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Psic: revista da Vetor Editora
versión impresa ISSN 1676-7314
Psic v.3 n.1 São Paulo jun. 2002
ARTIGOS
O risco da negligência: um estudo de caso
Lucilena Vagostello *
Unicastelo
RESUMO
O presente trabalho relata o estudo de caso de uma criança de 8 anos de idade, do sexo masculino, vítima de negligência que culminou em bárbara vitimização física (dilaceramento de partes do corpo por mordidas) e sexual praticada com requintes de perversidade, que quase o levou à morte. O estudo psicológico foi realizado por meio do Procedimento de Desenhos-Estórias, Teste de Apercepção Temática e Método de Rorschach. Os resultados indicaram marcadas tendências de passividade e dependência, além de intensa necessidade de cuidado e proteção. A representação da figura materna é passiva, empobrecida e pouco provedora e o ambiente sentido como ameaçador e pouco confiável, merecendo permanente estado de alerta e vigilância. Esta criança parece ter conseguido manter sua integração psíquica às custas de defesas obsessivas, que permitem o controle dos afetos, o contato e o ajustamento à realidade. Algumas características psicológicas detectadas pelos instrumentos de avaliação, tais como insegurança, desconfiança e depressão, foram citadas por Bowlby e Winnicott como conseqüências da negligência materna. A criança, apesar dos severos maltratas sofridos, demonstrou ter recursos psicológicos que possibilitam a manutenção de sua integridade, podendo-se inclusive levantar uma hipótese de resiliência, que deverá ser investigada em estudos futuros (follow up) com a utilização dos mesmos procedimentos.
Palavras-chave: Negligência, Abuso sexual, Maltrato infantil, Técnicas projetivas.
ABSTRACT
This article presents a eight years old child psychological study, male, neglected, a serious physical (bites) and sexual abuse victim. This attack has almost led cause his death. Drawing-and-Stories Procedure, Child Thematic Aperception and Rorschach were administered. Results indicated passivity and dependence trends and caretaking needs. Maternal figure was internalized as passive and weakly. Environment is felt as threatening and cannot be trustworthy. Obsessive defenses allow his affects control and reality adaptation. Psychological characteristics found in child as lnsecurity and depression were identified by Bowlby and Winnicott as neglect consequences. Despite his severe maltreatment, child presents psychological resources that allow to think whether it's a resilience case. This hypothesis could be confirmed on future studies (follow up) using the same procedures.
Keywords: Child neglect, Sexual abuse, Child maltreatment, Projective techniques.
Introdução
Violência doméstica, segundo Guerra & Azevedo (1998), é a violência praticada no âmbito familiar, por adultos (pais ou responsáveis) contra crianças e/ou adolescentes, por ação ou omissão daqueles. Os maus tratos ocorridos na família configuram-se sob a forma de negligência, violência física, violência psicológica e violência sexual, que são manifestações de violência interpessoal, pautadas no abuso de poder dos pais e/ ou responsáveis que reduz sua vítima (criança ou adolescente) à condição de objeto.
Considera-se abuso físico ou violência física os castigos severos (incompatíveis com a idade e compreensão da criança) e os castigos que resultem em ferimentos. As crianças vítimas de maus tratos físicos geralmente apresentam marcas corporais antigas, relação com agressor marcada por medo. Não raro observa-se a identificação da criança com seu agressor, estabelecendo-se um padrão de relacionamento interpessoal marcado pela agressividade que é assimilada como algo "natural" ou "normal". A humilhação desta submissão à agressividade alheia produz uma auto-imagem desvalorizada e sentimentos de culpa que leva, muitas vezes, a vítima a acreditar ser merecedora do castigo (Guerra & Azevedo, 1989).
O abuso sexual caracteriza-se por atos, jogos, brincadeiras sexuais entre um adulto e uma criança ou adolescente (menor de 18 anos). Sua natureza é variável, incluindo modalidades como contatos físicos, voyeurismo, exibicionismo, masturbação recíproca, sexo oral, anal e genital, imagem em pornografia (Guerra & Azevedo, 1989; Rouyer, 1997).
Segundo Rouyer (1997), os abusos sexuais ocorridos em crianças antes da puberdade são os que produzem efeitos mais negativos nas áreas sexual e afetiva. Geralmente o abuso sexual é praticado por uma pessoa próxima, com quem a criança mantém um relacionamento de confiança e amor, e que com a qual estabelece uma silenciosa relação de submissão, coagida por ameaças e fortalecida pelo medo e pela culpa.
A incidência de quadros psicóticos, reações psicossomáticas, enurese, encoprese (geralmente em crianças pequenas que sofreram penetração anal), dores abdominais, interrupção da menstruação, distúrbios alimentares e rituais de higiene costumam aparecer em vítimas de violência sexual (Rouyer, 1997).
Entre todas as formas de violência doméstica, a negligência aparenta ser a mais branda pois sua manifestação é muito mais sutil, Por outro lado, ela se constitui na porta de entrada para o exercício das demais modalidades de vitimização, nos mais variados graus de severidade.
Entre as formas de negligência destacam-se a física (falta de interesse em relação às necessidades físicas da criança: alimentação, higiene, saúde, etc) e a afetiva (falta de interesse em relação às necessidades da criança, distanciamento emocional). Os sinais observados com maior freqüência nas crianças negligenciadas são atraso no desenvolvimento psicomotor, desnutrição, desidratação, doenças crônicas (decorrentes da falta de cuidados adequados), ausência de limites no comportamento da criança e acidentes domésticos freqüentes, muitas vezes fatais.
Objetivo
O presente trabalho objetiva apresentar o estudo de caso de uma criança cuja negligência materna resultou em brutal violência exercida por terceiros. Trata-se de um estudo psicológico que, por meio de técnicas projetivas, revela as condições psicológicas de uma criança que sobreviveu à bárbara vitimização física - dilaceramento de partes do seu corpo por mordidas - e vitimização sexual.
Este estudo pretende ainda demonstrar como e em que medida a negligência, que tende a ser vista como um "mal menor" no universo da violência doméstica, pode abrir caminhos para o exercício das mais perversas formas de vitimização contra uma criança.
Método
Sujeito
O sujeito deste estudo de caso é uma criança de 8 anos de idade, de sexo masculino, de classe social baixa da periferia do Município de São Paulo, cursando a I' série do ensino fundamental, abrigada em Instituição de acolhimento por determinação judicial (Vara de Infância e Juventude).
Histórico de vida:
Este menino é o filho primogênito de um grupo de 3 irmãos e o único que permaneceu em companhia materna (os demais foram assistidos por terceiros). Aos 2 anos de idade, sua mãe foi detida por tráfico de drogas durante I ano e 4 meses, e este permaneceu sob os cuidados de uma tia-avó. Aos 7 anos de idade a criança, que ainda não estava matriculado em rede oficial de ensino, foi passar uma temporada em companhia de seu futuro padrinho, a quem a mãe entregou inclusive a certidão de nascimento.
Após um mês em companhia do "padrinho", a criança deu entrada no hospital desfaleci da, com ferimentos gravíssimos pelo corpo (coxas, nádega, braço com partes da carne arrancadas por mordida) e cabeça. A criança também revelou ter sido vítima de abuso sexual.
Durante os 30 dias em que permaneceu com o agressor, a criança manteve contatos sistemáticos com a mãe e já apresentava sinais corporais de mordidas (marcas redondas, típicas de arcada dentária) nas regiões dos ombros, costas e barriga, os quais não foram percebidas por sua mãe.
Procedimento
Foram utilizados os seguintes instrumentos de avaliação da personalidade: I. Procedimento de Desenhos-Estórias desenvolvido por Walter Trinca em 1972, para conhecimento da dinâmica psicológica. Trata-se de uma técnica gráfica e temática que consiste em solicitar ao sujeito para fazer um desenho e, posteriormente, contar uma estória; ao final, realiza-se um inquérito (para eventuais esclarecimentos sobre o desenho e a estória) e solicita-se um título. Objetiva-se obter uma série de cinco desenhos livres, associados a estórias, com seus respectivos títulos (Trinca, 1997). O material obtido foi avaliado em grupos de conteúdo, segundo a proposta de análise de Tardivo (1997).
2. Método de Rorschach - desenvolvido por Herrman Rorschach em 1921, esta técnica projetiva fornece elementos estruturais e dinâmicos da personalidade. A aplicação do Rorschach é sempre constituída pelas fases de obtenção de respostas e de inquérito. As normas de aplicação, classificação e interpretação do Rorschach utilizadas neste estudo foram as do Sistema Compreensivo (Exner, 1999; Exner e Sendín, 1999; Weiner, 2000).
3. Teste de Apercepção Infantil - forma animal (CAT-A) - desenvolvido por Bellack, publicado em 1949, destina-se à avaliação da dinâmica de personalidade em crianças entre 3 e 10 anos. A aplicação do CAT possui a fase de respostas (uma estória para cada uma das 10 pranchas) e inquérito. A avaliação do CAT baseou-se na obra de Tardivo (1998).
Resultados
Procedimento de Desenhos-Estórias
De maneira geral, as cinco produções da criança caracterizaram-se pela passividade, pela ausência de figuras maternas provedoras e positivas e pela manifestação de desejos relacionados à satisfação de necessidades básicas (proteção e alimentação).
A análise gráfica dos desenhos apontaram para um estilo mais realista, com pouca recorrência à fantasia (o que é geralmente atípico em crianças), e para uma tendência a relacionar-se de maneira reservada com o mundo. Provavelmente todas estas características sejam fruto da vivência da criança com uma mãe passiva e ausente (negligente) e da dolorosa experiência de ter sido violentada por uma pessoa por quem nutria afetos positivos.
A criança demonstrou dificuldade para expressar desejos ambivalentes, utilizando predominantemente formas estereotipadas de controle dos impulsos frente à ambivalência: organização, rigidez e presença de detalhes exagerados. As manifestações agressivas, quando não apareceram submetidas a formas rígidas de controle, foram negadas. Vale destacar que em três das cinco produções, apareceram repetidos hábitos de higiene (tomar banho, lavar as mãos, escovar os dentes), o que parece denotar sua tentativa de livrar-se da "sujeira".
Teste de Apercepção Infantil - CAT
As produções do CAT chamaram a atenção pela infantilização, pouca criatividade das estórias e pela acentuada presença de características obsessivas, expressas nas reiteradas recorrências à higiene dos personagens, ao longo das dez pranchas. A estrutura estereotipada, repetitiva e detalhista das estórias confirmam esta tendência.
A passividade da criança novamente mostrou-se na dinâmica dos personagens e na figura materna, ora empobrecida e pouco provedora, ora idealizada para atender suas necessidades e suprir suas carências.
A mãe ausente e a figura paterna são indiretamente atacadas. Os ataques agressivos e hostis não encontram livre expressão no teste e a tensão da ambivalência parece não ser suportada, o que tende a cristalizar ainda mais suas defesas rigidamente organizadas.
Método de Rorschach
Os resultados do Rorschach indicaram "Índice de Depressão" (DEPI) positivo, o que indica a presença de acentuadas experiências de depressão, com predomínio de afetos desconfortáveis.
A criança apresentou tendência a evitar a estimulação emocional e trocas afetivas, demonstrando sentir-se desconfortável frente ao contato afetivo levando-a ao isolamento social. Com isto, suas relações tendem a ser superficiais e limitadas, pois não experimenta as relações interpessoais de maneira positiva, sentindo-se pouco seguro nestas situações. A passividade também apareceu acentuada no Rorschach nas relações interpessoais e tomadas de decisões.
Sua auto-imagem mostrou-se impregnada de elementos negativos, com características desvalorizadas e indesejáveis, o que tende a acentuar episódios de depressão e a dificultar o estabelecimento de relações interpessoais. Além disto, os índices rebaixados de egocentrismo são preocupantes uma vez que isto é atípico em crianças (que tendem a ser egocêntricas) e por suas tendências depressivas.
Do ponto de vista cognitivo, seu estilo de pensamento tende a ser simplificador e rígido, de modo a não se utilizar de recursos complexos diante do campo de estímulos. Seu pensamento tende a ser convencional e pouco criativo, mas isto não decorre de limitações intelectuais mas de alterações emocionais que bloqueiam sua livre expressão.
A criança tende ao convencionalismo (adesão a normas socialmente aceitas) pois está submetida a um superego rígido, que pode gerar desconforto emocional (sentimentos de culpa).
Em relação a análise temática das respostas, o protocolo de Rorschach da criança chamou a atenção pela elevada ênfase em "olhos" e "boca", que aparecem em 12 do total de 25 respostas. Do ponto de vista psicodinâmico, a ênfase nos "olhos" parece relacionar-se à sua desconfiança frente ao mundo e às pessoas, uma vez que possui razões em sua história pessoal para não confiar nas pessoas.
Chamou a atenção, ainda, a presença de 3 respostas com "dente" ("aranhas com dente", "escorpião com dente") no protocolo de Rorschach. A natureza da agressão sofrida pela criança - mordidas - também explica a presença de respostas com "boca" e a ocorrência de "dentes". Vale destacar que as respostas que incluem "dentes" são consideradas essencialmente projetivas uma vez que são respostas com distorção na forma. Isto significa que sua percepção foi comprometida pela mobilização de afetos que se remeteram à violência sofrida.
Síntese interpretativa
Os três instrumentos de avaliação psicológica convergem em aspectos fundamentais da estrutura e dinâmica de personalidade da criança. A passividade é um traço marcante, bem como as necessidades de cuidado e proteção, levando-a a assumir uma postura de dependência frente ao mundo. Por outro lado, a realidade e as pessoas parecem não lhe oferecer a satisfação que busca e necessita, pois não consegue estabelecer uma relação de confiança com o mundo, sentido como ameaçador e pouco confiável, merecendo permanente estado de alerta e vigilância, conforme demonstraram o CAT e o Rorschach.
Entendemos que esta ambi valência frente ao mundo tem como matriz a internalização de uma figura materna passiva e empobreci da, que existiu tanto nas produções temáticas (Desenhos-Estórias e CAT) quanto na história de vida pessoal da criança, marcada pela negligência materna. Mais do que empobrecida, a figura materna foi incapaz de proteger seu filho, que foi duplamente traído: por uma figura masculina em quem confiava (padrinho) e pela figura materna que, na sua passividade e incapacidade de perceber as necessidades do filho, não conseguiu identificar os "sinais" (inclusive corporais) que denunciavam o perigo.
Estas vivências de negligência materna também podem ser compreendidas à luz do que Bowlby (1981) denomina de "privação de mãe" e Winnicott (1983) de ausência de um "ambiente suficientemente bom", ou seja, de uma incapacidade do ambiente de proporcionar contato afetivo, proteção e segurança à criança. Segundo Bowlby (1981), as conseqüências da privação para a criança variam conforme sua intensidade; a privação parcial produz angústia, grande necessidade de amor, intensos sentimentos de vingança que geram culpa e de, pressão. Cabe lembrar que todas estas características manifestaram,se nas técnicas projetivas utilizadas.
A angústia da ambivalência ' gerada por estas vivências de desproteção e abandono, pelo desejo de ser cuidado por figuras parentais que são ao mesmo tempo objeto de amor e ódio e por desejos concomitantes de aproximação e desconfiança - mobiliza defesas claramente obsessivas que realizam um controle rígido e sistemático dos afetos. O impacto deste controle na atividade mental da criança resulta no empobrecimento de seus recursos criativos e no bloqueio de iniciativas para a solução de problemas.
Suas defesas - caracteristicamente obsessivas - presente em todos os instrumentos utilizados, denotam sua atitude ambivalente frente aos objetos que teme perder. Sua auto estima rebaixada e a recorrente temática de higiene (banho) nos testes D-E e CAT, exprimem a forma como está sendo capaz de lidar com o sofrimento, desconforto e repugnância mobilizados pela violência sexual sofrida.
Conclusão
As vivências depressivas sinalizadas pelo Rorschach, aliada ao pouco centramento de si mesmo, é um sinal alarmante e merece muita atenção por tratar-se de uma criança. Contudo, esta criança encontra-se em acompanhamento psicológico e o fato de apresentar capacidade de introspecção - ainda que impregnada de autocrítica negativa - torna-se um prognóstico positivo à medida que denota capacidade de auto reflexão e pode levá-lo a usufruir dos benefícios proporcionados pela psicoterapia.
Pode-se afirmar que, apesar de ter sido submetida a negligência, abuso físico e sexual praticados com requintes de perversidade, esta criança foi capaz de manter-se organizada às custas da rigidez de defesas obsessivas que permitem o controle dos afetos, o contato e o ajustamento à realidade. O fato de utilizar-se predominantemente desta defesa é favorável, do ponto de vista de prognóstico, visto que é uma defesa menos primitiva.
Pode-se, ainda, levantar a hipótese de ser um caso de resiliência. Todavia a confirmação desta hipótese será possível por meio de estudos ulteriores (follow up) realizados com os mesmos instrumentos de avaliação psicológica (Procedimento de Desenhos-Estórias, Método de Rorschach e CAT-A).
Referências
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Bowlby, J. (1981). Cuidados Maternos e Saúde Mental. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
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Rouyer, M. (1997). As Crianças Vítimas, Conseqüências a Curto e Médio Prazo. In: M. Gabei (Org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual (pp. 62-71). São Paulo: Summus. [ Links ]
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Weiner, I. B. (2000). Princípios da Interpretação com o Rorschach. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Winnicott, D.W. (1983). O Ambiente e os Processos de Maturação: estudos sobre o desenvolvimento emocional. Porto Alegre: ARTMED. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Rua Napoleão de Barros, 920 - apto. 82
CEP 04024-002 - V. Clementino - São Paulo-SP - Tel. (11) 5572-4100
Sobre a autora:
* Lucilena Vagostello é Docente da Faculdade de Psicologia da Unicastelo. Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.