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Stylus (Rio de Janeiro)

versión impresa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro nov. 2016

 

PSIQUIATRIA NA ATUALIDADE

 

Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico: novos modos de subjetivação

 

Psychiatric epistemology and pharmaceutical marketing: new modes of subjectivation

 

 

Nelson da Silva Junior*

Universidade de Sâo Paulo. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia
Instituto Sedes Sapientiae. Departamento de Psicanálise
Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se aqui de examinar o modo como a "epistemologia" convencionalista e "ateórica" do DSM vem ao encontro, se articula e se insere nas novas gramáticas da produção de consumo do marketing. Com efeito, a insularização do sofrimento em torno dos sintomas e o princípio convencionalista da classificação das doenças se constituíram em uma parte perfeitamente ajustada ao que é almejado pelos profissionais de marketing: uma história única estruturada em torno da descrição de um problema e sua solução. O desenvolvimento de uma epistemologia duplamente flexível na nomeação de entidades nosográficas permite que ela se adapte tanto às descobertas de novos medicamentos, fornecendo retroativamente a eles suas "doenças", quanto que ela desestigmatize sofrimentos a partir de deslocamentos dos critérios de normalidade. Dessa narrativa, o sujeito está excluído apenas como responsável, pois sua participação como consumidor é essencial. A formação do sujeito nessa nova função implica o estabelecimento dos novos "jogos de verdade" do marketing farmacêutico.

Palavras-chave: Epistemologia, Modos de subjetivação, Marketing farmacêutico, Consumidor.


ABSTRACT

The aim of the article is to examine how DSM's conventionalist and "a-theoretical" epistemology meets, articulates, and inserts itself in the new grammars of the consuming production of marketing. Indeed, the insularization of suffering around the symptoms and the conventionalist principle of disease classification of diseases have become a perfectly adjusted part to what is desired by marketing professionals: a single story structured around the description of a problem and its solution. The development of a double flexible epistemology about nominating nosographic entities allows it to adapt to both the discoveries of new drugs, providing retroactively to them their own "diseases", as well as the possibility to de-stigmatize sufferings through the displacement of the criteria of normality. In this narrative, the subject is excluded only as the responsible person, once his participation as a consumer is essential. The formation of the subject to assume this new function implies the introduction of the new "games of truth" of the pharmaceutical marketing.

Keywords: Epistemology, Modes of subjectivity, Pharmaceutical marketing, Consumer.


 

 

Introdução

Em seu texto Toward a new epistemology of psychiatry, Berrios e Marková (2015) sublinham o aspecto de intermediação incontornável da linguagem e da cultura na expressão e na morfologia dos sintomas psiquiátricos assim como em sua interpretação pelo psiquiatra no diagnóstico. Esta posição se coaduna com aquela de outros filósofos, como Hacking (2002), Foucault (1972) e Deleuze e Guattari (1976), entre outros, para quem a clínica psiquiátrica não é apenas uma mera modalidade específica, aplicada aos comportamentos da clínica médica em geral, que se organiza a partir do princípio que todo sintoma é sempre e apenas uma expressão de um fator causal localizável no organismo. Doenças com causas orgânicas, como a hipertensão ou o diabetes, produzem sintomas fixos, ou seja, expressões relativamente padronizadas e independentes do tempo e local onde vivem os doentes. Há, é bem verdade, variações destas expressões entre indivíduos, grupos etários, gêneros e grupos étnicos, mas tais tendências estão pouco sujeitas à determinação simbólica de suas culturas no caso das doenças da clínica médica. Não é o caso da psiquiatria, em que a expressão individual dos sofrimentos psíquicos é altamente definida pela história pessoal e sua narração, pela linguagem e cultura à qual pertence o sujeito; e na qual a teorização causal dos sofrimentos parece sempre inquietantemente sujeita a moralidades locais, frequentemente tomadas como universais, por parte dos clínicos (DUNKER, 2015). Foucault, por exemplo, demonstra a construção do saber psiquiátrico como indissociável da instauração da forma disciplinar de dominação, ao lado de outras formas de saber sobre o homem, como é o caso da pedagogia. Em resumo, no caso da psiquiatria, não apenas a expressão dos sofrimentos psíquicos, como também a forma de conhecê-los e conceitualizá-los está condicionada historicamente às culturas.

Em outras palavras, tanto o paciente quanto o médico organizam seus discursos sobre o sofrimento partindo de formas prévias de um saber sobre a alma e suas relações com o corpo. Contudo, notemos que, diferentemente das culturas tradicionais, nas quais os processos de significação se organizam de modo relativamente espontâneo, a cultura contemporânea se organiza desde meados do século XX a partir de uma profunda articulação com processos econômicos. Os valores, os ideais de saúde e as moralidades, neste caso, serão expressão não apenas de uma lenta maturação local da cultura e da linguagem em torno dos sofrimentos da alma e do corpo, mas também produções instrumentais de natureza cultural que possuem sua razão de ser na função que exercerão como peças de uma cadeia fechada que vai da produção ao consumo. A cultura de massa, a indústria cultural (HORKHEIMER; ADORNO, 1985) são conceitos-chave para a compreensão de como a expressão, os desejos dos sujeitos são uniformizados de modo a que estes possam se inserir na lógica de consumo. É bem conhecido como a indústria cultural funciona no direcionamento e inserção dos desejos na gramática do consumo (SILVA JUNIOR; LIRIO, 2005). Mas, seriam os sofrimentos igualmente articuláveis nessa gramática mercantil, tais como os desejos? Portanto, por um lado cabe investigar os modos pelos quais a lógica capitalista modifica a morfologia, a expressão e a interpretação que os sujeitos fazem de seus sofrimentos; e por outro, como esta lógica tende a organizar o modo como tais sofrimentos se traduzem conceitualmente em sintomas psiquiátricos.

 

Novos modos de subjetivação

Uma inquietante cena da clínica psicanalítica ilustra bem a pregnância de uma nova modalidade de nomeação do sofrimento a partir dos próprios sujeitos. Vejamos uma vinheta clínica particularmente instigante:

Clara é uma mulher bonita, de quarenta e poucos anos, encaminhada para a análise por sua psiquiatra. Ao sentar-se na poltrona para a primeira entrevista, declara, como quem oferece um cartão de apresentação: "– Sou bipolar". O silêncio que se segue parece esperar uma confirmação do analista, algum sinal de que este sabe do que ela está falando, antes de poder continuar. Diante da ausência deste sinal de entendimento prévio, ela finalmente dá início a uma narrativa: está divorciada, é mãe de dois filhos, já fez uma análise, inicialmente motivada por uma depressão quando foi morar aos 17 anos no exterior, onde fez faculdade e conheceu seu marido.

O modo de Clara se apresentar é particularmente comum. Tais formas de autonomeação são transnosográficas. Neuróticos obsessivos, histéricas, borderlines, deprimidos e psicóticos frequentemente evocam um diagnóstico fechado, como quem descreve uma informação complementar, mas essencialmente exterior à análise. Tais modos discursivos, isto é, o estabelecimento de identidades a partir de discursos fundados sobre saberes, constituem o foco dos trabalhos de Michel Foucault, particularmente naquilo que ele nomeou como "modos de subjetivação".

Sob este sintagma "modos de subjetivação", Foucault define, em primeiro lugar, que estes são equivalentes a modos de objetivação do sujeito (FOUCAULT, 1994, p. 223). Os sujeitos se constituem ao se assumirem como objetos de um saber ou poder, nomeados por Foucault como formas de saber, ou jogos de verdade. Os jogos de verdade definem as condições segundo as quais um discurso pode ser considerado verdadeiro ou falso, aceito ou excluído (práticas de segregação como em História da loucura, Nascimento da clínica, Vigiar e punir) e o modo como um sujeito se torna um sujeito moral (como em História da sexualidade e Hermenêutica do sujeito).

Tais sujeitos parecem se apresentar sem perguntas sobre si, que partem do princípio que a própria fala é supérflua: "Sou deprimido", "sou bipolar" ou "tenho pânico" são sentenças que não raro inauguram uma primeira entrevista. Parecem também pouco interessados em qualquer fala do analista que não confirme a resposta que já têm sobre si. Tal indiferença ao saber inconsciente e ao seu deciframento parece, com efeito, ser uma das tendências do modo de subjetivação pós-moderna (ASKOFARÉ, 2013, p. 85). Estamos, portanto, diante de uma realidade social que afeta a economia psíquica dos sujeitos, suas estruturas de gozo e sofrimento segundo uma modalidade específica. Os novos jogos de verdade que sustentam os modos de subjetivação atuais parecem assim afetar a potência enunciativa dos sujeitos mais do que suas "estruturas". Este parece ser o efeito mais visível sobre o psiquismo e sua expressão do sofrimento, a saber, o progressivo silenciamento do sujeito da enunciação pelo sujeito do enunciado.

Não é este o caminho que será explorado aqui. Nosso caminho será o de examinar a relação da racionalidade diagnóstica que sustenta tais modos de subjetivação e racionalidade. Tal racionalidade diagnóstica, como veremos, é, por um lado, pautada por uma compreensão organicista e convencionalista das patologias. Por outro lado, ela é disseminada na cultura por meio da media e seus recursos de persuasão e produção do consumo, mais particularmente aqueles do marketing farmacêutico.

 

O sujeito do desejo nos tempos do marketing

O marketing é uma invenção do século XX, e sua finalidade é persuadir os sujeitos ao consumo, independentemente de suas necessidades. Gostemos ou não, a psicanálise não está isenta desta história. Em 1909, Freud e seus discípulos haviam deixado uma forte impressão sobre o meio médico dos Estados Unidos com a apresentação de uma teoria racional sobre os processos irracionais da alma, demonstrando a presença desses processos irracionais no cotidiano (HALE, 1971, 1995, apud ILLOUZ, 2006). Considerar as emoções como realidades em si, fora das categorias do pensamento moralizante, não era mais algo impensável. A literatura e as revistas femininas haviam popularizado este novo saber sobre o espírito apresentado pela medicina e um discurso sobre a interioridade começava a tomar a cena pública desse país (ILLOUZ, 2006; MILNITZKY, 2006; WATTERS, 2010).

Uma figura-chave na instituição prática e constituição teórica do marketing foi Edward Bernays, sobrinho de Freud e Marta Bernays. Apoiando-se na teoria psicanalítica, Bernays lançou as bases da manipulação simbólica como instrumento do consumo das massas (CASTRO, 2013). Bernays define sua ciência como uma "engenharia do consentimento", isto é, como "arte de manipular as pessoas", e defende que esta era uma forma de proteção da democracia, uma vez que as massas eram "fundamentalmente irracionais" e em cuja opinião "não se poderia confiar". Não é uma surpresa sua participação ativa por várias décadas no Committee for Public Information, órgão estatal do governo norte-americano para manipular a opinião política das massas com base na tecnologia desenvolvida no marketing.

Assim, em meados dos anos 1920 nasceu nos Estados Unidos um novo campo de estudos, chamado "economia de consumo". Este campo desenvolveu novas técnicas na economia, como o crédito pessoal, e principalmente a publicidade, que deveria descobrir e explorar o poder da carga simbólica dos produtos. Charles Kettering (1929), engenheiro da General Motors e inventor de mais de três centenas de patentes em vários domínios, foi um dos primeiros a capturar o núcleo do que iria então se tornar a máxima da ciência do consumo: "A chave da prosperidade econômica", dizia ele, "é a criação de uma insatisfação organizada" (apud RIFKIN, p. 42).

Supomos que o sujeito atual ocupa seu lugar neste discurso, e vimos acima que um dos efeitos retroativos desta ocupação parece ser a supressão de um saber do inconsciente em seu discurso. Este lugar, pensado como estruturas da linguagem, foi nomeado por Foucault de modos de subjetivação. Em seguida, retomamos a gramática de persuasão e direcionamento dos desejos sob a tutela da engenharia do consentimento com fins lucrativos. Vejamos agora como tais modos de subjetivação se constroem. Em outras palavras, se há "estética", uma forma de recepção, os sujeitos que a incorporam e que propagam seus efeitos ontológicos; há também uma "poética" da racionalidade diagnóstica, ou seja, uma produção discursiva desta. Ocorre que esta poética colocou-se a serviço de uma lógica capitalista, da qual dificilmente pode hoje se diferenciar.

 

A associação da nova epistemologia psiquiátrica ao marketing

Não se trata de examinar aqui a hipótese de que o sistema DSM tenha sua origem em vista de uma reconstrução planejada da nosologia psiquiátrica em torno de uma nosografia, de modo a servir mais facilmente ao projeto de exploração mercantil dos afetos pelas indústrias farmacêuticas. Independentemente de sua origem no mercado ou no projeto de cientificação radical da psiquiatria a partir do empiricismo lógico de Hempel (1994), fato é que são inegáveis a influência extensiva e o direcionamento do mercado nesta nova nosografia classificatória. Trata-se, sim, de examinar e eventualmente isolar o modo como a "epistemologia" convencionalista e "ateórica" do DSM vem ao encontro, articula-se e se insere nas novas gramáticas da produção de consumo do momento neoliberal.

De fato, talvez um dos exemplos mais claros de como a ciência atual passa a ser redefinida pelos interesses do mercado seja aquele da recente história da psiquiatria. Para tanto, notemos que a psiquiatria operou uma verdadeira revolução baseada em duas ordens de acontecimentos: o primeiro na clínica, e o segundo em sua teoria. Em primeiro lugar, a partir dos anos 1950, o desenvolvimento de uma tecnologia de medicamentos finalmente eficaz no controle dos efeitos das depressões graves permitiu uma eficácia clínica inédita para a psiquiatria. De fato, após praticamente 200 anos de desconfortável restrição à descrição e taxonomia das doenças – incluindo aqui uma breve associação com a psicanálise que fornecia uma estrutura causal e um tratamento coerente com esta, mas que a excluía do princípio de causalidade orgânica partilhado por toda a medicina – os primeiros antidepressivos representaram as primeiras conquistas capazes de legitimar efetivamente a psiquiatria no campo da clínica médica.

O segundo acontecimento ocorreu a partir da surpreendente reorientação epistemológica na ideia de diagnóstico, reorientação com efeitos radicais na produção de conhecimento da teoria psiquiátrica. Esta reorientação se deu novamente em duas frentes, a saber: o abandono de uma pretensão de compreensão etiológica na elaboração do diagnóstico, e a adoção de critérios convencionalistas para a definição do caráter patológico ou não de um fenômeno. Com relação à primeira frente, a história dos manuais das séries DSM e CID demonstra um progressivo abandono do ponto de vista causal e a paulatina adoção de critérios pragmáticos e convencionalistas de diagnóstico e tratamento das doenças mentais. Tal reorientação epistemológica, que exige da psiquiatria seu distanciamento de uma nosologia crítica e reflexiva em nome de uma nosografia purificada de quaisquer hipóteses, buscou oferecer critérios exclusivamente empíricos, fundados na presença ou ausência de sintomas, para o diagnóstico das doenças, incluindo aqui a quantidade destes e a duração para a atribuição de um certo diagnóstico.

Em sua segunda frente, a revolução epistemológica do DSM se assume como essencialmente convencionalista com respeito à divisão entre o normal e o patológico. Em outras palavras, os critérios que definem a presença ou ausência de uma doença são essencialmente abertos às discussões entre a comunidade científica e a comunidade. Por exemplo, após as críticas recebidas pela comunidade de médicos gays californianos, rapidamente a equipe do DSM redefiniu o diagnóstico para homossexualidade. A homossexualidade como condição psiquiátrica, que era até então simplesmente definida como uma orientação sexual patológica de parceiros do mesmo sexo, passou, na edição seguinte do manual, a ser definida como um diagnóstico psiquiátrico possível apenas nos casos em que esta orientação era "ego-distônica", isto é, conflitante com o ego do paciente.

Retomando: a primeira alteração na epistemologia da psiquiatria faz coincidir a doença com o sintoma e tende a tornar obsoleta a preocupação com sua causa; a segunda, por sua vez, coloca entre parênteses a ideia mesma de "doenças", razão pela qual o termo foi substituído por aquele de "transtornos", evitando assim a forte carga moral do primeiro. Tais alterações quanto à etiologia e quanto ao caráter convencionalista do diagnóstico foram as condições de base que permitiram à psiquiatria um salto para além das fronteiras da medicina tradicional, a saber, um salto para a indústria do consumo, numa bem-sucedida joint venture acadêmico-empresarial (PIGNARRE, 2003; BLECH, 2005; LANE, 2007; WHITAKER, 2014). Elas permitiram uma adequação perfeita às novas necessidades do marketing farmacêutico.

Com efeito, um dos resultados mais salientes desta joint venture – que não restringe à psiquiatria, evidentemente, mas atinge várias especialidades médicas – tem sido a progressiva redefinição dos sofrimentos normais como algo da ordem de uma patologia. As pessoas normais representam uma fatia inexplorada de consumidores potenciais de medicamentos. Para que este mercado seja conquistado, basta que sejam convencidos que estão ou que correm sérios riscos de ficarem doentes (CASSELS; MOYNIHAM, 2006). Atualmente, inúmeros profissionais de marketing, revistas e associações empresariais se especializaram no marketing farmacêutico. Vince Parry, em The art of branding a condition (2003), um artigo cuja função é naturalmente também a de divulgar a eficácia de sua empresa de marketing nas indústrias farmacêuticas, resume em três estratégias o modo como sua arte procede: 1. Aumentar a importância de uma doença; 2. Redefinir uma doença já existente, de modo a diminuir o preconceito em torno dela; e 3. Desenvolver uma nova doença de modo a construir o reconhecimento para uma necessidade não atendida pelo mercado. Claro está que tais estratégias implicam renomeações dos quadros afetivos, e eventualmente sua classificação como patológicos.

Notemos que o termo branding refere-se tradicionalmente à identidade de um produto ou serviço, de modo a diferenciá-lo de seus concorrentes. No caso das doenças, explica Vince Parry, o processo é mais complexo, pois seu branding visa conseguir um consenso que mantenha gerenciadores de marcas, clínicos e pacientes "focados em uma única história com estrutura de problema/solução, fechadura e chave" (PARRY, 2003, p. 44). O branding de uma doença envolve, portanto, a criação de uma narrativa completa: inicia com a nomeação de um desconforto, aponta para sua causa e apresenta uma solução eficaz. Esta narrativa deve atingir uma série de públicos muito heterogêneos entre si, desde as "indústrias farmacêuticas, grupos de suporte, formadores de opinião e consumidores; e o esforço precisa se coordenado com múltiplas agências de comunicação, nos campos do branding, propagandas, educação e publicidade" (Ibid.).

Seus exemplos são o Transtorno do pânico, cujo branding, particularmente eficaz, deslocou muitos pacientes dos cardiologistas para os psiquiatras, assim como o Transtorno disfórico pré-menstrual, cujo tratamento é realizado com o mesmo princípio ativo do Prozac, a fluoxetina. Nesse último caso, o problema inicial era que o Prozac era associado pelo público feminino a transtornos mentais, o que causava uma rejeição ao medicamento. Assim, devidamente new branded, o fabricante de Prozac lançou o mesmo princípio ativo no mercado, mas sob nova embalagem estampando girassóis, mulheres bonitas, com pílulas de cor lavanda e outro nome: Safarem.

Cabe refletir sobre como os dois avanços epistemológicos acima mencionados da psiquiatria, a saber, uma nosografia ateórica e convencionalista, adotada pela série DSM, foram revoluções teóricas que a prepararam para uma articulação particularmente eficaz com esse novo nível de complexidade atingido pelo marketing farmacêutico. De fato, mais facilmente do que seria possível em qualquer outra especialidade médica, o pressuposto de uma coerência interna pode deixar de orientar na psiquiatria a observação clínica e a dedução hipotética dos processos autônomos que constituiriam a doença no sujeito. Sendo uma especialidade profundamente definida pela linguagem e pela cultura, é também possível para a psiquiatria alterar mais livremente suas entidades clínicas. Ora, na nova nosografia ateórica do DSM, o pressuposto etiológico, sua hipótese causal, que daria unidade à doença, tende a ser substituído pelos efeitos de novas drogas sobre o comportamento. A relação entre o princípio ativo e seus efeitos no comportamento assume a função de unificar a entidade em questão. A narrativa problema/solução visada pelo marketing entra aqui em acordo com esta nova epistemologia inversa, uma vez que a o "problema" passa a ser criado a partir de sua solução, conforme a terceira estratégia descrita por Parry. Nesse sentido a epistemologia ateórica do DSM inverte a ordem entre o processo de produção de conhecimento e aquele de ação terapêutica vigente até então: em vez de esperar passivamente as doenças surgirem, serem descritas, tornarem-se objeto de hipóteses, experimentos e serem submetidas a sucessivas tentativas terapêuticas, com sua nova "epistemologia" da psiquiatria passa a definir as patologias de sua competência de um modo a posteriori, nachträglich, poderíamos dizer, organizando-as em torno dos agrupamentos de sintomas que desaparecem sob a ação de drogas com ação neuroquímica. Uma chancela mútua ocorre nesse processo narrativo problema/solução: o medicamento chancela a unidade da patologia e a patologia chancela a eficácia do medicamento.

Isso permite que novas formas de sofrimento sejam concebidas como formas de adoecimento e incorporadas na lógica de renomeação mercantil, numa duvidosa articulação do campo da cultura com o campo da indústria farmacêutica das drogas psicoativas. Para tanto, o sofrimento psíquico cotidiano exige uma série de modificações da linguagem, dos sujeitos, das instituições de saber e da cultura (BOLGUESE, 2004).

Este processo inclui elementos que vão além da mera competência psiquiátrica. A segunda estratégia definida por Parry, a saber a redefinição de uma doença de modo a diminuir o preconceito em torno dela, constitui aquilo que Bolguese em seu estudo sobre a depressão, denomina "banalização" e a "naturalização". A banalização da depressão, por exemplo, visa à crescente popularização dos discursos sobre a depressão no âmbito leigo, assim como uma inflação inusitada do diagnóstico de depressão no âmbito médico como um todo. Com efeito, para além da clínica psiquiátrica enquanto tal, o diagnóstico e o tratamento da depressão são hoje comumente realizados por clínicos gerais, ginecologistas e outros especialistas sem formação psicopatológica específica. Nesse sentido, não apenas a depressão se banalizou, como também o sofrimento psíquico como um todo, que se redefine nesse novo quadro narrativo de modo a desresponsabilizar os sujeitos. O processo de banalização serve a tornar mais confortáveis as trocas entre o paciente e seu médico. Isto foi particularmente importante, por exemplo, na renomeação da "impotência viril masculina" como "disfunção erétil", nome que remete a um problema mecânico em vez da semântica moral presente na palavra "impotência". De fato, se tal banalização está associada a discursos que naturalizam os problemas, isto é, que os apresentam como uma condição "natural" do ser humano, resultante de distúrbios orgânicos, isto visa, em última instância, desvinculá-los do contexto social, bem como da historicidade de seu surgimento. Em última instância, trata-se de suprimir a parcela de responsabilidade do sujeito em seus sofrimentos.

Por meio do marketing, uma Weltanschauung científico-organicista é construída para sustentar a identidade do consumidor das drogas psicoativas longe do campo semântico e histórico que está implicado no sofrimento. Esta Weltanschauung, ao des-significar o sofrimento qualificando-o como disfunção orgânica, priva o sujeito do sentido do seu sofrimento como forma de reação aos acontecimentos, e, portanto, invalida sua potencialidade crítica na esfera da vida social. Em outras palavras, a des-significação do sofrimento implica necessariamente sua despolitização.

Com efeito, na lógica do discurso que naturaliza o sofrimento, o responsável último pela doença se torna o corpo inerte, o soma, que apresentaria um déficit ou irregularidade deste ou daquele elemento ou processo neurofisiológico. Sua insatisfação, inconformismo e tristeza deixam de ser reações compreensíveis às adversidades de sua existência e passam a significar distúrbios neuroquímicos. Entretanto, nada há a temer, pois como vimos, esta narrativa é fechada: com o problema, ela apresenta sua solução, que consiste em informar que a ciência já se encontra suficientemente avançada para resolver tais incômodos, e que há medicamentos específicos para corrigir tais deficiências.

Neste momento o sujeito está preparado para continuar a exercer, também por meio do seu sofrimento, o seu papel "cívico" no mundo do capitalismo, aquele de consumidor. Contudo, o trabalho de recodificação não termina aqui, já que um novo problema se coloca, aquele de conquistar a fidelidade deste novo consumidor. Tal fidelização não é simples, contudo, pois ela depende de manter esse consumidor ativamente interessado em seus problemas. Como será então que outras competências do marketing serão convocadas a atuar? Assim, entre outros elementos que constituem um quadro semântico de extrema coerência, o marketing farmacêutico não hesita em apresentar a alegria, o sono ou a ereção como um estado à mão, passível de ser obtido pela medicação a qualquer momento e por toda a vida. A cada momento um novo desconforto, ou uma "nova causa, recém-descoberta pela ciência de ponta" substituirão os antigos sofrimentos e soluções. A manutenção de um processo virtualmente infinito de renomeação de grupos de sintomas permitirá, nesse sentido, numa inquietante importação de uma das estratégias mais eficazes do marketing de produtos de consumo, aquela da obsoletização programada, tendo condições de fornecer sempre o perfeito consumidor para a indústria farmacêutica.

 

Conclusões: Modos de subjetivação na era da psiquiatria classificatória

Ao dar exemplos de sua terceira estratégia de branding doenças, aquela de desenvolver uma nova doença a partir de seu tratamento, Parry menciona, com efeito, a grande abertura conceitual que caracteriza a psiquiatria, uma vez que, diferentemente de outros campos da medicina, suas "doenças são raramente baseadas em medidas de sintomas físicos" (PARRY, 2003, p. 46). Com uma sinceridade desconcertante, Parry defende que o crescente volume de doenças elencadas nas sucessivas edições do DSM não deve ser entendido como um aumento exponencial de doenças psíquicas, mas como resultado da "fragmentação dos problemas nas partes que o compõem, de modo a fornecer uma melhor avaliação das formas de tratamento. Não é surpresa que muitas destas novas doenças tenham surgido por meio de financiamentos diretos de indústrias farmacêuticas junto à pesquisa, publicidade ou ambas" (Ibid.).

Se por um lado, a psiquiatria adquiriu um maior poder terapêutico apoiada nos avanços da neurofisiologia e neuroquímica, por outro lado, a insularização do sofrimento em torno dos sintomas e o princípio convencionalista da classificação das doenças se constituíram em uma parte perfeitamente ajustada ao que é almejado pelos profissionais de marketing: uma história única estruturada em torno da descrição de um problema e sua solução. O desenvolvimento de uma epistemologia duplamente flexível na nomeação de entidades nosográficas permite que ela se adapte tanto às descobertas de novos medicamentos, fornecendo retroativamente aos mesmos suas "doenças", quanto desestigmatizando sofrimentos a partir de deslocamentos dos critérios de normalidade. Dessa narrativa, o sujeito está excluído apenas como responsável, pois sua participação como consumidor treinado é imprescindível para que o processo funcione. Diferentemente do capitalismo tradicional, focado no processo que vai da produção ao consumo, estamos já em uma nova versão do capitalismo, que parte do consumo e dos consumidores e pensa a produção em função destes. Cabe ao consumidor estar atento aos próprios estados e desconfortos, assim como buscar constantemente novas classificações nas quais seu "caso" possa ser objetivado, compreendido e tratado. A formação do sujeito nessa nova função implica o estabelecimento dos novos "jogos de verdade" do marketing farmacêutico. Compreende-se assim a naturalidade com a qual alguém pode hoje se nomear: "Sou bipolar".

 

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Endereço para correspondência
Rua Borges Lagoa, 908 apto. 214
CEP 04038-002 – São Paulo (SP)
E-mail: nesj@usp.br

Recebido: 24/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Psicanalista, Doutor pela Universidade Paris VII. Professor Livre Docente e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, juntamente com Christian Dunker e Vladimir Safatle. Autor dos livros: Le fictionnel en psychanalyse. Une étude à partir de l'œuvre de Fernando Pessoa. (Villeneuve d' Asq: Presses Universitaires du Septentrion, 2000), e Linguagens e Pensamento. A lógica na razão e desrazão, (Casa do Psicólogo, 2007).

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