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Stylus (Rio de Janeiro)
versión impresa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.27 Rio de Janeiro oct. 2013
DIREÇÃO DO TRATAMENTO
O termo da transferência e os afetos da conclusão
The term of transference and the affections of conclusion
Marcia de Assis*
Internacional dos Fóruns - Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Fórum Rio de Janeiro e Fórum Niterói - IF-EPFCL/Brasil
Fórum Informal do Campo Lacaniano - FICL-Niterói
RESUMO
O presente trabalho, produto de cartel sobre a transferência, aborda o seu termo, a saída da análise e os afetos implicados no processo da conclusão. Aponta, no entanto, o início do percurso que se dá a partir do amor de transferência, condição do tratamento, que conduz ao fim. Considerando a sequência analítica – entrada, momento de passe, saída –, enfatiza, especialmente, a fase final do percurso: o tempo compreendido entre o momento de passe, o começo do fim, até a saída, o ponto final da trajetória analítica.
Palavras-chave: Transferência, Momento de passe, Luto, Entusiasmo e final de análise.
ABSTRACT
This work, product of a cartel on transference, discusses its term, the end of the analysis and the emotions involved in the conclusion of the process. It points out, however, the beginning of the journey that starts with the transference love, a treatment condition, which leads to the end. Although the whole analytic process of treatment is considered – the beginning, the moment of Pass and the end of analysis – special emphasis is given to the final part: the period between the moment of Pass, the beginning of the end, to the exit, the end point of the analytic trajectory.
Keywords: Transference, Moment of pass, Mourning, Excitement, end of analysis.
"Quem, melhor do que esse psicanalisante no passe, poderia autenticar o que ele tem da posição depressiva" (LACAN, 1967/2003, p. 260). Inicio a partir desta referência, quando Lacan falou acerca de um luto no momento do passe, na Proposição de 9 de outubro de 1967. É a luta para sair da transferência.
No entanto, aprendemos com Lacan (1973) a ver o afeto triste no âmbito da ética. Ou seja, a posição depressiva comporta um não querer saber nada disso, correlato à paixão mais fundamental, a ignorância, assim como à paixão amorosa, que também tem um tantinho de ignorância, de nada querer saber sobre o impossível de dizer e a falta estrutural, que funda a potência desejante, potência da pura perda, que impulsiona o sujeito rumo à iniciativa.
De acordo com Colette Soler (2005, p. 76), o estado depressivo é mais que a tristeza, pois participa das figuras da inibição, invocando Freud, que ao falar da depressão esclarece haver uma inibição global, paralisando o conjunto das funções libidinais (1925/1986, p. 86). Como pensar, então, numa posição depressiva quando se está à porta de saída? Eis o questionamento que moveu esta produção de cartel, num primeiro momento.
Se a tristeza é o afeto correlato à dor de existir que se manifesta no luto, tal afeto é tomado pela psicanálise como extravio do desejo, ou seja, o sujeito que se encontra na posição depressiva é aquele cujo desejo se extraviou. Ele maldiz o desejo. No âmbito da ética, tal qual propõe Lacan em Televisão (1973/2003, p. 524), entristecer-se é uma covardia. O afeto triste é aquele que engana quanto à causa, correspondendo à paixão da ignorância; no entanto, é parente do afeto da angústia, que não engana, pois tal parentesco se deve ao fato de ser a tristeza um sinal do real, sinal de gozo.
A sequência analítica
Apresento aqui a sequência analítica tal como proposta por Soler em seu livro A psicanálise na civilização (1998, p. 423):
Entrada >------------ momento de passe ------------> saída
O momento de passe é a entrada na fase de saída, e equivale ao momento de turbulência, onde estão em jogo os afetos da conclusão em suspenso: luto ou inquietude. Não estaria aí o aspecto maníaco-depressivo que assume o sujeito analisante ao se aproximar do final de análise? Momento que pressupõe um atravessamento da fantasia, desnorteamento, destituição, angústia, no qual se encontra o analisante em direção ao fim. Momento antes de acabar, anterior à separação em que resta, ainda, uma resolução. A duração dessa fase depende de quanto perdure o luto.
O amor de transferência conduz ao fim
A experiência psicanalítica opera por meio do amor transferencial, porém não trabalha pelo amor. Freud aceitou o amor de transferência para servir-se dele, fazendo o dispositivo operar. Se o dispositivo analítico programa o amor, o analista programa o luto.
No artigo A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958/1998, p. 594) afirmou que a situação analítica não é uma situação a dois. E no Seminário, livro 8: a transferência, foi bem explícito ao abordar esta questão: "A intersubjetividade é o que há de mais estranho na experiência freudiana" (LACAN, 1960-61/1992, p. 19). Se ela surge, a transferência estanca. E floresce em sua ausência.
A transferência é uma situação singular, melhor dizendo, uma pretensa situação, pois esta experiência freudiana não envolve um par. Longe de termos que considerar dois sujeitos numa posição dual, precisamos fazer surgir o domínio da tapeação possível. É no amor que encontramos seu modelo, nos propõe Lacan, no Seminário 11, em consonância com o que Freud (1914/1986, p. 156) já havia afirmado sobre a neurose de transferência que surge no lugar da neurose ordinária: "Ao persuadir o outro de que ele tem o que nos pode completar, nós nos garantimos de poder continuar a desconhecer o que nos falta. Não está aí a estrutura fundamental da dimensão do amor que a transferência nos dá ocasião de imajar" (LACAN, 1964/1985, p. 128).
Em Televisão (op. cit., p. 529), nos disse: "articulo a transferência a partir do SsS". Isto é, o sujeito por meio da transferência é suposto no saber em que ele consiste como sujeito do inconsciente, sendo isso o que é transferido para o analista. Dito de outro modo: SsS é uma manifestação sintomática do inconsciente, uma formação de inspiração do analisante, o único sujeito em questão na análise. E se a transferência está lá, no começo da psicanálise, é graças a ele, o analisante.
"Aquele a quem suponho o saber, eu o amo" (LACAN, 1972-73/1985, p. 91). Ou seja, o analisante reveste o suposto parceiro nesta empreitada, com o manto brilhante, agalmático, que causa seu desejo. Lá onde falta um significante no Outro, o analisante situará o objeto precioso, o saber. Eis a emboscada do amor transferencial.
Em seu livro O que Lacan dizia das mulheres, Soler (op. cit., pp. 206-207) afirma haver duas estratégias transferenciais em jogo na análise. A do analisante é a de obter aquilo que o analista supostamente detém: agalma, mais-de-gozar, como se queira denominar. Enquanto que a do analista tem por finalidade a programação do luto. Pois ao se recusar à reciprocidade do amor, introduz entre o silêncio e a interpretação o vazio em que o sujeito localizará a própria repetição. Transferência não é repetição, mas conduz a ela: re-petição assim grafada para assinalar aí a reiteração da petição, tal qual Lacan nos transmite em O aturdito (1972/2003, p. 495).
A análise revela que o próprio amor é repetitivo, sempre repetindo a mesma decepção. O que o sujeito irá encontrar na análise em lugar daquilo que procura? Se ele parte em busca do que tem e não sabe (o saber não sabido), o que vai encontrar é o que lhe falta, a saber, seu desejo, pois o que está em questão na análise é a emergência do desejo. Porém, o amor é paixão que pode ser a ignorância do desejo (Seminário 20: mais, ainda, op. cit., p. 12). O amor transferencial faz obstáculo ao tratamento, revelando a sua face de resistência.
O discurso analítico é o único que dá ao outro o lugar de sujeito. Neste laço social, o sujeito se vislumbra do lado do analisante convidado a falar. A função desdobrada do analista aponta seu lugar no discurso analítico, semblante de objeto que causa, ao se calar como sujeito. É desse lugar, agente do discurso analítico, que o psicanalista dirige o tratamento. Aí está o manejo da transferência.
O luto no momento de passe
Passar pela experiência analítica implica vivenciar dois lutos. O primeiro tem a ver com a destituição subjetiva, quando se perde a segurança extraída da fantasia, ao atravessá-la, quando o sujeito se sabe um objeto. Colette Soler (2008, p. 22) propõe um matema da destituição subjetiva, inscrevendo uma equivalência lógica entre o sujeito dividido e o objeto a, sem esquecer que este é o objeto inominável. O sujeito é o objeto de seu fantasma. Quando ele se identifica ao objeto que deixou de ser para o Outro, complemento deste Outro, na fantasia, ele sabe ser um rebotalho. Esta marca de rebotalho se encontrava encoberta pela fantasia.
Resta, ainda, uma resolução. A resolução da neurose se prolonga pela resolução da neurose de transferência para que se possa falar de fim de análise. Eis o segundo momento de luto.
"Aquele que transpõe o passe, em quem está presente nesse momento o des-ser em que seu psicanalista conserva a essência daquilo que lhe é passado como luto." É o que diz Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (op. cit., p. 260). Ou seja, há uma mudança na relação transferencial, quando o analista perde seu estatuto de objeto precioso. Conforme assegura Lacan no Seminário, livro 8 (op. cit., p. 381): "Não há objeto que tenha maior preço que um outro – aqui está o luto em torno do qual está centrado o desejo do analista". O luto é uma luta, um trabalho, como nos disse Freud (1917/1984). O luto no passe, um trabalho que requer um desinvestimento libidinal para separar-se do analista, que fora investido pelo analisante como objeto causa de desejo. É o luto do analista reduzido ao objeto a, mas que ainda continua a causar seu desejo, até o momento em que deixará de funcionar como causa ao analisante. Tempo necessário, portanto, para se confrontar com a separação. Tempo antes do término. Ainda há um passo até a satisfação do fim. Isso deprime, ao menos transitoriamente, pois se tiro as consequências disso, libera.
Não basta o momento de passe para ser analista. Necessita-se de algo mais. Busco os versos de Fernando Pessoa em seu poema Mar Português (1935/1980, pp. 53-59) para falar desse instante:
Quem quer passar além do Bojador1
tem que passar além da dor. (Fernando Pessoa)
O entusiasmo e a satisfação que não espera nada de ninguém
"[…] ele sabe ser um rebotalho. Isso é o que o analista deve ao menos tê-lo feito sentir. Se o analisante não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance" (LACAN, 1974/2003, p. 313). Tal afirmação foi o segundo motor acionado, mantendo esta produção de cartel.
Em Televisão (op. cit.), apreende-se o dever de bem dizer, ao se referenciar no inconsciente: virtude ética, gay sçavoir, que implica um saber sobre a falta estrutural e constitutiva do desejo, enquanto a tristeza é uma recusa em saber que vai na contramão do desejo decidido que nos colore com nuances de vitalidade e vigor.
Tem que passar além da dor. Para poder passar, é preciso ter-se livrado da procura da verdade, raspando o sentido o máximo possível, levado ao sem sentido, cifra de gozo, sem endereçamento, quando não se espera mais nenhuma promessa de satisfação advinda do Outro. Os efeitos são afetos que surgem na sequência: o entusiasmo e o satis-fazer, após cessar a outra satisfação, aquela implicada na tagarelice e na re-petição queixosa.
A experiência freudiana promete a separação, e esta virá a partir da transferência, condição do tratamento, pois apenas o amor de transferência, amor ao saber, poderá conduzir ao fim. Um fim que separe o sujeito da manada, quando o analista dirige o tratamento.
Será que no fim a psicanálise não faz mais do que reduzir a infelicidade neurótica em uma infelicidade banal? Será que podemos falar em visão pessimista de Freud? Em Análise terminável e interminável (1937/1986, p. 229) afirmara que a análise produz um estado inédito no interior do eu. Lacan apostou que da infelicidade neurótica se possa conseguir algo inédito. Tal aposta tem alcance para além dos efeitos terapêuticos, pois está em jogo uma mudança da posição subjetiva, que desfaz o impasse neurótico, apelo ao passe. Tal mudança produz efeitos no nível da tristeza, atingindo a covardia neurótica. Portanto, a experiência psicanalítica oferece a chance de uma nova escolha, aposta de Freud, corroborada por Lacan.
Há um tempo de suspense, tempo de compreender e hystorizar, que implica uma travessia, pressupondo que aquele que entrou poderá sair. Aquele que atravessa vislumbra a porta de saída; no entanto, ainda não é o fim da travessia. Cada fase final é única, despertando afetos singulares e não se universaliza. O ponto de finitude da trajetória analítica não é sinônimo de produção de analistas.
Ao termo, en-fim, uma conclusão é colocada em ato. Utilizo a palavra conclusão2 em sua conotação decisória, pois o momento de concluir equivale ao salto do tempo de hystorizar ao tempo de passar ao ato, tal qual escreveu o poeta francês:
"Ante o ranger feroz das marés,
me lancei."( Arthur Rimbaud)3
Se no momento de passe uma porta foi aberta, descortinando a saída, esta saída se efetiva através do ato de fechá-la e seguir, sozinho, sem garantias, porém tomado pelo entusiasmo e um desejo inédito.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: marcia.assis@gmail.com
Recebido: 17/02/2013
Aprovado: 20/04/2013
* Psicanalista, membro da IF-EPFCL/Brasil. Fórum Rio de Janeiro e Fórum Niterói. Atual coordenadora do FICL-Niterói
1 Referência ao cabo Bojador, também conhecido como cabo do Medo pelos antigos navegantes, devido à região de difícil passagem.
2 Ressalto aqui a distinção do uso desta mesma palavra no título, quando me referi ao processo de conclusão, na fase final da trajetória analítica.
3 Versos retirados do poema Le bateau ivre, associando-os aos versos de Pessoa, mencionados anteriormente.