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Cógito

versión impresa ISSN 1519-9479

Cogito v.4  Salvador  2002

 

GOZO E SEXUALIDADE

 

História em quadrinhos e o gozo do olhar*

 

 

Miriam Elza Gorender**

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A história em quadrinhos (HQ) parece envolver com grande intensidade a questão daquilo que é visual. É feita, afinal de contas, para ser olhada. No entanto, aquilo que está implicado neste se dar ao visual não é sempre a mesma coisa. Surge aqui uma diferença fundamental, estruturante mesmo, na medida em que toma parte da emergência do sujeito, qual seja aquela entre olhar e visão. Desta forma, importa compreender melhor de que visão e de qual olhar se trata.

Palavras-chave: Olhar, História em quadrinhos, Visual, Gozo.


 

 

A HQ parece envolver com grande intensidade a questão daquilo que é visual. É feita, afinal de contas, para ser olhada. No entanto, aquilo que está implicado neste se dar ao visual não é sempre a mesma coisa. Surge aqui uma diferença fundamental, estruturante mesmo, na medida em que toma parte da emergência do sujeito, qual seja aquela entre olhar e visão. Desta forma, importa compreender melhor de que visão e de qual olhar se trata. Para isto, segue adiante uma breve recapitulação de algumas questões envolvidas com a pulsão escópica e com o olhar como objeto a.

Diz Freud que as pessoas histericamente cegas só o são no que diz respeito à consciência; no seu inconsciente, elas vêem. Que olhar é esse? Como compreender este olhar? É aqui que se introduz a diferença entre o conceito de ver e o de olhar. Ver é entendido como ver o mundo diante de si, uma ação puramente fisiológica, como descrito em “As Pulsões e seus Destinos”, enquanto que olhar implica algo mais. Algo mais este que é da ordem do pulsional. Psicanaliticamente falando, é necessária mesmo uma cegueira do ver para que o olhar possa se dar. Olhar como ato pulsional, como objeto da pulsão. Quando estamos cegos na consciência, olhamos no inconsciente.

Aliás, não é por acaso que a palavra inglesa insight (traduzindo-se como “faculdade ou ato de ver dentro de uma situação; o ato ou resultado de perceber a natureza interior das coisas ou de ver intuitivamente” pelo Dicionário Houaiss), para a qual ainda não há substituto preciso, e que assinala exatamente o momento da mudança pulsional efetuada através do corte psicananalítico, tenha suas raízes no olhar. A diferença entre a visão e o olhar remete, por esta via, para as diferentes formas do saber de que fala Freud, o saber formal e aquele trazido pelo dar-se conta de algo até então mantido inconsciente.

Ao se dizer objeto da pulsão escópica, o que se toma como objeto é, portanto, o olhar:

O objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou através da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação (Freud, 1915: p. 143).

Freud sublinha que ele “pode ser modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que o instinto sofre durante sua existência, sendo que esse deslocamento do instinto desempenha papéis altamente importantes” (Freud, 1915: p. 143). Para que o olhar seja considerado objeto pulsional, o próprio olho deve tornar-se zona erógena. O olhar enquanto gozo, enquanto realização da pulsão escopofílica, coloca-se no lugar de alguma outra coisa, coisa esta que, é claro, é de natureza sexual. O que tende a despertar o gozo do olhar é, muitas vezes, mais entrevisto do que visto, como o mistério sagrado, ‘através de um véu obscuramente’. O que não deixa espaço ao imaginário tende a ser sentido como estéril, assexuado latu sensu. Mas aquilo que pode revelar o que está por trás dos véus, o gozo em sua forma mais crua, torna-se fascinação e horror.

Em “As Pulsões e seus Destinos”, Freud enumera as etapas da constituição do olhar como pulsão escópica. Adiante, seguem as etapas da pulsão escópica como estabelecidas por Freud:
a) Olhar, como atividade dirigida a um objeto estranho (Objekt).
b) Abandono do objeto, reversão da pulsão de olhar para uma parte do próprio corpo; inversão em passividade e instauração de um novo alvo: ser olhado.
c) Introdução de um novo sujeito (ein neues Subjekt) a quem o sujeito se mostra para ser olhado por ele.

Sobre este esquema, escreve Daniela Scheinkman:

Cremos que é a partir da relação sujeito/objeto que melhor podemos compreender o processo da pulsão escópica. [...] o olhar se constitui como objeto desligado, produto de uma operação lógica das duas operações em questão: o sujeito e o objeto. Há, por conseguinte, um percurso na relação sujeito/objeto, nesse processo de inversão, e, ao mesmo tempo, uma esquize que se instaura a partir do que Lacan retoma de Freud: o “novo sujeito”. (Scheinkman, 1995: p. 32)

Ainda segundo Scheinkman, o objeto da pulsão (olhar) se constitui por subtração do Outro:

É a partir da perda que o objeto da pulsão se constitui, por subtração do Outro. No que concerne à pulsão escópica, seu objeto é realmente o olhar: ele é subtraído daquele que desempenha, nesse momento, o papel do Outro, que assim o constitui como objeto. (Scheinkman, 1995: p.36-37)

Nasio, falando da pulsão escópica como uma relação circular entre o sexuado no sujeito e no outro, vê o sujeito do olhar como que pregado, pendurando-se da tela do outro. Nessa relação, desaparecem os conceitos de dentro e fora, de interno e externo, de modo que aquele que olha, na verdade, encontra-se ali, naquilo que é olhado. Na perspectiva do imaginário, o eu é a imagem percebida, o eu está na imagem percebida, e essa imagem percebida é o eu. Nisto, segue Lacan:

Não sou simplesmente esse ser puntiforme que se refere ao ponto geometral desde onde é apreendida a perspectiva. Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta. O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no quadro (Lacan, 1993: p. 94)

Por trás desse eu-imagem, a sexualidade na figura do falo imaginário. Por trás deste, o gozo que ao se entremostrar produz a experiência da fascinação, experiência no limite do imaginário, entre a visão e o olhar.

Indo mais longe, aquilo que aparece na fascinação pode ser visto não apenas como o fogo do gozar, mas também como o abismo que o compõe, este absoluto vazio de onde surge, como por milagre, o fogo que nos cega para a falta, e que no entanto a ilumina. O “isso olha” concernente às imagens de um sonho (como visto no sonho do Homem dos Lobos, no qual os lobos são os espectadores) seria, como sublinha Lacan, o ponto de real, o olhar pertencente ao campo escópico, o objeto a diante do qual o sujeito é aniquilado: “isso olha” o sonhador fascinado, petrificado, assombrado. “O lugar do real, que vai do trauma à fantasia(...)”

Esta escolha do olhar para um exame do objeto a, assim a justifica Lacan:

é “[...] o terreno em que o objeto a é mais evanescente em sua função de simbolizar a falta central do desejo, que sempre indiquei de maneira unívoca pelo algoritmo (- φ)” (Lacan, 1993: p.103)

Mas continuando com “isso olha”, “isso” leva não apenas ao que Lacan diz sobre a preexistência de um olhar, mas também, e pela mesma via, ao olhar do Outro sobre o sujeito:

“O que se trata de discernir, pelas vias do caminho que ele nos indica, é a preexistência de um olhar - eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte.” (Lacan, 1993: p. 73).

Em que níveis, portanto, está a pulsão escópica implicada em sua relação com a HQ? Pois certamente há mais de uma forma de implicação. Por exemplo, de um lado, quando um painel, um detalhe, uma página nos prende e o olhar aí se detém e aí se depõe. Neste caso, o que quer que seja que tenha ocupado o campo do olhar assume a mesma função de um quadro, por exemplo. O que vai interessar pode ser a beleza da arte, a habilidade do artista, a minúcia, a simplicidade, toda e qualquer razão que se possa encontrar para que qualquer pessoa possa parar para olhar algo feito para ser visto.

Por outro lado, quando o olho percorre a seqüência de painéis, passando de um a outro em um movimento de leitura, não há parada mais que o tempo necessário para a passagem ao próximo painel, assim como em uma frase não há mais que a demora estritamente necessária para que se passe de uma palavra a outra, demora esta que inclui não apenas a estrutura sintática, mas outros aspectos, como o prosódico (relativo à acentuação), melódico (as diferenças de entonação nas frases) e outros. Na HQ, nesta modalidade de leitura, também existem diferentes formas de estruturação dos intervalos, mas o que interessa aqui é que o olho não mais se detém em um detalhe qualquer, mas permanece na superfície da seqüência de leitura. Nesta modalidade, a pulsão escópica encontra-se bem menos implicada, já que o que está implicado não é a apreciação do visual, mas a leitura.

O certo é que, se na primeira modalidade o olhar está diretamente relacionado com o visual, com a pulsão propriamente escópica, na segunda modalidade este olhar encontra-se bem mais profundamente enredado nas tramas da linguagem. Este olhar, poder-se-ia mesmo dizer que está mais associado ao som do que à visão. Ambas as facetas do ver coexistem em toda HQ, e a decisão de qual penderá mais forte na balança em determinado momento depende apenas e unicamente do desejo e olhar do leitor.

Estas considerações, evidentemente, não esgotam o campo das possibilidades de estudo das relações entre as HQ e o olhar. Apenas mais uma especulação, a título de exemplo: lembremos a importância fundamental que a percepção visual assume no estádio do espelho. Este estabelece o ponto de partida para a série de identificações calcadas na imagem, gerando "a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu" (Lacan, 1998: p. 100). Estes fenômenos da identificação se multiplicam e, como percepções especulares, podem também ser encontrados nas HQ.

McCloud traz uma interessante teoria: frente a um outro, em posição especular, vemos seu rosto em detalhe. Mas da nossa própria face, enquanto não visível, temos apenas uma noção simplificada. Desta forma, ao ver um desenho realístico e detalhado de um rosto, vemos o que corresponderia a um outro, enquanto que ao nos depararmos com um rosto de cartoon, vemos algo mais próximo a nós mesmos.

Esta poderia ser uma das causas da imensa popularidade de uma série de personagens e séries que se utilizam de linhas de desenho simplificadas, ao estilo dos cartoons, nas quais o estilo seria um facilitador para toda sorte de fenômenos identificatórios. Estas considerações podem também ajudar a esclarecer um pouco mais sobre as origens da força insuspeita que possui uma forma de linguagem para a qual, com tanta freqüência, olhamos sem ver.

 

BIBLIOGRAFIA

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* Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, novembro de 2001
** Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, professora auxiliar do departamento de Neuropsiquiatria da UFBa, doutora em psicanálise pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

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