INTRODUÇÃO
A pandemia de Covid-19, provocada pelo Coronavirus, foi confirmada pela Organização Mundial de Saúde em março de 2020. No contexto espaço-temporal de elaboração inicial deste artigo - escrito com informações de até dia 30 de maio de 2020 - estimou-se 498.440 mil casos confirmados, quase 28.834 mil óbitos, com taxa de mortalidade de 13,7 por 100 mil habitantes (Ministério da Saúde, 2020). Por sua vez, no momento da submissão do texto, no começo de julho de 2021, cerca de 530 mil óbitos já haviam sido confirmados e quase 20 milhões de casos confirmados de Covid-19, registrados (Ministério da Saúde, 2021). Nesse cenário, que previa a iminência de uma “terceira onda”, o número de casos, os atrasos e a lentidão na vacinação da população, bem como a permanência de alta taxa de letalidade colocavam o Brasil, infelizmente, no pódio do número de mortes por Covid-19 do globo (Sanchez et al., 2021).
Em meio ao aumento exorbitante de casos, os sistemas de saúde encontraram sistemáticas dificuldades na promoção de cuidado adequado a quem necessitava de assistência (Albuquerque & Ribeiro, 2020). Apresentou-se assim colapsos sanitários e aumento da letalidade por Covid-19, sobretudo de pessoas que dependiam especificamente dos recursos de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS), em que pesem estados e municípios terem buscado decretar medidas que estimulam o distanciamento físico voltadas ao achatamento das curvas de contaminação, de modo a promover maior tempo de ação e organização dos sistemas de saúde, sem apoio devido do governo federal na coordenação e viabilização de tal processo pelo tempo necessário (Orellana et al., 2020).
A distribuição das taxas de letalidade por Covid-19 e as disparidades dos recursos de que os diferentes segmentos populacionais dispõem para se protegerem e se recuperarem na pandemia remontam a pertinência da problematização das desigualdades, em seus aspectos multivetoriais e psicossociais, no país. Considerando que o enfrentamento dessas desigualdades tem sido um dos principais problemas de análise da Psicologia Social e da Psicologia Política (Mayorga, Razera, & Pereira, 2009), coloca-se a seguinte questão problema como guia deste artigo: como a gestão política da pandemia (notadamente ações e omissões da gestão federal) pode ser tomada como analisadora das formas de (re)produção histórica e psicossocial de desigualdades no Brasil, articulando retórica negacionista a uma racionalidade que maximiza a precarização da vida e necropolítica?
Assim, o objetivo deste ensaio foi analisar aspectos psicossociais implicados no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil, tomando as desigualdades nele evidenciadas e especialmente a gestão política de tal fenômeno em âmbito federal como analisadores da relação entre uma retórica negacionista e a maximização de precarização sistemática de certas vidas e de uma necropolítica no país, a partir da continuidade de matrizes coloniais de poder e subjetivação. Necropolítica, conforme proposto por Achille Mbembe, refere-se a uma tecnologia de poder em curso no contexto neoliberal e que se volta à produção, gestão e instrumentalização de mundos de morte e corpos supérfluos, a partir de processos de racialização, imposição de estados de exceção permanente e ficcionalização de inimigos (Mbembe, 2017). Tal categoria vem sendo crescentemente incorporada às reflexões em psicologia que buscam tematizar a colonialidade e suas implicações subjetivas (Barros, Benício, & Bicalho, 2019; Cavalcanti, Barbosa, & Bicalho, 2018). Sobre a colonialidade, Aimé Césaire (2020) a problematiza como uma perpetuação do colonialismo, sendo este último um projeto político de construção de mundo que funda o sistema capitalista e a modernidade, permeado por perspectivas ontológicas e epistemológicas que colocam a branquitude europeia como centro e universal. Essa colonialidade seria então a manutenção dessa lógica econômica, cultural, moral e hegemônica por meio de processo ininterrupto e que se atualiza, constitui o que estudiosos/as decoloniais nomearam de Sistema Mundo Moderno/Colonial (Césaire, 2020).
Já a noção de precarização da vida é definida por Judith Butler (2018, pp. 40-41) como condição politicamente induzida de vulnerabilidade e exposição maximizados de populações atravessadas pelas consequências de deteriorização de redes de apoio social, econômicas e negligência estatal, por consequência, estão em maior exposição à violência e à morte. Essa relação entre precarização da vida e necropolítica é uma premissa deste artigo, assim como a ideia de que a retórica negacionista da gestão bolsonarista da pandemia se articula à potencialização de racionalidades precarizantes e necropoliticas tipicamente neoliberais, que favorecem os mecanismos concentracionistas e exploradores da corrupta máquina do capital. Na medida em que cabe à psicologia social estudos e práticas acerca da produção de subjetividades no âmbito das práticas sociais (Silva, 2008) e do plano coletivo de forças que engendram nossos modos de viver (Barros, Benício & Bicalho, 2019; Cavalcanti, Barbosa, & Bicalho, 2018; Nunes et al., 2021), outra premissa deste artigo é de que debater precarização da vida e necropolítica se faz pertinente ao campo da Psicologia Social porque tanto a precarização da vida quanto essa gestão/ produção de mundos de morte e existências matáveis são sustentadas por políticas de subjetivação que demandam um esforço teórico de análise das condições e efeitos da adesão subjetiva às tecnologias que precarizam e aniquilam sistematicamente certas vidas, bem como um posicionamento ético-político de defesa de uma vida digna para todas e todos, premissa de uma democracia real.
Para Barros, Benício e Bicalho (2019), os debates sobre precarização sistemática e desigual da vida e sobre política de morte podem potencializar as problematizações da Psicologia Social sobre condições, conjuntos de forças, arranjos políticos e processos psicossociais que produzem existências matáveis, vidas não passíveis de luto e zonas de morte onde direitos não vigoram. Necropolítica e Precarização da vida se conectam e podem contribuir com a Psicologia Social à medida que nos convocam a cartografar operações de poder e marcadores de desigualdades que se valem de retóricas negacionistas (isto é, “cortinas de fumaça” que minimizam ou recusam a gravidade da pandemia e boicotam/sabotam/ retardam medidas eficazes para enfrentá-la) para desabilitar certas vidas e territorialidades específicas não reconhecidas social e politicamente como importantes e “protegíveis”, ao passo que favorecem elites políticas e econômicas, perpetuando colonialidades.
Neste artigo, a desigualdade multivetorialmente (re)produzida na pandemia - e que ganha lastros futuros - é tomada como um analisador (Deleuze & Guattari, 1992), isto é, a pandemia também é tomada aqui como um fenômeno político que nos força a pensar sobre aspectos cristalizados de nossas formas de viver e morrer. Por um lado, não é possível precisar como a vivência de uma pandemia transformará o que vivíamos, já que isso dependerá das disputas tanto sobre a memória do que vivíamos, quanto sobre o diagnóstico do presente e os projetos em jogo sobre o futuro. Por outro, é plausível considerar que a forma como se lida com a pandemia nos permite o aguçamento da crítica sobre como vivíamos/vivemos, escancarando ainda mais os amálgamas coloniais das desigualdades, a desmontagem de sistemas de proteção social e as ruínas de instituições democráticas correlativas ao avanço do neoliberalismo (Brown, 2019; Lazzarato, 2019).
Trata-se, portanto, de um ensaio teórico que, complementarmente, lançará mão, ao longo de suas seções, de notícias jornalísticas sobre a pandemia no Brasil e no Ceará, que é o contexto de atuação das autoras e dos autores. Tais notícias, situadas no momento histórico de escrita do artigo, serão utilizadas tão somente como termômetros da repercussão social da pandemia e materialidade s capazes de ilustrar as reflexões propostas (Aguiar, 2009), permitindo catalizar sentidos que ensejem a desnaturalização das disparidades agenciadas ou amplificadas não só pela crise sanitária em vigor no país, como também pela sua relação com a colonialidade em curso, aqui entendida como perpetuação de lógicas de saber-poder-subjetivação que operam a subalternização de corpos e territórios (Mayorga, 2012). Vale advertir, portanto, que as notícias foram utilizadas apenas como materialidade s emblemáticas dos debates teóricos acerca dos atravessamentos políticos e psicossociais da pandemia no Brasil, não sendo a intenção deste artigo realizar uma análise discursiva ou comparativa de tais materiais jornalísticos.
Optou-se pela busca dessas materialidade s jornalísticas em um portal específico: o G1 (O portal de notícias da Globo), por ser considerado o site de notícias mais acessado do Brasil, em abril de 2021 (Casagrande, 2021). A captação das matérias foi realizada na plataforma específica do portal (www.gl.globo.com), a partir das seguintes palavras-chave “pandemia, Covid-19 e desigualdade”. As l0 notícias selecionadas datam de março de 2020, período em que se identificou a pandemia de Covid-19 no Brasil, a maio de 2020, período de finalização da coleta do material e submissão deste artigo. A escolha das notícias levou em consideração seu potencial de ilustrar como a pandemia repercutia desigualmente na população, pelo entrelaçamento de questões socioeconômicas, territoriais, de raça e gênero.
Nesse sentido, o artigo abordará como ações e omissões ligadas aos modos de gestão federal da pandemia no Brasil colocaram em funcionamento processos que acirram as precarizações de certas vidas (Butler, 2018), assim como fizeram operar forças que maximizam condições mortíferas da população (Mbembe, 2017). Este artigo se organizará em duas seções: a primeira abordará como a pandemia se constitui como lente de aumento de processos de precarização no contexto do neoliberalismo ao articular desigualdades raciais, de gênero e de classe social. A segunda, que tomará a expressão “E daí?” como emblema necropolítico, debaterá a produção de vidas não passíveis de luto e a constituição psicossocial da indiferença frente à alta letalidade da pandemia, a partir, muitas vezes, de retóricas negacionistas, as quais, longe de serem casuais ou derivadas de desconhecimento ou ignorância, faziam parte de uma racionalidade de naturalização da morte em benefício de elites econômicas e políticas. Discussões da Psicologia Social articular-se-ão aos debates de Judith Butler sobre vidas precárias, do feminismo negro sobre formas interseccionais da sobreposição de opressões na condição de vulnerabilização e risco a determinados corpos e de Achille Mbembe sobre políticas de mortificação no contexto neoliberal.
PANDEMIA NO BRASIL E A MAXIMIZAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO DESIGUAL E INTERSECCIONAL DA VIDA
Como a gestão política em âmbito federativo da pandemia denota processos de precarização sistemática e desigual da vida no contexto das peculiaridades do neoliberalismo experimentado no Brasil? A maximização de tais processos em decorrência do negacionismo em relação à gravidade da pandemia, acompanhado frequentemente de propagação de notícias falsas, proposição insistente de soluções ineficazes e denúncias de corrupção na compra de imunizantes, acentua o que Butler (2018, p. 42) argumenta acerca das condições de a vida humana ser anulada pela definição política sobre quem será visto/a como humano e quem será desumanizado/a, ou, nas palavras da autora: “quais vidas serão marcadas como vidas e quais mortes contarão como mortes”. No Brasil, portanto, diversas mortes teriam sido evitadas se a gestão política da pandemia em âmbito federal não tivesse priorizado a satisfação de interesses de elites econômicas e a sustentação de grupos políticos alinhados com práticas neofascistas, corruptas e genocidas, o que fez com que a compra de vacinas e a imunização da população fossem retardadas, fazendo uso de retóricas e polêmicas negacionistas que funcionavam como operadores psicossociais de naturalização e institucionalização de políticas precarizadoras e mortificadoras.
A noção butleriana de precariedade auxilia-nos a discutir a distribuição desigual dos efeitos psicossociais e das mortes por Covid-19. Segundo indica a autora, todas as vidas são precárias, “o que equivale a dizer que a vida sempre surge e é sustentada dentro de determinadas condições de vida” (Butler, 2017, p. 44). Essa condição de vida se faz ligada ao reconhecimento do outro, margeando a noção de humanidade e o status de quais vidas que não são reconhecidas como vidas. Ao mesmo tempo que se produz humanização de determinados segmentos populacionais - vidas estas que são entendidas como as que devem ser protegidas - há também a desumanização e inteligibilidade de corpos entendidos como aqueles que podem ser descartados (Butler, 2016).
Os recortes de cenas elencados a seguir ilustram como a pandemia e os modos de sua gestão governamental engendraram ainda mais precariedades para certas populações. Tornaram-se recorrentes materiais jornalísticos que assinalam dados sobre a discrepância dos efeitos colaterais da pandemia a partir de aspectos socioeconômicos e territoriais (Albuquerque & Ribeiro, 2020; Orellana et al., 2020,). Foi o caso da matéria “Crise do Coronavirus deve provocar aumento da pobreza no Brasil”, publicada no dia 6 de abril no Gl (Gerbelli, 2020), bem como da notícia “Áreas com maior desigualdade social são mais afetadas pela Covid-19”, publicada no dia 05 de maio também no G1 (Gl, 2020a).
As evidentes diferenças de acesso dos/as brasileiros/as à proteção social, serviços públicos de saúde e trabalho, são acirradas pelo contexto pandêmico. Nele, determinados corpos foram relegados ao trabalho subalterno, ao desemprego e à pauperização, com inviabilidade de home office - modelo amplamente divulgado como alternativa para a continuidade do trabalho - e manutenção das condições de distanciamento social, muitas vezes também inviabilizadas pelas residências em locais insalubres ou impossibilidade de manter os critérios básicos de prevenção da proliferação do vírus (Fernandes, Silva, Dameda, & Bicalho, 2020, Pires, Carvalho, & Xavier, 2020). Isso não quer dizer que corpos da elite branca brasileira não tenham sido também afetados pela Covid-19, mas sim que a maximização desse efeito ocorre nos corpos habitantes das periferias. Os fatores socioeconômicos interseccionalizados às questões de raça, gênero, geração e território têm sido determinantes sobre a vida e a morte em decorrência da pandemia, sobretudo diante da gestão federativa (Fernandes et al., 2020).
Pesquisas que relacionam desigualdades sociais e transmissão da Covid-19 (Cestari & Moreira, 2021; Pires, Carvalho, & Xavier, 2020; Wu, Guo, Lantian, Hong, Zhou, & Dong, 2020) dão pistas de que a assimetria em sua rápida transmissão e letalidade em diferentes regiões do Brasil pode ser atribuída ao fato de que as populações periféricas são as que mais sofrem pela ineficiência estatal em não promover adequadamente políticas de proteção social que garantam direitos sociais básicos (Albuquerque & Ribeiro, 2020; Barata, 2016, Mendonça, Rocha, Pinheiro, & Oliveira, 2020, Orellana et al., 2020,).
Acrescentamos mais um fator a essa discussão: o elevado índice de violência urbana em territórios que também apresentam significativos casos de determinadas doenças e situação de pobreza. Em Fortaleza (CE), por exemplo, uma das capitais brasileiras com situação mais grave no tocante à pandemia entre os meses de março a maio de 2020, os 20 bairros com maiores taxas de homicídio, além de se destacarem por elevados casos de arboviroses (dengue, zika e Chikungunya), tem o Índice de Desenvolvimento Humano classificado como muito baixo (<0,5) (Gl, 2020a). Há uma relação entre dados epidemiológicos de doenças, índices de violência e desigualdades sociais no Ceará que assolam, majoritariamente, as margens urbanas. Segundo Boyer (2015), margens urbanas refere-se à territorialidades marcadas por dinâmicas de poder que as periferiza do ponto de vista da visibilidade política de suas demandas, de acesso a direitos e condições escassas de cidadania. Assim, os bairros com elevados índices de homicídios, são também os que apresentam alta letalidade por Covid-19 (Olliveira, 2020), tornando a morte e o luto ainda mais uma cruel realidade para seus/suas moradores/as.
No Brasil, a problematização dos processos de precarização desigual da vida requer que as aludidas questões socioeconómicas e territoriais necessariamente também sejam articuladas ao debate sobre questões raciais. Uma das expressões das desigualdades raciais no Brasil no que se relaciona à pandemia, é o fato de que negros/as são a maioria entre as vítimas da Covid-19 no país, como apontou a matéria intitulada “Coronavirus é mais letal entre negros no Brasil, apontam dados do Ministério da Saúde,” publicada em 11 de abril (Gl, 2020b). As históricas hierarquias raciais que oprimem negras e negros, então, agravam-se ainda mais no contexto pandêmico.
Esse cenário denota a contundência do racismo estrutural (Almeida, 2019). Em sua discussão sobre Psicologia Social do racismo, Bento (2002) mostra como o racismo opera não só nos âmbitos da política, do direito e da economia, senão também no campo da produção de subjetividades, na medida em que concorre para a naturalização da branquitude como humanidade supostamente universal, dotada de privilégios e pactos narcísicos, e das populações negras como seus “outros”.
Na arena da contabilidade das vidas e das mortes, a pandemia escancara que “a condição compartilhada de precariedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas sim a uma exploração específica de populações-alvo, de vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas “destrutíveis”.” (Butler, 2016, p. 53). Apontamos para uma precarização politicamente induzida a corpos tornados supérfluos justamente pelas sobreposições de marcadores sociais que os constituem política e psicossocialmente (Barros, Nunes, Sousa, & Cavalcante, 2019). Considerando a noção de mundos de morte de Mbembe (2017), em que há em vigor o processo de desumanização dos não humanos - “mortos vivos”, aos sujeitos habitantes de margens urbanas, populações assimetricamente estão mais expostas a transmissão de diferentes doenças, não somente a Covid-19 e a violências que escancara o abandono histórico, sistemático e ininterrupto por parte do Estado brasileiro. Nessas territorialidades, a atuação de uma psicologia implicada com o compromisso e justiça social em diferentes campos de atuação contribui para a escuta, a elaboração e o enfrentamento de sofrimentos psicossociais (Barros, Benício, & Bicalho, 2019).
Nesse sentido, os recortes jornalísticos ilustram como, no contexto de pandemia, também se intensificaram violências nas periferias, as quais continuam a vitimar sobretudo negras e negros. Como no caso das duas notícias a seguir: “Ceará registra 25 mortes por intervenção policial no primeiro trimestre de 2020”, publicada em 27 de abril (G1 CE, 2020a); “Número de homicídios cresce 90% no Ceará nos 22 primeiros dias de abril, em 29 de abril (G1 CE, 2020b).
Considerando o racismo estrutural, a pandemia agrava a problemática do genocídio de negros e negras nas periferias urbanas. Durante o decreto de distanciamento social, o número de crimes violentos letais e intencionais (CVLI), inclusive por intervenção policial, cresceu, sendo ainda mais aviltantes em bairros periféricos, mesmos bairros que, também, apresentam índice de mortalidade por Covid-19 (G1 CE, 2020c). O aumento da violência institucional e letal em territórios em que a pandemia também se mostrou mais letal aponta para a conexão entre a produção de mortes nas periferias e a maximização de desigualdades que inviabilizam condições mínimas de vida digna, a partir de violações/suspensão/ausência de direitos e desamparos sistemáticos provocados pelo desmonte de políticas de proteção social e pela constituição de aceitabilidade social do abandono de sujeitos e territórios “marginalizados”. Acentua-se, portanto, na pandemia, modos de governo caracterizados pela gestão violenta das condições de quem vive e quem morre, engendra lógicas de subalternização de corpos, inferindo o controle das condições econômicas e simbólicas necessárias para manutenção da máquina do capital (Mbembe, 2017). Desse modo, a pandemia agrava a presença do medo como operador político e psicossocial nas periferias, somando às violências cotidianas que as assolam - expressas pela presença militarizada da polícia e pelo acirramento das disputas entre facções criminosas - os efeitos e riscos de letalidade provocados pela Covid-19.
Articuladamente ao marcador racial, ao analisarmos os efeitos pandêmicos e suas repercussões nos atravessamentos de gênero, constata-se que houve, por exemplo, um aumento significativo de casos de violência contra a mulher durante o período de isolamento social, especialmente mulheres negras (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020, Nunes, et al., 2021). É o que aborda a reportagem intitulada “Como a pandemia de Coronavirus impacta de maneira mais severa a vida das mulheres em todo o mundo”, publicada em 19 de abril (Modelli & Matos, 2020), bem como a matéria denominada “Quarentena no Ceará: 90% dos casos de violência contra a mulher atendidos pela Defensoria Pública aconteceram dentro de casa”, datada de 30 de abril (G1 CE, 2020d).
As reportagens dão visibilidade à realidade de mulheres mais expostas à violência e permitem trazer à tona as reflexões apresentadas por Sueli Carneiro (2011) de que racismo, machismo, patriarcado e segregação socioespacial são aspectos entrelaçados na lógica colonial-capitalística. Sobre essa realidade, Vieira, Garcia e Maciel (2020) apontam que, no isolamento, as vitimas são vigiadas e impedidas de conversar com familiares e amigos, ampliando tais práticas. Jovens mulheres, pardas/negras e moradoras de zonas periferizadas, são as mais vitimadas nas tramas da violência urbana no Ceará (Sousa, Nunes, & Barros, 2020). Além disso, destaca-se a condição precária vivenciada pelas mulheres trans, corpos que vivenciam a intensificação letal da violência, em 2021, das 140 vítimas de homicídio, 135 eram travestis/mulheres trans, assassinadas em condições aviltantes, já que 24% dos assassinatos envolveram espancamento e estrangulamento das vítimas (Benevides, 2022). Em 2015, esse fenômeno ganhou maior destaque, entretanto, na pandemia, em que mulheres cisgêneras negras, transexuais e crianças ficaram ainda mais expostas à violência doméstica e sexual em virtude da intersecção entre racismo e machismo e à fragilização das redes institucionais de proteção e políticas de garantia de direitos (Nunes et al., 2021).
Acirram-se, portanto, as já aviltantes iniquidades sociais atravessadas por contextos de desemprego, pobreza, sobretudo a feminização da pobreza, violências e falta de acesso aos serviços de saúde e assistência social (Modelli & Matos, 2020). O debate acerca de quais vidas podem e devem ter o seu estatuto político resguardado, baseia-se, segundo Maria Lugones (2014), na noção dicotômica que erige a modernidade ocidental, em que a colonialidade eurocentrada e burguesa funda a noção de humano e enquadra, por consequência, aquilo que não está dentro de seu padrão - colonial - como não-humano. Essa hierarquização segue presente, visto que a racialização, a generização e a feminização interseccionam quais vidas - não entendidas como vidas vivíveis - estão mais vulneráveis no sistema necroliberal sob a qual se ancora a modernidade-colonialidade (Butler, 2016; Lugones, 2014; Mbembe, 2017). Pensar essas questões de forma interseccional nos permite enxergar quem - e em quais condições - desproporcionalmente, é afetado pela Covid-19.
A partir do panorama supracitado, torna-se plausível considerar que a precarização da vida é maximizada para uns e minimizada para outros, a partir de operações interseccionais. Daí porque aqui se considera pertinente, sob o prisma da Psicologia Social, conceber esse processo desigual e induzido como “precarização interseccional da vida”, isto é, uma condição social e politicamente construída - e não uma ontologia individual - por formas de dominação que operam no âmbito do saber, do poder e da subjetivação, concernente a determinados grupos e populações mais acentuadamente, pela maximização de sua exposição a contextos de violência, perigo, enfermidade, pobreza, subalternização, migração forçada ou morte, em função da articulação de aspectos raciais, de classe, de gênero, territoriais, geracionais, dentre outros marcadores de desigualdade.
A noção de interseccionalidade - chave analítica para analisar o processo de precarização de vidas negras, pauperizadas e generificadas no Brasil - é aqui considerada uma ferramenta teórico-metodológica que permite visibilizar e analisar a produção de experiências de múltiplas opressões que atingem de diferentes formas a população, engendrando também subjetividades desiguais e perversamente (in) visibilizadas. Pensar de forma interseccional essa precarização desigualmente maximizada, permite-nos enxergar como os marcadores sociais e identitários se articulam para sustentar formas de dominação, silenciamento e (in)visibilização perversa no âmbito do capitalismo (Barros et al., 2019; Carneiro, 2011; Crenshaw, 2002). Assim, funciona como um prisma que nos permite enxergar a inseparabilidade de marcadores de opressões presentes em vidas ininteligíveis (Ribeiro, 2018).
Assinala-se, ainda, que, um dos principais condicionantes da maximização da precariedade interseccional das vidas no Brasil atual, expondo-as ainda mais à letalidade durante a pandemia, é o desmonte neoliberal das políticas públicas e dos sistemas de proteção social levado a cabo nos últimos anos. Marques, Roberto, Gonçalves e Bernandes (2019), ao analisarem tal desmonte sob o prisma da psicologia social, mostram como o desinvestimento nas políticas de saúde e assistência social é um dispositivo na produção e gerência de mortes daqueles considerados indignos de vida.
A análise desse desmonte permite identificar que um de seus vetores foi a Emenda Constitucional de n° 95, ou, conhecida ainda, Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos que congela por 20 anos as despesas do Governo Federal em alguns setores prioritários como saúde, assistência e educação (Alessi, 2016), o que impacta diretamente no acesso universal aos cuidados em saúde em meio à crise sanitária proporcionada pela disseminação da Covid-19. Além disso, os efeitos das reformas trabalhista e da previdência salientaram a racionalidade perversa que regula a fragilização dos vínculos de trabalho no país, que são ainda mais acentuados pela invisibilidade e desproteção do trabalho informal durante a pandemia, assim como as condições aviltantes e produtoras de sofrimento de trabalhadores(as) que se encontram na linha de frente (Braz, 2020).
Portanto, a parcela mais atingida pela pandemia da Covid-19 foi exatamente a mais atingida pelo desmonte das políticas públicas e sistemas de proteção, intrínseco ao neoliberalismo, que expande a lógica do mercado para diferentes instâncias da vida, inclusive para o campo da moralidade e da produção de subjetividades, concorrendo para práticas reacionárias e anti-democráticas. Esse modelo instala um permanente estado de morte junto a essas populações alijadas de igualdade política e justiça social (Brown, 2019; Butler, 2019).
“E DAÍ?”: NECROPOLÍTICA, VIDAS “NÃO PASSÍVEIS DE LUTO” E A PRODUÇÃO DA INDIFERENÇA
“‘E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’, disse Jair Bolsonaro sobre mortes por Coronavirus; ‘Sou Messias, mas não faço milagre’”. Tal manchete da reportagem do G1 em coletiva de imprensa no Palácio da Alvorada, no dia 28 de abril. (Garcia, Gomes, & Viana, 2020) remete a uma cena que emblematiza uma necropolítica à brasileira (Barros et al., 2019), remetendo ao debate sobre quais vidas importam e quais perdas são passíveis de comoção.
A narrativa entoada pelo então presidente, e que dá título à matéria: ‘“E daí’? de Bolsonaro, não foi primeira reação de desdém às mortes de brasileiros por Covid-19” (G1, 2020c) evidência como a necropolítica em percurso no país se vincula a uma economia sacrificial tipicamente neoliberal e como o diagrama neoliberal se combina à perpetuação do diagrama colonial, que sustenta lógicas de exploração pela coisificação, instrumentalização e mercantilização de existências descartáveis. Essa lógica sacrificial pode ser notada pela relação entre os enunciados de desdém frente à morte e aqueles que, contrariamente à estratégia preventiva do distanciamento físico, apelam à angústia da precarização maximizada e ao medo do desemprego para que as pessoas retornem ao trabalho presencial, expondo-se à morte, para “salvar” a economia, argumentando que esta “não pode parar”. Não só a precarização interseccional afeta a forma como a pandemia é vivida no país, mas também como a pandemia, a partir dos processos políticos mobilizados neste contexto, reconfigura tal precarização em função dos marcadores sociais.
As narrativas de banalização da vida que podem ser ilustradas pelo fatídico “E daí?” presidencial agrupam-se cotidianamente a inúmeros factoides criados pela retórica que ora nega, ora minimiza os efeitos da pandemia na precarização da vida e na produção das mortes em massa. Considerando que a necropolítica é imanente ao próprio neoliberalismo e que este articula desigualdade, colonialidade e autoritarismo (Mbembe, 2017), tal retórica esvazia o debate crítico, despolitiza o domínio público das ações e evidencia também o próprio corpo noturno1 da democracia neoliberal. Essa relação faz com que Mbembe (2017, 2020a) denomine o neoliberalismo como necroliberalismo, que não só produz e instrumentaliza a morte, mas também trata das formas de gerir condições mortíferas sobre as existências e a economia sacrificial. Nas palavras do autor em uma entrevista concedida à Folha de S. Paulo:
O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver [...]. Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros (Mbembe, 2020a, paginação irregular)
Se entre as mortes por Covid-19 encontram-se majoritariamente corpos negros, pobres e periféricos, o motor racial da necropolítica torna possível o apagamento dos rastros de morte em uma pandemia. Tanto pela naturalização de subnotificações - e a invisibilidade forjada na ausência de números sobre a vida e a morte de determinadas existências - quanto pelas formações discursivas que aplacam a comoção coletiva frente à abertura de valas comuns e ao desaparecimento de existências sem possibilidade de despedida. Um aspecto central do racismo e de seu desdobramento na forma de genocídio é a tentativa da retirada do valor e da potência da vida do outro a partir da trivialização, desritualização e apagamento massificante de sua morte e da memória de sua vida, legitimando a desumanização que se produz no movimento das teias discursivas (Butler, 2019).
Na governamentalidade neoliberal, a produção molecular de modos de subjetivação se torna estratégica (Mansano & Carvalho, 2015; Rolnik, 2006). Neste sentido, a subjetivação neoliberal alimenta-se de afetos como o medo, o ódio, o ressentimento, a retórica do empreendedorismo de si, de individualidades cada vez mais concorrentes, competitivas e hiperconsumistas, resultando, como contraface, na produção de indiferença frente às condições de vida e morte de diversos segmentos populacionais e despolitização do luto diante dessas perdas.
O “E daí?” presidencial foi acompanhado de um “tô nem aí” por parte da elite e classe média branca que segue o apoiando, em que pese a queda de sua popularidade a partir da “segunda onda” da pandemia. Prova disso foram as inúmeras festas clandestinas durante a pandemia, os boicotes frequentes às medidas básicas de proteção e as aglomerações negacionistas que enunciavam, de modo contumaz, signos anti-democráticos e desprezavam decretos e recomendações científicas quanto ao uso obrigatório de máscaras em locais públicos. Além de um estado de exceção, a ser instaurado por “intervenção militar” que ampliasse os poderes do executivo federal, tais manifestações remetiam a uma outra base normativa da necropolítica: a noção ficcionalizada de inimigo.
As frequentes manifestações públicas de representantes e apoiadores do governo federal durante a pandemia posicionavam, como inimigos ficcionais da vez, figuras como prefeitos, governadores, ministros do STF e cientistas que defendiam medidas de controle das contaminações, a compra de imunizantes e um plano eficaz de vacinação da população. Portanto, articulando os temas da precarização da vida e da necropolítica ao campo da Psicologia Social, esse “E daí?” aparece enquanto produto (e produtor) de uma política de subjetivação que se caracteriza por agenciar engajamentos psicossociais ao processo colonial-capitalístico-necroliberal de apagamento simbólico e mortificação do outro. Expande-se, assim, uma necropolítica à brasileira, em uma institucionalidade formalmente democrática que se instaura na sepultura de uma colonialidade que nunca morreu e que se presentifica no modelo de estado-penal-punitivo e nas ações policiais, sobretudo nas margens urbanas. Outro exemplo de como necropolítica e precarização se constituem em um modo de governo que se fortaleceu pelas escolhas políticas quanto ao trato da pandemia no Brasil aconteceu em Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro, em 6 de maio de 2021, quando se registrou a operação policial mais letal do Estado, a despeito da vigência de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que restringia operações policiais daquele tipo.
Estrategicamente, o solo necessário para a expansão e operação da necropolítica também é articulado a partir da gestão da política do medo. Foi a indução de políticas do medo, quanto ao desemprego, à crise econômica e ao “comunismo”, por exemplo, que sustentou a lógica sacrificial que se buscou implementar, a qual sabotava tentativas de lockdown, dificultava auxílios emergenciais, expunha diariamente uma multidão de trabalhadoras e trabalhadores à contaminação, descredibilizava e retardava vacinas, especialmente vindas da China, considerada uma “ameaça comunista”, e propagandeava tratamentos medicamentosos sem a devida comprovação de eficácia.
Tal configuração, em tempos de pandemia, acirra a percepção de que a todo momento seremos violados ou, como destaca Butler (2019), coloca-nos em uma experiência de vulnerabilidade que legitima motivos de medo e luto. Contudo, em uma existência desigual e precarizada, a distribuição do luto se dá de forma seletiva, amparada em lentes racistas, elitistas e colonizadas que operam no sentido de produzir quais mortes são “passíveis de luto”, como argumenta Butler (2019), inferindo certa normatividade sobre o humano e suas condições de existência. Configura-se, portanto, a fragilização cotidiana do sentido de interdependência e de uma vulnerabilidade compartilhada, que possibilitaria a percepção de um “nós” (Butler, 2019), em contraposição à banalização da morte inserida nos discursos cotidianos de representantes do governo e seus apoiadores, que colocam em evidência como a gestão (necro)política da pandemia se articula a práticas extremistas, negacionistas e anti-democráticas, tal como apresenta o recorte a reportagem publicada de 2 de abril: “Bolsonaro diz desconhecer hospitais lotados: ‘Não é isso tudo que estão pintando’” (Mazui & Matoso, 2020).
Na condução da privatização das vidas, da centralidade do medo como afeto político (Solano, 2018), da anulação do dissenso como criação de outras formas de pensar (Rancière, 1996), localizar o luto como pauta coletiva pode tornar-se estratégico para a politização da vida. Assim, surge como ponto de inflexão problematizarmos, sob inspiração butleriana, como gerarmos fissuras na despolitização do luto engendrado por políticas de subjetivação pautadas na violência; para a constituição de uma política do luto que possa transpor os moldes seletivos de nossa capacidade de nos enlutarmos. O luto aparece como acontecimento capaz de mobilizar a oposição à violência, contrapondo-se às perspectivas individualizantes a partir de uma função analisadora sobre a situação geopolítica global, localizando a política do luto como ética da vida.
Que aspecto seria capaz de fornecer, então, condições políticas e psicossociais para a naturalização da morte do outro? A discussão mbembeana, sob inspiração dos estudos de Franz Fanon, aponta ser justamente o racismo colonial um motor necropolítico. Por sua vez, o racismo envolve, de um lado, a invenção do negro como coisa e, de outro, endossa, econômica, política e subjetivamente, a branquitude como padrão do que é humano. O racismo estrutural é, pois, um empecilho para a percepção, por parte da branquitude, de sua responsabilidade ante à problemática do genocídio negro e ao desafio ético de responsabilização compartilhada pela construção de uma vida vivível, portanto, igualitária, para todas e todos. No Brasil, antes e durante o negacionismo em relação à pandemia, tem-se negado o direito à vida e a condição de sujeito político de existências negras, em prol da obtenção de vantagens e concentração de riquezas de elites brancas.
Há que se considerar a complexidade desta proposição, pois são os processos de racialização que tanto movimentam as maquinarias necropolíticas quanto - regulando a comoção pública e desfazendo o reconhecimento de relações de interdependência e responsabilidade compartilhada pelas diversas vidas -operam o enquadramento de vidas como não passíveis de luto. Quando algumas vidas, majoritariamente negras, empobrecidas, generizadas, feminizadas e periferizadas, não são dignas de luto político capaz de alterar a ação, seja pela pandemia da Covid-19, seja pela política militarizada implementada pelo capitalismo necroliberal, diz-se, conforme Barros et al. 2019, que são vidas “desimportantes”, alijadas do reconhecimento público do próprio estatuto político de vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em meio aos processos políticos, sociais e institucionais de corrosão da própria democracia em curso, no Brasil sequer os efeitos da pandemia de Covid-19 se dão “democraticamente”, uma vez que as populações mais subalternizadas pelo capital e por sua versão neoliberal são também as que figuram como as maiores vítimas da Covid-19 (Fernandes, et al., 2020; Mendonça et al., 2020; Pires, Carvalho & Xavier, 2020).
Ao analisar processos psicossociais implicados na gestão (necro)política do fenômeno da pandemia de Covid-19 no Brasil, tomando-a como analisador das relações entre precarização da vida e produção de zonas de morte e existências supérfluas a partir de retóricas negacionistas e da interseccionalização de marcadores raciais, de classe social, de gênero e territoriais, o artigo apontou como tais processos estão articulados à própria racionalidade neoliberal, que, no Brasil, ao invés de substituir diagramas colonialistas e autoritários, atualiza-os à medida que potencializa a lógica perversa do mercado, privilégios de grupos econômicos e políticos específicos, bem como modos de subjetivação ultraindividualistas e indiferentes às perdas provocadas por escolhas políticas que implicam a acentuação de desigualdades e marcos de reconhecimento do valor da vida cada vez mais restritivos ao que a moralidade neoliberal apregoa, com seus padrões elitistas, meritocráticos e cisheteropatriarcais. Tal racionalidade, intensificando desigualdades, tanto desmonta sistemas de proteção social e políticas públicas quanto agência, na esteira de processos antidemocráticos e de uma moralidade reacionária, modos de subjetivação aderentes ou indiferentes à eliminação dos que são considerados “outros”.
Sustenta-se, portanto, que, na pandemia, pelos desmontes de políticas públicas no contexto neoliberal, radicalizam-se os processos de precarização interseccional de certas vidas no Brasil; a produção psicossocial de existências subalternizadas como supérfluas, submetidas a um brutal esgotamento provocado por uma economia sacrificial; e das territorialidades periferizadas como “mundos de morte”, aspectos característicos de uma necropolítica (Mbembe, 2017, 2020b).
O texto também abordou a produção psicossocial de vidas não passíveis de luto na pandemia como chave dessa relação entre precarização sistemática e desigual da vida e as tecnologias políticas de produção, instrumentalização e gestão de mortificação em massa. Considerando o racismo como motor necropolítico, sustenta-se que a produção de indiferença e de deboche frente às mortes em massa por Covid-19 e, consequentemente, de vidas não passíveis de luto passam, de um lado, pela objetificação de corpos racializados, desumanizando-os, e pela constituição, também sob um viés racial, da branquitude como humanidade universal, que, ao tentar sustentar privilégios e pactos narcísicos, se desresponsabiliza pela proteção coletiva contra a Covid-19 e, mais ainda, pela sustentação de uma vida vivível e democrática para todas e todos.
Buscou-se discutir precarização da vida e necropolítica articulando o motor racial a questões de gênero, classe social e territorialidades, dentre outros marcadores que compõem os aspectos psicossociais da desigualdade e vulnerabilidade no Brasil. Isso, como estratégia de interpelar a Psicologia Social para a problematização dos modos de subjetivação que vêm sendo maximizados no contexto de pandemia, considerando sua ligação com a própria governamentalidade necroliberal.
Movimentar a Psicologia sem concebê-la como salvacionista e/ou reprodutora de verdades necroliberais que naturalizam precarizações a partir de enfoques individualizantes, pode ser uma pista importante para a construção de saberes e práticas com quem vivencia cotidianamente desigualdades, violações e violências. Mesmo com diversos alvos nas costas, moradores das periferias compartilham estratégias de sobrevivência e re-existências por meio de uma rede de solidariedade, sobretudo em tempo de pandemia (Fernandes et al., 2020, Vieira, 2020, Souza, 2020). Tal debate foi apresentado por Krenak, Silvestre e Santos (2021), que ao evidenciarem modos de organização não capitalista, apontam redes de solidariedade seculares que se tecem, muitas vezes, paralelamente,paralelamente, aos movimentos político-partidários de esquerda.
Caberia, então, a Psicologia não somente aprender, mas potencializar essas experiências periféricas que historicamente resistem às necropolíticas que se atualizam no jogo colonial de poder ao longo da história. Com a pandemia e seus efeitos psicossociais, fica-nos o desafio de reposicionar-se diante dos desafios éticos, estético e políticos produzidos a partir das transformações de territórios existenciais, produzindo, por sua vez, políticas de subjetivação nas quais a violência e as lógicas de desumanização não sejam o eixo orientador de produção da vida.