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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.23 no.2 São Paulo jul./dic. 2021
ARTIGOS
O fascínio Batailliano pela morte: uma alternativa à governamentalidade biopolítica
The Bataillian fascination with death: an alternative to biopolitical governmentality
Marcos NalliI; Manuela SlonskiII
IMarcos Nalli é Bolsista Pesquisador do CNPq; Doutor em Filosofia pela UNICAMP (2003), e Pós-Doutor pelo Centre de Recherche Historique - École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris - França, com o apoio financeiro da Capes. Atualmente é professor Associado da Universidade Estadual de Londrina, e docente do PPG em Filosofia (Mestrado e Doutorado) e do Mestrado em Psicologia, ambos na UEL. Publicou o livro Foucault e a Fenomenologia (São Paulo: Loyola, 2006) e vários artigos e capítulos de livro, muitos deles sobre biopolítica ou temas correlatos
IIManuela Manhães Slonski atua como arte-educadora e também como estudante-pesquisadora. Formada em Educação Artística, possui especialização em Filosofia moderna e Contemporânea pela UEL. Nos dias que correm, é graduanda do curso de Filosofia na mesma universidade e sua pesquisa se volta para a questão do Erotismo e seus desdobramentos, a partir do pensador Georges Bataille. Tem interesse em áreas de conhecimento relacionadas à estética e história da arte, subjetividade e filosofia contemporânea, antropologia e literatura
RESUMO
É sabido que um dos elementos capitais à governamentalidade biopolítica é de ter como seu objeto-mor a vida, donde decorre a obviedade do neologismo biopolítica. Mas é sabido também que para fazer jus a tal objeto, isto é, a vida, ela deve ser objeto de consideração num sistema político e governamental de defesa e segurança. Ora, pelo menos à luz da argumentação espositiana, a busca pela proteção e defesa da vida e do sujeito, dado o núcleo niilista da comunidade, se introduziu um modo de governar marcado pelo que o filósofo italiano chamou de paradigma imunitário, que consiste numa proteção da vida a partir de sua ameaça controlada que acaba por agravar ainda mais o núcleo niilista. Isto posto, e aceitando a indicação mesma de Esposito de que Georges Bataille é o mais radical anti-Hobbes (já que Hobbes é a figura emblemática que parece inaugurar toda esta deriva niilista da comunidade e da política), nosso objetivo é investigar como o fascínio batailliano pela morte - que pode ser pensado como a fascinação pelo negativo - é um modo filosoficamente instigante para pensar uma superação da deriva niilista tanto da comunidade como da biopolítica em seu modo imunitário de operar e gerir as vidas.
Palavras-chave: Bataille; Esposito; Vida; Morte; Biopolítica.
ABSTRACT
It is known that one of the key elements to biopolitical governmentality is to have life as its main object, from which the obviousness of "biopolitical" neologism arises. But it is also known that in order to be entitled to such an object, that is life, it must be the object of consideration in a political and governmental defense and security system. Now, at least in the light of the Espositian argument, the search for the protection and defense of life and the subject, given the nihilistic nucleus of the community, a way of governing was introduced marked by what the Italian philosopher called the immune paradigm, which consists of protection of life from its controlled threat that ends up further aggravating the nihilist nucleus. That said, and accepting Esposito's own indication that Georges Bataille is the most radical anti-Hobbes (since Hobbes is the emblematic figure who seems to inaugurate all this nihilistic drift of community and politics), our aim is to investigate how fascination Bataillian by death - which can be thought of as the fascination with the negative - is a philosophically instigating way of thinking about overcoming the nihilistic drift of both the community and biopolitics in their immune way of operating and managing lives.
Keywords: Bataille; Esposito; Life; Death; Biopolitics.
1. Introdução: Biopolítica e morte
A história do conceito de biopolítica é bem mais velha que sua interpretação foucaultiana (cf. Esposito, 2004; Lemke, 2011). No entanto, é inegável que todas as leituras após sua contribuição lhe são diretamente herdeiras por sua radicalidade e originalidade.
A primeira vez que Foucault trata do tema da biopolítica dá-se em uma de suas visitas ao Brasil, em 1974, quando deu a conferência O nascimento da medicina social (Foucault, 1994, 196)1 em uma íntima relação com a apropriação política do corpo e em coerência com sua analítica da disciplina e da anatomia política (Foucault, 1976, p. 183), que foi apresentada de modo mais completo em Surveiller et Punir (1975). "O corpo é uma realidade biopolítica", diz Foucault (1994, 1996, p. 210) sem as sutilezas e os detalhes que considera logo a seguir. Em todo o caso, os textos fundamentais para a análise Foucaultiana da biopolítica são o último capítulo de La volonté de savoir (1976) e a lição de 17 de março de 1976 de Il faut défendre la société (1997).
Na primeira lição de La naissance de la biopolitique, Foucault (2004, p. 24) declara que após a segunda metade do século XVIII a biopolítica se torna possível e inteligível no quadro geral da razão governamental do liberalismo, permitindo identificar a emergência de uma nova tecnologia de poder, diversa do poder soberano e mesmo da disciplina.
Esse novo poder se volta ao homem, e não a seu corpo, como ser vivente, como espécie e como população, "como problema ao mesmo tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder" (Foucault, 1997, p. 219), que tem na cidade seu meio ambiente, entre o natural e o artificial (Foucault, 1997, p. 218), e que atenta às variáveis que são ao mesmo tempo acidentais e constantes. Isso permite à biopolítica definir com alguma precisão seu objetivo e fim, isto é, a vida, a vida encarada em função do objeto/objetivo de uma técnica, de um fazer, que é eminentemente política - um fazer viver, e um fazer viver segundo determinadas condições no nível não do corpo, mas (não num sentido opositivo e excludente, já que a corporalidade é também redirecionada) da população, considerando os acidentes, as aleatoriedades cujas estatísticas permitem controle e gestão; e um deixar morrer. O que não significa uma passividade e inação ante a morte, e sim sua gestão, tomando a "morte como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, o fim do poder" (Foucault, 1997, p. 221).
É preciso observar ainda, naquele curso de 17 de março de 1976, que Foucault compreende a biopolítica e a disciplina numa relação de coexistência e de complementaridade, como tecnologias ou estratégias de poder que a partir do século XIX realizaram uma captura multidimensional da vida, pelo corpo individual e pela população, indo do orgânico ao biológico (Foucault, 1997, p. 225). E a propósito da condição reguladora da biopolítica, Foucault a retoma no último capítulo de La volonté de savoir, Direito de morte e poder sobre a vida, demonstrando como a biopolítica transformou a vida em seu objeto e fim, esse poder que "está centrado sobre o corpo-espécie, sobre o corpo atravessado pela mecânica do vivente servindo de suporte aos processos biológicos; sua consideração se opera por toda uma série de intervenções e de controles reguladores: uma biopolítica da população" (Foucault, 1976, p. 183). E ele completa: "não é talvez mais de matar, mas de investir a vida de uma ponta à outra" (Foucault, 1976, p. 183).
Para entender a relação entre o poder e a vida, ou a morte, é preciso entender como ela se dá no contexto do poder soberano. Ela se dá de forma clara no modo operatório da soberania, que é caracterizada por um dispor da vida cujo risco de morte é politicamente iminente e inerente à sua lógica de ser e agir. Mais que a vida, é a morte que conta politicamente. A biopolítica se caracteriza, desse modo, como uma sorte de inversão do poder soberano. Com a biopolítica, e para ela, a morte se transforma num limite, um limite extremo e que é exterior ao poder (Foucault, 1997, p. 221).
Se a morte é inicialmente o limite do biopoder, ao ponto que é possível deixá-la de lado, contemporaneamente e em particular a partir do desafio histórico, filosófico, político, ético e jurídico que foi o nazismo como governo e política genocida, ela - a morte - se torna o ponto paradoxal para o exercício do poder. A partir desse ponto, a morte não é mais o limite, mas a razão ou a justificação que permite um exercício biopolítico de proteção da vida, seja em termos de saúde e de purificação (Foucault, 1997, p. 228); seja em termos de perigo biológico, do racismo e do eugenismo, que justifica o exercício paradoxal de uma biopolítica que para defender a vida pode matar e tirar a vida:
[...] dito de outro modo, o levar à morte, o imperativo de morte, não é aceitável no sistema de bio-poder, que se volta não para a vitória sobre os adversários políticos, mas para a eliminação do perigo biológico e ao reforço, diretamente ligada a essa eliminação, da espécie mesma ou da raça. A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade do levar à morte em uma sociedade de normalização (Foucault, 1997, p. 228).
Ora, isto deve ser interpretado de uma forma um pouco ampliada para além do contexto histórico do nazismo, posto que é ao mesmo tempo a radicalização de toda a discussão foucaultiana a propósito da assimilação biopolítica da questão biomédica da morte, de sua incidência como fenômeno constante e próprio à população, que deve ser regularizada e normalizada, quer dizer, para ser aceitável em um quadro de proteção e promoção biopolítica da vida da população (Foucault, 1997, p. 217 e p. 228). Assim, a morte deixa de ser um limite extremo e externo ao regime político à sociedade contemporânea para ser um de seus efeitos e mesmo uma de suas funções nas estratégias de biopolítica.
Em La volonté de savoir, Foucault segue uma direção diferente, mas não oposta, antes em complementaridade. Ele introduz suas análises a propósito da biopolítica no que ele chama de "o dispositivo de sexualidade", insistindo na tese que o sexo, ao ponto que "é acesso ao mesmo tempo da vida do corpo e da vida da espécie" (Foucault, 1976, p. 192), é o lugar onde se articulam os eixos das tecnologias disciplinares e reguladoras, de modo que elas coexistem e se implicam mutuamente. É por isso que o poder pode opera, a partir do século XIX, como o poder de gestão sobre a vida, como biopoder, como uma estratégia política que age em complementaridade à disciplina ao mesmo tempo que lhe é totalmente autônoma e independente. A partir do sexo como fim e lugar de seu exercício, a biopolítica incide sobre o corpo-espécie como um suporte de processos biológicos, do nascimento até a morte, e a morte vista como parte de um processo da duração da vida, entendida como questão biológica e, por isso, biopolítica (Foucault, 1976, p. 193).
De fato, o paradoxo é que a partir do século XIX até hoje o Ocidente conheceu profundas transformações dos poderes e de suas relações à vida e à morte. Todo o ciclo do processo biológico da vida é questão do investimento biopolítico: o poder de matar se exerce para poder viver:
Os massacres tornaram-se vitais. [...] a situação atômica está hoje no ponto máximo desse processo: poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a um out sua manutenção na existência. [...] Se o genocídio é o sonho dos poderes modernos, não o é um por um retorno hoje do velho direito de matar; é porque o poder se situa e se exerce no nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos massivos de população (Foucault, 1976, p. 180).
Há também outra novidade introduzida a partir do século XIX: as lutas e mobilizações sociais e políticas, não pelos direitos dos cidadãos, mas em torno da vida. De fato, as discussões a propósito dos direitos das pessoas e das populações se colocam em evidência mais em função desse entendimento pouco preciso, no entanto muito forte, a quaisquer dispositivos estratégicos do poder. Na condição de contraface do poder, seja como resistência e insubmissão, os direitos das pessoas se apoiam na vida "entendida como necessidades fundamentais, essência concreta do homem, cumprimento de suas virtualidades, plenitude do possível" (Foucault, 1976, p. 191). No caso específico do dispositivo de sexualidade, e contra ele, Foucault responde que "o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo e o desejo, mas o corpo e os prazeres" (Foucault, 1976, p. 208). Quais são os pontos de apoio que podem permitir que as resistências e as insubmissões tomem a vida com cumprimento de virtualidades, como plenitude do possível, e assim, contra-atacar os biopoderes e as biopolíticas cotidianas?
É diante desta questão que propomos, ainda que sucintamente, resgatar algumas intuições de Georges Bataille, notadamente aquilo que chamamos aqui de seu fascínio pela morte, no esforço de contribuir à sua resposta. Para isso, vale lembrar alguns dos argumentos de Roberto Esposito sobre Bataille, que nos servem de guia
Bataille ocupa uma posição singular no pensamento de Roberto Esposito, antes mesmo deste se voltar para a temática da biopolítica. É o que se verifica, por exemplo, no modo como compreende o papel que cabe a Bataille numa espécie de genealogia da comunidade. Para tanto, em Communitas (2006), publicado em 1998, Esposito traça uma linha, a princípio histórica, que vai de Hobbes até Bataille, passando por Rousseau, Kant e Heidegger, sobre como o tema da comunidade foi explorado filosoficamente a partir de alguma chave analítica: o medo (Hobbes), a culpa (Rousseau), a lei (Kant), o êxtase (Heidegger); e por fim com Bataille, pelo qual a comunidade é pensada como experiência. Dessa explanação genealógica da comunidade, Esposito afirma que Bataille pode ser compreendido como "o mais radical anti-Hobbes" (Esposito, 2006, p. 128), quer dizer: diante de uma ideia de comunidade pensada à luz do medo, e do medo da morte, é possível contrapô-la com outra noção de comunidade, aquela que passa pela experiência.
Mas qual experiência? Em linhas (muito) gerais, aquela experiência da morte - assinalando de modo radical para o núcleo estrutural e estruturante da vida em comunidade, ou dito de outro modo, que condiz ao núcleo ontológico que sustenta e atravessa o estatuto político da comunidade, a saber, seu núcleo niilista. Como sabido, explorando etimológica e filologicamente a palavra comunidade, Esposito atenta para a raiz munus, acrescida do prefixo cum, permitindo explanar a tese espositiana segundo a qual a comunidade não se sustenta na gratuidade, mas na obrigatoriedade do munus, na obrigatoriedade da dádiva: "o munus é a obrigação que se contraiu no confronto ao outro e que solicita uma adequada desobrigação. A gratidão que exige nova doação [...] dando qualquer coisa que não pode ter para si" (Esposito, 2006, p. XI-XII). Portanto, o ponto de união dentre as pessoas em torno de uma comunidade não é um mais de subjetividade e subjetivação, mas ao contrário, um menos, uma falta, uma lacuna, pois o móvel da união é a reciprocidade do dever a outrem. E em última instância, o que se deve mais profundamente, mais apropriadamente é algo que de partida já não se tem: a própria vida e a própria subjetividade. Portanto, considerando o núcleo niilista da comunidade,
Viver em comunidade é se dessubjetivar, é viver outra vida em que - no todo ou ao menos em parte - vida e subjetividade não mais coincidem. É viver outra vida que não a sua mesma. Expropriada, espoliada, vilipendiada de si mesma. É viver uma vida em que, pela obrigatoriedade tributativa, ou dadivosa, não se é, ou se deixa de ser sujeito. Em comunidade, não se é um sujeito, não se faz um sujeito; antes, com efeito, se negativa como tal, torna-se um não-sujeito (Nalli, 2018, p. 243).
Enfrentar o núcleo niilista da comunidade sem ter por objetivo negá-lo ou esquecê-lo, é nisso que consiste a proposta de Esposito. Por isso ele vai buscar nas intuições bataillianas sobre a morte e o niilismo os elementos para tal empreitada. Inicialmente para pensar a comunidade; e, como veremos mais à frente, tal estratégia pode se fazer bastante prolífica para (re)pensar e (re)configurar semanticamente a biopolítica como uma biopolítica que não se volta à vida como seu fim ou objeto, mas que tem na própria vida o seu móvel e fundamento.
2. O fascínio batailliano pela morte
Não é possível reter aquilo que nos escapa e que pode ser vislumbrado a partir de uma experiência interior: isso que nos escapa é da ordem do invisível, do impalpável, e toda vez que tentamos discorrer sobre acabamos por desembocar no nada. Uma coisa é fato: a busca por tal experiência se dá, mesmo quando inconscientemente, justamente por sermos dotados de consciência e, primeiramente, de consciência de nossa finitude. Em O Erotismo (1957), Bataille (2014) nos fala sobre esse primeiro contato do homem com a ideia da morte como algo que inevitavelmente chegará para ele e de forma visceral e abrupta:
Percebemos a passagem do estado vivo ao cadáver, ou seja, ao objeto angustiante que é para o homem o cadáver de outro homem. Para cada um daqueles que fascina, o cadáver é a imagem de seu destino. Ele testemunha uma violência que não apenas destrói um homem, mas que destruirá todos os homens (p. 68).
O corpo arrasado por uma violência que foge ao controle e à razão é peça chave para a compreensão acerca de toda a problemática que acarreta a questão do erotismo e da experiência interior dentro do pensamento batailliano. A entrega à dilaceração do corpo e que coincide também com a ruptura do sujeito pressupõe uma dupla experiência de perda do domínio de si. Ao fundamentar a construção de sua cadeia de ideias relacionadas ao tema do erotismo, Bataille pouco ou quase nada nos revela sobre a experiência interior intermediada por exercícios meditativos ou sentimentos interiorizados, mas alude a muitos exemplos de experiências que, para além desses aspectos, trazem o corpo dilacerado como objeto que é central para que se dê inclusive e, principalmente, uma perda subjetiva.
O escritor nos leva a passear por meados do período Paleolítico, cuja "data antiga da atitude para com os mortos é dada pelas numerosas descobertas de ossamentos recolhidos por seus contemporâneos" (Bataille, 2014, p. 54). O momento, ou os "intermináveis milênios" através dos quais "o homem se desprendeu da animalidade primeira" (p. 55) se dá quando o ser humano passa a adquirir certa consciência enquanto trabalha e constrói ferramentas, junto daquele com o qual passa a preocupar-se em conter o sexo, assim como a tirar do campo de visão suas partes íntimas e também a figura do morto.
Com o tempo, vai se instituindo um sentimento de pavor frente a visão do cadáver e a visão das partes pudendas, o que remonta a um lugar onde morte e sexo coincidem. Em oposição ao corpo vivo, o cadáver é marcado pelo princípio de nada. O que se mostra a partir de tal visão demonstra-se ainda "menos que nada, pior que o nada" (Bataille, 2014, p. 81), algo que se revela temoroso e fundamenta o nojo. A ameaça ligada à figura do cadáver não pode ser justificada objetivamente pois nossa conduta é artificial. Bataille denota ainda que há uma aproximação entre o horror diante do cadáver, dos dejetos humanos ou até do sexo e das partes pudendas que despontam na obscenidade dos órgãos.
Não há um interdito formalizado e categórico nesse sentido, "mas, no conjunto, por deslizamentos, se formou um domínio da imundície, da corrupção e da sexualidade cujas conexões são bastante sensíveis" (Bataille, 2014, p.82).
Podemos explorar algumas dessas conexões implícitas na obra literária de Bataille, especialmente em História do Olho (2003). Sobre esse livro, Eliane Robert de Moraes (2013) comenta que o autor expõe seus traumas infantis trabalhados em tratamento psicanalítico de forma quase irreconhecível, o que lhe causava assombro e fascinação passa a ganhar voz dentro de sua narrativa dissimulada.
De acordo com Moraes (2003, p. 95) foi Adrien Borel, o psicanalista de Bataille, que o influenciou a escrever, "a colocar no papel suas fantasias sexuais e obsessões da infância". Para a autora, Bataille escreve na tentativa de apagar seu próprio nome, como ele mesmo afirma e realiza dando inicialmente a seus livros pseudônimos2 que o acobertam, mantendo sua reputação de bibliotecário intacta e "dissimulando de forma obstinada", tanto a autoria do livro como o retrato da vida do autor refletida de modo subversivo em sua obra literária e explicitado em Reminiscências, capítulo que sucede a narrativa. Ainda sobre o texto do capítulo, que em sua primeira versão é chamado Coincidências, comenta Moraes (2013, p. 42): "Já não é mais o narrador e sim uma primeira pessoa que vasculha a infância, povoada de fantasias obscenas e marcada pela figura de um pai cego e paralítico, o que corresponde perfeitamente à biografia de Bataille".
Uma infância perturbada pelo estado depreciativo no qual se encontrava seu pai que fora acometido pela doença (cf. Bataille, 2003 e 2007; cf. também Moraes, 2013), junto das tentativas de suicídio de sua mãe, é suficiente para que possamos compreender o que está por trás das lembranças que remontam ao ambiente familiar no qual cresceu Bataille. O tormento das lembranças infantis junto da construção de um universo erótico e ao mesmo tempo bizarro atestam o fascínio do escritor pelo tema trabalhado também em suas obras de cunho filosófico: da experiência soberana provocada pelo ato erótico e, em última instância, pelo contato com a morte e a perda que tal experiência implica.
Em passagem do capítulo W.-C. Prefácio à história do olho, Bataille revela a visão que tinha de seu próprio pai, que gritava quando sentia "dores fulgurantes", em uma das muitas vezes em que o escritor teve de observá-lo defecar, embora ele convertesse tal relato em prosa poética: "Ser Deus, nu solar, numa noite chuvosa, no campo: vermelho, divinamente, cagar com a majestade de uma tempestade, o rosto dissimulado, separado do resto, ser IMPOSSÍVEL em lágrimas: quem saberia, antes de mim, o que é a majestade?" (Bataille, 2003, p. 86).
A alusão aos astros, tempestades e luz solar são elementos típicos da narrativa do escritor. No texto, Bataille conta as desventuras de um casal devasso com uma conotação escatológica sempre de encontro ao frenesi sexual que acaba por desembocar na perda subjetiva. Moraes nos revela uma série de exemplos em que o narrador faz o uso de uma escrita solta por alguns momentos - os mais obscuros - onde as palavras beiram a ausência de sentido fazendo alusão à fusão dos personagens com o cosmos:
[...] com os olhos abertos sobre a Via Láctea - 'estranho rombo de esperma astral e de urina celeste cavado na abóbada craniana das constelações' -, o narrador vê a si mesmo refletido no infinito, assim como 'as imagens simétricas de um ovo, de um olho furado ou do meu crânio deslumbrado, aderido à pedra'. Ao se dar conta dessas correspondências cósmicas, ele intui: 'a essência elevada e perfeitamente pura' de uma 'devassidão que não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo estrelado...' (2013, p. 50)
Segundo Moraes (2013, p. 51-53) há nessas passagens não só a representação do desejo de fazer parte do universo, mas a pretensão da dissolução de si, dissolução que tornaria possível ao homem uma comunhão com a imensidão, uma vez que neste momento ele se perderia por completo, esvaziando-se de sua identidade e de tudo aquilo que compõe o seu eu. Para a autora, essa perda de si tudo tem que ver com a operação soberana: os personagens estão entregues, uma vez que uma espécie de fome insaciável do excesso parece até ser de alguma forma obra de uma exigência superior, a qual os jovens devassos respondem e que só é possível de ser combatida justamente neste momento de perda, quando o sujeito deixaria sua identidade para trás para se tornar parte de tudo rompendo todos os limites que o seu eu impõe. Análogo a este esvaecimento a que recorrem os personagens da trama, está também a procura por um apagamento da identidade do próprio autor.
O apagamento da identidade que pressupõe uma perda subjetiva coaduna com a atitude soberana descrita por Bataille, quando da leitura de Hegel3, na qual entende-se que "o homem teria tomado o lugar de Deus" (Bataille, 2013, p. 396), Deus este que ocuparia seu posto apenas como regente, de modo provisório. Bataille situa o homem hegeliano como um ser espiritual "necessariamente temporal e finito" e que tem apenas a morte enquanto aquela que assegura sua existência. Esse homem separa-se do animal justamente por se comprazer naquilo que lhe dá medo, carregando consigo a violência da Negatividade:
Para Hegel, é ao mesmo tempo fundamental e inteiramente digno de espanto que o entendimento do homem (quer dizer, a linguagem, o discurso) tenha tido a força (trata-se de uma potência incomparável) de separar da Totalidade os seus elementos constitutivos. Estes elementos (esta árvore, este pássaro, esta pedra) são de fato inseparáveis do todo. Eles estão "ligados entre si por ligações espaciais e temporais, e até materiais, que são indissolúveis." A separação deles implica a Negatividade humana a respeito da Natureza, de que falei sem destacar uma consequência decisiva. Esse homem negando a natureza, de fato, não poderia de maneira nenhuma existir fora dela. Ele não é apenas um homem negando a Natureza, ele é, em primeiro lugar, um animal, isto é, a coisa mesma que ele nega: ele não pode portanto negar a Natureza sem se negar a si próprio (Bataille, 2013, p. 399).
Se a realidade humana é "a única a se revelar através do discurso" (Bataille, 2013, p. 396), ao mesmo tempo o discurso afasta o homem da soberania. A ação que é parte do animal que contém o homem faz com que ele busque certos fins para suprir as suas necessidades - como comer e se aquecer -, o que supõe uma servidão. Sem a busca por tais fins o homem não poderia subsistir e menos ainda poderia almejar a soberania. Do mesmo modo, também "a inteligência, o pensamento discursivo do Homem se desenvolveram em função do trabalho servil" (p. 411). O Soberano é entendido finalmente como aquele que não serve e que não se traduz pelo discurso, mas que apenas pela "palavra sagrada, poética, limitada ao plano da beleza impotente, conserva o poder de manifestar a soberania" (p. 411).
As aventuras do narrador anônimo de História do olho e sua amiga Simone são descritas por Moraes como algo que acontece num universo fechado, infantil e egoísta, onde nada é proibido e no qual os adultos não têm participação direta, salvo como telespectadores que assistem os acontecimentos sem nada dizer (2013, p. 47). A autora compara ainda o mundo soberano dos personagens às aventuras oníricas de contos de fadas às avessas, as novelas góticas:
Praias desertas, castelos murados, parques solitários, mansões rodeadas de jardins agrestes, florestas agitadas por grandes temporais - as paisagens que abrigam os protagonistas da novela guardam profunda afinidade com a atmosfera lúgubre dos contos de terror. São lugares secretos e quase sempre desabitados que o narrador e Simone visitam na penumbra da noite, em meio aos relâmpagos e às ventanias e furiosas tempestades (Moraes, 2013, p. 48).
O objetivo de tais aventuras e o lugar que confere a tais paisagens é sempre cercado do mesmo objetivo, a experiência do prazer sem limites, onde a morte já não importa, mas o desfalecimento momentâneo desencadeado pela experiência erótica em toda a sua violência. Em dado momento, ápice da narrativa, a personagem Simone realiza em seu próprio corpo um ato transgressivo: ao abrir em si mesma uma ferida, ela abre uma porta para o impossível, para uma experiência erótica de transgressão e ao mesmo tempo de encontro com a morte. Simone pode ser compreendida como uma personagem que figura o Homem hegeliano por excelência, cujo "espírito só obtém sua verdade ao encontrar a si mesmo diante do dilaceramento absoluto", quando "contempla o Negativo bem no rosto e se instala perto dele" (Bataille, 2013, p. 399). Quando Sir Edmond lhe instrui sobre o costume de comer os colhões de um touro quando assistem uma tourada, Simone se empolga ao receber seu prato, planejando sentar-se nele, querendo deliciar-se. O narrador e personagem que acompanha Simone como seu comparsa na trama nos conta que, em meio a buscar um lugar ao sol na arena, a violência da morte dos cavalos em meio à tourada deixara Simone extasiada:
Com o passar do tempo, a radiação solar nos absorveu numa realidade paralela ao nosso mal-estar, ao nosso desejo impotente de explodir, de estar nus. Com o rosto contorcido sob o efeito do sol, da sede e da exasperação dos sentidos, partilhávamos entre nós aquela deliquescência morosa na qual os elementos se desagregam (Bataille, 2015, p. 58, 59).
E ao escolher inserir os objetos contidos no prato dentro de si Simone passa a ter uma experiência solitária, na qual e pela qual ela rompe consigo mesma e, desta maneira, amplia ainda mais o abismo entre ela, o narrador, Sir Edmond e a arena - todos os outros sujeitos que estão a sua volta. No ato proferido pela personagem, que coincide com a morte do toureiro, vemos a ocorrência dupla de duas esferas da experiência: o horror de assistir a morte do outro de perto e o dilaceramento de si mesma. Granero comove toda uma plateia com sua dramatização não prevista. Simone, ao contrário, executa seu plano também através do drama que só diz respeito a ela mesma, em silêncio em meio à multidão, em cena descrita por seu narrador:
Aquilo que se seguiu aconteceu sem transição e, aparentemente, sem qualquer conexão, o que não significa que as coisas não estivessem ligadas - mas eu as acompanhei como um ausente. Em poucos instantes, estarrecido, vi Simone morder um dos colhões, Granero avançar e apresentar ao touro a capa vermelha; depois Simone com o sangue subindo à cabeça, num momento de densa obscenidade, desnudar a vulva onde entrou o outro colhão; Granero foi derrubado e acuado contra a cerca, na qual os chifres do touro desfecharam três golpes: um dos chifres atravessou o olho direito e a cabeça. O clamor aterrorizado da arena coincidiu com o espasmo de Simone. Tendo-se erguido da laje de pedra, cambaleou e caiu, o sol a cegava, ela sangrava pelo nariz. Alguns homens se precipitaram e agarraram Granero. A multidão que abarrotava a arena estava toda de pé. O olho do cadáver, dependurado (Bataille, 2003, p. 59).
Diferentemente da angústia frente ao primeiro contato com a figura do cadáver - e que o homem passa a desumanizar (Bataille, 2013, p. 70) através da secagem dos ossos ou a esconder quando do enterro -, há na petit mort, no lapso momentâneo de contato com o além ou mesmo o nada sob o qual flutua uma espécie de dessubjetivação momentânea, um desfalecimento breve que se concretiza através do ato sexual humano, o que caracteriza uma superação da angústia (Bataille, 2013, p. 110) junto da superação da náusea.
O pavor diante do sangue que jorra quando da visceralidade explícita pelos órgãos é destituído de sua significação pela afirmação da experiência soberana. O que é soberano não serve e não se traduz enquanto discurso, mas afirma-se mesmo em sua dessubjetivação pela destituição não apenas da linguagem, mas de sua identidade mesma. Os personagens de História do Olho levam a cabo o sentido de soberania de encontro à poesia e à morte, "eles suportam a morte e nela se conservam" quando em suas infindáveis aventuras eróticas. A partir do gozo desencadeado pelo frenesi sexual acontece a petit mort, sugestão de desfalecimento que não se concretiza, ainda que potencialize um estado de desconexão com o eu, a identidade do sujeito:
Na verdade, o homem está sempre perseguindo uma soberania autêntica. Essa soberania, segundo a aparência, ele a teve em certo sentido inicialmente, mas sem nenhuma dúvida, não poderia ser então de maneira consciente, de modo que em um certo sentido ele não a teve, ela lhe escapou (Bataille, 2013, p. 413).
3. Considerações finais
Isto posto, há que se voltar agora para a temática geral do presente artigo, a saber, a possibilidade de buscar em Bataille intuições poderosas para, ao menos no plano filosófico do pensamento, (re)pensar sobre o sentido da biopolítica.
Como Esposito mesmo coloca, para contribuir ao debate sobre a biopolítica urge a necessidade de redefini-la, de uma política da vida, isto é, sobre a vida, para uma política da vida, ou seja, oriunda dela, provocada por ela. E, neste sentido, considerando a linha de homologia que estabelece entre vida e sujeito/subjetivação, contra morte e dessubjetivação, é preciso entender aqui o sentido do termo contra. Não se pode reduzir a mera relação opositiva em que um pólo nega ou contradiz o outro. O interessante é perceber aqui que, ao tomar o segundo como um negativo, negá-lo não faz do primeiro um positivo. Esposito monta muito bem este argumento no livro em que enfrenta o primeiro conjunto estratégico de (re)solução do núcleo niilista da comunidade, como já dito, explorado em Communitas. O livro em questão é Immunitas, publicado em 2002, e que tem o sugestivo subtítulo proteção e negação da vida, isto é, que ao tentar proteger a vida do niilismo inerente à comunidade, o dispositivo imunitário acaba por negar a própria vida - tema que foi aprofundado ainda em outro livro do filósofo italiano, qual seja, Bios, de 2004 - uma vez que a imunização se caracteriza como um poder de proteger e conservar a vida, porém sob a égide da negatividade perante a vida (Esposito, 2004, p. 42).
Mais claramente, o sistema, ou o dispositivo imunitário, está numa relação de oposição àquilo que há de comum na comunidade, não ao dever propriamente dito, mas à sua reciprocidade, de modo que a função imunitária consiste na interrupção da reciprocidade tributária, implicada desde seu prefixo, que marca o niilismo inerente da comunidade; mas ao fazê-lo, ao interromper seu núcleo niilista, o sistema imunitário não preenche o vazio deixado, aliás que sempre esteve, na comunidade. Por essa razão, Esposito entende que o sistema imunitário é um não-negativo, é uma proteção da vida por imunização, isto é, valendo-se daquilo que a ameaça. Ou seja, valendo-se de estratégias indutoras de defesa a partir do conflito e da ameaça premeditados e calculados de modo a impedir a degradação da comunidade, da vida e do sujeito. E, à medida que para cumprir sua finalidade de proteger a vida pressupõe sempre o que a nega, como "seu objeto e motor" (Esposito, 2004, p. 48), no limite pode se tornar uma espécie de doença autoimune, pela qual põe sob ameaça a vida e a comunidade pelos meios que se valeu para protegê-las.
Isto posto, Esposito (2008, p. 112), pode perguntar "como pensar - mas também viver - o 'comum' no tempo da imunização?". Umas das vias de resposta é justamente dada pela maneira como ele recorre a Bataille, numa espécie de vertente antropológica pela qual não se trata de considerar alguma equivalência entre o eu e o outro, numa estrutura de reconhecimento do outro como outro-eu - isto é, numa forma de redução dos traços distintivos do outro à identidade de um eu que se colapsa como uma mônada, pretensamente autossuficiente e solitária, perdendo pela falta de contraste com o outro qualquer chance de se realizar como subjetividade, alienando-se de toda e qualquer dinâmica de subjetivação. É por essa correlação distintiva com o outro que a possibilidade da comunidade se coloca sem incorrer numa decadência niilista, e pela qual se permite aquilo que acabamos de chamar de dinâmica de subjetivação, a realização subjetiva do eu num nós, esse encontro com "o outro que constitui profundamente a nós mesmos" (Esposito, 2008, p. 76).
Este encontro constitutivo com o outro pelo qual nós podemos nos fazer sujeitos, e sujeitos em comunidade, se dá com Bataille por via - não necessariamente exclusiva, mas certamente de modo privilegiado - da experiência com a morte; experiência paradoxal pois é vazia de conteúdo, sem objeto, sem substância. De qualquer modo, para se tornar possível qualquer forma de comunicação, e com ela a instauração da comunidade, é preciso que nosso ser esteja posto em jogo, abertos uns aos outros, no qual nossa integridade subjetiva é posta em suspenso:
A "comunicação" não pode ter lugar em um ser pleno e indelével a outro: ela quer seres enquanto seres em si mesmos postos em jogo, colocado no limite da morte, do nada; o ápice moral é um momento de se pôr em jogo, de suspensão do ser para além de si mesmo, no limite do nada [tradução nossa] (Bataille, 1973, p. 44; 2017, p. 59).
A fascinação batailliana pela morte faz-se notar aqui pois para ele há uma coincidência entre o tema da morte e do niilismo, da experiência que, enquanto seres, fazemos do nada. A sua condição paradoxal consiste em comunicar algo que é da ordem do incomunicável, posto que remete a uma falta, é ainda assim superada por Bataille pela sugestão de que não se comunica o nada e sua falta, mas a experiência feita delas. Isto exige uma reciprocidade de ser posto em jogo, de sempre estar à disposição, eu e o outro enquanto experiências ante o nada estabelecendo um jogo de ausência (de meu ser, de meu eu) e presença (do ser de outrem):
O além de meu ser é inicialmente o nada. É minha ausência que eu pressinto na desolação, no sentimento penoso de uma falta. A presença de outrem se revela através desse sentimento. Mas ela só está plenamente revelada se o outro, por sua vez, se pende ele mesmo na beira do nada, ou se ele cai aí (se ele morre). A "comunicação" só tem lugar entre dois seres postos em jogo - desgarrados, suspensos, um e outro pendendo por sobre o seu nada (Bataille, 1973, p. 44-45; 2017, p. 60).
Donde se segue a identificação batailliana entre a morte (mais especificamente pelo sacrifício) e o ato carnal, não apenas no sentido do ato sexual, também no sentido das excreções como resultado da oeuvre de chair (Bataille, 1973, p. 45), isto é, da carne que opera, que obra pelo que expele. Qual o sentido dessa identificação?
Eu apenas comunico o fora de mim, que me deixa ou que me lança para fora. Mas fora de mim, eu não sou mais. Eu tenho esta certeza: abandonar o ser em mim, procurá-lo externamente, é arriscar desperdiçar - ou aniquilar - isso sem o que a existência externa não me teria sequer aparecido, esse eu sem o qual nada do "que é para mim" seria. O ser na tentação se encontra, se ouso dizer, despedaçado pela dupla tenaz do nada. Se ele não comunica, ele se aniquila nesse vazio que é a vida isolada. Se ele quer comunicar, ele arrisca igualmente em se perder (Bataille, 1973, p. 47; 2017, p. 62).
Essa identificação permite a Bataille reconhecer outro modo de viabilizar e realizar a comunidade mediante a comunicação de seres em aberto pela reciprocidade do dom, da dádiva. Ou seja, Bataille reconhece a importância dos trabalhos de Marcel Mauss sobre o dom e o sacrifício, de modo a possibilitar o escape do encurralamento niilista identificado por Esposito. O que em absoluto se trata de negar a deriva niilista. Ao contrário, é preciso levar a sério a experiência do nada para, mais do que escapar de suas garras, mantendo-se ciente e atento a seus perigos, buscar e almejar a comunicação com outrem: "É arruinando em mim mesmo, no outro, a integridade do ser que eu me abro para a comunicação" (Bataille, 1973, p. 49; 2017, p. 64). E assim exige-se uma comunidade de seres que buscam o viver como possibilidade, um lance dentre tantos outros possíveis no jogo da existência e da vida dos seres. Isto é, pensando na fórmula espositiana sobre a comunidade como superação das derivas imunológica e tanatopolítica, impossível, mas necessária (Esposito, 2008, p. 76), na qual para me realizar como sujeito abro-me e me dou ao outro e, ao assim fazê-lo, "abro uma perspectiva de lances infinitos" (Bataille, 1973, p. 49; 2017, p. 64).
Referências
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1 Há duas edições dos Dits et écrits de Michel Foucault. Aqui utilizamos a primeira edição, de 1994, em quatro tomos. O número logo após o ano corresponde à numeração do texto na obra, seguida do número da página.
2 Bataille (2003, p. 79, 86-87) nos conta que o pseudônimo Lord Auch faz alusão ao Deus das Escrituras e a expressão à latrina! em francês, abreviada de aux chiottes! para aux ch por Bataille e seus amigos, o que resulta em algo como: "Deus se aliviando". Aqui, a figura ou a majestade de Deus representa o pai de Bataille, que vivia constantemente em estado fétido, que por ser cego e paralítico precisava da ajuda dele para chegar ao seu trono.
3 Através dos cursos de Alexandre Kojève sobre a Fenomenologia do Espírito na França do início do século XX.