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Stylus (Rio de Janeiro)

versión impresa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.37 Rio de Janeiro jul./dic. 2018

 

ESPAÇO ESCOLA BILÍNGUE

 

O cartel, corpo analisante no campo laico-niano1

 

The cartel, analyzing body in the laic-nian field

 

Le cartel, corps d'analyse dans le champ laïque-nien

 

 

Matías Buttini; Tradução de Wilson Alves-Bezerra2

 

 


RESUMO

Quão válidos são os dispositivos propostos por Lacan? Como se exerce hoje, no campo lacaniano, o campo do gozo? Esse campo, que necessita dos corpos e de suas ressonâncias, nós o chamamos a partir de um equívoco da língua espanhola para indicar sua não religiosidade: o campo laico-niano. Vamos colocar o trabalho dos cartéis em dois aspectos: o da abstinência do Mais-Um e o do corpo analisante.

Palavras-chave: Ressonância; Campo; Cartel; Escola.


ABSTRACT

What is the validity of the devices proposed by Lacan? How are they practiced today in the Lacanian field, the field of enjoyment? This field, which needs the bodies and their resonances, we have called it from a misunderstanding over the Spanish language to indicate its non-religiosity: the laic-anian field. There we will place the work of cartels taken in two aspects: that of the abstinence of the Plus One and the analyzing body.

Keywords: Resonance; Lacanian field; Cartel; School.


RÉSUMÉ

Quelle est la validité des dispositifs proposés par Lacan ? Comment s'exercent-ils aujourd'hui dans le champ lacanien, le champ de la jouissance ? Ce champ, qui a besoin des corps et de leurs résonances, nous l'appelons champ laïque-nien, à partir d'une équivoque de la langue espagnole, pour indiquer sa non-religiosité. Nous placerons le travail des cartels sous deux aspects : celui de l'abstinence du Plus-Un et celui du corps analysant.

Mots-clés: Résonance ; Champ ; Cartel ; École.


 

 

Primeira parte: a abstinência do Mais-um

Gostaria de apresentar uma ideia que nos ocorreu em uma conversa com Fernando Martínez. Vou acrescentar alguns pontos de reflexão, algo próprio do trabalho de um cartel, desde que sigamos a etimologia do termo, re-flectus, ou seja, voltar a nos flexionarmos, a nos dobrar um pouco, como uma forma de torção de abertura à palavra do outro, colega, sem que isso implique qualquer homo submissão, e sim o hétero, o diferente.

A ideia surgiu quanto à participação de cada qual, em diferentes cartéis, ao longo do tempo. Eu a formulo de duas maneiras:

1. Quanto à função freudiana da abstinência. Como se coloca em jogo o desejo do analista em um cartel?

2. Em relação ao "corpo em análise", significante produzido como título de um cartel que começou a funcionar no fim de 2015, por Skype, o que permite guardar as distâncias. Alguns de nós estamos nos vendo "em carne e osso" pela primeira vez hoje, nesta reunião. A pergunta poderia ser posta do seguinte modo: como se coloca o corpo em um cartel? Ou, de modo mais extensivo: como se coloca o corpo em uma Escola, ou ainda, como se faz corpo o campo lacaniano?

Tomemos o sintagma que usamos já há alguns anos para apresentar o seminário fundamental, o ponto reflexivo, do encontro entre o Foro e a Escola na FARP, Ética e política do Campo Lacaniano, e vamos botar isso para trabalhar. Quais são a ética e a política do cartel?

Eu me abstenho, de pronto, do julgamento que implicaria dizer algo sobre como cada um ganha a vida com a psicanálise e seus pseudópodes transferenciais. Quero mostrar que vejo um problema na ideia dos "grupos de estudo",3 em sua oposição radical ao trabalho promovido por um cartel e, consequentemente, ao trabalho que se realiza em uma Escola.

Se abordarmos a questão pelo lado do narcisismo, entendo que pode causar bem-estar que o nome próprio seja um significante ao qual alguém se dirija com um pedido. Esse seria um pedido em relação ao saber do psicanalista, o saber acumulado pela experiência ou, melhor ainda, a suposição de saber que não leva necessariamente a uma análise. Psicanálise por extensão, diríamos quase que automaticamente. Não existe aí muito espaço para o encontro entre o narcisismo das pequenas diferenças, porque isso costuma funcionar com um "S2", esse outro a quem alguém dirige sua demanda de amor: quero saber mais sobre esse agalma que você representa para mim. Se aquele que agrupa estudantes em torno de seu próprio nome ou do nome de um tema ou de um autor se posicionar do lado de responder à demanda ou do lado de se abster, em ambos os casos o lugar do suposto saber ficaria intacto. Sem questionamentos ou, mais precisamente, in-tocado. Lá, o tem alguém que sabe, como diz Lacan, somente se referindo a Freud, teria consistência, inclusive encarnação real. Não há em tal caso nada próximo à Escola, ao menos não em relação àquela que queremos propor em nosso campo. Recordemos que Lacan, em O ato analítico, sustenta:

(...) eu não sou professor, porque justamente questiono o sujeito suposto saber. É justamente o que o professor não questiona jamais posto que essencialmente é ele, quanto professor, seu representante. (Lacan, 1967-1968, aula de 28 de fevereiro de 1968)

 

O grupo não é o cartel

Apesar de este ser um pequeno grupo, com os dois apoios que o constituem4 (Lacan, 1964/2008-2010), ele não avaliza a identificação, ou ao menos deve poder colocá-la em questão. Se tomarmos duas referências não ao cartel, mas à paranoia, ou o que faz consistir mais que outras posições o gozo do Outro, teremos que, por um lado, a dissolução periódica implica abalar o possível "grude imaginário" e até evitar cair no congelamento do desejo (Lacan, 1975-1976, aula de 8 de abril de 1975; Buttini, 2016b); por outro lado, o trabalho conjunto opõe-se à produção que se espera individual, a título próprio.

O cartel, diferentemente de qualquer grupo, funcionando como órgão da Escola, permite prestar a-tensão, perceber a diferença entre o trabalho do senso comum e a produção individual. O cartel não elude as identificações de todo grupo humano, mas coloca em primeiro lugar a paridade, e não o S1. Eu gosto, como diz Colette Soler, no âmbito da Escola o juiz são os textos de Freud e de Lacan.

Por outro lado, o cartel toma outra forma da demanda, a qual Lacan chamou de transferência de trabalho, o reverso do trabalho da transferência, pluralizada. Tal inversão, como luva do avesso, habilitaria lugares bem diferentes quanto à relação entre saber, Escola e esses uns que a compõem. Uma Escolanalisante, holófrase que já usei certa vez (Buttini, 2011), implica a decomposição analítica no interior de outro laço (Buttini, 2016a). Ana-lysis, ruptura dos laços no interior de outro laço. O cartel, novamente, apoia-se em um discurso destinado à sua dissolução com a esperança de produzir um trabalho de transferência no âmbito da Escola. Assim, podemos concebê-lo como dispositivo intermediário entre o passe e a análise. A Escola é corpo falante.

Se o chamado Mais-Um consegue colocar esse lugar de suposto saber para quem pode ser convocado em questão, isso possibilitará que os demais integrantes se posicionem como uns soltos, reunidos no ato, mas não esmagados ou indistintos por qualquer ideal. Não formam um só corpo, e sim um encontro de corpos. Organização circular, diz Lacan, e não hierarquia (Lacan, 1964/2008-2010, p. 260).5

O Mais-Um, devemos nos lembrar, é o encarregado da "seleção, discussão e destino que se reservará a cada um"; apesar de não constituir "um caciquismo, cujo serviço, após prestado, seria capitalizado para atingir um grau superior" (Lacan, 1964/2008-2010).

Os caciques diluem-se fora de suas tribos, no refúgio de vozes singulares que a Escola promove, nesse trabalho cujo objetivo é, diz Lacan, "indissociável de uma formação que deve ser dispensada nesse movimento de reconquista" (Lacan, 1964/2008-2010).

Tal reconquista do campo da psicanálise, levada adiante por uns soltos, e não por caciques, sustenta-se em "proscrever" a vida do grupo que "preserva a instituição chamada internacional" (Lacan, 1972/1984, p. 46) - dirá em O aturdito - com o equívoco que se escuta nesse preservar: por isso se preserva e preserva tal funcionamento em seu interior. Como sustentar uma Escola fora da pedagogia e da didática no campo não religioso, mas, sim, de laço entre colegas?

Há uma resposta de Lacan nesse mesmo texto: diante da impossibilidade de que os psicanalistas formem grupo, ele diz: que o discurso psicanalítico pode precisamente fundar um vínculo social limpo de toda necessidade de grupo (Lacan, 1972/1984).

Então, se entendermos a abstinência6 como uma versão freudiana da função desejo do analista, poderemos dizer que a abstinência do mais-um que propomos é o plus que pode situar as coisas de outra maneira, em planos diferentes daqueles do grupo de estudo:

1. Não se paga o saber com dinheiro.

2. Não há um S2, constituído no lugar do Outro ao qual se dirige uma demanda de saber, e sim uma circularidade reversível à maneira moebiana, com a Escola.

3. Lá não se espera - como na análise e na suposição de saber - a promessa de obter aquilo de que se carece ou de se desembaraçar do que se acredita que está sobrando.

4. Lá - nem sempre acontece, por isso uso a forma potencial - pode acontecer o encontro entre colegas e uma transferência de trabalho, transferir no sentido mais original do termo, aquele que Freud usou pela primeira vez no Traumdeutung, deslocamento e, então, movimento do saber.

Esse mais-um, invertido, é um a mais... se se abstiver de usar uma posição hierárquica que deixaria todo um grupo de estudos com a aparência de cartel "ad honorem", pela honra e pelo prestígio, pela satisfação pessoal e não "ad libitum", pelo desejo. Especificamente, pelo desejo do analista, esse que não procura um pódio para si (ou o escabelo), e sim o dizer um, o Um-dizer (Soler, 2016/2017) do analisante, aquele que não concorda nem tem por que concordar com a ideia que esse analista tenha sobre esse paciente. Esse dizer sobre o um, bem diferente de encarnar o Um, pode trocar esse mais-um no cartel por um a mais, colega que nem por isso deixa de assumir suas funções de Escola: promover a discussão sem fazer desse saber um corpo, e sim somente produção na hora da permuta. Em uma conferência de 1967, Lacan fala dos psicanalistas como corpo representado e também da "equipe psicanalítica", de propaganda e de charlatanismo (Lacan, 1967/2007, p. 22).

Esse mais-um deverá cumprir uma função de propiciar o que se diga sem encarnar o cacique nem fazer corpus do conjunto dos psicanalistas. Diferentemente da psicanálise, em que é necessário sustentar o não há e o não é isso, as massas descritas por Freud - igreja e exército - apontam para a constituição de um corpus, corpo armado e corpo eclesiástico, para nomear dois exemplos.

Podemos recorrer à literatura, para fechar esse primeiro ponto e nele situar a função da abstinência como condição do surgimento de algo inesperado, de um fato novo (Lacan, 1967/2007, p. 18). Em um excelente livro, o escritor ítalo-mexicano Fabio Morábito indica que em A metamorfose, de Franz Kafka, assistimos a um dos momentos geniais da literatura. Gregor Samsa acorda e confronta-se com o horror de ver-se, sa-ver (Aguerre, 2011, p. 255) seu corpo transformado em inseto, e isso abre uma nova porta. Ele diz assim:

Kafka posterga a reação de horror de Gregor Samsa, guarda-a para usar depois, no momento devido, e quando descobre que não precisa dela, transforma-se realmente em Kafka. No humilde quarto de Praga, onde ambienta sua história, Kafka acaba de abrir para a literatura uma porta salvadora, que podemos chamar de a supressão do grito. (Morábito, 2014, p. 33, grifo nosso)

Parece-me uma excelente descrição da abstinência de Kafka como escritor, que, suprimindo o grito de horror que o corpo metamorfoseado produz, desloca, transfere esse trabalho para os leitores, trabalho motorizado não por um saber já constituído - como bem aponta nossa epígrafe -, e sim pela causa/hiância do desejo. Essa posição deixa para o leitor o lugar do trabalho, e não do mero estudante pronto a ser doutrinado pelo texto - e suas habituais sacralizações - conglomerado com outros do mesmo rebanho, pelo efeito de grupo com essa obscenidade imaginária acrescentada ao efeito de discurso (Lacan, 1972/1984, p. 46). Esses dois efeitos devem equilibrar-se, um ao outro, diz Lacan.

Até aqui, alguns pontos para refletir sobre a função da abstinência que Freud propõe ao analista e que aqui quisemos estender ao mais-um/um a mais do cartel, como reversão do cartel. Avancemos...

 

Segunda parte: cartel, corpo analisante

Comecei criticando a ideia do grupo de estudo como incompatível com nossa Escola. Em seu lugar, sem dúvida, o cartel é o dispositivo que permitiria que os dizeres se desloquem e não fiquem estancados. Tal como comentou Colette Soler, em outubro de 2017, no Espaço Escola do FARP (inédito), o cartel é o verdadeiro dispositivo de Escola, porque a transferência de trabalho circula, e não está necessariamente orientada nem fixada.

Campo laico-niano

Nossa carta da IF-EFPCL,7 instrumento vivo que organiza nossos foros e a Escola, retoma o sintagma campo lacaniano, proposto por Lacan em termos de seu desejo: "quanto ao que se refere ao campo do gozo - por desgraça, nunca irão chamá-lo campo lacaniano, porque certamente não vou ter tempo nem de estabelecer suas bases, como desejaria fazer" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 86). A carta nomeia e coloca em andamento o campo quanto a dois princípios ordenadores: o princípio da solidariedade e o princípio da iniciativa. Ambos se enodam de um modo particular para constituir os limites de nossa Escola lá inscrita.

Nesse campo, assim chamado lacaniano, ou se equivocamos a língua, laico-niano, é onde o trabalho se desenvolve sem religião nem crença, a não ser aquela que Freud já nomeou como existência do Inconsciente. Lacan, retomando os efeitos do dizer de Freud sobre a cultura, encontra necessária a re-invenção do Inconsciente e a criação - sem precedentes - de um campo. Quais são os limites de tal campo é algo que começou a ser interrogado com vistas à nossa Reunião Internacional em Barcelona 2018, sede da memória viva de uma crise (Soler et al., 2000) que deu origem ao advento dos foros... do campo laico-niano, contra a experiência do campo lacani-Uno. Muitos usam seu nome - o de Lacan - para tornar-se Uno.

Agora, falar em Freud e na intermediação do desejo de Lacan, aqui estamos no corpo presente, outra vez. Os campos e os corpos são elementos que permitem um deslocamento. A pergunta que me faço é a seguinte: que relações há entre um campo e um corpo? E, se avançarmos um pouco mais, outra interrogação surge: podemos dizer que o campo da psicanálise é um campo no qual o corpo soa, um campo sonoro?

Darei forma a esse comentário em três breves pontos, mas antes situemos o que Pascal Quignard, em seu livro O nome na ponta da língua, nos ensina, em uma cena crucial de sua obra - e de sua vida -, algo que evoca muito do que ocorre, às vezes, no trabalho de um cartel.

A mãe, sentada à mesa com os filhos, de repente, "bruscamente nos mandava ficar calados". Estava procurando um nome que não saía. "Extraviada, distante, tentava, o olhar fixo no nada, cintilante, fazer com que surgisse do silêncio a palavra que ela trazia na ponta da língua. Nós mesmos estávamos na ponta de seus lábios. Estávamos à espreita. Nós a ajudávamos com nosso silêncio - com toda a força de nosso silêncio" (Quignard, 1993/2006, p. 41, grifo nosso).

Essa ajuda silenciosa pode ilustrar os princípios de iniciativa e de solidariedade que regem nossos dispositivos: dirige-se ao outro do laço, e não é mera abstinência passiva. O texto citado acrescenta em seguida: "O nome na ponta da língua nos faz lembrar que a linguagem não é em nós um ato reflexo. Que não somos feras que falam como olham" (Quignard, 1993/2006, p. 41).

O que é um campo?

Essa pergunta coincide com um capítulo do livro de Giorgio Agamben (1996/2001), Meios sem fim. Nele, o autor interroga-se sobre a existência de um campo no âmbito da política em que ainda vivemos, diz, e indica uma ideia da qual me valerei: o campo circunscreve-se surgindo da suspensão das regras e do tudo é possível. Isso coincide com a ideia de Lacan? O campo lacaniano implicaria uma anomia? De modo algum seria possível responder afirmativamente. Mas, se seguirmos Agamben e seus desenvolvimentos, encontraremos um elemento crucial: o que ele chama, em termos do direito romano, estado de exceção implica o ex-capere, puxado para fora. Uma regra fundamental, que implica o corpo desse outro, analista, que é um estranho, alguém de fora dessa doença, para Freud, o hóspede mal recebido (Freud, 1905/1991, p. 39), que tem a possibilidade de responder com seu ato, que faz exceção à coerência, ao senso comum e, por isso, possibilita o desdobramento do gozo, do desejo e do amor.

Em O saber do psicanalista (1971-1972), Lacan retoma seu próprio título, o de "Função e campo...", para trabalhar duas questões: por um lado, que tal termo já havia sido utilizado por ele; por outro, que tal campo, cito, "é constituído pelo que chamei um dia desses, com um lapso: lalangue" (Lacan, 1971-1972, aula de 2 de dezembro de 1971, p. 40, inédito). Entre o dicionário Lalande e a lalação do bebê, no Inconsciente de Jacques Lacan surge lalangue, lapso que constitui uma ressonância de forte alcance por estar fora do senso comum. Lalangue é aquilo que ressoa, laica-nianamente falando, do mesmo modo que o gozo, o que só pode ser capturado com as orelhas e com um corpo. Nesse tempo que vai de um texto a outro, está Lacan em posição analisante. Escuta-se, ressoa e, logo, elabora.

O que é um corpo analisante?

Se avançarmos pela via do corpo e das ressonâncias - tal como fizemos em um cartel com colegas da Patagônia que evocava inicialmente o corpo em análise -, chegaremos a algumas questões centrais e a um imenso campo, no qual não entrarei hoje. Vou me limitar a indicar essa conexão entre o corpo e o analisante. Esse é o corpo constituído nas paredes ressonantes de uma análise, no consultório do analista. Não é um corpus teórico, mas um corpus no ato de dizer, equivocando-se, demonstrando o sem cálculo do inconsciente. Um corpo que espera, tem "esperança", diz Colette Soler, em tudo pode ser dito. O limite deverá se fazer audível sob a forma do inaudito.8

Nessas paredes, encontramos uma analogia bastante antiga com a caverna de Platão. Metáfora, como sabemos, da percepção, apesar de que não é o corpo da percepção o corpo analisante. Não é o corpo dos sentidos, mas aquele que ressoa no fio desparelho de seus dizeres associativos. Tais sentidos corporais são aqueles que o analista - podemos dizer desse modo - nega ou rechaça para privilegiar o conceito de Pulsão. O que isso significa? Que há pulsão em jogo e que isso, para além do princípio do prazer, é o que se faz escutar. Não são os cinco sentidos, e sim os cinco objetos pulsionais o que está em jogo nesse espaço da análise.

Outra vez Pascal Quignard, lúcido em questões da voz e da música, indica que as cavernas paleolíticas não eram obra de arte pictórica, e sim enfeites para os "ressoadores noturnos" (Quignard, 1996/2012, p. 94). Acrescenta que não se trata de "santuários de imagens", como se poderia pensar, e sim de "câmaras de eco" (Quignard, 1996/2012).

Lacan, também lúcido, apresenta-nos essa tese vários anos antes de Quignard, quando diz sua famosa frase do seminário sobre O sinthoma: "as pulsões são o eco no corpo do fato de que há um dizer (Lacan, 1975-1976/2006, p. 18). É quando critica os "filósofos ingleses" (Lacan, 1975-1976/2006), que é como chama ironicamente os psicanalistas anglófonos, que traduziram em Freud Trieb por instinto. E Lacan acrescentará nessa página três coisas centrais: (1) "é preciso que haja algo no significante que ressoe"; (2) para que esse dizer ressoe, é preciso que o corpo seja sensível a ele; (3) dos orifícios do corpo, a orelha é o mais importante, diz, porque não pode ser tampada ou fechada.

Ele está sem dúvida falando do que denominamos corpo analisante, aquele que está amarrado ao mastro do ato de dizer, tal qual Odisseu dominado em seu navio para poder ouvir o canto das sereias, figura ineludível dos efeitos sinistros e sonoros do Inconsciente. Esse corpo também pode des-atar-se do Outro da cena do mundo na excitação psicomotora, na mania ou na passagem ao ato, estados que corroboramos na prática e que excluem, in situ, a intervenção de um analista.

Como entra o corpo no campo lacaniano? Se seguirmos Freud e Lacan, entra recostado em um divã... o que não está de acordo com a comodidade em ponto algum. Entra no "l'esp d'un laps" (Lacan, 1977/2012), isto é, no campo de lalangue, e aquilo que re-ssoa no laço da transferência.

O cartel pode ser pensado como o dizer que passa através da Escola?

Como fazemos para irmanar (Lacan, 1971-1972/2012, p. 230) o cartel ao campo lacaniano? Porque não se trata de análise, e sim de um dispositivo de Escola, sustentado no fato de que ex-iste o psicanalista e, consequentemente, um campo é necessário para tratar as ressonâncias dessa ex-sistência. Reparemos no prefixo que Lacan acrescenta, ex-, no que implica a xené grega, estrangeiridade, estar fora de um todo, ex capere (Agamben, 2003/2005). Isso introduz a função do não-todo. Como fazer para que o cartel, como não-todo, ressoe a Escola?

Se, como indica nosso título, o cartel é corpo analisante, isso quer dizer que seus integrantes recebem seu próprio eco (não falo de mensagem nem de significantes da demanda) de forma invertida, ou, melhor ainda, introduzindo uma diferença na análise, recebem o eco de outro, do colega da Escola, (e)colega?9

No trabalho do cartel, o corpo analisante move a produção. O $ que trabalha é quem guia o interesse de cada um por decantar um dizer dos ditos lá produzidos. Dizer histericizado ($) que questiona a coagulação do Senhor saber.

Um eco de minha infância vem em meu auxílio: crianças esparramadas pelo campo jogando e, de repente, na hora indicada, escuta-se ao longe o soar de uma campainha10 - estavam nos chamando para nos sentarmos à mesa. Campainha faz ressoar etimologicamente campo. A campainha do cartel nos alerta quanto aos efeitos do grupo; será preciso fazê-la tocar, sempre, tarefa que se encarna, mas não se limita ao mais-um. Não se trata aqui do campanário da igreja, alguns deles construídos com ferro fundido de canhões, por exemplo. E sim da própria ideia de campanário no sentido sonoro. Trata-se de um ideófono, isto é, iedos (próprio), phono (som). É um dispositivo que tem seu próprio som, mas que necessita de outro para produzi-lo, tal como qualquer formação do Inconsciente!

A certa altura, um corpo ao qual chamemos analisante é um corpo que apenas se constitui por um ato mútuo: o nó entre a escuta e o consentimento do dizer. É um corpo à espera de uma revelação. Um corpo em suspenso, en suffrance, dirá Lacan.

Quanto ao cartel, ele se move por essa esperança de revelação, de produção conjunta, motorizado pelo traço desses uns. Quando o cartel produz algo, soa a campainha, constitui-se como corpo analisante, corpo sonoro que faz eco, ressonância no campo de lalangue. Nesse ponto onde o objeto a-nalítico faz-se ouvir.

Diferentemente do escópico (sic, pedra atirada no lago que produz "ondas" visíveis), o eco de uma voz, ou os ecos que pode produzir um dizer, requerem de um corpo que inscreva, que registre, que marque sobre um vazio, através de um orifício corporal que cumpra a função de vasilha ou de campainha.

É necessário - e o cartel bem o demonstra - que haja outros corpos que produzam ressonâncias que afetem ou envolvam o campo laico-niano para se tornar dispositivo de Escola, e não aporte à Igreja. Não é suficiente chamá-lo cartel para ele não ser um grupo de estudo. A Escola está então, logo atrás, ecoando esses dizeres em expansão que são os cartéis. Expansão sonora do dizer, o que uma vez dito pode se perder ou ficar registrado por quem diz ou por outros. Alguns outros...

 

Final aberto

Freud legou uma obra que Lacan elaborou como "o dizer de Freud"; Lacan, por sua vez, constituiu um campo. A Escola é esse campo pelo qual passa o dizer de Freud, sempre como ex-ceção. Essa passagem tem como condição que a Escola inscreva-se no campo laico-niano como ponto de junção entre o gozo tomado pelo desejo de psicanálise, desejo esse que, sabemos, não é puro em sua emergência nem em sua aplicação (Lacan, 1964/1987, p. 284). Ponto esse no qual o Uno que afirma a religião e o dieu-lírio11 do cântico a-unado dos irmãos não pode fazer consistência, já que resistem as disparidades como função não-toda da Escola, evitando ir na direção de um campo uni-forme, campo nomeável como lacani-uno.

Poderíamos sustentar, então, que o cartel, como prática de um dispositivo no campo laico-niano, é esse agrupamento não religioso no qual a Escola re-ssoa, ou seja, volta a fazer soar o dizer de Freud como um campanário? Não será esse dispositivo o que faz, de modo distinto do passe, mais personalizado e íntimo, com que a Escola viva?

 

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Recebido: 15/08/2018
Aprovado: 19/11/2018

 

 

1 Este texto reúne dois breves trabalhos originalmente apresentados em dois cartéis anuais da EPFCL-ALSur, em 2016 e 2017. Pareceu-nos ser um trabalho contínuo, que merecia ser publicado como um todo. Foi feita uma tentativa de manter o caráter coloquial, um estilo mais próximo da particularidade do cartel do que da Universidade, Uma versão do universal.
2 Revisão da tradução de Maria Luisa Rodriguez.
3 Formato amplamente utilizado na Argentina, no qual um grupo de jovens analistas reúne-se ao redor de um "sábio" para ler certo seminário ou texto.
4 O número entre três e quatro mais um e a permutação.
5 Ao comparar duas traduções do mesmo texto, optamos pela de nosso Anuário IF-EPFCL, por ser a mais clara em sua enunciação e um pouco menos rebuscada que aquela presente na edição argentina dos Otros escritos (Buenos Aires: Paidós, 2012).
6 Mal-entendida geralmente como emudecer ou se fazer de morto, sem que Freud ou Lacan indiquem que se trata do caudal de palavras que sai ou não sai da boca do analista.
7 Recuperado de https://www.champlacanien.net/public/3/ifCharte.php?language=3&menu=1
8 Trabalhei esse ponto e sua relação com a Escola em "Vozes a partir do inaudível: verificação, auditoria e passagem pela Escola", publicado na Stylus: Revista de Psicanálise, 32, em junho de 2016. Para a versão em espanhol desse texto, veja: http://forofarp.org/images/pdf/Buttini.pdf
9 Aqui, equivocam-se os termos entre as línguas espanhola e francesa, entre Lacan e nós: école (escola), cole (cola) e colega. (No caso do português, o funcionamento linguístico é semelhante. [N.T.])
10 No original, campana. O autor vai trabalhar com os significantes campana (sino, sineta, campainha) e campo. Para manter o efeito do texto original, optei por utilizar as formas em português semelhantes a campana: ora campainha, ora campanário, pelo que evoca do sino da igreja. [N.T.]
11 Jogo intraduzível de palavras de Lacan, no qual ressoa o delírio de deus, ou deus-lírio, delírio do Um e, portanto, sempre religioso: "La ciencia y la religión van muy bien juntas. Es un dieu-lire" (Lacan, 1979, p. 79).

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