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Stylus (Rio de Janeiro)

versión impresa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro nov. 2016

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Manejo clínico e as produções de saber na cultura como destinos da pulsão de saber

 

Clinical management and knowledge productions in the culture as destinies of the drive to know

 

 

Daniel Menezes Coelho*,I; Esther Maynart Pereira Mikowski**II,III

I Universidade Federal de Sergipe
II Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
III Projeto Freudiano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema deste trabalho é o manejo da técnica psicanalítica e as produções de saber na Cultura na obra freudiana. Nossa hipótese é que ambos são destinos da pulsão de saber, apontada por Freud em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade". O objetivo foi revisar textos sobre a técnica, publicados entre 1910 e 1915, e textos sobre cultura de 1927 a 1933 para verificar como Freud trabalhou o saber em torno desses temas. Encontramos tanto nos textos tardios sobre a cultura como nos artigos sobre a técnica o caráter investigativo do sujeito. A pesquisa nos leva a destacar, na obra freudiana, uma nova inflexão quanto às relações entre o sujeito e o saber, na medida em que revela aí o papel do desejo.

Palavras-chave: Pulsão de saber, Cultura, Produção de saber, Manejo clínico.


ABSTRACT

This theme of this study is the management of the psychoanalytical technique and the productions of knowledge within Culture in Freudian works. Our hypothesis here is that both of them are destinies of the drive to know, pointed out by Freud in "Three essays on the Theory of Sexuality." the objective was to review texts about technique, published between 1910 and 1915, and others on culture between 1927 and 1933 in order to verify how Freud discussed knowledge within these themes. In both the later texts about culture and in the articles about technique, we have come across the subject's investigative character. Thus, it is our understanding that psychoanalysis research provides evidence of a subject knowing in the practice and in the culture, which makes the drive to know very operative in Freud's work.

Keywords: Drive to know, Culture, Knowledge production, Clinic management.


 

 

Em 1915, Freud incluiu nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1996) um tópico dedicado ao problema das pesquisas sexuais infantis. O tópico é aberto com a descrição de uma pulsão de saber, que se ativaria nas crianças entre três e cinco anos, sendo responsável por engajá-las na via de tais pesquisas. É interessante notar que, para Freud, elas não poderiam ser classificadas em dependência exclusiva da pulsão sexual. A pulsão de saber seria composta, de um lado pela forma sublimada da pulsão de dominação, e de outro, pela pulsão escópica. Em consequência, a curiosidade da criança é impulsionada em direção das questões da sua origem e da diferença sexual, e embora seja recalcada com o fracasso das investigações sexuais infantis, retorna colocando o sujeito adulto às voltas com as mesmas questões não respondidas, ainda que tais questões sejam colocadas de outro modo. São as novas perguntas que o levam a fazer certas escolhas e a se colocar no laço social. Portanto, a curiosidade infantil, embora fracasse, não cessa em manter o sujeito em posição de desejar saber. É pulsional e, por isso mesmo, repete-se e atualiza-se.

Na obra de Freud, encontramos o manejo clínico e as produções de saber na cultura como destinos dessa pulsão. Neste trabalho, destacamos os textos de Freud sobre a cultura e ciência, bem como os artigos sobre a técnica pela sua relação direta com a pulsão de saber.

 

Sobre a ilusão que alimenta

Partiremos de "O futuro de uma ilusão" (FREUD 1927/1996), texto que marca o início de um importante debate na obra de Freud. O texto, por um lado, toma o problema da cultura como modo de vida próprio ao humano; e por outro, as diferenças profundas na concepção dessa cultura (logo, no modo de vida próprio ao humano) se a tomamos a partir da ciência ou da religião, como modos de conhecimento e de pensamento. Assim, no início do texto Freud definirá o que entende por cultura a partir de dois aspectos: o conhecimento e a capacidade do homem de controlar e de utilizar a natureza para seu próprio uso; a regulamentação das relações humanas, pois o homem é também seu inimigo. Por isso, instituições e ordens regulamentam a vida em sociedade, já que os impulsos hostis tendem à aniquilação.

A civilização parece ter sido imposta por uma minoria por meio de poder e coerção. Nesse caso, diante de uma massa hostil, líderes ou minorias passaram a controlar a partir da influência. Portanto, duas características humanas surgem como responsáveis pelo ordenamento da civilização: os homens não são espontaneamente dispostos ao trabalho, e os argumentos não valem nada diante das paixões.

Assim, proibição, privação e frustração estão intimamente ligadas. A primeira é justamente o que funda a civilização, separando o homem da natureza; e a segunda é sua consequência, relacionada a grupos específicos. Por fim, a frustração é a não satisfação pulsional resultante. Considerando que todos compartilhariam de desejos pulsionais que são recalcados, a saber, ânsia de matar, incesto e canibalismo, o homem acha-se às voltas com essas proibições civilizatórias e encontra outras formas de satisfazer a pulsão agressiva como mentira, fraude ou até avareza. Já a arte é privilégio de poucos, que usufruem dessa atividade para conseguir satisfações substitutivas (Ibid, p. 13).

Em seguida, Freud demonstra como as ideias religiosas surgiram da mesma necessidade de realizações satisfatórias. Na medida em que as forças da natureza mostram-se como forças do Destino, o desamparo fez o homem ansiar pelo pai e pelos deuses, como forças da Providência:

Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça que nos reunimos e criamos a civilização, a qual, entre outras coisas, se destina a tornar possível nossa vida comunal, pois a principal missão da civilização, sua raison d'être real, é nos defender contra natureza (Ibid., p. 24).

Elementos como a terra, a água, as tempestades, as doenças e o enigma da morte escapam do controle humano e, por vezes, impõem sentimentos de fraqueza e desamparo. A civilização, então, não se detém na defesa do homem contra a natureza, mas também o defenderá contra tais sentimentos: a autoestima ameaçada demanda consolo; a vida e o universo pedem para ser libertados dos seus terrores; a sua curiosidade pede resposta. Coube aos deuses, das mais diversas religiões, amparar o sofrimento humano decorrente do desamparo que, por conseguinte, favoreceu novas ideias e preceitos para combatê-lo. Assim, as ideias religiosas são ensinamentos e afirmativas sobre os fatos e condições da realidade exterior ou interior que visam excluir a hesitação e o desamparo do homem, de modo a influenciá-lo. A ideia de um pai protetor e censor é transposta da experiência infantil à religião.

Diante disso, um meio pelo qual a religião tenta contornar os anseios do homem é a proibição e o leva a atribuir a Deus os regulamentos e preceitos que obedece. Para Freud, responsabiliza-se a Deus para não lidar diretamente com seu próprio desejo, em vez de compreender que certos preceitos servem aos seus próprios interesses. Por exemplo, reconhecer que não matar o próximo é de interesse comunitário poderia levar à reconciliação com a própria civilização. Antes de tudo, é não se responsabilizar pelo desejo que precedeu o regulamento. A proibição de pensar acompanha essa mesma lógica, o que coloca proibição e recalque muito próximos.

Mesmo que as ideias religiosas tenham contribuído com a civilização e influenciem bastante o pensamento humano, não deram conta de dominar as pulsões. As perguntas dos homens, herdeiras da curiosidade infantil, não são respondidas a partir da experiência e, portanto, para Freud as respostas ou explicações não devem ser consideradas meros erros, ou seja, algo que nos remeta ao problema dos limites da cognição. Na verdade, são ilusões, ou seja, são produzidas a partir do desejo, e a partir desse desejo adquirem valor de verdade para quem as toma para si.

Desse modo, a religião pôde satisfazer o desejo de saber, mas não completamente: a experiência e o pensamento contradizem o saber religioso, e acabam por tornarem-se, nesse quadro, perigos para a própria experiência de satisfação proporcionada pelo saber religioso. Sob tais condições, é preciso proibir experiências e pensamentos. Estamos, assim, bem longe do problema cognitivo do erro. Trata-se, no que Freud propõe, de um problema de satisfação pulsional. A religião oferece algo que apraz, e sua contrapartida é a crença e o não questionamento.

Por outro lado, Freud defende que a ciência não é uma ilusão, pois dá provas do conhecimento alcançado sobre o mundo e a realidade. O trabalho científico pode atingir esse conhecimento por meio de investigações, progressos, revoluções e mesmo refutações que visam à verdade. A ciência se encontra jovem, exitosa em alguns campos e, em outros, ainda obstinada a explorar. Seu método de satisfação do desejo difere imensamente daquele da religião, pois ela exclui o mecanismo pelo qual a religião protege o saber com que seu desejo se satisfaz. Na ciência, em todo caso, na ciência que Freud defende, tudo pode ser questionado, tudo pode ser pensado. A ciência de Freud toma aquilo que a contradiz como motor de seu próprio progresso, e não como objeto de interdição.

A tese freudiana aponta para uma civilização tanto construída como amparada nessas ilusões e uma ciência que nasce para questioná-las. Há uma aproximação importante feita por Freud entre a religião e o não saber da criança, diante dos enigmas infantis, pois o engano produzido pelo adulto favorece as teorias sexuais infantis.

A ilusão proporcionada pelas teorias infantis, se consideradas desse modo, difere-se das ilusões da religião pelo efeito externo, impositivo, pois as primeiras nascem da própria experiência, diferente das demais que, mesmo herdeiras de um complexo infantil, são experiências coletivas.

A partir do que levanta nesse trabalho, Freud propõe uma educação para a realidade. Durante o texto, percebemos crítica à educação, em virtude do seu alinhamento à religião e sua tentativa de controlar a sexualidade. Por isso, se no futuro o homem conseguir se desfazer das amarras das ilusões e puder suportar a vida e as crueldades da realidade, assim como dar conta do seu desejo insatisfeito, a educação será para a realidade, inclusive aquela do desejo impossível. Freud afasta a tese segundo a qual isso produziria sofrimento e paralisia, mediante a perda da satisfação obtida pela ilusão. Nosso conhecimento científico mitiga o sentimento de desamparo e nos autoriza a ter esperanças no futuro.

Sublinhemos que a posição crítica de Freud às religiões não se explica meramente pelas ilusões provocadas, mas principalmente pelas restrições que as acompanham. Na medida em que Freud, otimista, acredita que no futuro não haverá nem neurose ou religião, a aposta é a razão e a experiência ofertadas pela ciência, pois "a humanidade superará essa fase neurótica, tal como muitas crianças evolvem de suas neuroses semelhantes" (Ibid., p. 61).

 

As conquistas da civilização

O célebre texto "Mal-estar na civilização" (FREUD, 1930/2010) continua o debate estabelecido em "O futuro de uma ilusão". Nele, Freud reafirma sua concepção sobre a cultura, como "a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si" (Ibid., p. 48). O objeto principal do texto será uma investigação sobre os limites da cultura, seus pontos de "mal-estar". Se a civilização nos protege dos perigos da natureza, ao mesmo tempo impõe a necessidade de renunciar à satisfação pulsional.

Ao retomar a teoria das pulsões, Freud demonstra que, para escapar das intempéries da cultura, o sujeito conta com desvios da meta e com a investigação, seja na ciência ou nos interesses em geral. O querer saber apontado no final demonstra que a produção de saber e de conhecimento do sujeito sobre si e sobre a cultura seria um destino pulsional, como sustentamos. Nesse quesito, estão contemplados tanto o conhecimento decorrente da educação, controladora da pulsão em essência, como a ciência enquanto prática legitimada, ou com qualquer outro campo de investigação.

Ao retomar o problema da religião, anteriormente abordado, eleva-a à direta oposição à ciência e à arte, ao mesmo tempo que pode, por vezes, substituí-las. No entanto, essas últimas podem ser vias de suportar os sofrimentos, na medida em que o desvio pulsional, a sublimação, opera um deslocamento libidinal para essas e outras atividades.

 

Visão de mundo e a produção de conhecimento

Em "Acerca de uma visão de mundo" (FREUD, 1933/2010), retoma-se mais uma vez o debate sobre o conhecimento. Ali, sustenta-se que "visão de mundo é uma construção intelectual que, a partir de uma hipótese geral soluciona de forma unitária todos os problemas de nossa existência, na qual, portanto, nenhuma questão fica aberta, e tudo que nos concerne tem seu lugar definido" (Ibid., p. 321). Essas informações nos mostram o rigor e o cuidado de Freud com o tema, e mesmo que insista em seu conhecimento restrito, consegue ser preciso ao demonstrar o risco dos sistemas1 que defendem um conceito único de vida e de mundo. Tal uniformidade não dá espaço a questionamentos, a novas produções ou a indagações.

A princípio, o propósito do texto parece ser o de questionar se a psicanálise tem uma visão de mundo, o que é logo solucionado, já que a psicanálise é inadequada para criar uma visão de mundo própria, mas enquanto pertencente à ciência, compartilha da sua visão. Cabe a esta última a pesquisa, cujo objetivo é a produção de conhecimento, que deve ser checado e comprovado. Muito embora a psicanálise e a psicologia tenham incluído a psique e o intelecto na investigação científica, o saber produzido não é reconhecido como científico.

Por consequência, o que está em questão é que a ilusão nascida para lidar com os desejos humanos não pode competir com a verdade promovida pela ciência. Não por esta verdade refutar um erro, pois as ilusões não tratam disso, mas principalmente pela experiência com a própria realidade que a ciência promove. Esse é um ponto-chave do texto freudiano, embora sua crítica recaia fortemente sobre a religião, colocando-a como maior inimiga da ciência, como já podia ser lido em "O futuro de uma ilusão".

Freud retoma assim o argumento da proibição do questionamento na religião. Lembra que houve um tempo sem religião e sem deuses, o animismo, em que espíritos semelhantes aos homens, chamados demônios, amedrontavam os homens, e como não havia um ser supremo para pedir proteção, defendiam-se com atividades como a magia. Por causa disso, Freud aponta que naquela época os seres humanos eram mais confiantes. Apesar de não haver dados exatos sobre a passagem do animismo para a religião, lembra que o totemismo, entre outras reviravoltas, trouxe a ética. As exigências éticas, por sua vez, se condicionadas à obediência divina, colocam a humanidade em perigo. Tal retomada histórica serviu para expor como o próprio desenvolvimento do que chama espírito científico passou a questionar a religião e suas teorias escassamente comprobatórias, exceto pela fé humana, como os milagres ou a própria criação do universo. A psicanálise, por sua vez, pôde apontar que as origens de tais ilusões estão nos desejos e necessidades experimentadas no desamparo infantil. A partir disso, conclui que os conteúdos de verdade da religião podem ser desconsiderados, pois são "tentativas de lidar com o mundo sensorial, em que estamos colocados, por meio do mundo de desejos que desenvolvemos em nós, em razão de necessidades biológicas e psicológicas" (Ibid., p. 335).

Freud aponta que se poderia objetar que a religião não poderia ser objeto de investigação da ciência por sua origem divina, por sua concepção sublime e por estar distante da compreensão humana. Contra essa objeção, aponta-se para os efeitos da religião sobre o homem e, essencialmente, o modo como opera no seu pensamento. Ou melhor, como lhe restringe o pensamento e não permite ser questionada, pois sua origem é divina. Então, a crítica se concentra no que Freud nomeia como invasão do pensamento científico pela religião, ou seja, quando esta se propõe a controlar o pensamento do homem, bem como sua possibilidade de questionar e produzir novos conhecimentos.

O pensamento científico não difere do pensamento comum, porém, tem traços específicos, interessa-se por coisas que podem não ser palpáveis e úteis, mantém distância de individualismos e afetos, é rigoroso, cria novas percepções, isola suas descobertas segundo as variáveis do experimento ou investigação, utiliza-se de meios pouco cotidianos, tem como objetivo a verdade. A ciência, por ser relativamente nova se comparada à existência da humanidade, Freud aposta num longo caminho para que ela possa substituir os efeitos da ilusão religiosa.

O debate em torno da oposição entre ciência e religião toma corpo e coloca a psicanálise como êxtima2 dessa discussão, pois desde que está incluída na ciência, no que diz respeito a uma visão de mundo, impõe à ciência que considere a realidade de algo que ela metodicamente esforçava-se em eliminar como fonte de erro: o desejo. Se há "realidade psíquica", tese fundamental que sustenta a clínica psicanalítica, o próprio conceito de realidade deve ser questionado.

A política do desejo e da necessidade também está presente no debate, como ponto importante nas consequências das ilusões que também são alternativas ao sofrimento humano. De um lado, parecem satisfazer o desejo, na medida em que o tamponam e, de outro, fazem pensar que há sempre um escape que o coloca para funcionar de outro modo.

Freud faz uma distinção entre saber e ilusão, sendo que esta é sempre guiada pelos afetos e pela própria religião. Se a visão religiosa de mundo é determinada pela vivência da infância, é herdeira da relação entre a criança e a instância parental que lhe deu carinho, proteção, segurança e o instruiu a aceitar restrições do seu desejo.

O texto freudiano valoriza a produção do saber própria do sujeito, seja da ciência ou do inconsciente, em detrimento de estruturas totalizantes como a religião. Deste modo, se o indivíduo é tomado por essas estruturas, podemos considerar que sua pulsão de saber é recalcada ou mesmo desviada em sintomas que respondem a isso. Assim, a produção de conhecimento é um destino da pulsão de saber, na medida em que o próprio processo civilizatório, para se constituir, precisou dar contornos àqueles impulsos infantis. Conforme o exposto, se a psicanálise não produz uma resposta unitária nem soluciona os problemas da existência humana ao deixar abertas essas questões, e se tanto é parte da ciência como compartilha sua visão de mundo, concluímos que há uma produção de saber da psicanálise. Este saber é eminentemente clínico, apoiado robustamente na realidade do desejo observado na clínica, que serve de motor a todo o debate em torno da cultura e do conhecimento que acompanhamos até aqui.

 

Manejo clínico na direção do tratamento

Ao propor uma clínica psicanalítica baseada no inconsciente para tratar do sofrimento humano diante do recalque, Freud criou uma técnica que comporta de um lado um analista opaco e disposto a escutar, de outro um paciente que deve falar sem censuras da sua história e da sua dor.

Ao longo de sua obra, percebemos uma passagem da imposição do saber do analista, presente na sugestão, para um saber do paciente via transferência. Em seus artigos sobre a técnica, conseguimos identificar essa passagem.

Em "Dinâmica da transferência" (FREUD, 1912/2010a), Freud aproxima a resistência à transferência, delimitando que não é preciso desprezar a primeira, pois é útil no manejo da outra. No início da prática, Freud ignorou os efeitos favoráveis da resistência à análise, no entanto, passou a tomá-la como meio eficaz de reconhecer a transferência: "o mecanismo da transferência é explicado se o referimos à prontidão da libido, que permaneceu de posse de imagos infantis, mas só chegamos ao reconhecimento de seu papel na terapia se abordamos os seus vínculos com a resistência" (Ibid., p. 141).

Outro aspecto dinâmico da transferência é a ambivalência das inclinações afetivas que pode se submeter à resistência. Não apenas afetos tomados como positivos podem se efetuar, mas também negativos. Há uma outra ambivalência em questão: a luta entre o intelecto e as pulsões. Apesar da recomendação de dizer tudo que lhe vier à mente, o paciente por vezes escolhe palavras ou afetos para se expressar, o que dificulta o acesso aos conteúdos recalcados. O efeito das pulsões sobre a história do paciente, seus afetos e suas lembranças encontram empecilhos para vir à tona. O analista deve conduzir o tratamento para que essa luta de forças possa cumprir sua função de cura no campo da transferência.

Em "Recomendações ao médico que pratica a psicanálise" (FREUD, 1912/2010b), é recomendada a distinção entre o tratamento e o rigor científico, mesmo que se considere a análise como um trabalho de investigação dos processos inconscientes, de resolução "do enigma da neurose" (Ibid., p. 161) e que um dos seus méritos seja coincidência entre pesquisa e tratamento. A pesquisa do inconsciente com fins de tratamento e de comprovação de uma hipótese é o que justifica tal recomendação. Afinal, se o tratamento ainda não foi concluído, a atenção do analista estará comprometida com a expectativa dos êxitos de sua conclusão quando tomada pela pesquisa com fins científicos. Ressalta-se neste ponto que o rigor científico não está a serviço dos efeitos e reviravoltas possíveis em uma análise.

Destaca-se ainda o exercício do analista em ser opaco, servindo de espelho ao paciente. Ao não se dispor como pessoa, por meio de seus defeitos, de seus conflitos e de sua história, evita o risco do mal uso da transferência e sua futura dissolução. O tratamento por sugestão pode vir a sucumbir às possibilidades de acesso às resistências, de modo que o paciente permaneça falando do que já sabe, sem se atrever a dar voz ao inconsciente – ao que não sabe.

Em "O início do tratamento" (FREUD, 1913/2010, p. 179), lemos:

O paciente costuma apreender como uma privação a situação que lhe é imposta e se revolta contra ela, em particular se o impulso de olhar (o voyeurismo) tem papel significativo em sua neurose. Mas eu insisto nessa medida, que tem o propósito e o resultado de impedir a inadvertida intromissão da transferência nos pensamentos espontâneos do paciente, de isolar a transferência e fazer que no devido tempo ela se destaque nitidamente como resistência.

Mais adiante, adverte que somente depois de estabelecida a transferência é que devem ser feitas as comunicações do analista sobre o processo analítico e suas interpretações das resistências, sob o risco de serem tomadas por meras informações intelectuais desprovidas de afeto. O saber é próprio a cada sujeito e, por isso, o analisando deve buscá-lo por si, investindo aí o seu próprio desejo.

Assim, é preciso insistir na diferença, dentro da análise, entre o saber do paciente e o saber do analista. Por intermédio de um exemplo clínico (Ibid., p. 189), Freud insiste que a imposição do saber de outrem não favorece a cura, pelo contrário, propicia o aumento das resistências, impedindo o acesso ao saber inconsciente. Freud atribuiu ao tratamento por hipnose o mérito de ter revelado que os efeitos da análise só podem ser buscados se forem genuinamente operados pelo próprio analisando.

Por acerto e erro, Freud parece ter concluído que é preciso ponderar o que importa em uma análise. Nem sempre a elucidação dos fatos é o que o analisando deseja saber, pois é preciso que a construção se dê no espaço propiciado pela transferência e essa possa favorecer o próprio sujeito a encontrar o saber inconsciente. Assim "um saber consciente com o não saber" (Ibid., p. 190), quando conjugado, possibilita o acesso aos processos psíquicos inconscientes.

Encontramos ainda indicações de que há uma força motriz da pulsão que diminui com o avanço do tratamento. Há um jogo de forças para que o mesmo aconteça, inclusive o sofrimento do analisando e seu desejo são pontos de partida. Se o sofrimento do homem advém dos conflitos pulsionais, percebe-se que tal força é incapaz de eliminar os sintomas, pois desconhece os caminhos que a conduziram e não é força suficiente para superar as resistências. É pela transferência que esse desconhecimento e falta de força podem ser superados.

Já em "Recordar, repetir e elaborar", "preencher lacunas da recordação" e superar as resistências do recalque são objetivos da análise (FREUD, 1914/2010, p. 195). O essencial, portanto, é fazer emergir as lembranças infantis que foram modificadas por lembranças encobridoras, além de fantasias e sentimentos da vida infantil que foram esquecidos. Para Freud, o paciente atua para não recordar, repetindo sem saber as experiências infantis. Ao dominar a resistências, diminuem as chances de atuar como repetição.

Podemos extrair da leitura de "Observações sobre o amor de transferência" (FREUD, 1915/2010) a dimensão do poder do analista diante desse amor. Em alguns momentos, Freud insiste que, ao responder, o analista pode dominar o paciente e seus impulsos, comprometer o sucesso terapêutico e manipulá-lo a partir de seus próprios afetos. Na medida em que se mantém o amor ao analista, o amor ao saber sustenta a investigação analítica sobre o inconsciente e é o analisando que pode dominá-lo genuinamente.

Em "A questão da análise leiga" (FREUD, 1926/1996), ao retomar aspectos da técnica psicanalítica, lembra que o desejo ambivalente do paciente em se curar está diretamente relacionado com a resistência. Por conseguinte, a relação afetiva que se estabelece com o analista tem a mesma natureza da paixão. Esse amor também se caracteriza pela noção de compulsão à repetição e pode vir a se instalar como neurose de transferência, atuando como resistência. Assim, o analisando repete experiências ou lembranças infantis ao se apaixonar pelo analista e este deve manejar a transferência, sem recuar diante do amor e da resistência.

 

Uma construção, por fim

"Construções em análise" é um dos últimos trabalhos de Freud (1937/1996), em que ele defende a análise como uma construção composta por fragmentos incluídos pouco a pouco, ora quando o analista faz uma comunicação a respeito do que foi dito em associação livre pelo paciente, ora quando este elabora. Compara o trabalho psicanalítico ao dos arqueólogos que cavam objetos destruídos para compreender a história. A diferença é que o material inconsciente, embora possa se apresentar fragmentado, é vivo na memória quando o paciente recorda alguma experiência ou sentimento recalcado, diferente dos achados arqueológicos que estão destruídos.

A diferença colocada entre interpretação e construção é que a primeira se restringe a um material específico, como sonho ou associação; a outra remonta toda a história que não é recuperada de uma vez, mas gradualmente até o término da análise. Freud lembra que não é possível garantir veracidade às construções e, por isso, se suas construções tiverem efeitos quer dizer que funcionaram, mesmo que o analista cometa equívocos. Se o paciente as aceita ou nega não quer dizer que corresponde à sua verdade psíquica, pois pode variar conforme o tipo de transferência estabelecida. Outros indícios a posteriori confirmam a construção. É interessante notar que Freud coloca o analista em questão na análise, inclusive seu saber sobre o analisando.

Entendemos que o texto trata da construção do saber na análise, instituído com base nas recordações das experiências infantis que se tornam vívidas com o processo. E mais, um saber também do lado do analista que faz apostas a cada nova resistência interpretada ou comunicação realizada.

Sendo assim, a compulsão de repetir do paciente apontado nos artigos da técnica pode ser transposta para a compulsão à repetição da pulsão. Ora, se a compulsão de repetir visa aumentar as resistências, portanto, proteger as lembranças recalcadas, a análise não implica um desvio pulsional? A pulsão de saber fracassada, e em parte recalcada na infância, retorna ao operar uma busca de respostas que, na análise, dão mais sentido aos sintomas.

O que sustentamos é que tanto nas discussões epistemológicas em torno da cultura, quanto nas discussões clínicas, destaca-se da obra freudiana um saber inconsciente do sujeito que busca respostas para suas as questões fundamentais tanto na vida cotidiana como na clínica. O analista, na sua prática, produz saber: a psicanálise é, ao mesmo tempo, tratamento e pesquisa, e as discussões sobre a ciência e a religião acabam por colocar a própria pesquisa como obrigação ética do analista, em sua participação na cultura. Ao mesmo tempo, a teoria da técnica aponta que o analista deve abster-se desse saber, de modo que o analisando possa retornar ao ponto de fracasso de suas pesquisas sexuais infantis, a partir de onde poderá relançar seu próprio desejo de saber.

Considerar uma pulsão de saber própria do sujeito é reconhecê-la por meio do que Freud propôs como interesses da psicanálise, ou seja, a cultura e a clínica. Seu aparecimento na primeira infância se perpetua, como demonstramos, e é notada nas buscas incessantes dos homens por novas perguntas. Assim, construções de saber são realizadas pelo homem durante sua existência, tanto individualmente quanto como civilização. É dessa forma que, no pós-escrito "Autobiografia", Freud (1925/2011, p. 137) justificará a inflexão cada vez maior de sua obra clínica em direção à cultura:

Cada vez mais claramente percebi que os acontecimentos da história da humanidade, as interações entre natureza humana, evolução cultural e aqueles precipitados de experiências primevas (dos quais a religião é o maior representante) são apenas o reflexo dos conflitos dinâmicos do Eu, Id e Supereu que a psicanálise estuda no ser humano individual, os mesmos processos, repetidos num cenário mais amplo.

A pulsão de saber resiste ao tempo, à história e à evolução cultural; é intrínseca ao homem e o coloca em movimento, que podemos entender cíclico, pois a cada nova resposta, surgem novas perguntas, novos acontecimentos e até novos conflitos. A explicação é que as perguntas fundamentais sobre a origem e sobre o sexo não cessam. São recolocadas sempre para cada um, como experiência subjetiva das questões sobre sua própria origem e seu próprio sexo.

Concluímos, deste modo, que a psicanálise, seja em sua vertente de produção teórica, seja em sua vertente de prática clínica, promove uma nova inflexão quanto às relações do sujeito com o saber, na medida em que revela aí o papel do desejo.

 

Referências

FREUD, S. (1905). "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 119-217.

__________. (1927). "O futuro de uma ilusão" In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 13-63.

__________. (1912a). "A dinâmica da transferência" In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 133-146.

__________. (1912b). "Recomendações ao médico que pratica a psicanálise" In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 147-162.

__________. (1913). "Sobre o início do tratamento" In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 163-192.

__________. (1914). "Recordar, repetir e elaborar" In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 193-209.

__________. (1915). "Observações sobre o amor de transferência" In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 210-218.

__________. (1930). "Mal-estar na civilização" In: Obras completas de Sigmund Freud – v. XVIII. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 13-122.

__________. (1933). "Acerca de uma visão de mundo" In: Obras completas de Sigmund Freud – v. XVIII. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 321-354.

__________. (1925). "Autobiografia" In: Obras completas de Sigmund Freud – v. XVI Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011, pp. 75-167.

__________. (1937). "Construções em análise" In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996 pp. 275-287.

__________. (1926). "A análise leiga" In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 175-248.

LACAN, J. (1959-60). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Daniel Menezes Coelho
E-mail: daniel7377@gmail.com

Esther Maynart Pereira Mikowski
E-mail: esthermikowski@uol.com.br

Recebido: 25/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Professor Associado I da Universidade Federal de Sergipe e Professor Permanente do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe.
** Psicóloga, psicanalista. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe. Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e Membro do Projeto Freudiano.
1 Nomeamos como sistema o conjunto das áreas abordadas por Freud para discutir o tema: arte, religião, filosofia, anarquismo e marxismo.
2 Tomamos emprestado o neologismo criado por Lacan para tratar de algo do sujeito que ao mesmo tempo lhe é íntimo e exterior, algo "como sendo esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa" (LACAN, 1959-60/1991, p. 173), grifo nosso.

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