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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.56 São Paulo  2023  Epub 27-Mayo-2024

 

Artigo Original

Desenvolvimento sustentável e tecnologias coloniais de gênero: propostas da FAO para “mulheres rurais”

Desarrollo sostenible y tecnologías coloniales de género: propuestas de la FAO para “mujeres rurales”

Sustainable development and gender technologies: FAO proposals for “rural women”

Maria da Graça Costa1  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0001-7875-2622

Magda Dimenstein2  , Concepção, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-5000-2915

Jáder Leite3  , Concepção, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-6045-531X

1Doutora em Psicologia – UFRN. https://orcid.org/0000-0001-7875-2622 E-mail: mariaggomes@gmail.com

2Doutora em Saúde Mental – UFRJ. http://orcid.org/0000-0002-5000-2915 E-mail: mgdimenstein@gmail.com

3Doutor em Psicologia Social – UFRN. https://orcid.org/0000-0002-6045-531X E-mail: jaderfleite@gmail.com


Resumo

Objetiva-se identificar os discursos que vêm estruturando as estratégias de ação instruídas pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (Food and Agriculture Organization of the United Nations – FAO) em relação às mulheres rurais. Trata-se de uma análise das práticas discursivas a partir dos documentos de referência da FAO sobre gênero e agricultura produzidos entre os anos de 2011 e 2021. A análise dos documentos aponta que os mesmos se baseiam nas noções de desenvolvimento sustentável e empoderamento de gênero. Destaca-se o caráter colonial desses discursos que têm servido de base conceitual para as políticas públicas dirigidas às mulheres rurais nos países do Sul Global. Conclui-se que essas propostas podem trazer grande impacto nas dinâmicas, nos modos de viver e produzir das mulheres rurais na medida em que conformam ações ancoradas na lógica da produtividade e da instrumentalização do trabalho feminino.

Palavras-chave: Mulheres rurais; Feminismo descolonial; Feminização da pobreza; Agricultura familiar; Políticas públicas de gênero

Resumen

El objetivo de esto artículo es identificar los discursos que vienen estructurando las estrategias de acción instruidas por la Organización de las Naciones Unidas para la Agricultura y la Alimentación (FAO) en relación a la mujer rural. Este es un análisis de prácticas discursivas basado en documentos de referencia de la FAO sobre género y agricultura producidos entre 2011 y 2021. El análisis de los documentos señala que se basan en las nociones de desarrollo sostenible y empoderamiento de género. Se destaca el carácter colonial de estos discursos, que han servido de base conceptual para las políticas públicas dirigidas a las mujeres rurales de los países del Sur Global. Se concluye que estas propuestas pueden tener un gran impacto en las dinámicas, en los modos de vivir y producir de las mujeres rurales en la medida en que conforman acciones ancladas en la lógica de la productividad y de la instrumentalización del trabajo de las mujeres.

Palabras clave Mujer rural; Feminismo decolonial; Feminización de la pobreza; Agricultura familiar; Políticas públicas de género

Abstract

The objective of this article is to identify the discourses that have been structuring the action strategies instructed by the Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) in relation to rural women. This is an analysis of discursive practices based on FAO reference documents on gender and agriculture produced between 2011 and 2021. The analysis of the documents points out that they are based on the definitions of sustainable development and gender empowerment. The colonial character of these discourses is highlighted, which have served as a conceptual basis for public policies aimed at rural women in the countries of the Global South. It is concluded that these proposals can have a great impact on the dynamics, on the ways of living and producing of rural women insofar as they conform actions anchored in the logic of productivity and instrumentalization of women’s work.

Keywords Rural women; Decolonial feminism; Feminization of poverty; Family farming; Gender public policies

INTRODUÇÃO

As mulheres têm uma importância fundamental na promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional de famílias e comunidades. Em áreas rurais e comunidades tradicionais, elas costumam ser as maiores responsáveis pelo suprimento das necessidades alimentares e nutricionais de suas famílias, através da compra de produtos alimentícios, pela agricultura de subsistência através da produção nos quintais, pelo manejo de sementes e hortaliças, pelo preparo e oferta de alimentos.

Na década de 1970, especialmente no contexto de esforços para aliviar ou resolver problemas nas questões alimentares, a discussão sobre as condições de vida, trabalho e produção das mulheres rurais tornou-se amplamente presente em documentos das Nações Unidas. Já em 1985, na Conferência Mundial de revisão e avaliação das realizações do Decênio das Nações Unidas para as Mulheres (1975-1985) em Nairóbi, no Quênia, foram adotadas estratégias prospectivas para o avanço das mulheres para até o ano 2000, dentre elas o desenvolvimento sustentável e o apoio às mulheres na agricultura. Na esteira desses debates, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) adotou como suas áreas de atuação prioritária a promoção da “igualdade de gênero na agricultura e desenvolvimento rural” e o trabalho com “mulheres e meninas rurais” (FAO, 2013), em consonância com o Objetivo 5 do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), qual seja, “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

A FAO é uma agência da ONU que tem como objetivo a erradicação da fome no mundo por meio de ações de liderança e cooperação internacional. Tem grande importância no que se refere às diretrizes e políticas voltadas aos sistemas agroalimentares e agricultura em todo o mundo, particularmente nos países do terceiro mundo1. Os programas da FAO para alimentação e agricultura dialogam diretamente com instituições internacionais de fomento e as organizações criadas a partir da Conferência de Bretton Woods em 1944 – Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI) – que pautam os modelos de desenvolvimento em âmbito global. Dessa forma, não só a FAO influencia as políticas dos países membros da ONU, como também define eixos de ações e financiamento que impactam projetos locais desenvolvidos por organizações não governamentais, entidades da sociedade civil e movimentos sociais organizados.

Considerando a importância da agência no que se refere às ações realizadas especialmente em países do Sul Global, refletimos sobre os vínculos das agendas do desenvolvimento e as políticas públicas voltadas para as mulheres rurais. Nesse sentido, surgem algumas questões que nos parecem centrais para entender essas relações: quais sujeitos coletivos produzem ou protagonizam tais agendas? Qual modelo de desenvolvimento está em questão quando se fala em desenvolvimento sustentável? Quais ideais de “mulheres rurais” são produzidas ou reforçadas por tais discursos e ações?

Tentando responder essas questões, tomaremos neste artigo os documentos produzidos pela FAO para analisar as produções discursivas sobre mulheres rurais e desenvolvimento sustentável construídos no âmbito dos organismos internacionais. Para tanto, realizamos uma análise das práticas discursivas a partir dos documentos de referência da FAO sobre gênero e agricultura produzidos entre os anos de 2011 e 2021. Os documentos foram analisados à luz da perspectiva foucaultiana dos discursos em diálogo com o campo de debates sobre a colonialidade e dos feminismos descoloniais e anticoloniais do Sul Global.

Iniciamos nossa discussão apresentando os principais repertórios discursivos presentes nos documentos, focando especialmente na noção de desenvolvimento sustentável e a estratégia que vai balizar sobremaneira os documentos analisados, qual seja, a de empoderamento de gênero, no modelo que chamamos de “projetismo” das políticas de desenvolvimento. Refletimos sobre o caráter colonial desses discursos, que se configuram como tecnologias coloniais de gênero, uma vez que têm servido de base conceitual para políticas públicas dirigidas às mulheres rurais nos chamados países do terceiro mundo e as disputas que ocorrem na FAO sobre modelos e estratégias para atuação entre o desenvolvimento sustentável, o agronegócio e a agroecologia

DELIMITAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

Para o filósofo Michel Foucault (1995) a linguagem não é uma representação da realidade, mas sim um evento vivo, material, contextual e político inserido em relações de poder e jogos de forças. A linguagem, desta maneira, é compreendida como uma ação discursiva que pode instaurar verdades e conformar certa realidade material e subjetiva através dos jogos de forças em disputa em um determinado contexto.

As instituições têm uma posição central no controle, organização e seleção dos discursos na sociedade, uma vez que inauguram e/ou reproduzem esses discursos. Considerando que a dinâmica do discurso e do poder na representação da realidade social ajuda a mostrar os mecanismos pelos quais uma determinada ordem de discurso produz formas de ser e pensar, “os diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos” (Foucault, 1995, p. 86), partimos do entendimento de que as políticas institucionais envolvem processos de subjetivação pelos discursos e pelas normas que incidem sobre os indivíduos e coletivos.

Neste trabalho, tomamos os documentos institucionais de domínio público enquanto práticas discursivas, tal como propõe Peter Spink (2013). Este autor, em diálogo com o Construcionismo Social, destaca o caráter de prática social da linguagem e sua capacidade múltipla, seja em forma de palavras, artefatos e imagens, de gerar sentidos sobre os variados fenômenos da vida social, concorrendo, inclusive, para efeitos de subjetivação. Assim, os documentos de domínio público, conforme o autor:

Podem refletir as transformações lentas em posições e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o dia a dia ou, no âmbito das redes sociais, pelos agrupamentos e coletivos que dão forma ao informal, refletindo o ir e vir de versões circulantes assumidas ou advogadas. (Spink, 2013, p. 112)

Foram adotados os seguintes documentos de referência como material de análise: Fao policy on gender equality 2020 – 2030 (2020a); Atlas de las mujeres de América Latina y el Caribe: al tiempo de la vida y los hechos (2017); Meeting our goals: FAO’s programme for gender equality in agriculture and rural development (2016a); Género y sistemas agroalimentarios sostenibles, estudios de caso: yucca, quinua, maíz y aldodón (2016b); Construyendo una agenda de políticas públicas para las mujeres rurales: autonomía económica, igualdad de derechos y lucha contra el hambre (2013); e Women in agriculture: Closing the gender gap for development (2011). Tais documentos foram escolhidos para análise por serem referencias produzidas pela FAO nos últimos 10 anos (de 2011 a 2021) sobre as condições de vida e trabalho das mulheres rurais, servindo como base para as diretrizes e ações levadas a cabo pela agência.

Buscamos identificar a partir dos enunciados presentes nos documentos em questão, as vozes e repertórios interpretativos em torno dos termos “mulheres rurais” e “desenvolvimento sustentável”. Relacionamos em tais repertórios as matrizes discursivas mais amplas entendendo essas matrizes como racionalidades que subjazem os discursos sobre mulheres rurais. Organizamos a discussão em quatro eixos a partir dos repertórios identificados nos documentos: (a) Desenvolvimento sustentável e colonialidade do poder; (b) Mulheres rurais e colonização discursiva dos feminismos hegemônicos; (c) Projetismo e empoderamento: tecnologias coloniais de gênero nas políticas de desenvolvimento e; (d) Disputas entre o desenvolvimento sustentável, o agronegócio e a agroecologia. A seguir, desenvolvemos essas linhas de discussão.

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E COLONIALIDADE DO PODER

Considerando os documentos voltados para as mulheres em contextos rurais, percebe-se que a FAO toma o desenvolvimento sustentável como fio condutor de suas propostas. As mulheres rurais são enunciadas pela organização como “guardiãs do desenvolvimento sustentável” (FAO, 2020b). A despeito de uma série de críticas que vêm sendo construídas nas últimas décadas, especialmente a partir de movimentos sociais, a noção de desenvolvimento sustentável é central nas estratégias e programas desenvolvidos por organismos internacionais, por uma parte dos movimentos ambientalistas, por governos e empresas privadas.

Na obra La invención del desarollo, Arthuro Escobar (2014) faz uma crítica contundente à ideia de desenvolvimento sustentável relacionando-a à colonialidade do poder expressa nas políticas de desenvolvimento promovidas a partir do Norte global. O conceito de colonialidade do poder, proposto por Aníbal Quijano (2005), trata dos padrões de poder global que fundamentam o que entendemos como modernidade e constituem-se a partir do evento colonial da ocupação europeia nas Américas em 1492 e a formulação da ideia de raça, categoria que permeia todas as dimensões desse sistema e que estrutura um complexo de classificações binárias e hierárquicas do que é superior/inferior e povos civilizados/bárbaros, tendo o eurocentrismo como modelo absoluto (Castro-Gomez & Grosfoguel, 2007).

A colonialidade é portanto, uma lógica de distribuição de poder que reafirma e reproduz o colonialismo, mesmo com o fim desse sistema enquanto uma política econômica e administrativa, que desencadeou um processo civilizatório subjetivamente construído que se revela em produções narrativas que instituem e naturalizam a inferioridade de outras culturas e de outros povos não ocidentais. “O poder, nesse sentido, é compreendido como uma malha de relações de exploração/dominação/conflito que se configuram entre sujeitos e coletivos na disputa pelo controle do trabalho, da natureza, do sexo, da subjetividade e da autoridade” (Quijano, 2009, p. 100).

Feministas terceiro-mundistas vão aprofundar o conceito de Quijano demostrando como a colonialidade do poder não cria apenas a organização binária e hierárquica de raça, mas também de gênero e sexualidade de forma imbricada. A feminista argentina María Lugones (2008) considera que os traços históricos da organização do gênero no que ela chama de sistema moderno/colonial de gênero, representado pelo dimorfismo biológico, organização patriarcal e a heterossexualidade compulsória é central para uma compreensão diferencial da organização do gênero em termos raciais. Assim, conforme a autora, a imposição desse sistema de gênero foi tanto constitutiva da colonialidade do poder quanto a colonialidade do poder foi constitutiva do sistema de gênero.

Logo, o sistema mundo moderno colonial não pode existir sem a colonialidade do poder, já que a classificação da população em termos de raça e gênero é uma condição necessária para sua possibilidade. Em outras palavras, a colonialidade do poder, balizada pelas categorias de raça e gênero, estruturam materialmente e subjetivamente o sistema mundo moderno capitalista até a contemporaneidade.

Como mostra Immanuel Wallerstein (2003), o discurso do desenvolvimento é uma das bases do sistema/mundo colonial e o capitalismo contemporâneo, ao organizar sociedades entre mais desenvolvidas, menos desenvolvidas e não desenvolvidas através da divisão internacional do trabalho, opera para que parte do globo se ocupe da produção de alto valor agregado, enquanto países do Sul Global, de capitalismo periférico, fabriquem bens de baixo valor e forneçam commodities e matérias-primas para a produção de alto valor dos países centrais. Com isso, os países do Norte Global assumem a gerência em relação às linhas de compreensão e ao manejo de questões estratégicas mundialmente, com um viés fortemente desenvolvimentista e intervencionista.

De acordo com Richard Jolly (2004, p. 49), a pauta desenvolvimentista ganhou centralidade na agenda internacional na segunda metade do século XX, tendo como prioridade alavancar projetos de desenvolvimento nos países do Sul global e em países que haviam alcançado a independência recentemente. De acordo com João Machado e João Pamplona (2008), havia uma ideia crescente de que, além do capital físico e material, a falta de recursos humanos adequados também era um grande obstáculo para o desenvolvimento dos países periféricos.

Fundada no contexto pós Segunda Guerra Mundial em 1945 como uma agência voltada à manutenção da paz internacional, a ONU passou rapidamente a atuar no campo econômico e social e na promoção da segurança internacional, tendo protagonismo no que se refere às políticas de desenvolvimento global. Com isso, a agência passa a trabalhar no sentido de oferecer apoio em algumas áreas do desenvolvimento econômico, sendo esta a base da cooperação técnica internacional (Machado & Pamplona, 2008).

A partir da influência da administração do presidente estadunidense John Kennedy, a década de 1960 foi declarada pelas Nações Unidas como a “Década do Desenvolvimento”.

A intenção era realizar ações que reduzissem a diferença entre os países considerados desenvolvidos e os subdesenvolvidos, tendo como meta econômica um crescimento anual mínimo de 5% para estes últimos. Embora parte dos países tenha alcançado esta meta, o aumento no crescimento econômico não produziu melhorias nas condições de vida da maioria das pessoas em muitos países em desenvolvimento. (Machado & Pamplona, 2008, p. 57)

A década de 1970 foi batizada pela ONU como a “Segunda Década do Desenvolvimento” e, considerando a experiência da década anterior, sua estratégia continha não só uma meta de crescimento de 6%, mas também metas para fluxo de ajuda internacional, empregos, educação e saúde (Machado & Pamplona, 2008).

Para Escobar (2014), constitui-se, nesse processo, uma “política da pobreza” cujo um dos impactos foi a conversão das populações de países do Terceiro Mundo em objetos de conhecimento e gestão criando as condições necessárias para reproduzir e implementar globalmente as características das sociedades consideradas avançadas: altos níveis de industrialização e urbanização, mecanização da agricultura, rápido crescimento da produção e dos padrões de vida e adoção generalizada da educação e dos valores culturais modernos e ocidentais. As políticas de desenvolvimento seriam, para o autor, parte de um processo de “recolonização que envolve uma reorganização econômica social das antigas colônias dentro da nova ordem que surgiu na Segunda Guerra Mundial, marcada pela industrialização e pelo avanço tecnológico” (Escobar, 2014, p. 38).

Escobar relaciona o aumento da pauperização trazida pela implementação de políticas neoliberais em diversos países de terceiro mundo e a gradativa mudança do caráter das propostas de desenvolvimento que vão sendo direcionadas para a atuação nos problemas sociais dessas regiões. À esteira desse processo, também nos anos de 1970, se configura uma “crise” do paradigma desenvolvimentista que impacta no surgimento de várias propostas alternativas de desenvolvimento tais como desenvolvimento socialista, desenvolvimento participativo e desenvolvimento sustentável, sendo esse último uma das principais estratégias das Nações Unidas, especialmente a partir da inclusão das populações rurais e das mulheres como alvos prioritários de ações (Escobar, 2014; Gilbert, 2002).

Soma-se a isso a fundação na Europa do Clube de Roma2 em 1968 e o lançamento em 1972 do relatório ‘Limites do Crescimento’, um dos estudos sobre a questão ambiental mais repercutidos da história e que apresenta um prognóstico de problemas cruciais para o futuro desenvolvimento da humanidade como saúde, meio ambiente e tecnologia, tendo como uma de suas previsões a de que o crescimento econômico e populacional esgotaria os recursos do planeta e causaria o colapso econômico no século XXI.

A definição de desenvolvimento sustentável propriamente dita surge nos anos de 1980 no relatório Nosso Futuro Comum, da Comissão Mundial das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CMED) chefiada pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, que veio para substituir a noção de ecodesenvolvimento utilizada na primeira conferência da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento, em Estocolmo, na Suécia em 1972. Desenvolvimento sustentável, de acordo com o relatório, é:

um desenvolvimento que satisfaça as necessidades da geração presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas [...] é um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas. (CMED, 1991, pp. 46-47)

Para Antonielle Cunha (2017), trata-se de uma definição propositalmente vaga para não interferir nos interesses hegemônicos consolidados sejam de nações, de corporações nacionais e transnacionais, sejam de classes sociais, de domínios territoriais ou mesmo tecnológicos. Dessa forma, o desenvolvimento sustentável ganha status de conceito hegemônico, especialmente moldado para responder aos anseios sociais de como seria possível conciliar crescimento econômico com desenvolvimento humano e preservação ambiental, sem questionar as bases das contradições em desigualdades intrínsecas ao capitalismo e ao impacto que esse sistema causa no globo.

Carlos Porto-Gonçalves (1996, 2012) argumenta que as noções de desenvolvimento e sustentabilidade são mutuamente contraditórias, de maneira que o desenvolvimento “revela-se como um fim em si mesmo, o que significa sair/dominar a natureza e também os homens” (1992, p. 11). Assim, o que estaria em questão não é o padrão de desenvolvimento imposto pela lógica dominante, mas ao contrário, como fazer para que esse padrão possa ser mantido indefinidamente, sem romper com a lógica do domínio e exploração dos “recursos naturais”.

Nesse sentido, concordamos com a análise de Porto-Gonçalves (1996, 2012) e Escobar (2014), para quem a proposta de desenvolvimento sustentável e a globalização se estabelecem como a nova “roupagem” da geopolítica da colonização/exploração dos territórios subalternizados. Segundo Escobar (2014), o discurso de desenvolvimento é um sistema regido por certas regras, que deve sua coesão a um conjunto de afirmações que a prática discursiva continua a reproduzir, quer essas práticas se relacionem com a industrialização, agricultura, camponeses ou mulheres e o meio ambiente. Vale examinar detalhadamente as figurações específicas que introduziram, primeiro, a do camponês, e posteriormente as mulheres, ao aparato do desenvolvimento, a partir de uma série de ações economicistas e tecnológicas.

Na década de 1980, junto ao fortalecimento do debate sobre desenvolvimento sustentável, ganha proeminência também o discurso sobre “mulher e desenvolvimento”. Com isso se estabelecem (a) o meio ambiente, (b) o camponês/trabalhador rural e (c) a mulher, como os atores principais sobre os quais vão se empreender as políticas de desenvolvimento pelas Nações Unidas e suas agências na virada para o século XXI.

MULHERES RURAIS E COLONIZAÇÃO DISCURSIVA DOS FEMINISMOS HEGEMÔNICOS

O discurso sobre mulheres e desenvolvimento ganha força a partir das interpelações feministas que vão evidenciar a ausência de ações voltadas para as mulheres e a invisibilização das suas contribuições nas políticas desenvolvimentistas apoiadas em todo o mundo pelas Nações Unidas. O patrocínio da ONU e dos organismos bilaterais e multilaterais de financiamento através dos projetos “para o desenvolvimento de mulheres” passam a ser prioritários desde o encontro da ONU, Mulher em Pequim no ano de 1995 que impulsionou a multiplicação de organizações formadas por lideranças feministas ocidentais e/ou advindas de meios privilegiados, urbanos e acadêmicos em desconexão com as lideranças feministas de base, implicando em um processo de especialização, profissionalização e tecnocratização do feminismo (Espinosa-Miñoso, 2009).

A inclusão das mulheres e dos modelos “alternativos” de desenvolvimento, através dos projetos de mulheres e desenvolvimento, tem como foco prioritário a atuação junto a mulheres dos países do Terceiro Mundo/Sul Global. Como argumenta Chandra Mohanty em seu texto clássico de 1984, Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses, esse processo contribuiu para produzir os discursos que vão definir o imaginário sobre essas mulheres como pobres, ignorantes, domesticadas, exploradas sexualmente e, principalmente, sem agência, ou seja, sem capacidade de pensar e agir reflexivamente e com intencionalidade sobre a própria vida e as instituições sociais, em um processo que a autora chamou de colonização discursiva do feminismo ocidental3.

Segundo Yuderkis Espinosa-Miñoso (2009), é nesse cenário que as lideranças feministas ocidentais e/ou advindas das classes privilegiadas e intelectuais e dos feminismos hegemônicos do Sul Global, vão assumir o lugar de autoridade “sobre” as mulheres e falando “pelas” mulheres, considerando a invisibilidade e os regimes de silenciamento nas quais as mulheres pobres e terceiromundistas estão posicionadas no contexto do sistema moderno/colonial de gênero:

Una vez más ellas quedan folcluidas entre los discursos hegemónicos de los planes neocoloniales e imperialistas pensados para el Sur y los de sus representantes feministas del Norte y del Sur global. Si la afrodescendiente o la indígena o mestiza, madre o lesbiana, trabajadora precarizada, campesina o fuera del mercado laboral, estudiante o analfabeta, monolingüe, bilingüe, expulsada por la pobreza o por la guerra a países del primer mundo… si ellas son nombradas, si ellas son objeto de discursos y políticas, aunque las feministas “comprometidas” del Sur y del Norte “hablen por ella… ella definitivamente no está ahí. (Espinosa-Miñoso, 2009, p. 51)

Para Mohanty (1984), ao tomarem as suas experiências particulares como as experiências das mulheres em geral, os feminismos do Ocidente impõem-se de forma hegemônica e partem da ideia de uma opressão compartilhada que leva a crer que “mulheres” sejam um grupo, uma categoria homogênea que é equivocadamente tomada como a realidade material historicamente específica.

A despeito de ter escrito seu ensaio nos anos de 1980, 20 anos depois, ao revisitá-lo, a autora reafirma a pertinência da crítica empregada à colonização discursiva dos feminismos ocidentais e hegemônicos, apontando ainda para o agravamento das desigualdades relacionadas a gênero, raça e geopolítica a partir da naturalização da precariedade em consequência das políticas neoliberalistas levadas a cabo em todo o globo. Para a autora, o maior exemplo do uso de “mulher” como categoria de análise homogênea segue presente nas políticas desenvolvimentistas que aderem a certo reducionismo econômico ao descrever a relação entre economia e fatores como a política ou a ideologia (Mohanty, 1984, 2003).

O documento Women in agriculture: Closing the gender gap for development (2011), por exemplo, relaciona as culturas de cultivo tradicionais à pobreza com um dos aspectos que agravariam o patriarcado e as opressões às quais as mulheres estão submetidas que as impedem de participar ou serem reconhecidas em pé de igualdade em relação aos homens na agricultura. Neste mesmo documento não há menção de como as mulheres em suas diversidades são afetadas de forma distinta em relação à pobreza, à falta de acesso à terra e recursos e à insegurança alimentar.

Na última década, entretanto, com o fortalecimento dos debates anticoloniais e dos feminismos negros, indígenas e populares, as mulheres do Sul Global vão emergir como sujeitas políticas centrais na agenda internacional impondo mudanças a tais discursos. Podemos perceber reflexos dessa mudança nos documentos da FAO ao compararmos os debates propostos nos documentos produzidos no início da década de 2010 em relação aos documentos mais recentes, sendo notável o maior reconhecimento da pluralidade dessas mulheres e a mudança de enfoque nas propostas que anteriormente apontavam quase que exclusivamente para a necessidade do aumento da produtividade entre as mulheres, em direção à propostas como o trabalho decente na agricultura e a agroecologia, como discutiremos à frente.

À título de exemplo, no Atlas de las mujeres de America Latina y Caribe (2017), a organização aborda as condições de vida de mulheres rurais a partir de marcadores identitários e/ou laborais, quais sejam, mulheres campesinas, indígenas, afrodescendentes, coletoras, pescadoras artesanais e jovens.

Já o documento Fao policy on gender equality 2020-2030, a organização apresenta a transversalização de gênero (gender mainstreaming4) como uma de suas estratégias prioritárias em direção à promoção da equidade de gênero. Rita Segato (2012) chama atenção que a transversalização de gênero deriva do falso pressuposto de que existem dimensões da vida comunitária que são de interesse universal – a economia, a organização social, a vida política –e dimensões que são de interesse particular, parcial – a vida doméstica e o que acontece com as mulheres.

Nesse sentido, há uma projeção eurocêntrica do espaço público como valor universal e o doméstico como de interesse particular, privado e íntimo, estabelecendo uma hierarquia entre ambos. Como consequência, o que se transversaliza é o que se supõe de interesse particular, considerando-se como um acréscimo aos temas centrais e de interesse universal. Para a autora, transversalizar o interesse particular, parcial, como fazem as ações de gênero, atravessando temáticas supostamente universais é um erro quando se pretende alcançar a realidade dos mundos que não obedecem à organização ocidental e moderna da vida, mundos que não operam orientados pelo binarismo eurocêntrico e colonial. Segundo Segato (2012), “a estratégia da transversalização não é outra coisa que um eufemismo para nomear a inferiorização e parcialização colonial / moderna de tudo quanto interessa às mulheres” (Segato, 2012, p. 125).

O mesmo documento declara que serão consideradas outras “dimensões que se interseccionam com gênero (como idade, estado civil, status de incapacidade, religião, raça, etnia, status socioeconômico etc.) e podem criar e reforçar as desigualdades, não só entre mulheres e homens, mas também entre seus pares”5 (FAO, 2020a, p. 11, tradução nossa).

O conceito de interseccionalidade proposto no âmbito dos feminismos negros por autoras como Kimberlé Crenshaw (2002) no fim dos anos 1980 é uma ferramenta potente para compreender como as diferentes formas de desigualdades e opressões se constituem, afetam e reproduzem mutuamente enquanto tecnologias de poder. Contudo, propor uma estratégia de atuação a partir da interseccionalidade não diz respeito somente a nomeação das categorias de raça, classe, gênero e sexualidade. Na maior parte dos documentos da FAO não identificamos análises interseccionais sobre como essas dimensões afetam grupos específicos de mulheres rurais, considerando não só os marcadores raciais, geracionais etc. (em seus contextos micropolíticos referentes aos modos de vida e trabalho locais), como também uma contextualização macropolítica que considere o cenário e histórico social, econômico e político mais amplo das regiões ou países nos quais tais desigualdades surgem e se reproduzem de forma intercruzada.

É importante questionar nesses contextos, por exemplo: mulheres negras empregadas em trabalhos agrícolas assalariados têm condições de trabalho distintas em relação a mulheres brancas na mesma situação? Em que medida o salário agrícola de mulheres brancas e negras diferem? E em relação aos homens, brancos e negros? Trabalhadoras rurais quilombolas possuem reinvindicações específicas a partir dessa posição? Qual o impacto dos conflitos por terra e do agronegócio na segurança alimentar das mulheres indígenas? Também nos chama atenção a ausência de menções relativas à sexualidade, ou ainda, aos desafios enfrentados por mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais nesses contextos que podem traduzir-se, por exemplo, como uma maior dificuldade de acesso à terra e consequentemente maior insegurança alimentar para essas mulheres e seus dependentes.

Ao mesmo tempo, ao tomar a ideia de família nuclear, cisgênero e heterossexual como universal, tais discursos invisibilizam outros tipos de configurações e arranjos familiares possíveis e reforçam a ideia dos contextos rurais como lugares “atrasados” e com pouca margem para diversidade de gênero e sexual, imagem que vem sendo desafiada por pessoas e coletivos LGBTQIA+ em comunidades tradicionais e em movimentos de luta pela terra como o Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST), por exemplo, o que expõe o caráter do produção colonial da cisnormatividade e da heterossexualidade, nos termos discutidos por Lugones (2008).

Em pesquisa com militantes da Marcha das Margaridas, Rita Maciazeki-Gomes e Judit Ortuño (2020) identificaram o tensionamento entre os discursos hegemônicos produzidos sobre mulheres rurais e agricultoras familiares, em geral, relacionados à ideia de mulheres ligada à família e ao cuidado familiar ou, na esfera de movimentos e espaços progressistas, focados na questão da mulher como produtora de alimentos, baseado na ideia de sustentabilidade. Segundo suas interlocutoras, essas narrativas conformam, de alguma maneira, as ações desenvolvidas pelos movimentos, ações governamentais, a partir do que é esperado do “ser mulher” nesse contexto.

A centralidade dessas concepções pode ser vista nos projetos executados que partem de uma concepção ocidental de emancipação que também teve consequências desastrosas na instalação de objetivos políticos produtivos exclusivamente para mulheres de determinados tipos, origens e sexualidade e nas práticas de organizações locais, efeitos esses que têm relação direta com a colonização discursiva que ocorre em relação aos feminismos no Sul Global. Para Espinosa- Miñoso (2009), esse tipo de política de desenvolvimento de projetos globais nos territórios cria demandas por determinadas condutas por parte das mulheres, em uma espécie de neocolonialismo institucional, mobilizadas por conceitos como igualdade e empoderamento.

Esses discursos, que identificamos como tecnologias coloniais de gênero, também podem ser encontrados nos documentos analisados a partir da construção de uma narrativa sobre a pobreza, sobre as mulheres e sobre a agricultura familiar ora com um sentido de passividade, ora com a ideia das mulheres e suas famílias vistos como empreendedores.

PROJETISMO E O EMPODERAMENTO: TECNOLOGIAS COLONIAIS DE GÊNERO NAS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO

Propomos aqui a noção de tecnologias coloniais de gênero como operador conceitual que nos ajuda a compreender como a colonização discursiva presente nas noções de desenvolvimento sustentável e de empoderamento - que têm balizado sobremaneira os documentos da FAO – funcionam como tecnologias especificas de produção de subjetividade e dos modos de vida voltadas para mulheres racializadas, pobres e trabalhadoras rurais do terceiro mundo.

Teresa de Lauretis (1994) apresenta o conceito de tecnologia de gênero como o conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais por meio do desdobramento de uma complexa tecnologia política. As tecnologias de gênero são produzidas através de “diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (Lauretis, 1994, p. 208). Lauretis dialoga com a noção foucaultiana de tecnologia, entendida como um complexo de poder-saber que conjuga discursos e dispositivos, corpos e instrumentos, códigos e gestos para a regulação dos regimes de verdade (Beccari, 2021).

Foucault (2008) irá se interessar particularmente pelas tecnologias de produção do corpo e da sexualidade tomados como objetos de disciplina, cuidado e intervenção na sociedade ocidental moderna, no que o autor nomeia de regime biopolítico de gestão da vida das populações. De tal maneira, podemos pensar como o gênero se configura como uma tecnologia de produção do corpo e da sexualidade, servindo a uma determinada racionalidade de condução das condutas, como veremos à frente.

Diversas pesquisadoras e ativistas vêm demonstrando que as políticas de desenvolvimento no campo têm um grande impacto nas dinâmicas, nos modos de viver e produzir e nas condições de vida das mulheres. Como resultado de programas de desenvolvimento no campo, as condições de vida das mulheres pioraram e sua carga de trabalho aumentou (Sachs, 2008). Em muitos casos, o status do trabalho das mulheres piorou como resultado da sua exclusão dos programas agrícolas. A razão dessa exclusão diz respeito tanto às desigualdades de gênero quanto ao modelo de agricultura escolhido, baseado na monocultura, no uso de sementes transgênicas, agrotóxicos e mecanização (como preconizado pela Revolução Verde) (Sachs, 2008, Shiva, 1993).

Para as mulheres, as consequências do desenvolvimento incluem aumento da carga horária, perda de emprego existente, mudanças na estrutura de compensação de seu trabalho, a perda do controle da terra e do acesso às sementes nativas sem o uso de agrotóxicos, assim como a agravamento da vulnerabilidade socioambiental nas comunidades com o uso privado dos bens comuns como as águas (Escobar, 2014; Shiva, 1993).

O documento Women in agriculture: Closing the gender gap for development, produzido 2011, inicia com o questionamento sobre as razões da baixa produtividade da agricultura em países em desenvolvimento. De acordo com o documento, dentre essas razões estaria o fato de que as mulheres são impedidas de fazerem um uso mais produtivo do seu tempo:

A agricultura está com baixo desempenho em muitos países em desenvolvimento por uma série de razões. Entre elas está o fato de que às mulheres faltam os recursos e oportunidades para fazer o uso mais produtivo de seu tempo. Essa “lacuna de gênero” dificulta sua produtividade e reduz sua contribuição para o setor agrícola e para a realização de uma economia mais ampla e das metas de desenvolvimento social. Fechar a lacuna de gênero na agricultura produziria significativos ganhos para a sociedade, aumentando a produtividade da agricultura, redução da pobreza e fome e promoção do crescimento econômico. (FAO, 2011, p. 3, tradução nossa)6

Segundo a organização, as mulheres rurais têm desvantagens em relação aos homens, especialmente, no que se refere ao acesso a bens essenciais, insumos, oportunidades, serviços e recursos, sendo a desigualdade do acesso à terra uma das maiores lacunas (FAO, 2020a). Diante desse cenário, as principais linhas estratégicas de atuação sugeridas pela FAO para as mulheres rurais são: promover a equidade no acesso às terras, insumos, assistência técnica e educação; investimento em tecnologias e infraestrutura que permitam melhorar a produtividade, para que as mulheres tenham mais tempo livre para se concentrar em atividades mais produtivas; facilitar a participação das mulheres rurais dos mercados de trabalho flexíveis e eficientes.

Esse último ponto chama particular atenção. No documento de propostas Meeting our goals: FAO’s programme for gender equality in agriculture and rural development (2016a), a organização sugere que o mercado terceirizado se apresenta como uma opção interessante de ingresso das mulheres no trabalho da agricultura. O documento Women in agriculture: Closing the gender gap for development (2011) segue na mesma direção, ao propor que o agronegócio pode trazer melhores condições de trabalho para as mulheres diminuindo a brecha de gênero na agricultura: “novos empregos em agroindústrias de alto valor, orientadas para exportação oferecem muito melhor oportunidades para as mulheres do que o tradicional trabalho agrícola” (FAO, 2011, tradução nossa)7.

Tem destaque a forma como a divisão do trabalho é tratada, sendo o padrão de produtividade masculina tomada como medida ideal. A título de exemplo, no relatório Women in agriculture: Closing the gender gap for development (2011) o trabalho doméstico é apresentado como um empecilho ao trabalho produtivo da mulher. A possibilidade de divisão dos afazeres domésticos com os homens, entretanto, não é mencionada, pois entraria em contradição com a proposta do documento, que seria a de igualar a produtividade de mulheres e homens tendo como modelo o padrão atual, no qual a casa e os filhos são encargos das esposas e mães. Assim, os fatores que impediriam as mulheres de atingirem esse patamar ou as possíveis consequências do que é requerido para que se equalize essa produção não são discutidos ou mencionados, como observou Maria Ignez Paulilo (2013).

Sabemos que em países de capitalismo periférico, as relações de trabalho terceirizado são extremamente precarizadas. Tomando o Brasil como exemplo, as mulheres, em especial as mulheres negras, somam 71% desse mercado, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2012). A isso junta-se a sobrecarga do trabalho doméstico – no Brasil as mulheres gastam em média 73% de horas a mais dedicadas aos afazeres domésticos, e os baixos salários – as mulheres ganham em média 20,5% a menos, sendo que em relação ao trabalho agrícola essa média chega a ser de 35,8% a menos que os homens (Instituto Brasileiro de Estatistica e Geografia - IBGE, 2018).

Ao mesmo tempo, é essencial considerar a singularidade e diversidade dos contextos nos quais as mulheres estão inseridas. A ideia de divisão sexual do trabalho como é correntemente compreendida pode não se adequar ao contexto de muitas comunidades tradicionais, por exemplo, onde a organização de tarefas e de trabalho do cuidado é compartilhada de forma mais ampla pela comunidade, escapando aos moldes de funcionamento da família nuclear ocidental e da divisão sexual clássica do trabalho.

Em relação aos processos de terceirização e arrendamento de terra para produção agrícola, essa inclusão do mercado de trabalho parece ainda mais perversa. Cristiane Campos e Rosa Medeiros (2012), em pesquisa sobre o trabalho das mulheres no agronegócio, mostram que, ao invés de melhorar o bem-estar e condições das mulheres e suas famílias, o ingresso das mulheres como trabalhadoras terceirizadas vêm aumentando o fenômeno da feminização da pobreza no campo. As autoras demonstraram que os postos de trabalho agrícola terceirizado oferecidos às mulheres são reduzidos, mais precários, temporários, com segregação ocupacional por gênero que faz com que elas ocupem funções menos valorizadas e, por consequência, com maior desigualdade salarial em relação aos homens (Campos & Medeiros, 2012).

Flávia Lemos et al. (2015) assinalam para a influência dos programas de desenvolvimento voltados para as mulheres como um fator que pode impactar na precarização das relações de trabalho. Para as autoras, organizações internacionais e agências multilaterais propõem a formação de um mercado de supostas habilidades e competências ditas femininas, nos quais os direitos são mercantilizados e transformados em oportunidades econômicas e sociais de trabalho informal para geração de renda nessa lógica difundida por estes órgãos e entidades ancoradas fortemente na ideia de empoderamento.

O conceito de empoderamento aparece diversas vezes em todos os documentos de referência analisados. O relatório Construyendo una agenda de políticas públicas para las mujeres rurales: autonomía económica, igualdad de derechos y lucha contra el hambre (2013) informa que o empoderamento econômico é essencial no processo de visibilidade do trabalho das mulheres. O relatório Género y sistemas agroalimentarios sostenibles, estudios de caso: yucca, quinua, maíz y aldodón (2016b) diz que “para lograr el empoderamiento de las mujeres rurales es necesario incidir en sus capacidades individuales y colectivas, a fin de que asuman en mejores condiciones su inserción en las cadenas de valor y en la empresarialidad” (p. 56). Em ambos contextos percebemos a ênfase do empoderamento ligado a ideia de empreendedorismo e desenvolvimento das capacidades laborais das mulheres.

O conceito de empoderamento vem ganhando grande repercussão na última década, tendo grande presença midiática, desde peças publicitárias de grandes empresas, em discursos oficiais de grandes autoridades, em campanhas institucionais, entre outros. De acordo com a Entidade das Nações Unidas para Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres, 2014), a equidade de gênero é considerada um direito humano, sendo o empoderamento das mulheres uma ferramenta indispensável para promover o desenvolvimento e a redução da pobreza.

Esse conceito pode ter várias compreensões. O termo tornou-se “lugar-comum”, sendo usado em diversas estratégias de diferentes atores, desde as organizações comunitárias de base e organizações não governamentais, até as agências multilaterais como o Banco Mundial. A noção de empoderamento, entretanto, abre espaço para muitas críticas, em especial, a forma que tem sido usado pela ONU e suas agências. Algumas das principais críticas empreendidas por feministas do Sul Global consideram que o empoderamento é, muitas vezes, usado como forma de instrumentar o trabalho das mulheres e que essa noção refere-se a uma construção de projetos individuais, uma espécie de empreendedorismo dos sujeitos, desconsiderando a importância de modos de solidariedade e desenvolvimento comunais e, muitas vezes, despolitizando o entendimento dos cenários de vulnerabilidade em que os sujeitos estão inseridos – a esse fenômeno chamaremos aqui de “projetismo”, devido às normativas hierárquicas que são impostas por projetos e linhas de financiamento institucionais.

Outra palavra recorrentemente ligada à noção de empoderamento é a de resiliência, citada diversas vezes em todos os documentos analisados. Priscila Moura (2019) também chama atenção para a forma como essa noção é utilizada pela FAO. Para a autora, diante dos obstáculos que distanciam homens e mulheres rurais em termos de acesso a legislações igualitárias, infraestrutura, às mudanças climáticas e ambientais e, sobretudo, ao agravamento da sua pobreza e fome, a resiliência “é enaltecida a característica feminina de adequar-se pacientemente a contextos de privações, e fortalecer-se rapidamente em busca de uma solução” (Moura, 2019, p. 123). Ressalta-se, de tal maneira, a forma como a figura da mulher se tornou a guardiã moral da comunidade e da sociedade para os organismos internacionais, sendo caracterizada como mãe, dona de casa e “batalhadora” (Lemos et al., 2015).

A normatização do empoderamento individual como modelo de construção para a promoção da igualdade de gênero tem várias consequências. Uma das mais perceptíveis dá-se na esfera da institucionalização de projetos e linhas de financiamento. Considerando que os organismos multilaterais e internacionais são responsáveis por definir linhas de trabalho e financiamentos específicos e que muitas organizações dependem de tais apoios para a atuação e mediação na agricultura, essas questões impactam sobremaneira as esferas locais e podem constituir-se em assujeitamento das práticas dos agricultores e agricultoras, por exemplo, definindo tipos de plantios, metodologias de trabalho e até sistemas de organização locais e, especificamente, para as mulheres ao designar determinados lugares e práticas generificados de trabalho, cuidado e organização familiar.

Flávia Lemos e colegas (2015) apontam que o empoderamento como tática se aproxima no “neoliberalismo da designada responsabilidade social, que utilitariamente opera uma articulação entre público e privado no plano do financiamento, regulação e execução de políticas sociais” (p. 205). Nesse sentido, o projetismo balizado pela ideia de empoderamento parece servir de base para a instrumentalização dos trabalhos das mulheres pobres, negras e rurais a partir das normativas de agências internacionais e organizações bilaterais. Em o Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008) discute como o neoliberalismo passa de ser uma leitura econômica para uma forma de racionalidade que vai constituir os sujeitos no capitalismo a partir de uma sociedade feita de “unidades-empresas”:

O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda, (Foucault, 2008, p. 131)

Em tal racionalidade, o sujeito de direitos se torna menos importante que o econômico e, quando é ativado, sempre o é para figurar como mercado e empresa da cidadania (Lemos et al., 2015). Esse empreendedorismo de si visa produzir efeitos de subjetivação do tipo sujeito liberal, automotivado e plenamente responsável pelo sucesso ou fracasso de suas ações. No caso das mulheres rurais, um modelo de agricultor no estilo farmer (espécie de empresário da agricultura). Essas tecnologias também podem ser vistas nos documentos de referência analisados no presente artigo, especialmente no que se refere às linhas de atuação com as mulheres voltadas para questão da produção e das mulheres como gestoras da casa e da família e guardiãs do desenvolvimento sustentável.

DISPUTAS ENTRE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, O AGRONEGÓCIO E A AGROECOLOGIA

Ao propor o empoderamento atrelado a ideia de produtividade como uma proposta para diminuição das desigualdades de gênero e, consequentemente, a pobreza e a insegurança alimentar no contexto rural, a FAO não se propõe a discutir e investigar os processos históricos e sociais macropolíticos que produzem tais cenários. Nesses documentos, a pobreza e precariedade são tomadas como frutos da ausência de riquezas e recursos. Para Campos e Medeiros (2012), a pobreza é um fenômeno produzido e reproduzido socialmente por meio de agentes que promovem a perpetuação dela. Considerando a centralidade do agronegócio como modelo ao redor do globo, tanto em importância econômica e produtiva, quanto em importância política, podemos compreender que o agronegócio funciona como um dos principais agentes perpetuadores da pobreza no campo. Analisando a expansão desse modelo no Brasil as autoras apontam que:

O agronegócio deve ser compreendido como uma complexa articulação de capitais, direta e indiretamente vinculados com os processos produtivos agropecuários, que se consolida no contexto neoliberal sob a hegemonia de grupos multinacionais e que, em aliança com o latifúndio e o Estado, tem transformado o interior do país em um locus privilegiado de acumulação capitalista, produzindo, simultaneamente, riqueza para poucos e pobreza para muitos. (Campos & Medeiros, 2012, p. 31)

No caso do Brasil, a consolidação do agronegócio se viabiliza por meio de uma tríplice aliança (latifúndio-agronegócio-Estado) em que as modernas atividades agropecuárias se desenvolvem sob uma arcaica estrutura fundiária, caracterizada pela enorme concentração de terras, sendo viabilizado pelo Estado e o capital financeiro para a expansão de diferentes segmentos do agronegócio exportador (Campos & Medeiros, 2012).

Os repertórios alusivos ao desenvolvimento nos documentos aqui analisados abrem espaço para o debate sobre as disputas em relação ao modelo de desenvolvimento proposto pela FAO que, se por um lado, permitiria o protagonismo das mulheres ao enfatizar estratégias focadas na promoção de justiça socioambiental como é o caso da agricultura familiar e da agroecologia, por outro, dialoga diretamente com o modelo do agronegócio.

De 2011 a 2019, com a direção-geral da FAO a cargo do brasileiro José Graziano – uma grande referência no debate sobre a agricultura familiar na América Latina – a agroecologia e a cooperação sul-sul8 passaram a compor o arcabouço de temas da FAO. Nos documentos analisados, a agroecologia e a agricultura familiar são tomadas como sistemas de produção agroalimentar que podem diminuir as desigualdades de gênero e que devem ser promovidos. O Atlas de las mujeres de America Latina y Caribe, documento de 2017, apresenta a defesa de que

Las prácticas agroecológicas son aquellas que mejor equilibran la reproducción campesina y la reproducción de la herarquias. También son las que tienen mejores bases para construir la igualdad de género, puesto que combinan diferentes usos del espacio, del cerar, herarquias productivas y reproductivas, y, en principio, sin herarquias, pues valoran la combinación entre as mismas y no cada uma individualmente. (FAO, 2017, p. 31)

Importante ressaltar que no campo da agricultura a FAO foi uma das entidades que promoveram a implementação da Revolução Verde em todo o mundo. Tal revolução deu conta de um processo de modernização agrícola que, por meio do desenvolvimento de tecnologias como o uso de sementes transgênicas, fertilização química do solo e utilização de máquinas no campo, levou ao imediato aumento da produção. Ao mesmo tempo, trouxe à tona problemas ligados à produção em grande escala: empobrecimento dos solos pelas monoculturas, aumento do uso de agrotóxicos, precarização das relações de trabalho no campo, poluição das águas, entre outras questões que há décadas vêm sendo denunciadas por lideranças políticas, pesquisadores, movimentos sociais e organizações ligadas à esfera ambiental e da saúde em todo o mundo (Carneiro et al., 2015).

Muitos pesquisadores como o agrônomo Francisco Caporal (2017), apontam para as incongruências da agência que, ao mesmo tempo que criou um programa “agroecologia para os pobres”, e alerta para a enorme crise de abastecimento de água potável e desmatamento, continua com o seu apoio à agricultura industrial de altos insumos e à agricultura irrigada para a produção e exportação de grãos para a pecuária e que consome 70% da água doce do planeta e é responsável por 70% do desmatamento na América Latina (FAO, 2016b).

No ano de 2014 a FAO organizou o Simpósio Internacional sobre Agroecologia para a Segurança Alimentar e Nutricional, reconhecendo no crescimento contínuo da agroecologia sua potencialidade no combate à crise alimentar e promovendo o debate sobre a internalização da perspectiva agroecológica nas políticas agrícolas e agrárias (Rosa & Svartman, 2018). Embora tal iniciativa tenha balizado o fortalecimento da agroecologia para o campo da soberania e segurança alimentar, Peter Rosset, liderança da Via Campesina internacional, demonstra preocupação9 e demarca que existem duas concepções de agroecologia em disputa, já que a proposta da FAO busca consolidar uma “agroecologia comercial” com uma apropriação dessa proposta por parte do capital, que visa seu uso técnico em favor de interesses mercadológicos, na contramão da perspectiva dos movimentos sociais que defendem uma agroecologia transformadora, de resistência e de luta popular (Rosa & Svartman, 2018).

Ao analisar a mais recente agenda da FAO para a promoção de equidade de gênero - FAO policy on gender equality 2020-2030 – dentre as estratégias elencadas pela agência está a construção de políticas direcionadas: (a) ao aumento em duas vezes até o ano de 2030 da produção agroalimentar protagonizada por mulheres, especialmente mulheres indígenas e de comunidades tradicionais; (b) facilitar a exportação da produção das mulheres ao mercado internacional (FAO, 2020a). Nota-se no documento a ausência da promoção da agroecologia como uma alternativa de produção que seria mais coerente com aos princípios da equidade almejados.

Daniela Cunha e Elga Almeida (2018) marcam o intenso processo de financeirização da alimentação nas últimas décadas e o impacto desse processo na importância da FAO no cenário mundial e nas ações promovidas pela agência. Segundo as autoras, a FAO adota fortemente a retórica de que é preciso aumentar o diálogo entre políticas estratégicas, previamente definidas pelas organizações, e as comunidades locais, tanto para fomentar o uso de tecnologias quanto para promover a habilidade do pequeno agricultor em se inserir no mercado agrícola. Ao fim, grande parte dos projetos se resumiriam a integração das comunidades ao mercado internacional, dentro de uma disputa desigual com o agronegócio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo buscamos fazer uma leitura das políticas de desenvolvimento sustentável preconizadas pela FAO para mulheres rurais. Identificamos que há um reconhecimento gradativo da diversidade das experiências das mulheres rurais, ainda que essa diversidade não seja contemplada nas análises e propostas levadas à cabo pela organização. No que se refere às estratégias de atuação, ressalta-se o uso do que nomeamos como tecnologias coloniais de gênero com a centralidade do conceito de empoderamento, aliado ao que chamamos de projetismo que opera como um vetor de controle das mulheres, instrumentalizando o trabalho das agricultoras e criam uma separação dos feminismos de suas bases e instauram uma racionalidade colonial de desenvolvimento para as comunidades.

Nota-se a ausência de debates sobre como o modo de produção capitalista e as políticas neoliberalistas no contexto moderno-colonial, incidem nos corpos e nas condições de vida e trabalho das mulheres. Percebe-se que projetos de desenvolvimento sustentável e do feminismo hegemônico muitas vezes se estruturam como expressões do sistema moderno/colonial de gênero na vida dessas mulheres em nome da “libertação” das práticas tradicionais que seriam supostamente mais opressoras. Apontamos a necessidade de criar um debate a partir de outras linhas discursivas que articulem raça, gênero e colonialidade, propondo um projeto político que fuja aos binarismos e ao ideário burguês, ocidental e urbano de “igualdade” e da “universalidade”.

O discurso de mulheres e desenvolvimento, ao conceber as mulheres do campo como “produtoras de alimento” ou “guardiãs do desenvolvimento sustentável”, fragmenta uma esfera da vida campesina que está associada a camadas para além do trabalho. A terra e o trabalho rural, nesse sentido, não dizem respeito apenas às formas de sobrevivência, mas aos modos de existência desses sujeitos e coletivos. Considerando as pluralidades das mulheres nesses contextos, a questão que se coloca é se seria de interesse dessas mulheres a inserção nessa lógica de produção capitalista para aumento da produtividade. Pode ser que sim, em alguns casos, em outros não.

A agroecologia vem sendo apontada pela FAO como uma alternativa possível de promover condições dignas de vida, trabalho e autonomia ancorado na justiça socioambiental e na construção comunitária, como assinalado no Atlas de las mujeres rurales de América Latina y El Caribe. Percebe-se, no entanto, as disputas expressas nos documentos entre a agroecologia e as possibilidades de desenvolvimento sustentável em diálogo com o agronegócio. Discutimos, assim, se a ideia de “sustentabilidade” consegue romper com a relação de exploração com os bens comuns e, consequentemente, das relações de precariedade que muitas mulheres rurais do Sul Global estão expostas. Em outras palavras, da forma que se apresenta, o desenvolvimento sustentável pode operar como uma tecnologia colonial de exploração do corpo e trabalho das mulheres rurais.

Diante das questões aqui levantadas, lembramos que é preciso evitar a tentação das narrativas simplistas sobre as mulheres rurais. As mulheres rurais, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, são intelectuais, criadoras de tecnologias de cuidado e de produção. Elas mobilizam uma série de saberes e redes de comunicação e resistem à despeito das condições de vulnerabilidade de forma potente, resgatando e conservando tecnologias ancestrais.

Por fim, conforme nos aponta Mohanty (2003), ao propor políticas para mulheres é necessário construir análises que busquem compreender as esferas da vida cotidiana e os contextos locais às estruturas políticas e econômicas maiores, e transnacionais do capitalismo. Sem esse movimento, cai-se no risco de construir estratégias ineficazes, reducionistas e colonizadoras, destituindo as mulheres de suas potências ao mesmo tempo em que não atuam, nem denunciam, os mecanismos sistêmicos de reprodução da precariedade nas áreas rurais.

Financiamento

Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001.

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Aprovação, ética e consentimento

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

1A divisão hierárquica de distribuição de poder é entendida e classificada a partir de diversas leituras, tais como as teorias dos mundos no contexto da Segunda Guerra e dos países desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos, classificação mais comumente usada pelos organismos internacionais. A ideia de terceiro mundo refere-se às narrativas hegemônicas sobre contextos de pobreza, campesinato e comunidades tradicionais e países não-ocidentais. A despeito de não usarmos a teoria dos mundos enquanto chave interpretativa neste trabalho, utilizaremos a categoria Terceiro Mundo, assim como Sul Global e Norte Global, não enquanto categorias geográficas, mas enquanto categorias políticas e sociais.

2Grupo de personalidades influentes que se reúnem para debater e construir estratégias de enfrentamento de problemas humanitários, em especial no que se refere às questões ambientais.

3O uso que fazemos das categorias feminista ocidental e terceiro mundo mostra que estas não são categorias incorporadas, geograficamente ou espacialmente definidas, mas se referem a posicionamentos políticos, epistemológicos e ontológicos. Tampouco se trata de categorias binárias, uma vez que feministas do Ocidente podem assumir um posicionamento político e epistemológico em diálogo com os feminismos do Terceiro Mundo, anticoloniais e subalternos e vice-versa (Mohanty, 2003).

4Conceito que tem sido implementado nas Nações Unidas desde III Conferência Mundial sobre a Mulher (1985) e se refere à avaliação e implementação da perspectiva de gênero em quaisquer ações e políticas públicas.

5The Organization will also consider other social dimensions that intersect with gender (such as age, marital status, disability status, religion, race, ethnicity, socio-economic status, etc.) and can create and reinforce inequalities, not only between women and men but also among women and among men (FAO, 2020a, p. 11).

6This “gender gap” hinders their productivity and reduces their contributions to the agriculture sector and to the achievement of broader economic and social development goals. Closing the gender gap in agriculture would produce significant gains for society by increasing agricultural productivity, reducing poverty and hunger and promoting economic growth. Agriculture is underperforming in many developing countries for a number of reasons. Among these is the fact that women lack the resources and opportunities they need to make the most productive use of their time” (FAO, 2011, p. 3).

7new jobs in high-value, export-oriented agro-industries offer much better opportunities for women than traditional agricultural work.” (FAO, 2011)

8Cooperação Sul-Sul é a modalidade de cooperação técnica internacional que se dá entre países em desenvolvimento, que compartilham desafios e experiências semelhantes. Ela difere da tradicional Cooperação Norte-Sul (onde países desenvolvidos do Hemisfério Norte colaboram com países em desenvolvimento do Hemisfério Sul).

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Recebido: 24 de Maio de 2021; Revisado: 22 de Novembro de 2022; Aceito: 14 de Dezembro de 2022

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