanismo consistiria no conjunto de doutrinas e técnicas pedagógicas, responsáveis pela formação moral e intelectual dos sujeitos, ao longo da história do ocidente (Sloterdijk, 2010). Todavia, este conjunto conheceria na contemporaneidade a sua crise, cedendo espaço ao advento de uma nova ordem de poder. O que antes era realizado por meio da alfabetização e aculturação dos animais humanos, agora poderia se efetuar pela reprogramação biológica da espécie (Sloterdijk, 2010).
Em abril de 2015, Junjiu Huang e sua equipe publicaram no periódico "Protein & Cell", um controverso estudo envolvendo a manipulação de genes de embriões humanos. No estudo, mediante tecnologia de edição genética (a qual permite eliminar e substituir genes de um organismo), buscavam corrigir trechos defeituosos do DNA humano, envolvidos na doença beta-talassemia (Liang et al. 2015). O trabalho foi recusado por revistas como "Science" e "Nature", por romper com protocolos éticos de pesquisa.
Tal experimento evidencia-nos o notável desenvolvimento técnico por que passam as ciências biomédicas na atualidade. Técnicas de manipulação do DNA podem ser utilizadas com finalidades diversas, desde o tratamento de doenças, até o melhoramento de características humanas.
Por conseguinte, este artigo discute a tese de Peter Sloterdijk, segundo a qual a crise contemporânea do humanismo contribuiria para a emergência da biotecnologia como instrumento de formação humana. O trabalho compreende duas etapas. Primeiramente, busca-se elucidar o papel do humanismo no processo civilizatório ocidental e os fatores envolvidos na crise identificada pelo autor. Trata-se de articular o pensamento de Sloterdijk aos escritos de Heidegger e Nietzsche, refletindo-se sobre a superação do humanismo, tal como abordada por estes filósofos. Na segunda etapa do trabalho, o pensamento de Sloterdijk será articulado a debates recentes sobre as implicações éticas do melhoramento humano. Espera-se, com este artigo, ponderar sobre as aplicações aceitáveis da biotecnologia.
2. A domesticação escolar dos seres humanos
Em sua conferência "Regras para o parque humano", Sloterdijk (2000) oferece uma análise sobre os dispositivos que teriam configurado o principal instrumento de formação (Bildung) da cultura ocidental. Trata-se do humanismo, matriz elaborada na Antiguidade greco-romana, cujos efeitos pedagógicos e formadores estendem-se até os dias atuais.
Considera-se que o termo humanismo derive da expressão studia humanitatis, cunhada por Cícero (Mann, 1996). Com ela, o filósofo romano buscava designar um conjunto de disciplinas lecionadas em sua época, tais como os estudos de gramática, retórica, poesia, filosofia e história. Estas disciplinas tinham por objetivo o conhecimento sobre o homem e o cultivo de suas potencialidades. Para a Antiguidade clássica, o humanismo "[...] significou a educação do homem de acordo com a verdadeira forma humana, com seu autêntico ser" (Jaeger, 1995, p. 14).
Os studia humanitatis retomam aquilo que os gregos denominavam paideia: os esforços pedagógicos dirigidos à formação do cidadão, tendo em vista seu contínuo aperfeiçoamento. A partir do entendimento das leis universais que regem sua natureza, o homem deveria ser modelado na direção de sua forma ideal (Jaeger, 1995).
Como nota Sloterdijk (2000), o humanismo extraiu sua força civilizatória de recursos como a leitura e a escrita, forjando sujeitos através da alfabetização. A erudição e o domínio da linguagem permitiriam expurgar o animal humano de sua bestialidade inata, inserindo-o no mundo da cultura. "O tema latente do humanismo é, portanto, o desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente é: as boas leituras conduzem à domesticação" (Sloterdijk, 2000, p. 17). Uma pacificação dos ímpetos que se conquistaria ao fazer os homens se sentarem e lerem.
Foi função do humanismo arbitrar o jogo agonístico entre duas tendências fundamentais: de um lado, forças bestializadoras e desinibidoras, e de outro, forças domesticadoras e inibidoras. Este processo de formação, ou antropodiceia, amparava-se na crença de que os homens são "[...] animais influenciáveis [...]", possuidores de uma "[...] abertura biológica [...]" e de "[...] ambivalência moral [...]", sendo necessário "[...] prover-lhes o tipo certo de influências" (Sloterdijk, 2000, p. 17-9).
A aculturação e amansamento pelos livros buscava conter a brutalidade de que os teatros romanos, a morte de gladiadores e a tortura de animais eram exemplos. Em oposição a tais práticas, o humanismo apostava na força pedagógica das letras como passagem necessária para a civilização. Desta forma, ele deve ser entendido como potência "[...] provedora de paciência e criadora de consciência, contra as sensações e embriaguez desumanizadoras e impacientemente arrebatadoras dos estádios" (Sloterdijk, 2000, p. 18-9).
No entanto, destaca Sloterdijk (2000, p. 14), diante do surgimento da cultura de massa e das mídias não literárias, o humanismo hoje não seria mais capaz de afirmar-se como "escola da domesticação humana". O rádio, a televisão e, ademais, as hipermídias contemporâneas, levaram à dissolução da antiga sociedade das letras, e com isso, desinvestiram o humanismo de seu poder formador.
Sloterdijk redige sua conferência como reflexão acerca do escrito de Heidegger Sobre o humanismo, de 1947. Este escrito consiste em uma carta, através da qual seu autor procura responder à pergunta colocada por Jean Beaufret: como dar novamente um sentido à palavra humanismo? Heidegger se vê às voltas com a crise desta noção, nos anos sombrios posteriores à Segunda Guerra. Sua carta servirá de eixo para que Sloterdijk problematize um conceito cuja superação se mostrará inevitável.
Heidegger inicia sua argumentação com uma análise acerca do agir humano. Para ele, agir significa "[...] conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência" (Heidegger, 2009, p. 24). É no pensamento que o homem consuma seu agir, e o faz mediante a linguagem, entendida por Heidegger (2009, p. 24) como a "casa do Ser", habitação na qual mora o homem.
O pensar é, portanto, ação que possibilita o desdobramento da essência humana até sua plenitude. Porém, isto só poderá ser atingido quando nos libertarmos "[...] da interpretação técnica do pensar [...]", ou seja, da condição em que a reflexão não passa de um "[...] processo de calcular a serviço do fazer e do operar [...]" (Heidegger, 2009, p. 26).
Enquanto subsumido à técnica, o pensamento só é capaz de agir sobre os entes, esquecendo-se assim do Ser. Este agir consiste, para Heidegger, na dominação da natureza pelo homem. O ente torna-se para ele seu objeto, ao passo que o homem representa a si como subjectum, isto é, fundamento da realidade que produz sobre o mundo um conhecimento objetivo e sistemático (Heidegger, 2007).
Nesse sentido, Heidegger identifica o humanismo ao "[...] cálculo metódico e inteligente, capaz de assegurar a plena posse e domínio da totalidade dos entes" (Duarte, 2006, p. 101). Ele compreende o humanismo como projeto de controle, através do qual o mundo passa a ser explicado e valorado, tendo a espécie humana como seu único senhor. De tal sorte, o filósofo questiona Jean Beaufret sobre se de fato seria necessário "[...] conservar a palavra 'humanismo' [...] ou será que não se manifesta, ainda, de modo suficiente, o desastre que expressões desta natureza provocam?" (Heidegger, 2009, p. 28).
A solução para o impasse a que este antropocentrismo levou implica em o homem aproximar-se novamente do Ser, ouvir seu apelo e ocupar o lugar a que está destinado por essência. Conforme Heidegger (2009), o Ser convoca o homem para ser o seu pastor, para que zele por ele, chamando-o de volta à casa. Casa que se apresenta ao homem como clareira, abertura radical em que está lançado, enquanto Dasein.
A carta de Heidegger é uma tentativa de responder à questão da qual o pensamento do pós-guerra não pôde se esquivar. Como explicita Sloterdijk (2000, p. 32), ele procura saber "[...] o que ainda domestica o homem, se o humanismo naufragou como escola da domesticação humana?". A saída encontrada pelo filósofo requer reconduzir o homem à sua função de guardião do Ser, abdicando de seu domínio sobre o ente sem, com isso, defender qualquer espécie de inumanismo (Heidegger, 2009). Somente assim seria possível reformular o sentido de humano.
Todavia, a clareira heideggeriana do Ser, enquanto morada do homem, revela-se uma verdadeira encruzilhada. Isso porque essa clareira, entendida como abertura existencial ao mundo, "[...] é ao mesmo tempo um campo de batalha e um lugar de decisão e seleção" (Sloterdijk, 2000, p. 37). Nesse local de possibilidades e inacabamento, os sujeitos devem determinar quais casas construir e quais seres humanos deverão habitá-las. Para Sloterdijk, essa difícil decisão foi objeto da reflexão de Nietzsche.
O autor teria percebido "[...] atrás do desanuviado horizonte da domesticação escolar dos homens, um segundo horizonte, este mais sombrio" (Sloterdijk, 2000, p. 40). Nele, seriam colocadas em prática técnicas de seleção (auslesen), responsáveis por aprofundar o poder de criação de seres humanos já alcançado pela leitura (lesen).
Em "Assim falou Zaratustra", Nietzsche (2011) realiza uma crítica das forças que buscam apequenar os sujeitos e profetiza a chegada de um novo tempo, o tempo do além-do-homem. Zaratustra, tendo deixado sua terra natal, foi viver na solidão das montanhas e ali permaneceu durante dez anos. Até o momento em que decide retornar para próximo dos seres humanos, "[...] como fazes à noite, quando vais para trás do oceano e levas a luz também ao mundo inferior, ó astro abundante!" (Nietzsche, 2011, p. 11).
Aos seus companheiros, Zaratustra acredita levar uma dádiva e disso se regozija como uma criança que desperta. Assim desce ele pelas montanhas, trazendo para as profundezas sua boa-nova. Chegando à cidade, no sopé de uma densa floresta, se depara com um grande número de pessoas reunidas em uma praça. E diante delas exclama: "Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado" (Nietzsche, 2011, p. 13, grifo do autor).
Embora a humanidade tenha se desdobrado do verme ao homem, este homem ainda é verme, afirma Zaratustra. Ele "[...] é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo [...] grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio" (Nietzsche, 2011, p. 16, grifo do autor).
O homem deve declinar, pois durante todo o seu processo de formação foi criado para ser um animal menor. Zaratustra se apercebe desse apequenamento ao se deparar, em uma de suas caminhadas, com certa fileira de casas. Pondo-se pensativo diante delas, exclama, então, com pesar: "tudo ficou menor!" (Nietzsche, 2011, p. 159, grifo do autor). Alguém de seu porte só poderá passar por aquelas portas curvando-se. Para os que construíram aquelas casas, tornar-se pequeno é sua virtude e felicidade. Sua vontade é covarde e procuram fazer de outros homens covardes também.
Tais construtores criam sujeitos para serem "[...] redondos, corretos e bondosos [...]", do mesmo modo que "[...] grãos de areia são redondos, corretos e bondosos uns com os outros [...]" (Nietzsche, 2011, p. 161). De tudo aquilo que se pode desejar, esses animais resignados querem apenas que ninguém lhes faça mal. Para eles "[...] virtude é o que torna modesto e manso: com ela transformaram o lobo em cão, e o próprio homem, no melhor animal doméstico do homem" (Nietzsche, 2011, p. 162).
O além-do-homem é, portanto, o antídoto para esse apequenamento. Ele representa o projeto nietzschiano de transvaloração dos valores, ou seja, a recusa de todo sistema moral supramundano responsável por drenar do homem sua vontade de potência. O além-do-homem atira "[...] flechas de anseio pela outra margem [...]" (Nietzsche, 2011, p. 16). Cabe a ele, no momento dessa passagem, estabelecer um novo modo de pensar, sentir e avaliar, que tome a terra e o próprio indivíduo como fundamentos da criação de novos valores. A transvaloração dos valores em Nietzsche está intimamente ligada aos temas do niilismo e da morte de Deus, os quais são as condições de desenvolvimento do pensamento de Zaratustra.
O niilismo assume duas significações nos escritos nietzschianos. A princípio, consiste no gesto de desqualificação e condenação do mundo e do corpo, operado por um contingente de indivíduos a que o autor denominará "escravos" (Nietzsche, 2009). Dotados de uma fraca potência vital, eles ver-se-iam vulneráveis e em desvantagem diante de um segundo grupo, os "senhores".
Como forma de superação dessa deficiência, os escravos teriam identificado os valores próprios dos senhores, como força e coragem, ao erro e ao mal. Realizavam, assim, uma inversão conforme a qual o mundo sensível e seus atributos seriam vistos como ilusão, em favor de uma realidade transcendente e intelectiva. Essa inversão, conforme Nietzsche (2009), teria marcado toda a civilização ocidental, levando ao desenvolvimento de uma moral ascética que enfraqueceu o homem e fez adoecer sua vontade.
Entretanto, o filósofo diagnostica, na modernidade, o aparecimento de outra forma de niilismo. Não se trataria agora da negação do mundo, mas da morte de Deus, isto é, o fim da crença em uma realidade transcendente que outrora servira de consolo para o niilismo inicial. Essa morte provocará o esvaziamento dos sentidos que preencheram a cultura ocidental. Nietzsche (2001, p. 140) a descreve em "A gaia ciência" por meio da figura de um "insensato" que, em posse de uma lanterna, corre durante o dia por um mercado repleto de pessoas, gritando: "Procuro Deus! Procuro Deus!". Aqueles que assistiam à cena riam do insensato, que imediatamente lhes retrucava, respondendo a si mesmo: "'Para onde foi Deus?' [...] vou lhes dizer! Nós o matamos – vocês e eu!" (Nietzsche, 2001, p. 140, grifo do autor).
No espaço vago deixado por esse acontecimento, emerge o além-do-homem de Zaratustra, devolvendo a terra ao homem e restituindo-o de seu poder criador. A superação do humano, nesse contexto, não significa um retorno a um estado de animalidade, anterior à aculturação pelas letras. Novos valores deverão ser atribuídos à existência. Ao invés da mansidão e da docilidade, o além-do-homem exalta a virtude da coragem que, diante da vida, emite um sagrado Sim! (Nietzsche, 2011).
Se Sloterdijk traz Nietzsche à discussão é por ele ter evidenciado aquilo que a análise de Heidegger não explicitou: que "[...] a domesticação e amicalização educacionais do homem não poderiam, em nenhuma época, ser alcançadas só com o alfabeto" (Sloterdijk, 2000, p. 43-44). Lá, onde desde a Antiguidade operavam-se práticas de amansamento, a seleção, todavia, "[...] seja como for que ela tenha sido levada a cabo – sempre funcionou como a eminência parda por trás do poder" (Sloterdijk, 2000, p. 44).
No ocaso da cultura humanista, descortinam-se novos desafios éticos para nós. O desenvolvimento recente da biotecnologia confere outra dimensão e significado ao problema da seleção. Se os homens sempre deliberaram sobre sua própria criação, de que seremos capazes agora que temos em mãos o poder sem precedentes de interferir de forma biotecnológica sobre a espécie?
Ressalta Sloterdijk (2000, p. 45) ser "[...] a marca da era técnica e antropotécnica que os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção". Porém, "[...] há um desconforto no poder de escolha, e em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve" (Sloterdijk, 2000, p. 45).
3. Mal-estar no parque humano
As declarações do autor suscitaram reações fortemente negativas na imprensa alemã, deflagrando discussões polêmicas que ficariam conhecidas como "o debate Sloterdijk" ou ainda "o escândalo Sloterdijk-Habermas". Artigos de jornais se encarregaram de denunciar o filósofo por apoio e propaganda de práticas eugênicas. Tratava-se, entre outros textos, de "O projeto Zaratustra", de Thomas Assheuer, publicado no Die Zeit; o "Criador do Super-homem", de Reinhard Mohr, para o Der Spiegel; e o dossiê que esse mesmo jornal publicou sobre a questão, trazendo na capa a reunião de vários símbolos: Hitler, a ovelha Dolly, uma estátua de Arno Breker, Nietzsche e Lara Croft (Marques, 2001).
No artigo de Mohr (apud Marques, 2001, p. 364), lia-se em destaque: "O filósofo Peter Sloterdijk propagandeia a seleção pré-natal e o nascimento opcional: técnica genética como crítica social aplicada. Seu recente discurso sobre 'criação de humanos' traz traços de retórica fascista".
Entretanto, no centro desse debate estaria a figura não dos referidos articulistas, mas de Jürgen Habermas. Sloterdijk o acusaria de ser o verdadeiro incitador de interpretações de má-fé e sensacionalistas sobre suas análises. Longe de defender a purificação da espécie por meio da ciência moderna, sua conferência tematizava desafios éticos atuais, os quais não mais podemos nos furtar a pensar. Ademais, o filósofo conclamava a sociedade para "[...] assumir de forma ativa o jogo e formular um código das antropotécnicas" (Sloterdijk, 2000, p. 46).
Para além de seus elementos de tabloide, a polêmica entre os dois autores inicia uma trajetória de debates bioéticos, que procuram, entre outras questões, determinar os limites e possibilidades das tecnologias de melhoramento genético, já em franco desenvolvimento.
Sloterdijk (apud Brüseke, 2011) pensa a biotecnologia a partir do conceito de antropotécnica: práticas e saberes através dos quais os indivíduos buscam transformar a si mesmos, a fim de se superarem e se protegerem contra o perigo da morte. Em sua obra, "Du musst dein Leben ändern", o autor traça a história milenar dos exercícios morais de que os homens de diferentes culturas se valeram, com o intuito de produzirem a si mesmos.
Exercícios morais são "tensões verticais", influências norteadoras que atuam como empuxos para cima, "[...] a consciência emergente do desnível interior que faz com que o homem se levante" (Sloterdijk apud Brüseke, 2011, p. 99). O homem que assim se exercita age de forma semelhante ao asceta. Ele impõe a si um conjunto de disciplinas e provações, os quais lhe permitirão atingir um determinado desempenho.
Esse esforço, que busca romper com "repetições paralisantes", rumo a uma "diferenciação vertical", foi a força motriz da pedagogia ocidental (Brüseke, 2011). As religiões, o atletismo, as artes e os business-trainings são sistemas simbólicos e materiais distintos, mas comuns no ímpeto pela superação. O desafio de Sloterdijk é saber quais as próximas modalidades de exercício que a história nos reserva.
Habermas apresenta em "O futuro da natureza humana", de 2003, sua posição a respeito do tema da seleção genética. Ele é categórico ao rechaçar qualquer intervenção no DNA humano que vise o melhoramento das características da espécie. Conforme argumenta, o impasse gerado pelas novas tecnologias deve-se à dificuldade em se estabelecer parâmetros morais no contexto de uma cultura "pós-metafísica", na qual a eliminação das diferenças entre natural e artificial pela biotécnica produz uma crise na "[...] autocompreensão ética da espécie [...]" (Habermas, 2010, p. 33).
Ao modificarmos o repertório hereditário humano, a impossibilidade de distinguirmos entre "[...] o que cresceu naturalmente" e "o que foi fabricado" (Habermas, 2010, p. 33) coloca em risco o estatuto de pessoa autônoma. Este estatuto confere aos sujeitos dignidade, de modo que não possam ser instrumentalizados. Assim, permite-se que apenas coisas, e não seres humanos, sejam objetificadas, isto é, tornem-se meio para um determinado fim.
Habermas diferencia a seleção genética dirigida ao tratamento de doenças (denominada "eugenia negativa"), daquela voltada ao melhoramento de traços normais e não patológicos ("eugenia positiva"). A intervenção sobre o DNA humano para melhoramento submeteria a futura criança ao desejo e expectativas de terceiros, sobre os quais pouco ou nada restaria fazer. Tecnologias genéticas ou mesmo o uso de embriões humanos para pesquisa, são aceitáveis somente se restritos à cura de enfermidades (Habermas, 2010).
O autor toma como uma das condições para a autonomia e liberdade humanas a indeterminação biológica do corpo, anterior ao nascimento. A contingência e o acaso da natalidade permitiriam à criança ver a si mesma como autora de sua própria existência e adquirir a noção de autocontinuidade, essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana.
Habermas teme ainda o ressurgimento da eugenia em sua forma liberal. Isto significa que os futuros esforços de purificação da espécie serão engendrados não a partir de um estado fascista, do qual emanam medidas coercitivas de esterilização, segregação, ou ainda, extermínios em massa.
Práticas eugênicas autoritárias e centralizadas foram efetuadas ao longo da primeira metade do século passado. Entre as décadas de 1920 e 1930, leis de esterilização e segregação, com vistas a impedir a reprodução de sujeitos considerados débeis e degenerados, foram estabelecidas na Suíça, Dinamarca, Finlândia, México, Cuba, Estados Unidos, Islândia, Lituânia, Hungria, entre outros locais (Rose, 2006). Ao contrário, a eugenia liberal se basearia na lógica do livre mercado, reivindicada como direito individual de consumo.
As declarações de Habermas serão contestadas por bioeticistas que veem no melhoramento humano uma meta a perseguir. Entre eles destacam-se Allen Buchanan e Nick Bostrom. Estes autores procuram refutar o que acreditam ser as falácias de discursos semelhantes ao de Habermas, considerando-os imprecisos conceitualmente e retóricos em seu uso da linguagem.
A primeira objeção que fazem a estes discursos diz respeito à noção de "natureza humana". Autores como Habermas, Leon Kass, Michael Sandel e Francis Fukuyama advogam a favor de um "essencialismo normativo" (Buchanan, 2013, p. 125), acreditando ser possível deduzir regras e proibições morais, a partir do que consideram ser essencial ao humano. Ao realizar esta dedução, tais autores cometem a falácia de transformar uma alegação descritiva ("isto é assim"), em uma alegação normativa ("por ser assim, isto deve ser assim").
Para Buchanan (2013), aqueles que encontram a saída de um impasse ético, na conservação da natureza humana, ignoram pelo menos dois fatos: 1) a existência, na natureza, tanto de elementos aprazíveis, quanto nefastos; 2) a teoria darwinista, bem sucedida em elucidar aspectos do mundo natural, porém, em grande medida, ignorada pela filosofia.
A ideia de natureza como norma está associada à crença no que Buchanan (2013, p. 153) chama de "Analogia do Mestre Engenheiro". Opositores ao melhoramento, ainda que não adeptos da teoria do design inteligente, baseiam-se numa concepção equivocada da evolução. Acreditam que ela opere como um mestre engenheiro, criando o mundo natural segundo um plano, sendo o estado atual deste mundo, o melhor e mais adequado estado possível (Buchanan, 2013). Todavia, "[...] a evolução não produz objetos harmônicos e sem falhas: ela remenda produtos instáveis, cuja maior parte será destruída rapidamente, até que todos eles eventualmente expirem" (Buchanan, 2013, p. 156).
Ao ver destes críticos, insatisfatória também seria a separação defendida por autores como Habermas, entre tratamento e melhoramento. Enquanto o tratamento visaria reparar danos, curar doenças e devolver ao organismo a normalidade, o melhoramento buscaria ultrapassar esta normalidade, potencializando as habilidades originais de um animal, ou dotando-o de novas. Para Bostrom (2008), deve-se ver esta separação com desconfiança, e por diversas razões, como as que se seguem.
1) Na medicina contemporânea, práticas que não consistem em tratamento são cada vez mais comuns: cuidados paliativos, obstetrícia, métodos contraceptivos, medicina do esporte, vacinações, ortodontia, cirurgias plásticas, entre outras; 2) as definições de saúde e doença são, por si mesmas, objeto de disputa e debate; 3) características biológicas variam entre indivíduos, de modo que o melhoramento de um sujeito resultaria na posse de capacidades tidas como normais para outro indivíduo; 4) a tecnologia já nos dotou de incontáveis artefatos que possibilitam ao corpo atuar para além dos limites humanos (Bostrom, 2008). Sendo assim, o debate sobre modificação genética deverá assentar-se em outras bases que não a separação problemática entre tratamento e melhoramento.
Bostrom considera igualmente equivocado o modo como Habermas fundamenta a autonomia e dignidade humanas, a saber, na indeterminação pré-natal do repertório genético. A intervenção dos pais sobre os genes dos filhos impediria estes de levar uma existência autônoma, relegando-os à condição de bens de consumo (Habermas, 2010). Porém, a influência dos progenitores sobre a criança ocorre ainda que seus genes não sejam diretamente modificados.
Através da educação, os pais agem sobre o comportamento dos filhos, determinando em parte o campo de suas experiências futuras. Ademais, biologicamente, a escolha de determinada parceria sexual, o uso de vitaminas e suplementos durante a gravidez, vacinações, entre outras medidas, afetam de modo substantivo a constituição física da prole. Em países como os Estados Unidos já se tornou comum, em clínicas de fertilização, a escolha de doadores com traços desejados pelos pais (Bostrom, 2008).
Ao invés de limitar a autonomia dos filhos, Bostrom acredita que o melhoramento poderá aumentar o espectro de suas escolhas, tornando-os ainda mais livres e autônomos. "Ser saudável, mais esperto, ter uma gama mais ampla de talentos, ou possuir mais autocontrole, são bênçãos que tendem a abrir mais caminhos na vida, do que bloqueá-los" (Bostrom, 2005, p. 212).
4. Conclusão
Este artigo buscou problematizar questões ainda pouco debatidas fora dos círculos bioéticos de língua inglesa. O caráter experimental das tecnologias de melhoramento genético deixa a falsa impressão de pertencerem a um futuro especulativo e distante. No entanto, os desenvolvimentos recentes em genética exigem refletirmos sobre práticas que influenciarão de forma decisiva as próximas décadas do gênero humano.
O surgimento de novas tecnologias é usualmente acompanhado de reações diversas, polarizadas entre ufanismo ingênuo e profecias de catástrofes. No ano de 1999, Sloterdijk apresentou, diante de uma plateia de acadêmicos e membros da imprensa, uma conferência sobre a atualidade do humanismo. Ele compreendia este fenômeno intelectual como o responsável por domesticar o homem ocidental, através da força civilizatória da cultura.
Todavia, com o advento recente das hipermídias e a transformação dos meios de comunicação, o humanismo conheceria sua crise. Em decorrência, os mecanismos tradicionais de formação humana ver-se-iam colocados em xeque. A biotecnologia emergiria como eventual potência criadora de sujeitos. Nas modernas incubadoras sociais, os homens contariam com um novo conjunto de poderes para criarem a si mesmos. Entre os mais controversos recursos biotecnológicos encontra-se a manipulação genética humana.
A menção de Sloterdijk à sombra projetada pela biotécnica, e à necessidade de formular um código que a regulasse, provocou respostas ambivalentes por parte de intelectuais, em especial Jürgen Habermas. Ele acusará Sloterdijk de emitir palavras explosivas com o único objetivo de alimentar a mídia sensacionalista. A polêmica surgida entre os dois autores situa-se na trajetória de um debate que nos atravessa hoje. Habermas condena o uso da tecnologia para fins de melhoramento genético. Se colocado em prática, o melhoramento destruiria o fundamento ontológico que nos confere dignidade, autonomia, liberdade e que baliza as relações éticas entre os indivíduos.
As declarações do filósofo são objetadas por bioeticistas que consideram o melhoramento genético humano aceitável. Entre eles estão autores como Allen Buchanan e Nick Bostrom. Rompendo com a dicotomia tratamento/melhoramento, entendem a noção de natureza humana como inadequada para oferecer um fundamento satisfatório a decisões éticas. Tampouco o acaso dos nascimentos (isto é, a indeterminação biológica pré-natal) consistiria em um parâmetro legítimo para pensarmos a autonomia e liberdade humanas.
Diante deste cenário, cumpre lançarmos um olhar crítico sobre o presente, estabelecendo critérios para o uso adequado da biotecnologia. A discussão sobre os efeitos das tecnologias genéticas deve se basear em uma análise racional e eticamente responsável acerca de seus riscos e benefícios, evitando-se ufanismos ingênuos, assim como discursos distópicos.
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Endereço para correspondência
Rafael Nogueira Furtado
E-mail: rnfurtado@yahoo.com.br
* Pós-doutorando em Psicologia pela UFJF.