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Stylus (Rio de Janeiro)

versión impresa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.34 Rio de Janeiro enero/jun. 2017

 

TRABALHO CRÍTICO COM OS CONCEITOS

 

A força assertórica dos valores sexuais

 

The assertive force of sexual values

 

 

Leonardo Pimentel

 

 


RESUMO

A psicanálise trouxe significantes questões relacionadas à diferença sexual e às posições sexuadas ao longo de sua história. Em 1933, Freud chega à incrível conclusão de que é impossível conceder significados novos e acabados para os termos "homem" e "mulher". E nos anos 70, Lacan aprofunda esta posição definindo-os como valores, valores sexuais. Esta caracterização não é óbvia, indo além do mero sentido de "possibilidades", porque está diretamente ligada à ideia de Gottlob Frege a respeito dos valores veritativos. Portanto, o autor propõe uma discussão sobre a ideia lógica de valor em comparação à ideia lacaniana de valor sexual; e para tanto, assenta seu argumento no conceito de semblante.

Palavras-chave: Lacan; Frege; valor; sexualidade; semblante.


ABSTRACT

Psychoanalysis has brought significant issues pertaining sexual difference and sexual positions throughout its history. In 1933, Freud comes to the astounding conclusion that it is impossible to give new and thorough meanings to the terms "man" and "woman". And in the 70s, Lacan will further this position by defining them as values, sexual values. This characterization is not obvious, going beyond the meaning of "possibilities", because it is directly linked to Gottlob Frege's idea of truth value. Therefore, the author proposes a discussion about the logic idea of value in comparison to the lacanian idea of sexual value; and to do so, he bases his argument on the concept of semblant.

Keywords: Lacan; Frege; value; sexuality; semblant.


 

 

Lacan se considerava um autor cristalino. Esta é uma ideia um tanto curiosa. Seu estilo excêntrico, laborioso e, por vezes, de um gongorismo árduo, provocou no meio psicanalítico a criação de um dialeto bem particular com seus aforismos próprios, comumente repetidos em bloco. Em vez desta direção sintética, tomaremos uma analítica. Gostaríamos de propor aqui alguns desdobramentos a partir de uma breve passagem que data de 1971, da terceira aula do seminário... ou pior.

Nela, Lacan (1971-72/2011, p. 39) se exprime assim: "O homem, a mulher, é isto que chamamos de valores sexuais. Que exista, de início, o homem e a mulher é um negócio de linguagem". Não é de se admirar que, com a obscuridade dos símbolos matemáticos que se seguem e com as complicadas ilações lacanianas, esta seja uma passagem pouco comentada. Entretanto, acreditamos que a partir dela possamos compreender melhor a tese de que os lados quânticos são posições no discurso, e também retirar daí uma preciosa articulação a respeito do caráter das identidades sexuadas.

À primeira vista, poderíamos relacionar os valores sexuais ao gênero gramatical dos substantivos, ao fato de que na língua francesa - e na portuguesa - existem dois, e apenas dois gêneros.1 Lacan (1971-72/2011) chega a indicá-lo quando afirma que estes são valores "recebidos" a partir de todo idioma. É nítido que a língua portuguesa promove uma separação simbólica de dois lugares; o português herdou este modo de classificação do latim vulgar, de quem é filho. Gênero, em latim genus, quer dizer "classe" e não tem, a princípio, nenhuma conotação sexual, como se pode ver nas línguas com um só gênero, como o persa.

Este gênero gramatical nada tem a ver com o gênero sexual simbólico, isto é, com a ideia de uma classificação especificamente sexual para os seres, pois mesmo nas línguas com um só gênero, como o estoniano, um substantivo pode ser acompanhado ou modificado por um determinante masculino ou feminino, criando assim uma separação mais evidente do objeto referido. O estoniano, que possui apenas o gênero neutro, conta com certos nomes de profissões formados por sufixação: do verbo ōpetama ("ensinar"), forma-se ōpetaja ("professor/a"). Contudo, como demonstram alguns linguistas (HELLINGER; MOTSCHENBACHER, 2015), neste idioma ainda persiste uma derivação indicativa de gênero, como no caso da palavra kuningatar (rainha), formada por sufixação,-tar, a partir do substantivo kuningas (rei).

Os valores recebidos pela língua são independentes do gênero gramatical, e podem, ou não, se expressar por meio dele. Mesmo que em estoniano os substantivos possam ter gênero sem identificação sexual, ainda assim existem os substantivos mees e naine, "homem" e "mulher", como pontos de ancoramento referencial. Contudo, para além da disjunção entre os morfemas de gênero da língua e os sexos, gostaríamos de chamar a atenção para a seguinte pergunta: por que Lacan chama "homem" e "mulher" justamente de valores?

Avançaremos uma hipótese, uma relação com a lógica. Mas antes, precisamos situar a posição de Lacan a respeito da diferença sexual. No início dos anos 70, ela está centrada na ideia dos semblantes sexuais. Repitamos o que Lacan disse no Se minário, livro 18: "O caráter essencial [dos sexos...] não tem nada a ver nem com um nível celular, seja ele cromossômico ou não, nem com um nível orgânico [...], é, a saber, um nível etológico. Este nível é propriamente aquele de um semblante" (LACAN, 1971/2007, p. 32).

A noção de semblante é bem espinhosa, e para não usar e abusar do lacanês, retomaremos seu exemplo paradigmático, segundo Lacan: o arco-íris. Ele é, mais propriamente, um fenômeno visual. O arco-íris não existe na realidade objetiva, sendo um produto da conjunção dos raios refratados nas pequenas gotas de água (Figura 1). Se pudéssemos ver abaixo do horizonte, descobriríamos que ele não é um arco, mas um círculo, a borda de um cone que tem em seu centro o observador. Isto implica que cada pessoa vê um arco-íris diferente, ali onde não há nada. Ele é uma formação retiniana que, por afetar outros observadores próximos, cria a impressão de um arco-íris único na realidade externa, mas seu referente não existe. Esta é a caracterização lacaniana do semblante.

 

 

Também não existe referente para o sexo. Diz Lacan (1970/2003, p. 206): "No inconsciente; o homem não sabe nada da mulher, nem a mulher do homem". Além disso, nem os sujeitos sabem o que é ser homem ou mulher, e os divãs estão repletos desta pergunta histérica. Há muito, Freud (1933/2011) se rendera ao fato de que a psicanálise não podia trazer nenhum conteúdo novo para estes termos; e, na tentativa de buscá-lo, o sentido de "homem" e "mulher", acabou esvaziando-os de todo o conteúdo cultural que tinham herdado, pois não se tratava da anatomia, da polaridade sexual, das identificações edípicas e nem mesmo das escolhas objetais.

Como não se sabe nada sobre o ser homem e o ser mulher, restou aos falantes apenas o parasser, neologismo criado por Lacan (1971-72/2011) a partir do verbo "parecer", modificado pelo prefixo grego παρά, que significa "ao lado". Vejam o caso de "paramédico", ele é uma pessoa que certamente pode ajudar caso haja um acidente, mas ele não é um médico, ele é o que está à côté, algo que não é exatamente aquilo. O parasser evoca a incognoscibilidade do ser, já que este foi perdido pela entrada na linguagem. A linguagem, ao fazer emergir o sujeito, causou a perda de seu referente ontológico; as confusões metafísicas estão aí como testemunhas disso.

Não há o referente para a sexualidade, a psicanálise atesta que ela se apresenta sem tropismos naturais, cheia de suturas sintomáticas; sendo, na verdade, uma construção fantasística diferente para cada sujeito. O semblante sexual é um pa rasser: uma formação subjetiva diante da falta de referência, assim como o arco-íris. Não existe o ser completamente desenvolvido sexualmente, em sua plena genitalidade heteronormativa, portador de uma identidade essencialmente biológica. Cada falasser se constitui com suas pulsões particulares, parciais, e com seus desencontros diante dos objetos; esta é a única sexualidade possível.

Os semblantes sexuais, por estarem sempre à côté, remetem à impossibilidade de definição última do ser homem e do ser mulher. Lacan estava às voltas com isso nos anos 70. Este é um prólogo necessário, pois tentaremos articular esta falta de referente do semblante sexual com alguns conceitos da lógica fregeana.

Gottlob Frege foi outro autor "cristalino". Inclusive, acredita-se que o insucesso junto aos seus contemporâneos tenha sido resultado da sua labiríntica Conceito grafia, texto que introduz novas formas gráficas de representação para enunciados lógicos (Figura 2). Este texto, junto com suas outras conceitualizações filosóficas, influenciou Lacan profundamente. Dentre elas, salientaremos uma em específico, a crítica de Frege à teoria correspondencista da verdade, da qual emana sua noção de "valor".

 

 

A lógica era a ciência da verdade, para Aristóteles (2010), era a arte de produzir resultados verdadeiros. O grande problema que atormentou - e ainda atormenta - os filósofos é justamente saber como definir a verdade. A teoria correspondencista defende que a verdade é caracterizada pela coaptação dos enunciados à realidade; isto quer dizer que uma proposição é verdadeira quando corresponde a um fato real. A afirmação "a neve é branca" é verdade, porque existe a neve, e ela é branca. A correspondência, portanto, pressupõe uma imanência ontológica dos fatos.

O problema levantado por Frege é o seguinte: como avaliar esta correspondência? Como descobrir, por exemplo, se uma cédula de dinheiro é verdadeira? Os mais ingênuos diriam: basta compará-la a uma que seja autêntica. Mas como determinaríamos a autenticidade desta, sem compará-la a uma terceira? Este é, portanto, um processo infinito; a verificação da conformidade desencadeia um circuito de correspondências sem fim, pois qualquer referência à verdade exige uma definição prévia de verdade. E, assim, Frege (1997) chega à conclusão de que a verdade é indefinível, o que é bem lacaniano.

Frege se recusa veementemente a qualquer resposta de cunho metafísico e toma a verdade como um valor, um valor referido à força assertiva de uma sentença. Isto significa que é a própria asserção, a própria afirmação, que carrega o valor de verdade para uma determinada relação. Em Conceitografia, seu texto mais conhecido, vocês podem se deparar com o seguinte diagrama:

 

 

Esta é a forma gráfica que Frege assume para a representação genérica de uma asserção universal. Ela se decompõe em duas partes: a primeira é a linha horizontal, chamada de "traço de conteúdo", que exprime o conteúdo conceitual de um juízo. Na proposição universal "todo homem é mortal", o conteúdo conceitual é "ser mortal". A segunda parte é o traço vertical, chamado de "traço de juízo". Nesta conhecida proposição, "todo homem é mortal", o juízo está implícito e pode ser formulado como: "É verdade que... todo homem é mortal".

É a afirmação contida no traço de juízo que confere a uma proposição seu valor de verdade. Mas se vocês o acham desnecessário, pois é evidente que os homens são mortais, considerem o exemplo: "todo centauro tem seis membros". A não ser que alguém afirme isto, seria bem difícil se assegurar da morfologia de um ser mitológico. A verdade está fora de qualquer referência ao mundo dos sentidos; fazer uma asserção pressupõe infundi-la de verdade. Por isso, Frege (1997) considera a verdade como um ato de discurso e como um conceito sui generis, o que significa, literalmente, "de seu próprio gênero".

O que Freud e Lacan afirmam a cada momento, a cada reformulação teórica, com todos os movimentos dialéticos que foram necessários, é que os gêneros, os sexos, são tão indefiníveis quanto à verdade. Homem e mulher não possuem um referente, sendo irremediavelmente separados da assunção biológica e dos constrangimentos socioculturais. Toda a questão dos sexos fica, então, referida ao discurso, referida à bipartição sexual empregada no mundo simbólico. Só existem dois valores sexuais: homem ou mulher, do mesmo modo como só existem dois valores veritativos: falso ou verdadeiro.

E, ao tomar a asserção como forma de conceder verdade à posição sexuada, não nos referimos a uma afirmação consciente, vocálica, disso. Não é dizer "sou homem" ou "sou mulher". A força assertórica dos valores sexuais está na tomada de posição inconsciente no discurso, definida pela posição subjetiva diante da castração. Os "homens" seriam aqueles submetidos integralmente à norma fálica, enquanto que as "mulheres" conservariam uma partição en plus, a mais (LACAN, 1972-73/1975).

É o que Lacan escreve em suas fórmulas quânticas, em que se encontram as "únicas definições possíveis da parte dita homem ou dita mulher para aquele que se encontra na posição de habitar a linguagem" (LACAN, 1972-73/1975, p. 74). Os enunciados lógicos que compõem as tábuas da sexuação são definições que não possuem ancoramento ontológico, nem anatômico, para a diferença dos sexos, pois são herdeiros da falta de referente introduzida com a noção de semblante. Assim, seu único esteio seria o destino do falasser em ter que, a partir de sua relação com a castração, asseverar a semiverdade de seu parasser sexual.

 

Referências bibliográficas

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Recebido: 25/05/2017
Aprovado: 21/06/2017

 

 

1 Segundo a gramática francesa: "Todo substantivo possui um gênero inerente, masculino ou feminino" (RIEGEL; PELLAT; RIOUL, 2009, p. 274).

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