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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dic. 2020
RESENHAS
Resenha do livro Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo - volume 2: tempo e historicidade
Deborah Moreira GuimarãesI; Christiane Costa de Matos FernandesII
IDoutora em filosofia pela Unifesp. Contato: deborahmoreiraguimaraes@gmail.com
IIMestre em Filosofia pela UFMG e doutoranda em Filosofia pela UFRJ. Contato: cristianecostamf@gmail.com
Palavras-chave: Martin Heidegger. Ser e tempo. Mundo. Historicidade. Fenomenologia.
Resenha crítica de: Casanova, Marco Antonio. Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo. Vol. 2: tempo e historicidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Via Verita, 2020.
Introdução: a continuidade de um projeto
Dando continuidade a Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo - vol. 1: existência e mundaneidade - lançado em 2017 - Marco Casanova nos oferece mais um volume do projeto de suas leituras fenomenológicas de Ser e Tempo. Se, no primeiro volume, o autor detém-se na "análise preparatória fundamental do ser-aí" (§9 ao §44), agora, seu trabalho percorrerá os parágrafos seguintes a fim de oferecer ao leitor a visão completa de sua proposta descritivo-interpretativa.
O subtítulo do segundo volume de Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo não poderia sintetizar melhor o que está em jogo na segunda parte da obra capital de Martin Heidegger. As relações entre tempo [Zeit] e historicidade [Geschichtlichkeit] originam-se da temática desenvolvida no primeiro volume do presente texto, o qual abarca as questões relacionadas, sobretudo, à existência em sua relação com a mundaneidade.
Antes de iniciarmos esta resenha, é necessário que tenhamos clareza em relação a dois pontos nodais que atravessam a proposta de Casanova em consonância com a obra de Heidegger: 1) em que consiste propriamente uma "leitura fenomenológica"; 2) qual é o motivo de sua interpretação ser dividida em dois momentos.
Uma leitura fenomenológica, a princípio, deve acompanhar a noção do método no qual ela se apoia. O método fenomenológico, ao contrário do analítico, por exemplo, não considera os problemas filosóficos como problemas de linguagem, pois, para a fenomenologia, não são as expressões linguísticas que abrem os campos de validação, isto é, as expressões apenas indicam um mero visar significativo que será ou não evidenciado pelo fenômeno visado. Logo, o significado não é provido pela palavra expressa, pois o conceito de algo é correlato à sua mostração, mais especificamente aos seus modos de fenomenologização. Portanto, para a fenomenologia, são os modos de aparecimento dos fenômenos que orientam significações possíveis. Dito isso, uma leitura fenomenológica de uma obra filosófica não pode ser uma leitura que se restringe a verificar as premissas e as conclusões lógicas internas à obra, a fim de justificar a validade de suas teses e conclusões. Ela deve seguir o movimento da própria obra, observando se esta foi capaz de acompanhar exaustivamente os fenômenos a que se propõe a descrever, e, ainda, se essa descrição teve a devida transparência acerca de seus pressupostos históricos, teóricos e situacionais.
Nesse sentido, ao retomar o propósito de tecer leituras fenomenológicas de Ser e tempo, Casanova reitera alguns elementos de análise empreendidos no volume anteriormente publicado, como o acompanhamento descritivo das estruturas correspondentes ao fenômeno primordial da analítica existencial: existência e facticidade, sendo o fenômeno em questão o próprio ser-aí, o Dasein. Visando integrar tais processos descritivos a um projeto amplo de compreensão da obra como um todo, o autor procura evidenciar a relevância de cada parte analisada no projeto global da ontologia fundamental, recorrendo, vez por outra, a textos do entorno de Ser e tempo. Dentre os pontos mais relevantes de suas leituras fenomenológicas, cabe destacar a importância de tal atitude no conjunto dos esforços presentes no livro aqui resenhado, como observa Casanova no seguinte trecho:
Pensar fenomenologicamente significa entre outras coisas jamais pressupor que nossas experiências determinam radicalmente o que é por nós experimentado. É nesse sentido, por exemplo, que a noção vulgar de tempo subjetivo carrega em si uma marca indelevelmente não fenomenológica. Na medida em que todas as experiências possuem, para a fenomenologia, uma natureza intencional, os conteúdos da experiência se impõem àquele que as experimenta e jamais se mostram simplesmente como o resultado de algo assim como uma elaboração interna das experiências. Exatamente isso, contudo, tem um impacto sobre o que aqui está em questão. (CASANOVA, 2020, p. 232)
Doravante, o cerne da experiência fenomenológica é justamente a natureza intencional que incessantemente acompanha tudo o que está em jogo no existir humano. Rompendo, assim, com o fosso herdado, sobretudo, pela tradição metafísica moderna entre subjetividade e objetividade, Mundo e historicidade é um convite à reflexão detida da obra capital de Heidegger, acompanhado de um direcionamento do olhar às coisas mesmas, ao cotidiano repleto de exemplos, que sempre, uma vez mais, podem mostrar o que está presente no texto via processos descritivos. Essa constatação nos leva ao segundo ponto: a divisão - em consonância com a obra de Heidegger - da leitura em duas partes.
Seguindo o próprio movimento de Ser e tempo - que é também acompanhar o fenômeno que Heidegger se propõe a descrever - Casanova, no volume lançado em 2017, detém-se na analítica existencial preparatória da primeira parte, ou na constituição fundamental do Dasein enquanto ser-no-mundo. Isso fica claro no subtítulo da obra, vol. 1: existência e mundaneidade. Agora, o segundo volume quer retomar a constituição temporal dessa relação fundamental entre ser-aí e mundo, tanto em relação à temporalidade existencial [Zeitlichkeit] como em relação à temporialidade [Temporalität] histórica do mundo, o que justifica o subtítulo de seu segundo volume: tempo e historicidade. Casanova retoma a descrição da multiplicidade dos fenômenos da análise preparatória da primeira seção apresentados no primeiro volume de Mundo e historicidade para compreendê-los em sua unidade em função da totalidade estrutural fundante do cuidado [Sorge]. Contudo, vale lembrar, a investigação do fundamento ontológico do ser-aí humano, ou seu sentido de ser, é ainda um meio para se colocar de modo adequado a questão pelo sentido de ser em geral. Desse modo, Casanova encerra suas leituras fenomenológicas de Ser e tempo introduzindo o "fracasso de Ser e tempo", ou a impossibilidade de a obra realizar aquilo que Heidegger havia proposto como linha diretiva - ou meta provisória - da investigação: "a interpretação do tempo como horizonte possível de toda e qualquer compreensão de ser em geral" (HEIDEGGER, 2006, p. 1).
Portanto, não se trata de uma divisão meramente protocolar, uma vez que o segundo volume de "leituras fenomenológicas de Ser e tempo" concentra-se justamente naquilo que demarca a variação indicativo-formal da obra. Exatamente por não se tratar apenas de um comentário detido, mas também de uma análise do que está em jogo no projeto da analítica existencial dos anos de mil novecentos e vinte, a divisão seguida por Casanova como fio metódico de seu texto segue a argumentação que nos permite acompanhar os movimentos da obra heideggeriana.
O livro está dividido em três capítulos: 1. Mundo e mortalidade: da finitude da existência à finitude do tempo; 2. Tempo e historicidade: da temporalidade existencial da decisão à temporialidade destinamental do mundo; 3. Considerações finais sobre a passagem da temporalidade do existir finito para a temporialidade histórica do mundo e sobre o fracasso de Ser e tempo. A intenção presente nesta resenha é destacar os pontos centrais da obra de Casanova. Porém, não podemos deixar de observar a especificidade de uma resenha de um livro que acompanha detalhadamente uma obra como Ser e tempo. Ao acompanhar a leitura de Casanova, destacando seus momentos principais, algo acaba por se perder no caminho.
Explicamos: podemos dizer que Ser e tempo é um livro que se desdobra em camadas, as análises se aprofundam e ganham seu sentido a partir da totalidade da obra. Muitas vezes, o que Heidegger indica nos primeiros parágrafos só será elucidado ao final. Casanova acompanha esse movimento, mas se esforça - com sucesso - em iluminar os vínculos internos de Ser e tempo.
Mundo e mortalidade: da finitude da existência à finitude do tempo
O primeiro capítulo do segundo volume de Mundo e historicidade abarca o caminho decisivo que permite ao leitor acompanhar as descrições que integram a passagem da finitude da existência à finitude do tempo. Tal descrição inicia-se pela relação entre morte e totalidade, uma vez que o "o problema da morte é introduzido em Ser e tempo, no parágrafo 45, a fim de colocar de maneira radical a questão acerca da totalidade do todo estrutural" (CASANOVA, 2020, p. 9). Como uma espécie de consideração prévia do problema norteador desse primeiro capítulo, o leitor encontrará uma retomada de importantes teses capazes de fornecer indicativos de leitura, isto é, de compreensão das lacunas que até então inviabilizavam interpretações globais desse autor por vezes tido como pensador de escrita tão circular e de difícil entendimento.
Não se trata de simplificar problemas complexos. Pelo contrário, trata-se de, por vezes, sair do léxico próprio à recepção heideggeriana com vistas à elucidação de seus indicativos formais, visando recuperar os correlatos que nos permitem compreender do que se trata, de fato, o fenômeno ser-no-mundo e suas estruturas primordiais. Noutros termos, Casanova lança mão de exemplos e de processos descritivos que dão conta de recuperar os fenômenos que estão enraizados nos acompanhamentos conceituais de Ser e tempo, proporcionando ao leitor uma visão tanto hermenêutica da obra, que pode ser claramente compreendida pelo leitor mais habituado à prática da leitura de textos filosóficos, como também um exercício fenomenológico de descrição das estruturas que acompanham o fenômeno do existir, cujas implicações na vida fática podem ser, por meio do direcionamento do olhar às coisas mesmas, percebidas por todos aqueles que se propõem à prática da fenomenologia em seus diversos campos de atuação.
Dessa forma, uma recuperação fundamental é a distinção entre existenciais e categorias, responsável por promover toda uma chave de leitura de Ser e tempo e por delimitar o campo a partir do qual será possível pensar a raiz da analítica existencial, o problema da diferença ontológica e aquilo que Casanova designará como "a prioris performáticos". Como Casanova explica,
Heidegger procura desde o princípio diferenciar elementos de determinação explicativa das razões pelas quais um determinado ente é como é e está onde está em sua aparência definida (categorias) daquelas estruturas que acompanham performativamente o próprio modo como o existir sempre a cada vez se dá (existenciais) (Idem, p. 19).
Tal diferenciação implica pensar a existência em seu caráter de acontecimento, no qual cada existencial se realiza mediante o próprio ato de existir, sem determinações previamente dadas que pudessem fixar propriedades capazes de reter modos específicos de existir. No entanto, pensar ser como acontecimento não significa implodir o fato de que, na dação de ser, a existência ocorre sempre de modo consonante com os existenciais, num vínculo originário com o todo estrutural, vínculo que será responsável por constituir o fenômeno do ser-aí ou ser-no-mundo. (Cf. ibid., p. 20).
Assim, as três divisões do primeiro tópico situam o problema da morte no interior da analítica, visando, a partir de seu aspecto ôntico, alcançar a finitude existencial do ser-aí humano. Se as possibilidades já são em si mesmas marcadas por uma finitude que acompanha o caráter tripartido da abertura, já elucidado por Casanova com grande riqueza de detalhes no primeiro volume de suas leituras fenomenológicas de Ser e tempo, o fenômeno da morte nada mais é do que o encerramento da dinâmica do descerramento (Cf. CASANOVA, 2020, p. 25).
Ao se encerrar essa dinâmica do descerramento, encerram-se também a abertura, a atualização e a mobilização de sentidos, encerra-se toda e qualquer possível direcionalidade do existir e, portanto, encerra-se aí a assunção de possibilidades de ser. Somente um ente sem qualquer direcionalidade prévia, isto é, sem determinações quididativas, pode se realizar enquanto ente temporal. Noutras palavras, somente porque não há propriedades capazes de reter modos de ser que o ser-aí pode sofrer, com tudo o que esse termo implica, a perda de seu aí, ou seja, a perda de suas possibilidades finitas e historicamente sedimentadas de ser, recaindo no não mais existir.
Para entrar no problema da finitude, Heidegger parte, no entanto, de uma análise ôntica do fenômeno da morte. Desde os cuidados com o túmulo, por exemplo, até as implicações ontológicas do morrer, o autor analisa as variações da perda do aí em suas diversas ocorrências, o que é detidamente acompanhado na leitura realizada por Casanova. Assim, partindo do fenômeno do morrer que abate indistintamente todo e qualquer ser vivo, o que será cunhado pelo termo alemão enden, a análise da morte percorre fenômenos intermediários, verenden e ableben, até chegar na morte propriamente dita do ser-aí humano, cunhada pelo termo sterben.
Dessa forma, se morrer implica encerrar a dinâmica de descerramento que acompanha de maneira indelével a própria existência, a morte torna-se o horizonte estrutural do existir, isto é, ser-aí é ser um projeto existencial finito. Nas palavras de Casanova,
todo o movimento descritivo acima teve por intuito revelar o quanto a morte não tem como ser pensada como um fato empírico que supostamente chega para todo ser-aí algum dia, produzindo um dano irreparável na coisa que se é, mas pertence, inversamente, à própria dinâmica intencional que se dá com a existência. Nós não morremos porque experimentamos um dia a morte, mas morremos porque a existência possui uma relação originária com a morte enquanto possibilidade da impossibilidade do existir. (CASANOVA, 2020, p. 49)
Conceber a morte como a possibilidade da impossibilidade do existir implica situá-la como a possibilidade extrema, intransferível, intransponível e inexorável da existência (Cf. CASANOVA, 2020, p. 49). De maneira mais detalhada, pensar a morte requer estabelecer uma relação direta com a questão da totalidade, uma vez que o ser-aí humano é o ente que jamais pode se totalizar.
Assim, finalizando os desdobramentos da análise da morte com vistas ao ser do ente que jamais se totaliza, Casanova detém-se no problema da voz da consciência e, de maneira consonante, na questão da culpa e da decisão antecipadora, temática que pode aludir a possíveis implicações éticas tendo em vista o caráter nulo do fundamento que cada ser-aí humano é de suas próprias ações, de sua própria vida, de seu existir.
Decisão [Entschlossenheit] é um dos termos mais relevantes no interior da analítica - é aquele que reúne em si uma série de modos próprios de fenomenologização com vistas à singularização. Trata-se de um "modo do descerramento do ser-aí" (Cf. idem, pp. 95-96). Essa temática perpassa a obra como um todo, mas aparece com mais destaque no parágrafo 60, o qual, observa Casanova, é certamente um dos parágrafos mais importantes de Ser e tempo. A chave de leitura proposta em Mundo e historicidade resgata também, no contexto do parágrafo aqui em jogo, "a possibilidade de compreensão do projeto de uma hermenêutica da facticidade e de uma destruição da história da ontologia", isto é, travando diálogos extremamente relevantes para com a extensão da analítica tanto quanto com o projeto do início da década de mil novecentos e vinte (Cf. ibid., pp. 95-96).1
Doravante, os temas até agora elencados possuem relações muito estreitas com a temática desenvolvida no primeiro volume de leituras fenomenológicas. Isso acontece não somente porque os temas de Ser e tempo estão emaranhados, mas também porque há necessidade de retornos, conforme o parágrafo ao qual se avança. Por exemplo, ao seguirmos para o tópico acerca da singularização e da mundaneidade, o qual reconstrói, de modo descritivo, o caráter essencialmente temporal do cuidado, nos deparamos com alusões, sobretudo, ao parágrafo quarenta de Ser e tempo.
O parágrafo 40 não é importante apenas no contexto de sua ação, mas também em toda a amplitude que Ser e tempo pode ter, e, consequentemente, em toda a vastidão que a analítica existencial dos anos de mil novecentos e vinte alcança com os textos que circundam a obra capital (Cf. ibid., p. 93). Tratar da disposição e da tonalidade afetiva fundamental da angústia implica problematizar singularização e mundaneidade sem perder de vista a sua sustentação: a estrutura do cuidado.
Ao dizer que a cada uma das partes da estrutura do cuidado corresponde uma ekstase temporal específica, busca-se reafirmar o papel da temporalidade como sentido ontológico do cuidado. Percebe-se aí uma co-dependência das estruturas primordiais apresentadas na analítica existencial: cuidado, temporalidade e abertura. Em cada um desses momentos, situa-se uma parte da constituição tripartida da abertura, isto é, do prisma pelo qual a verdade é apresentada na ontologia fundamental.
Partindo das relações entre existência e temporalidade, percorrendo os modos de temporalização presentes na ontologia fundamental e a estreita co-dependência entre as ekstases temporais e os existenciais de descerramento do aí - compreensão, disposição e discurso - o segundo volume de leituras fenomenológicas chega "à descoberta de que o próprio descerramento do aí sempre acontece em meio a uma temporalização una e constante dos existenciais mesmos que constituem tal descerramento" (Cf. ibid., p. 198).
Afirmar que ser é tempo implica evidenciar a tese, caminho percorrido por Ser e tempo e plenamente evidenciado e discutido em Mundo e historicidade, de que o tempo é o horizonte de abertura de sentido de ser. Segundo Casanova,
tal como se encontra formulado no parágrafo 66: "A estrutura de temporalização da temporalidade se desentranha como a historicidade do ser-aí"2. Nós nos encontramos agora, portanto, em meio a um desdobramento do caminho da descrição, que conduz de certa forma o movimento do texto heideggeriano em Ser e tempo daqui até o fim: em primeiro lugar, é preciso diferenciar o ente temporal do ente intratemporal; em segundo lugar, explicitar o caráter derivado do tempo cotidiano em relação ao tempo existencial a partir de uma análise das modulações do tempo existencial nos modos de abertura da cotidianidade; e, por fim, não perder de vista a tarefa de uma destruição da história da ontologia, de uma liberação da historicidade de seu aprisionamento inicial nas posições historiológicas, revelando justamente a fundação da historicidade na temporalidade (ibid., p. 154).
Noutras palavras, da temporalização da temporalidade chegamos ao problema da historicidade do ser-aí humano. A descrição fenomenológica de Ser e tempo desdobra-se na relação entre temporalidade e mundaneidade e, consequentemente, na necessidade de averiguar em que medida o mundo se constitui como transcendência do ser-aí humano e, de maneira cooriginária, o tempo, como transcendência do mundo, temas que serão apresentados de maneira extremamente detalhada na última subdivisão do primeiro capítulo do livro aqui resenhado.
Os três pontos presentes na citação são plenamente comentados no decorrer das leituras de Casanova. Tanto a diferenciação entre entes temporais e intratemporais quanto a elucidação do caráter derivado do tempo cotidiano em relação ao tempo existencial estão imbricadas na tarefa de destruição da história da ontologia, já anunciada no parágrafo sexto de Ser e tempo e na consequente dissociação entre historicidade e historiologia, uma vez que esta não possui como seu fundamento a temporalidade.
Resgatar a importância das relações entre tempo e historicidade é, portanto, o objetivo central de uma ontologia fundamental, isto é, que se pretenda ser o fundamento de toda e qualquer ontologia regional, na medida em que a temporalidade e a historicidade são constitutivas da transcendência do mundo e do ser-aí humano. Aproximar-se da verdade requer questionar as bases que tornam possível a experiência propriamente dita da verdade, ou seja, que tornam possível a pura aparição do algo como algo e, em última instância, que viabilizam os modos de fenomenologização a partir dos quais o mundo aparece (Cf. ibid., pp. 233-234). Mundo é totalidade significativa, é horizonte de sentido e é também transcendência do ser-aí humano. Tendo tais aspectos em vista, passemos agora ao cerne de "Tempo e historicidade", passando da transcendência do mundo à constituição do campo histórico.
Tempo e historicidade: da temporalidade existencial da decisão à temporialidade destinamental do mundo
Neste capítulo, Casanova promove a apresentação interpretativa do nexo estrutural entre temporalidade existencial (como o sentido de ser do ser-aí humano) e a temporialidade histórica:
(...) nós nos vemos agora diante da necessidade de pensar pela primeira vez de maneira explícita o cerne do projeto da ontologia fundamental em sua conexão originária com a analítica existencial: a apreensão do tempo existencial como fundamento propriamente dito da historicidade (CASANOVA, 2020, p. 238).
A passagem supracitada é acompanhada por uma nota que o próprio autor reconhece como polêmica, mas que nos parece uma leitura legítima na medida em que acompanhamos a unidade do projeto de Ser e tempo. Segundo Casanova, é possível dizer que é no tópico c do parágrafo 69 que a obra de Heidegger propriamente se inicia, uma vez que Heidegger, até o parágrafo 69 de Ser e tempo, dedicou-se a analisar as estruturas de sentido vinculadas ao sentido de ser do ser-aí humano: a abertura compreensivo-interpretativa do ser-aí remetida ao mundo e o sentido de ser do ser-aí como temporalidade [Zeitlichkeit]. A temporalidade acontece na existência mesma do ser-aí, na unidade de seu fenômeno, que se mostrou como preocupação ou cuidado [Sorge]. E, ainda, acontece ao mesmo tempo em que o ser-aí interpreta, compreendendo, as possibilidades de seu mundo. Portanto, a constituição aberta e remetida ao mundo (ao seu "aí") do ser-aí revela-se como acontecimento de seu sentido de ser que desvela suas possibilidades e o próprio campo em que realiza seu ser, em suma, a temporalidade que se temporaliza. Aqui temos o ponto decisivo que orienta a leitura de Casanova no segundo capítulo de seu livro. Se a existência do ser-aí humano se realiza fundamentalmente na temporalização de si, em uma relação inexorável com sua situação (seu aí), na medida em que sua unidade ekstática se realiza no mundo, seu aí, ou sua situação histórica, também se realiza de maneira correlata. Portanto, a situação histórica, o mundo ou o aí, em suma, o campo horizontal de manifestação de todo e qualquer ente, está vinculado correlativamente ao tempo ou, de maneira mais precisa, à temporalização: "na medida em que uma ekstase temporal emerge na unidade da temporalização, essa ekstase possui, em outras palavras, um correlato em um esquema horizontal correspondente" (idem, p. 244).
A partir daí, Casanova retoma o tema do tópico c do parágrafo 69: "o problema temporal da transcendência do mundo". Observa-se aqui um traço marcante do trabalho de Casanova: a clareza expositiva que ultrapassa o mimetismo do jargão heideggeriano e, por isso, torna-se uma exposição lúcida. Acompanhemos sua escrita: "Em seu título, portanto, encontra-se implicitamente retomada a compreensão do mundo como transcendência do ser-aí humano. Tal compreensão se diz aqui de duas maneiras específicas" (ibid., p. 247). Maneiras que Casanova indica em seguida: transcendental e transcendente. "Transcendental, na medida em que tudo o que pode se mostrar enquanto algo precisa necessariamente se mostrar a partir do mundo como condição de possibilidade de tal mostração" (ibid., p. 247), mas também "transcendente, na medida em que a própria noção de horizonte de manifestabilidade lança o mundo para além de tudo aquilo que pode se mostrar em seu interior" (ibid., p. 247). Nesse momento, o autor esclarece a noção de horizonte que atravessa o conceito de mundo em Heidegger. Mundo não é um somatório de todos os entes de seu interior, mas está sempre além daquilo que ele torna manifesto. Ora, mas se o ser-aí humano é sempre as possiblidades históricas, situativas e projetivas de seu aí, essas mesmas possibilidades só podem ser descerradas na medida em que o ser-aí humano é.
Esse será o fio que atravessa os subitens do capítulo, primeiro em relação à espacialidade (2.1.1), seguido pelo esclarecimento dos fundamentos ontológico-existenciais da história: gênese temporal da historicidade (2.1.2), passando pela possibilidade da história como ciência (2.1.3) e, finalmente, a leitura do tempo da ocupação à constituição do tempo do mundo (2.1.4).
O tópico 2.1.1 de seu livro, "o tempo como determinação última de toda e qualquer abertura do espaço existencial", é precedido pela indicação de que a noção de horizonte carrega consigo imediatamente a noção de espacialidade, como nos diz Casanova: "Tudo isso nos lança, então, imediatamente na direção da articulação originária entre temporalidade e o mundo enquanto espaço propriamente dito do ser do ser-aí humano" (ibid., p. 248). O ponto central da análise aqui é: toda dinâmica de temporalização do ser-aí tem o espaço existencial como imediatamente correlato, mas a temporalidade [Zeitlichkeit] possui primazia na medida em que é o sentido de ser do ente ontologicamente indeterminado que precisa ser no tempo finito de sua existência, então a espacialidade própria ao ser-aí também precisa se fundar na temporalidade. "A pergunta que se impõe, então, como que por si mesma é: o que significa propriamente nesse contexto fundar a espacialidade existencial na temporalidade?" (ibid., p. 250). É essa questão que orienta a leitura de Casanova nesse momento do capítulo e que o leitor pode acompanhar por meio da descrição interpretativa de algo assim como o espaço. Essa descrição possui o que podemos chamar de máxima fundamental: "Não há, em suma, espaço sem espacialização" (ibid., p. 260). A descrição de Casanova possui o cuidado em não conduzir o leitor a uma interpretação equivocada de que Heidegger ou simplesmente inverte a tendência tradicional de pensar o tempo a partir do espaço ou modula uma noção de espaço em função da temporalidade como se fosse um conceito determinado, concebido por um ente que é temporal.
No tópico 2.1.2, "fundamentos ontológico-existenciais da história: gênese temporal da historicidade", Casanova inicia sua exposição realizando uma importante retomada do parágrafo 45 de Ser e tempo, relacionando-o ao parágrafo 72. Essas passagens se complementam tendo em vista que, logo no início do parágrafo 72, Heidegger retoma o sentido mesmo da analítica existencial enquanto voltada à meta de uma possibilidade de resposta à questão do sentido de ser em geral. E, portanto, é somente com a delimitação própria do fenômeno em que algo como ser (compreensão de ser) se torna acessível que será fenomenologicamente viável adentrar à questão mesma do sentido de ser em geral. Recuperando uma passagem paradigmática do parágrafo 72 de Ser e tempo, Casanova apresenta o "'nexo vital', no qual o ser-aí pode, então, pensar alguma relação com o início e o fim" (2020, p. 270). Esse nexo se estende entre o nascimento e a morte do ser-aí. Casanova esclarece: "não porque ele factualmente nasceu um dia e porque ele presumivelmente vai morrer com certeza um dia também" (idem, p. 270), ou seja, não porque o ser-aí poderia de algum modo ser considerado um ente que inicia uma jornada no tempo e no espaço e que termina essa jornada com a morte certa no interior dessas instâncias. Tampouco é o caso de considerar o ser-aí como uma coisa dotada de uma força vital que mobiliza por meio de um corpo vivo a recuperação do passado e o vislumbre do futuro; passado como algo que foi e que não está mais presente e futuro como coisas que serão e não se fazem presentes. O acontecimento do ser-aí não é como um movimento de um ente subsistente; o acontecimento do ser-aí atualiza, torna vivente, no instante de sua existência mesma, o passado (ter-sido) e a abertura antecipativa do porvir. Desse modo, historicidade é aquilo que se articula através do acontecimento mesmo do ente cujo sentido de ser é a temporalidade, mas que sempre realiza as possibilidades de seu ser remetido ao seu espaço existencial: seu aí. Em suma, historicidade é o que acontece correlativamente com o horizonte quando o ser-aí se temporaliza. Por isso, Casanova afirma: "não há absolutamente nenhuma distância originária entre temporalidade e historicidade. (...) é sempre a partir da temporalidade que se alcança plenamente a historicidade como o caráter propriamente dito de ser do campo existencial" (ibid., p. 273). Essa análise traz consequências para o problema da história enquanto ciência positiva ou historiologia, como denomina Heidegger (ibid., pp. 271-284). Porém, ela traz também - de modo ainda mais radical - consequências para a maneira como compreendemos vulgar e impropriamente o passado e o futuro. Tendo em vista, mais uma vez, a correlação entre temporalidade do ser-aí e temporialização do horizonte, passado e futuro revelam-se de maneira mais originária como herança e destino, correlacionados inexoravelmente à responsabilidade e à liberdade do ser-aí (ibid., pp. 284-316).
No tópico 2.1.3, "da possibilidade histórica de uma lida historiológica com o passado: bases fenomenológico-existenciais da ciência histórica", Casanova retoma, novamente em consonância com a própria apresentação realizada por Heidegger, o problema da historiologia, ou de maneira mais precisa, o duplo desdobramento do problema. "Por um lado, a ligação originária entre historiologia e ser-aí humano enquanto ente histórico; por outro lado, a repercussão da essência histórica do ser-aí humano sobre a configuração situativa da historiologia" (ibid., p. 317), tendo em vista que essa "configuração situativa da historiologia" diz respeito à ciência histórica enquanto comportamento possível do ser-aí como modulação de seu caráter fundamental de ser-no-mundo. Analisando o parágrafo 76 de Ser e tempo, Casanova orienta a leitura a partir da relação entre uma lida científica com o passado e o caráter propriamente histórico que emerge da relação entre a temporalidade do existir humano e o seu horizonte correlato. O cerne da leitura de Casanova está em esclarecer que não se trata de uma mera apresentação sobre relações possíveis entre ciência histórica e historicidade, ou seja, o que está em jogo não é simplesmente dizer que algo como a historiologia só é possível em função do ser-aí, mas no interior de um projeto mais amplo de pensar as possibilidades ontológico-existenciais das ciências em geral, isto é, trata-se de pensar a fundamentação existencial da ciência histórica. (ibid., pp. 326-334).
Finalmente, no tópico 2.1.4, "do tempo da ocupação à constituição do tempo do mundo: bases astronômicas da quantificação, databilidade, indicação e caráter público do tempo cotidiano", Casanova diz : "porquanto o texto de Ser e tempo descreveu até aqui a relação entre história e historiologia (...) ele desconsiderou quase que completamente a compreensão cotidiana do ser-aí e suas implicações para o modo impessoal de determinação do tempo" (2020, p. 335). O ponto decisivo do problema é que o modo cotidiano do ser-aí em sua facticidade não é algo que pode ser suprimido após o processo de singularização, ou seja, a assunção pelo ser-aí de sua nulidade e a transparência de seu caráter situativo ainda o direciona ao seu aí: à sua existência fática. Em outras palavras, em verdade, a singularização reconduz o ser-aí ao "aí" que ele tem que ser e que ele radicalmente é. Desse modo, analisar o tempo na cotidianidade é fundamental para a compreensão da manifestação do sentido de ser do existente no horizonte compartilhado no qual esse ente sempre se encontra, de início e na maioria das vezes, e ao qual sempre retorna. Portanto, como Heidegger indica no parágrafo 78 de Ser e tempo, antes de toda investigação temática, na realização de algo assim como pesquisas científicas como modo de ser do ser-aí humano, o ser-aí orienta-se pelo tempo, ou seja, "conta com o tempo". Se inicialmente o que está em jogo é a transparência do modo originário de realização do tempo que não pode ser reduzido à sua compreensão como tempo subsistente a ser quantificado, é necessário também ter clareza de que o horizonte mesmo de realização das possibilidades do ser-aí, já na lida com utensílios, atravessa o ser-aí em ritmos que normatizam sua performance, ou seja, o tempo do mundo (ibid., pp. 339-355).
Considerações finais sobre a passagem da temporalidade do existir finito para a temporialidade histórica do mundo e sobre o fracasso de Ser e tempo
Podemos dizer que o terceiro capítulo de Mundo e historicidade joga luz ao seu projeto de "leituras fenomenológicas de Ser e tempo" como um todo. Recuperando o nosso argumento inicial, a saber, que uma leitura fenomenológica deve seguir o próprio movimento da obra à qual se dedica, podemos afirmar que Casanova realizou, até aqui, a primeira tarefa. Agora, portanto, ele realizará a segunda. Pode-se questionar o fato de que mesmo Heidegger reconhece os limites de seu projeto em Ser e tempo e que Casanova ainda acompanha a sua leitura (2020, p. 362). Mas, detendo-se no cerne do capítulo, nota-se que o desdobramento da análise é um pouco mais complexo e que o livro aqui resenhado não se delimita à explicação tardia de Heidegger acerca da interrupção do projeto de Ser e tempo. (ibid., p. 365) .
Para Casanova, Ser e tempo possui um problema estrutural desde sua "fundação", ou um "vício de origem, a sua dificuldade instransponível" (ibid., p. 362). Trata-se de "um fosso intransponível entre a temporalidade existencial do ser-aí humano e a temporalidade do ser" (ibid., p. 371), não porque não exista o ponto de encontro, mas porque se revelou impossível, no desdobramento mesmo das análises heideggerianas em Ser e Tempo, a passagem entre a temporalidade e a historicidade do ser-aí e a temporalidade e a historicidade do ser:
Enquanto a temporalidade existencial mobiliza o campo significativo como um todo, sem que jamais se tenha como dizer o que reúne a totalidade em sua unidade, o tempo histórico se caracteriza justamente por se constituir como uma medida que transcende tais mobilizações (ibid., p. 371)
Casanova questiona como foi possível que Heidegger, leitor exemplar da obra de Dilthey, não tenha percebido que o que faltava em sua obra capital, tendo em vista a meta de interpretação do tempo como horizonte possível de toda e qualquer compreensão de ser em geral ,era " a possibilidade de dizer qual é o nexo estrutural que liga todos os significados e unifica o campo de manifestabilidade do ente enquanto ente" (ibid., p. 371). O ponto decisivo do argumento é que o tempo histórico, a historicidade do ser, ultrapassa as mobilizações realizadas pela temporalidade existencial do ser-aí humano, pois ela se comporta como uma medida que atravessa inclusive as próprias possibilidades de temporalização do ser-aí. Desse modo, em uma análise propriamente fenomenológica, Casanova diz:
Bem, mas se a metafísica se caracteriza justamente por um esquecimento do mundo, por um descaso em relação ao campo de manifestabilidade do ente enquanto ente, Ser e tempo continua às últimas consequências em uma certa ligação com esse campo de esquecimento, na medida em que não consegue pensar de maneira plena a unidade desse campo (ibid., p. 372)
Mas, a partir dessa constatação, por que permanecermos ainda em Ser e tempo? Primeiramente, a expressão "fracasso", ao se tratar da obra heideggeriana de 1927, nada tem a ver com uma noção que esvaziaria o seu sentido, oriunda de uma premissa falsa colocada inicialmente - lembremos que uma leitura fenomenológica não se baseia em uma análise do valor de verdade fundado em premissas e conclusões -, mas na impossibilidade de sustentação do projeto como elaborado, ou seja, da impossibilidade de, por meio do sentido de ser de um ente específico, chegar ao sentido de ser em geral. Segundo, em consonância com o que foi dito acima, as análises de Ser e tempo permanecem legítimas, enquanto descrição fenomenológica do existir humano, se elas se revelarem insuficientes para fundamentar o salto para o sentido de ser em geral. Em contrapartida, são imprescindíveis para adentrar na compreensão mesma da pergunta ontológica heideggeriana.
Referências bibliográficas
Casanova, Marco Antonio. Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo - vol. 2: tempo e historicidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Via Verita, 2020. [ Links ]
______. Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo - vol. 1: existência e mundaneidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017. [ Links ]
Heidegger, Martin. Sein und Zeit. Neunzehnte Auflage. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 2006. [ Links ]
Recebido em 23/08
Aprovado em 28/11
1 Casanova cita um trecho decisivo para o contexto da segunda parte de Ser e tempo e, sobretudo, para o propósito da chave de leitura proposta no segundo volume de Mundo e historicidade, a saber: "O descerramento do ser-aí que reside no querer-ter-consciência é consequentemente constituído pela disposição da angústia, pela compreensão enquanto projetar-se com vistas ao ser culpado mais próprio e por meio do discurso enquanto silenciamento. Esse descerramento insigne propriamente dito, atestado no próprio ser-aí por meio de sua consciência - o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser culpado mais próprio - é denominado por nós a decisão" (HEIDEGGER, 2006, pp. 296-297).
2 HEIDEGGER, 2006, § 66, p. 332.