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Revista de Etologia

versión impresa ISSN 1517-2805versión On-line ISSN 2175-3636

Rev. etol. v.6 n.1 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Bem-estar animal na agricultura do século XXI

 

Animal welfare in the XXI century

 

 

Maria José Hötzel; Luiz Carlos Pinheiro Machado Filho

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema do bem-estar tende atualmente a integrar o debate sobre os problemas éticos da agricultura industrial em relação à qualidade do ambiente e à segurança alimentar. Discutimos neste texto a definição de bem-estar animal de acordo com diversos autores, o modo como pode ser avaliado cientificamente; os principais motivos que levam as pessoas a se preocuparem com o bem-estar de animais de fazenda; os problemas que influenciam o bem-estar animal na criação zootécnica e, finalmente, sugerimos meios para melhorar o bem-estar dos animais zootécnicos. Existem, em nossa opinião, várias soluções para o problema da fome do mundo e do sofrimento de milhões de animais, que não envolvem excluir uma das questões em favor da outra. Sugerimos que parte do esforço de cientistas interessados no tema seja investido no desenvolvimento de tecnologias para sistemas de criação animal sustentáveis uma vez que estes consideram necessariamente os efeitos da agricultura no meio ambiente e no bem-estar das populações humanas e animais.

Descritores: Bem-estar animal, Etologia aplicada, Zootecnia.


ABSTRACT

Animal welfare is now included in a larger debate over the ethical problems involving the current agriculture systems, such as its effects on the environment and food safety. In the present text we intend discuss the definition of animal welfare according to several leading authors, and how it can be assessed scientifically; to identify the main reasons why people worry about the welfare of farm animals; to describe the main welfare problems farm animals face; and lastly, to suggest ways of improving farm animal welfare. In our view, there are several solutions for the hunger problem in our planet and for the suffering of millions of farm animals that do give priority to one of these aspects in detrimento of the other. We propose that part of the effort of scientists interested in farm animal welfare be applied to the study of technologies for sustainable animal breeding, once such technologies necessarily consider the effects of agriculture on the environment and the well-being of human and animal populations.

Index terms: Animal welfare, Applied ethology, Animal science.


 

 

Existe um certo consenso de que os animais domésticos, pelo fato de terem sido domesticados e por estarem sendo criados em cativeiro e servindo de alguma maneira à humanidade, merecem níveis mínimos de bem-estar (Fraser & Broom, 1990). Nos países desenvolvidos, cresce a preocupação com o mau trato dos animais domésticos em áreas urbanas e com o bem-estar dos animais utilizados na pesquisa e na agricultura. Embora de forma menos articulada, a população brasileira também manisfesta preocupação com o bem-estar animal (Pinheiro Machado Filho & Hötzel, 2000).

O livro popular Animal Machines, escrito por Ruth Harrison e lançado em 1964, inaugurou o debate sobre a ética da produção animal na agricultura. Este livro denunciou os maus tratos a que os animais eram submetidos na criação animal confinada na Grã-Bretanha. O impacto que a publicação gerou na sociedade britânica mobilizou o Parlamento que criou o Comitê Brambell para investigar o fundamento das acusações contidas no livro. Em 1965, reconhecendo as dificuldades encontradas pelos animais na agricultura moderna, o comitê apresentou um relatório que propunha as cinco liberdades mínimas que todo animal deveria ter: virar-se; cuidar-se corporalmente; levantar-se; deitar-se e estirar seus membros. Passadas quase quatro décadas, um número crescente de animais zootécnicos é criado sem estas "liberdades".

O debate que se seguiu levou a uma visão muitas vezes simplista dos problemas da agricultura e do bem-estar animal, sem que seja promovido o entendimento entre as partes interessadas (Fraser et al., 2001a). De um lado, apresenta-se uma visão inteiramente negativa da agricultura animal, divulgada por grupos de defesa dos direitos dos animais, e do outro, uma visão totalmente positiva da mesma, difundida por organizações de criadores animais e pela indústria. Se essas visões simplistas e extremas da agricultura animal mascaram a complexidade das diferentes realidades da agricultura, elas também levantam temas e preocupações genuínas que devem ser consideradas pelos pesquisadores da área de bem-estar animal (Fraser, 2001b). Tanto os autores e organizações que advogam, a qualquer custo, os direitos dos animais, como a indústria que os ignora, têm sérios conflitos de interesses. Ao analisar os fatos, aplicam com força o seu juízo de valores às interpretações, muitas vezes só apresentando os casos extremos para defender seus argumentos (Fraser, 2001a). Somos assim levados a escolher entre a fome do mundo ou o sofrimento de milhões de animais inocentes quando, na verdade, existem soluções para os dois problemas que não envolvem a exclusão de um em favor do outro.

Vários casos recentemente ocorridos na Europa, ligados à intensificação da agricultura e da produção de alimentos e com impacto na segurança alimentar (como as epidemias de febre aftosa, de encefalopatia espongiforme bovina - a doença da vaca louca - e contaminação de carne de aves por dioxinas), criaram a necessidade de um maior envolvimento da população nas políticas oficiais relacionadas à produção de alimentos. De fato, o tema bem-estar tende atualmente a integrar um debate maior que inclui os problemas éticos da agricultura industrial em relação à qualidade do ambiente e à segurança alimentar (Blokhuis et al., 2000).

Mas a desinformação do público referente aos temas da agricultura animal é um dos grandes entraves para o desenvolvimento de discussões produtivas. Grande parte do público não tem conhecimento de como são criados os animais que geram os alimentos oferecidos no varejo e, como já exposto, boa parte da informação chega ao público colocada de forma simplista e fortemente carregada de emoções. A sociedade e as pessoas envolvidas em desenvolver a legislação, tendem a buscar subsídios para formar a sua opinião junto aos cientistas que trabalham na área. Por isso mesmo, os cientistas devem, da maneira mais objetiva possível, usar a sua capacidade técnica, investigativa e analítica para avaliar os diversos efeitos da agricultura animal no bem-estar animal e humano, na saúde dos consumidores, na sustentabilidade da produção agrícola, no ambiente e na fome do mundo (Fraser, 2001a).

Para resolver os problemas de bem-estar animal na agricultura, não basta o diagnóstico dos problemas. Uma legislação que discipline a aplicação do bem-estar na prática é uma condição necessária para que este seja respeitado (Webster, 2001). Daí o imperativo de se estabelecer um certo consenso em torno da definição do termo bem-estar animal. De acordo com Appleby (1999), sem uma definição consensual, é praticamente impossível colocar na prática a mais bem intencionada das leis. Para criar este consenso é importante, ao tratar o tema, mencionar e discutir as definições existentes, reconhecendo a diversidade de opiniões a respeito (Appleby, 1999). Seamer (1999) ainda acrescenta que o debate deve ser estendido a outros idiomas, além do inglês, e a pontos de vista de outras culturas. Este artigo é uma tentativa destas.

Neste texto, usamos o termo criação animal, apesar de o termo consagrado na literatura de língua portuguesa ser produção animal, porque isso ajuda a colocar de maneira mais clara nossa opinião. O termo criação animal traz implícita a idéia do animal enquanto sujeito, e não objeto, do processo produtivo (Pinheiro Machado Filho et al., 2001a), contrapondo-se à idéia da zootecnia tradicional do animal como uma "formidável máquina de produção" (Domingues, 1960). Esta nova concepção se baseia no fato de que o animal é um ser sentiente (Fraser, 1980; Hurnik, 1992) e resgata a relação entre o homem e o animal na agricultura (Rollin, 1995).

 

O que é e como se pode medir o bem-estar animal

Bem-estar animal é um termo subjetivo, influenciado pelas visões diferentes das pessoas e culturas diversas que compõem a sociedade. Existe, por isso, um grande debate na comunidade científica a respeito do conceito de bem-estar animal e, principalmente, de sua aplicabili-dade aos contextos científico e produtivo. Existem duas correntes principais na forma de avaliar o bem-estar de animais criados em cativeiro. A primeira considera principalmente o estado biológico dos animais em uma dada situação, enquanto a segunda considera principalmente as suas experiências subjetivas (Mendl, 2001).

De acordo com Hurnik (1992), bem-estar animal é o "estado de harmonia entre o animal e seu ambiente, caracterizado por condições físicas e fisiológicas ótimas e alta qualidade de vida do animal". Donald Broom (1991, 1993) propõe que bem-estar não é um atributo dado pelo homem aos animais, mas uma qualidade inerente a estes. O bem-estar se refere, então, ao estado de um indivíduo do ponto de vista de suas tentativas de adaptação ao ambiente. Ou seja, se refere a quanto tem de ser feito para o animal conseguir adaptar-se ao ambiente e ao grau de sucesso com que isto está acontecendo. O bem-estar pode assim variar entre muito ruim e muito bom e pode ser avaliado cientificamente a partir do estado biológico do animal e de suas preferências. Nesse contexto, produtividade, sucesso reprodutivo, taxa de mortalidade, comportamentos anômalos, severidade de danos físicos, atividade adrenal, grau de imunossupres-são ou incidência de doenças, são fatores que podem ser medidos para avaliar o grau de bem-estar dos animais (Broom, 1991; Mench, 1993). Broom ainda considera que o sofrimento normalmente está relacionado com o bem-estar, embora a ausência de sofrimento não seja, necessariamente, sinônimo de bem-estar.

Alguns cientistasconsideram, por outro lado, que o bem-estar animal se refere principalmente ou até mesmo totalmente aos sentimentos dos animais. Para Duncan (1993), a capacidade de sentir é um pré-requisito necessário para o bem-estar. Segundo esta interpretação, saúde, adaptação ou ausência de estresse são necessidades tanto dos animais como das plantas, mas o perfeito funcionamento do organismo em harmonia com o ambiente não promoverá bem-estar, se não atender aos interesses dos animais. Duncan (1993) defende que o bem-estar é reduzido quando os animais têm sentimentos negativos, ou seja sofrem, e inclui entre estes sentimentos frustração, medo, dor, solidão, aborrecimento e talvez até sentimentos que não ocorrem em seres humanos. Duncan defende que, do ponto de vista da discussão sobre bem-estar animal, não importa se frustração, medo e dor em animais são semelhantes às mesmas sensações em humanos, mas o quão negativas são do ponto de vista do animal.

A aceitação desses argumentos é complicada pela dificuldade em se chegar a um consenso sobre como medir ou interpretar a existência de estados mentais em animais (ver discussão em Dawkins, 2000, Mendl, 2001 e Schilhab, 2002). Se as inquietações que movem a sociedade no sentido de reivindicar o respeito ao bem-estar animal baseiam-se principalmente na suposição de que existem experiências subjetivas nos animais, o problema, para o cientista, é que este aspecto subjetivo é o mais difícil de ser avaliado. Dawkins (2000) propõe que podemos ir adiante na discussão, simplesmente assumindo a existência de emoções e outros estados subjetivos dos animais, mesmo reconhecendo a nossa dificuldade em identificá-los e comprová-los.

Na tentativa de construir um consenso em torno da definição de bem-estar, Fraser et al. (1997) sintetizaram as três principais questões éticas que, segundo eles, são levantadas pela sociedade em relação à qualidade de vida dos animais. Primeiro, os animais deveriam sentir-se bem, ou seja, deveriam atingir seus interesses, os quais consistiriam basicamente em estar livres de sentir medo e dor e em poder ter experiências prazerosas. Em segundo lugar, deveriam também ter um bom funcionamento, isto é, poder satisfazer as suas necessidades de saúde, crescimento, fisiologia e comportamento. Por último, os animais deveriam viver vidas naturais, ou seja, deveriam poder viver e desenvolver-se da maneira para a qual estão adaptados. Teoricamente, se incluirmos estas questões éticas na concepção do termo bem-estar animal, serviremos melhor à sociedade, que procura apoio na ciência para materializar seus anseios em propostas e promover mudanças (Fraser, 1999).

 

Medindo bem-estar na prática

Critérios científicos e objetivos vêm sendo utilizados na tentativa de avaliar o bem-estar animal, através da medição dos custos arcados pelo organismo para se ajustar ao seu ambiente. Pela complexidade dos processos adaptativos, a avaliação do bem-estar envolve uma abordagem multidisciplinar, que considera as características comportamentais, a sanidade, a produtividade, as variáveis fisiológicas e as preferência dos animais pelos diversos componentes do ambiente que os rodeiam (Broom, 1991; Mench, 1993; Zanella, 1996).

O estresse fisiológico é um dos principais indicadores usados na avaliação do bem-estar animal. Estresse pode, de maneira geral, ser considerado a resposta fisiológica do organismo a um estímulo do ambiente, na tentativa de manter a homeostasia (Hötzel & Pinheiro Machado Filho, 2000). Nesse sentido, o estresse tem valor adaptativo. Mas quando o estresse é prolongado, ou crônico, através da ação continuada de catecolaminas e glicocorticóides, tem repercussões negativas no sistema imunológico, reprodutivo e no crescimento. O estresse pode ainda interferir com a memória dos animais e o acarretar uma menor capacidade cognitiva. Isto, por sua vez, pode gerar comportamentos inapropriados e afetar negativamente o bem-estar (Mendl et al., 2001). A concentração dos hormônios do eixo hipófise-adrenal ou o peso das adrenais são freqüentemente utilizados para inferir o estado fisiológico dos animais que enfrentam situações potencialmente estressoras.

Outra variável utilizada para avaliar estresse e bem-estar animal é a incidência de comportamentos anômalos. Comportamentos anômalos são considerados um redireciona-mento de desempenhos para os quais o animal tem forte motivação, mas cuja realização está impedida por fatores ambientais. A ocorrência e freqüência de comportamentos anômalos é muitas vezes usada para avaliar a adaptação do animal a um ambiente de cativeiro. Outras vezes, o comportamento dos animais numa situação é comparado com o de animais que têm a possibilidade de desenvolver um repertório comportamental mais próximo do considerado natural para a espécie em condições ambientais apropriadas. Além dessas avaliações, a observação das preferências dos animais é utilizada como forma de obter a opinião dos mesmos em relação a certas situações de manejo ou ambientes.

 

Por que deveríamos nos preocupar com o bem-estar do animais?

Os principais motivos que levam as pessoas a se preocuparem com o bem-estar de animais de fazenda são inquietações de origem ética, o efeito potencial que este possa ter na produtividade e na qualidade dos alimentos e, por último, as conexões entre bem-estar animal e comercialização internacional de seus produtos de origem animal. Todos têm relevância e não devem ser considerados contraditórios.

As duas principais teorias éticas aplicadas ao bem-estar animal são a ética deontológica e a utilitarista. De acordo com a primeira, em que se baseiam os movimentos de liberação ou direitos dos animais (exemplo: Singer, 1990), uma ação é julgada certa ou errada de acordo com o que ela é, não em relação às suas conseqüências. Na ética utilitarista, que é a mais aplicada na análise científica do bem-estar animal, uma ação é julgada certa ou errada de acordo com suas conseqüências, baseando-se numa análise dos custos e benefícios. Certo será aquilo que, dentro das opções possíveis, produzir os maiores benefícios ou os menores prejuízos para todas as partes envolvidas (Christiansen & Sandøe, 2000). A própria aceitação da utilização de animais para consumo e serviço baseia-se nesta regra que envolve uma análise de custos e benefícios do uso de animais, do ponto de vista de ambas as partes envolvidas: animais e humanos. Mesmo aceitando que os benefícios justifiquem esta utilização, a sociedade humana considera que há limites na aceitabilidade dos custos para os animais.

Embora o impacto do bem-estar animal na produtividade não deva ser o único motivo ou o mais importante para a sociedade se preocupar com o tema, ele tem óbvia relevância, porque a produtividade é um dos fatores que justifica a atividade. A alta produtividade não é necessariamente sinônimo de bem-estar (Broom, 1991), mas, quando o bem-estar é pobre, pode haver quedas na produção de ovos e leite, na reprodução e no crescimento, aumento da incidência de doenças e produção de carne de qualidade inferior. Por exemplo, o estresse social devido a manejos inadequados na propriedade pode influenciar negativamente a qualidade da carne (Beattie et al., 2000), o ganho de peso (Hyun et al., 1998, Stookey & Gonyou, 1994,) e a reprodução (Dobson et al., 2001). Pode também aumentar a incidência de doenças (Hemsworth et al., 1995, Lensink et al., 2000) e do canibalismo (Wechsler & Huber-Eicher, 1998), levando até à morte de animais. Relações humano-animais inadequadas também podem influenciar negativamente a produtividade e a qualidade dos produtos (Hemsworth, Barnett et al., 2002; Hemsworth, Coleman, 2002). Por último, alguns dos principais problemas que interferem com a produtividade e a qualidade final dos produtos de origem animal ocorrem no processo de transporte e no manejo pré-abate. Exemplos disso são o transporte em longas distâncias em veículos inapropriados e sob manejo de pessoal mal treinado, a mistura com animais desconhecidos, o espaço inadequado tanto nos veículos como no abatedouro durante a espera, o frio, o calor. Problemas no transporte e no manejo pré-abate têm influência direta na qualidade das carcaças, e se manifestam através de fraturas ósseas, de lesões nos músculos e hematomas. Podem também aumentar a incidência de carne PSE (pale, soft, exudative - pálida, mole, exudativa) e DFD (dark, firm, dry - escura, dura e seca) nas carcaças de suínos e bovinos, respectivamente (Gregory, 1998). Além de todas as condições descritas acima serem questionáveis do ponto de vista ético, aumentam os custos de produção e/ou prejudicam a qualidade do produto final.

Por último, a questão do bem-estar animal pode ser um entrave, mesmo que indireto, para a comercialização dos produtos de origem animal. A auto-suficiência na produção de alimentos é considerada uma questão de segurança nacional e, por isso, quando possível, a maioria dos países tende a proteger sua produção interna (McGlone, 2001). Com uma extensão de terra agricultável significativa em relação ao planeta, e uma vocação humana e natural para a agricultura, é lógico prever um desenvolvimento para o Brasil que envolva aumentos na exportação de produtos agrícolas, inclusive de origem animal. Mas, para conquistar mercados cada vez mais competitivos, é necessário que o País se enquadre nos padrões de exigência internacionais. Isso já acontece ao nível de sanidade e higiene. O bem-estar animal e a qualidade ética dos alimentos são itens que tendem a ser associadas a essas exigências e que podem ser incluidos nas negociações.

Em vários países importadores de carne, a questão do bem-estar animal vem se tornando uma preocupação crescente, havendo a exigência, por parte da sociedade, de um número cada vez maior de ações que melhorem a qualidade de vida dos animais. Isso tem obrigado os produtores a realizar investimentos em treinamento de pessoal, instalações e equipamentos. É natural que tanto os produtores que fizeram tais investimentos, como as sociedades humanitárias de proteção que conquistaram esses padrões para os animais, não aceitem facilmente a importação de carne de países onde os produtores não cumpram os mesmos padrões. Embora as regras do comércio internacional ainda não prevejam restrições em razão de motivações de ordem do bem-estar animal, pode haver pressões de grupos pró bem-estar animal contra estabelecimentos comerciais que vendam produtos oriundos de países onde os animais sejam criados em condições percebidas como desumanas.

É provável que tenhamos que nos adaptar a essas exigências e, por isso, os profissionais da área de agricultura em nosso país precisam informar e assessorar o público e produtores a respeito. E mais: precisamos conhecer bem a situação, para poder separar o que será barreira comercial e o que será exigência genuína de um mercado consumidor globalizado, e defender os interesses da economia nacional.

 

Quais são, na prática, as principais preocupações em relação ao bem-estar de animais de fazenda?

Alguns dos principais fatores que podem influenciar o bem-estar na criação de animais de fazenda estão relacionadas às práticas de manejo. Nos sistema intensivos os animais são submetidos a formas de transporte e manejo pré-abate inadequados e a mutilações realizadas no manejo de rotina. A qualidade dos cuidados por parte dos seres humanos e a seleção genética para alta produção influenciam a qualidade de vida, saúde e longevidade dos animais. Essas preocupações fazem com que grande parte da pesquisa aplicada ao bem-estar animal esteja centrada nos efeitos do ambiente - ou seja, alojamento e manejo, incluindo a relação humano-animal - na fisiologia, produtividade e comportamento dos animais durante as diversas fases da criação até o abate.

Alguns problemas de bem-estar são especificamente relacionados ao sistema de criação confinada, que oferece um ambiente relativamente pouco complexo e espaço insuficiente onde os animais possam desenvolver o padrão comportamental próprios da sua espécie. O estresse social causado por altas densidades e falta de espaço, e a ausência de material para manipulação, são freqüentes causadores de estresse nos confinamentos. Nesses casos, aumenta a incidência de bicagem das penas e canibalismo em aves (Wechsler & Huber-Eicher, 1998) e comportamentos anormais redireciona-dos a objetos e partes das baias em suínos (Lawrence & Terlouw, 1993) que podem ser acompanhado de estresse fisiológico (De Jonge et al., 1996; de Jong et al., 2000, de Jong et al. 2002). A falta de material e espaço para construção de ninho também leva porcas pré-parturientes a redire-cionarem a sua motivação a objetos e partes das baias e aumenta o estresse fisiológico (Hötzel, Wolf et al. 2001; Hötzel et al., 2003; Jarvis et al., 2002). Leitões criados em confinamento apresentam maiores incidências de comportamentos anômalos e iniciam a alimentação sólida mais tardiamente do que leitões criados a campo (Cox & Cooper, 2001; Hötzel, Egert et al., 2001; Hötzel, Wolf et al. 2001; Hötzel et al., 2003; Johnson et al., 2001). O enriquecimento ambiental do confinamento alivia alguns desses sintomas (Grandin, 1989). Esses dados, tomados em conjunto, indicam que a falta de espaço e a baixa complexidade do ambiente confinado são fatores negativos para o bem-estar de animais criados em confinamento.

Muitas práticas de manejo e o projeto inadequado das instalações utilizadas na criação animal podem levar a prejuízos para o bem-estar. Quando o manejo alimentar é inadequado, os animais não têm a sua motivação alimentar satisfeita, apesar de terem seus suprimentos nutricionais atendidos. Essa condição pode levar a comportamentos anômalos e estresse (Terlouw et al., 1991). O desmame de leitões é outro exemplo de manejo de rotina que pode afetar negativamente o bem-estar animal. Em criações comerciais o desmame normalmente é feito pela separação repentina de leitões e mãe, numa idade em que a cria ainda é alimentada principalmente pelo leite materno. A separação prematura da mãe é uma situação estressante que leva a vocalizações prolongadas, inquietação, atividade intensa e algumas vezes geram comportamentos anômalos que se manifestam até na vida adulta (De Jonge et al., 1996; Weary & Fraser, 1997; Wolf et al., 2002). Um exemplo relacionado ao planejamento das instalações é o uso de pisos inadequados, que em vacas leiteiras aumentam a incidência de laminite, algo que pode ser reduzido com o fornecimento de palha no piso (Webster, 2002).

Como organismos sentientes, os animais respondem ao tratamento recebido pelos humanos. O manuseio diário dos animais, e a maneira como o tratador se relaciona com o animal - voz, contato físico, interação geral - podem influenciar o comportamento e a produtividade dos animais (Hemsworth, Coleman et al., 2002; Rushen et al., 1999). Em alguns casos essas relações podem causar medo aos animais. Vários fatores interagem com a qualidade dos tratamentos que os animais recebem por parte de seres humanos, e estes precisam ser bem conhecidos para permitir intervir adequadamente nos sistemas. Por exemplo, vacas discriminam um tratador aversivo de um tratador neutro ou gentil (Rushen et al., 1999; Pinheiro Machado Filho et al., 2001b), mas vacas dominantes aparentemente têm mais medo de um ser humano que as trata mal do que vacas subordinadas do mesmo grupo (Pinheiro Machado Filho et al., 2001c). Suínos e bovinos podem generalizar o mau trato por parte de um ser humano a outros seres humanos (Hemsworth et al., 1994; de Passille et al., 1996), e vacas podem generalizar os maus tratos ao local onde esses maus tratos ocorreram (Rushen et al., 1998).

A seleção genética artificial é aplicada às espécies domesticadas pelo homem desde que se iniciou o processo de domesticação (Price, 1999). Nos últimos anos, coincidindo com o advento e crescimento do confinamento de algumas espécies zootécnicas, o principal objetivo da seleção tem sido aumentar a eficiência e produtividade. Embora possa ser argumentado que a seleção genética tenha trazido benefícios para o bem-estar animal e para o meio ambiente, através de melhor utilização dos recursos, também é claro que acarretou graves problemas, principalmente através do que é chamado no meio veterinário de "doenças da produção" (Blood & Radostits, 1989). Trata-se de doenças vastamente disseminadas na criação animal, como a mastite e doenças metabólicas em vacas leiteiras e laminite em porcas e vacas leiteiras (Hemsworth et al., 1995; Wells et al., 1998; Barnett et al., 2001; Rushen, 2001), problemas de articulações e ossos como fraqueza, pré-disposição a fraturas e mortalidade relacionada à osteoporose, ascite em aves, problemas digestivos e susceptibilidade a estresse (Bradshaw et al., 2002; Julian, 1998; Rath, 2000). Muitas delas estão associadas, direta ou indiretamente, com a seleção para o crescimento rápido ou a alta produtividade e consumo de alimentos (Julian, 1993). Além de causarem sofrimento e muitas vezes encurtarem a vida dos animais, essas doenças estão associadas ao uso intensivo de medicamentos e aos problemas daí decorrentes, como a contaminação de alimentos e do ambiente e a resistência microbiana a antibióticos importantes para a saúde humana (Rollin, 2001).

 

Como podemos melhorar o bem-estar dos animais zootécnicos?

Pelo exposto, não é difícil concordar que há um longo caminho a percorrer para superar os problemas de bem-estar animal relacionados à agricultura. É também importante ficar claro que não existe uma solução única para a questão do bem-estar de animais de fazenda, porque os problemas estão relacionados a um conjunto de fatores que incluem os sistemas de agricultura adotados, a genética dos animais modernos e mesmo questões políticas e culturais.

Em vez de elaborar uma receita de bem-estar animal, é possível fazer uma análise dos problemas e das soluções possíveis. Para isto é fundamental levar em conta a diversidade de situações encontradas no Brasil. Primeiro, diferentes espécies animais vivem realidades diferentes. Por exemplo, na bovinocultura de corte predomina a criação a pasto enquanto na avicultura e na suinocultura, o confinamento industrial representa a esmagadora maioria das criações comerciais. Também o número de animais criados em uma propriedade difere entre espécies animais - milhares de frangos de corte são criados em sistemas industriais, enquanto que a criação de eqüinos envolve um número menor de animais - e entre localidades - em algumas regiões predominam os latifúndios e em outras a agricultura familiar. O contato com seres humanos também difere de acordo com a espécie animal e o sistema de criação, e está relacionado ao número de animais criados em uma propriedade e ao grau de mecanização da mesma. A freqüência e duração do transporte diferem entre as localidades, de acordo com as espécies animais e sistemas de criação e comercialização. Dentro de cada região do país também existem diversas classes de produtores, variando desde grandes conglomerados de empresas até agricultores de subsistência e pessoas de origem urbana que criam animais de fazenda como atividade secundária ou de lazer.

Por isso, soluções para os problemas de bem-estar animal serão pertinentes de acordo com o caso, e devem necessariamente considerar, além dos animais, fatores como o bem-estar humano e o ambiente. Na própria agricultura orgânica, que prega bem-estar animal como condição básica através do respeito à integridade, harmonia e individualidade dos animais (Alroe et al., 2001; Lund & Rocklinsberg, 2001), existem problemas de bem-estar. Estes estão principalmente relacionados à limitação no uso de medicamentos para controlar doenças e inadequação dos genótipos ao ambiente de criação (Cabaret, 2002; Haroarson, 2001; Vaarst et al., 2001), e devem ser superadas através de desenvolvimento tecnológico específico para fundamentar a proposta adequadamente.

Entretanto, para alguns dos fatores que podem potencialmente afetar o bem-estar de animais de fazenda existem propostas claras que apontam soluções pontuais, e que são razoavelmente generalizáveis a diferentes sistemas de criação, espécies animais e culturas. Por exemplo, em relação às interações humano-animais, o treinamento dos trabalhadores e satisfação com o trabalho afetam a relação que os humanos têm com os animais, e pode se refletir no bem-estar e produtividade dos animais (Hemsworth et al., 2000; Waiblinger et al., 2002). Em relação às questões de bem-estar relacionadas à seleção genética, pode-se sugerir novos rumos para os objetivos da seleção genética de animais de fazenda que incluam parâmetros relevantes para prevenir, aliviar e solucionar os problemas de bem-estar animal (Jones & Hocking, 1999; Sandøe et al., 1999). A mudança nos rumos da seleção genética pode ser introduzida para amenizar as características causadas exclusivamente pela seleção genética, como a conformação óssea e a alta incidência de ascite em frangos de corte, ou para reduzir o impacto negativo de características relacionadas à alta produção e rápido crescimento - por exemplo a morte súbita em frangos, e a alta incidência de laminite, mastite e doenças metabólicas associadas à alta produtividade leiteira (Haroarson, 2001; Julian, 1998; Ward, 2001). Além disso, a seleção genética pode ser utilizada para aumentar o bem-estar animal, disseminando nas populações genes para resistência a doenças ou que levem a menor susceptibilidade ao estresse (Stear et al., 2001). Entretanto, porque a etiologia da maioria das chamadas doenças da produção é complexa, envolvendo fatores genéticos e de manejo (Julian, 1998; Rushen, 2001; Bradshaw et al., 2002), as mudanças nos rumos da seleção genética só terão valor se forem efetuadas em conjunto com propostas de alteração nas condições de criação dos animais.

Já procedimentos cirúrgicos como corte de rabo, orelhas, dentes e castração, que são práticas associadas à criação industrial, deveriam ser evitados, pois é difícil de provar que tragam benefícios para o animal (Tucker et al., 2001) e, quando aplicados, nunca deveriam ser feitos sem anestesia (Taylor & Weary, 2000). Da mesma forma, algumas características originadas na seleção genética, como a relação entre apetite exacerbado e seus efeitos negativos na reprodução nas linhagens de reprodução de frangos de corte, devem ser repensadas (Mench, 2002).

No que diz respeito aos problemas relacionados ao confinamento intensivo, há dois caminhos para a superação da limitação do bem-estar animal: o enriquecimento ambiental, que consiste no aperfeiçoamento das instalações com o objetivo de tornar o ambiente mais adequado às necessidades comportamentais dos animais (Appleby, 1999), ou a busca de sistemas criatórios promotores do bem-estar animal (McGlone, 2001; Pinheiro Machado Filho & Hötzel, 2000).

Alguns exemplos de medidas na direção do enriquecimento ambiental são a colocação de objetos, como "brinquedos" para quebrar a monotonia do ambiente físico, fornecimento de poleiros ou materiais como palha para servir como objetos de manipulação ou como cama, ou o aumento da área utilizada por animal (Bergeron et al., 2000; De Jong et al., 2000; Garcia, 2003; Jarvis et al., 2002; Mason et al., 2001; Wechsler & Huber-Eicher, 1998).

A outra vertente envolve repensar o sistema criatório como um todo, propondo sistemas alternativos. Existem algumas propostas que se enquadram nessa linha de pensamento, como a suinocultura e avicultura intensiva a campo e a produção de leite e carne a base de pasto, em sistemas rotativos que consideram a interação animal-solo-pasto. Atualmente um grande entrave para o crescimento destes sistemas alternativos é a falta de desenvolvimento tecnológico e de divulgação. Comparado com o esforço científico investido nos sistemas industriais e confinados nas últimas décadas, sistemas alternativos foram muito pouco estudados. Mas a falta de informação e conhecimento não devem ser utilizadas como argumento para sugerir a sua inaplicabilidade. Ao contrário, parte do esforço de cientistas interessados no tema bem-estar deveria ser investido no desenvolvimento de tecnologias apropriadas para os sistemas de criação que contemplem o bem-estar animal.

 

Conclusões

Webster (2001), alerta que o fato de a própria Organização Mundial do Comércio tratar os animais de fazenda como mercadorias, abolindo na prática o reconhecimento formal feito pela União Européia de que animais "têm sentimentos e portanto devem ser protegidos de sofrimento desnecessário" (EC, 1997). Isso porque, ao tratarmos animais como mercadorias, o limite legal do que seja "sofrimento desnecessário" passa a ser regulado pelo mercado. Este dilema só pode ser contornado num contexto onde bem-estar animal for consistente com os interesses da população (Webster, 2001).

Embora as mudanças radicais ocorridas na agricultura nos últimos 50 anos tenham ocorrido sem envolvimento maior da sociedade, as soluções para os desafios impostos por essa revolução devem envolver um debate público. A agricultura sustentável hoje é contraposta à agricultura industrial convencional e os efeitos negativos que esta última tem causado ao bem-estar animal, ao meio ambiente e à saúde humana são ressaltados. Os primeiros movimentos de defesa do bem-estar dos animais de fazenda, que acabaram se alastrando a várias regiões do mundo, surgiram em resposta ao crescimento da agricultura industrial, que na criação animal é representada principalmente pelo confinamento intensivo de suínos e aves, e várias práticas de manejo animal centradas exclusivamente na eficiência econonômica. As tecno-logias que eram propostas pela revolução verde vinham acompanhadas da esperança de eliminação da fome do mundo, um assunto para o qual a sociedade estava especialmente sensibilizada no período pós-guerra. Entretanto, embora nos últimos 30 anos a produção de carnes no mundo tenha aumentado 2,3 vezes mais do que a população (FAO, 2003), a carência de proteínas continuou e 1/4 da população do planeta vive sem acesso a proteína animal. Os desafios atuais apresentados pelas mudanças de valores da sociedade levantam questões que não são meramente técnicas e requerem o envolvimento do público, das lideranças e dos governos.

O acesso ao conhecimento e à informação através da mídia hoje colocam o Brasil a uma distância menor do mundo industrializado onde a revolução da agricultura surgiu e nos foi depois imposta sem questionamentos. Portanto, embora o movimento em favor do bem-estar de animais de fazenda seja relativamente novo em nosso meio, em comparação com os países industrializados, ele deve crescer rapidamente. Produtores e legisladores devem adiantar-se às demandas que lhes serão feitas. Já os cientistas devem evitar a extrema simplificação com que o tema bem-estar tende a ser abordado, concentrando esforços em identificar problemas e apontar soluções.

Existem várias soluções para o problema da fome do mundo e do sofrimento de milhões de animais que não envolvem a exclusão de um em favor do outro, e são estas que devem ser apresentadas ao público e debatidas. Se considerarmos bem-estar animal dentro de um contexto ético maior, parte dos dilemas que cientistas enfrentam em relação à própria definição do termo bem-estar perdem relevância. Por considerar as implicações maiores da agricultura no bem-estar das populações humanas e no meio ambiente, a criação (e não a "produção") animal sustentável pode ser a síntese desse processo, e nesta síntese o bem-estar animal deve estar necessariamente implicado.

 

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Endereço para correspondência
Maria José Hötzel
Afonso Delambert Neto 903, Lagoa da Conceição
88062-000, Florianópolis, SC, Brasil.

Universidade Federal de Santa Catarina
Departamento de Zootecnia e Desenvolvimento Rural
Laboratório de Etologia Aplicada
Rodovia Admar Gonzaga, 1346, Itacorubi
88.034-001, Florianópolis, SC, Brazil
E-mail: mjhotzel@cca.ufsc.br

Recebido em 30 de setembro de 2003
Revisão recebida em 14 de abril de 2004
Aceito em 18 de junho de 2004

 

 

Agradecemos ao Prof. Luiz Carlos Pinheiro Machado, pela revisão do texto. Durante a preparação deste artigo Maria José Hötzel foi bolsista PV do CNPq junto ao DZR-UFSC.

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