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Psic: revista da Vetor Editora
versión impresa ISSN 1676-7314
Psic v.3 n.2 São Paulo dic. 2002
ARTIGOS
Uma tentativa de correlacionar a psicanálise e a teoria de desenvolvimento de Piaget, como um recurso da clínica
Isabel Cristina Gomes *; Ricardo Hissashi Sakamoto **
Universidade de São Paulo
RESUMO
Este artigo tem como objetivo tentar traçar uma possível aproximação e integração coerente com algumas contribuições da psicanálise, principalmente a psicanálise de Donald Winnicott, e a Teoria de Desenvolvimento de Jean Piaget. Inicia-se com uma indagação sobre as dificuldades encontradas no trabalho clínico; depois são mostrados alguns pontos de congruência entre as psicanálises e a teoria de Piaget e por fim é apresentado, um estudo de caso clínico como exemplo da articulação dessas idéias.
Palavras-chave: Psicanálise, Psicologia do desenvolvimento, Integração, Trabalho clínico.
ABSTRACT
This article is an attempt to show a possible approach and coherent joining with some contribution of psychoanalysis, mainly the Donald Winnicott Psychoanalysis, and contribution of Jean Piaget Theory. The article begins with a question about difficulties founded in the clinical work. Then some points of congruency are showed between the Psychoanalysis and the Piaget Theory. Eventually, a study of clinical case as example of the articulation of those ideas.
Keywords: Psychoanalysis, Psychology of development, Integration, Clinical work.
Introdução
Em relação ao pensamento pré-operatório da teoria de Piaget, uma indagação sempre nos ocorre: por que estamos freqüentemente nos deparando com nossa própria incapacidade de nos colocarmos no ponto de vista do outro (Egocentrismo), característica esta típica do pensamento de uma criança de 4 ou 5 anos? Se pararmos um pouco para pensar também é possível perceber continuamente características pré-operatórias em muitos dos nossos pensamentos, por exemplo, o raciocínio transdutivo e a centralização (Flavell, 1975), especialmente àqueles ligados a assuntos que envolvem grande carga afetiva. Considerando que temos todas as capacidades maturacionais e cognitivas para não cairmos nessas armadilhas, salvo por alguma falta de atenção (intencional ou não), por que insistimos nisso?
Sabemos como é difícil e complicado estabelecer uma boa comunicação com o paciente, principalmente nos momentos em que ele utiliza dessas estruturas cognitivas infantis para entender ou visualizar seus próprios conflitos e problemas. Não seria de grande ajuda se fosse possível determinar quais estruturas cognitivas que o paciente está utilizando nessas situações, para conseguirmos definir razoavelmente sua forma de pensamento e o que ele poderia ou não compreender nessas situações? Ou seja, como melhorar a comunicação com ele?
Baseando-se na experiência clínica, gostaríamos de propor um atendimento em que os conhecimentos das teorias psicanalíticas e a psicologia do desenvolvimento de Piaget fossem utilizadas de forma mais integrada.
Desenvolvimento
O interesse em aprender
De acordo com a teoria freudiana do Complexo de Édipo, a internalização da castração ocorre pelo pacto edípico (a lei do pai) e é condição necessária para que o indivíduo tenha interesse em apreender a cultura e se socialize, respeite o outro, etc. Essa internalização ocorre por culpa. Culpa pelo medo (o pai como representante da força) e pelo amor (o pai como alguém de quem o filho gosta e respeita) (Pellegrino, 1983).
Pela teoria de Piaget, o ser humano é naturalmente curioso e disposto a aprender sobre o ambiente ao seu redor por meio de uma experimentação ativa (Flavell, 1975). Pelas suas observações, desde que nascem, os bebês fazem movimentos para aprenderem, ou seja, quando agem por conta própria, as crianças exploram, descobrem e aprendem, salvo algum problema que as impeçam de se manifestar. Por isso, muitas vezes os piagetianos recomendam que não é bom impor o ensino de habilidades específicas, pois dessa forma estar-se-ia tirando a possibilidade de as crianças aprenderem por conta própria. Nesse sentido, Winnicott, com sua idéia de cura devolvendo ao paciente o potencial criativo perdido, possui um ponto de vista mais próximo ao de Piaget.
Apesar das teorias de Freud e Piaget sobre o desenvolvimento infantil serem aparentemente incompatíveis, ambas forneceram contribuições importantes, e acreditamos que é possível construir uma teoria sobre o desenvolvimento que se beneficie dessas articulações. A psicanálise, de um modo geral, entende que a capacidade para sentir culpa é condição para o desenvolvimento do indivíduo, tanto no sentido emocional como de conhecimento cognitivo e social. Mas aí não seria necessário recorrer à explicação do amor ao pai e a renúncia à mãe como fator determinante para que o ser humano tenha gosto em aprender ou em conhecer as leis, já que, para Piaget, isso é inato do indivíduo. A capacidade para sentir culpa não seria, então, essencialmente necessária para que o indivíduo aprendesse; embora, uma pessoa com pouca capacidade de sentir culpa seria alguém extremamente problemático e poderia realmente apresentar um desenvolvimento emocional comprometido.
Os estados de indiferenciação
Para Winnicott (1982), o bebê ao nascer, ainda não é capaz de se sentir diferenciado do mundo, não consegue estabelecer limites claros entre seu corpo e o ambiente externo. Os outros são prolongamentos do seu próprio corpo. A realidade para ele é confusa. Tal fato é compatível com a teoria de Piaget, quando ele propõe a idéia da provável presença de elementos de causalidade ou de eficiência mágico-fenomenística por parte da criança ou do bebê nos primeiros períodos do desenvolvimento, para elaborar e explicar situações (Piaget, 1975). Ou seja, a criança elabora de uma maneira bastante egocêntrica e presa em si.
A coordenação dos esquemas que aparece, segundo Piaget, ao fim do primeiro ano de vida do bebê, sugere um início desse processo de separação dentro-fora e depois para o eu-objetos (Flavell, 1975). Também o egocentrismo das crianças pré-operatórias poderia, então, ser um resquício da onipotência e do estado de indiferenciação do bebê com o mundo.
Experimentos sobre etologia humana sobre o sorriso nas crianças de 1 ano, propuseram a idéia de que o riso surge como uma expressão de uma sensação de domínio sobre o meio (Otta, 1994). A criança ri de coisas que ela mesma faz, uma sensação de prazer relacionada ao caráter exploratório que pode auxiliar nesse processo de diferenciação.
O caso Cláudia, 3 anos1
Quadro de sintomas
A queixa principal trazida pelos pais é de atraso no desenvolvimento. A criança exibe alguns comportamentos autísticos. As pessoas de seu convívio sempre dizem que Cláudia só interage quando é para conseguir algo de seu interesse e que ela é bastante teimosa quando quer alguma coisa. Às vezes, ainda pede pelo peito da mãe. Ela também possui alguns comportamentos fóbicos como se angustiar com a porta fechada, o medo do escuro e de retenção das fezes. (Chegou a ficar 18 horas sem eliminar nada, segundo os pais.)
As sessões
Durante as entrevistas com os pais, como parte do psicodiagnóstico, o casal mostrou um interesse genuíno em resolver esses problemas da filha, além de serem atenciosos com ela. A mãe se mostrou uma pessoa bastante preocupada com a higiene e a lógica; por exemplo, com a sujeira que a filha pudesse fazer na sala e nela própria, trazendo mudas de roupa para trocá-la, querendo que ela brincasse do modo correto (pintando dentro de espaços determinados, criando brincadeiras adequadas com os brinquedos), etc; expectativas às quais a menina não correspondia. Nessas sessões com a mãe2, Cláudia demonstrou uma grande necessidade em permanecer junto dela, principalmente nas primeiras sessões, em que a relação com a psicóloga não era forte. Pegava duas bonecas de pano e as colocava bem juntas, como se fossem mãe e filha, andando com elas pela sala de atendimento, frustrando totalmente o desejo da mãe. Houve uma outra sessão com a mãe, em que a menina explorava as massinhas, e a primeira ficou bastante incomodada, interferindo e tentando impor uma organização à "brincadeira" da criança.
A esposa parece estar no "comando" da relação do casal, pois nas sessões da filha com o pai, nas quais ela brincou com mais soltura (fazendo "melecas" com as tintas), por várias vezes o pai fazia referências à criança, dizendo que a "mamãe" não iria gostar da sujeira que estavam fazendo.
Interpretações
Pode-se dizer que os comportamentos fóbicos da menina estão relacionados a angústia diante do contato com a mãe, já que esta ultima demonstra uma grande dificuldade em expressar amor pela filha. A mãe mostra-se extremamente cuidadosa com a rotina da casa, mas não pode estar com a menina, sendo continente das suas angustias primitivas (há indícios de alguns problemas de aceitação do bebê, no nascimento,por parte desta mãe) e propiciando um espaço criativo, já que é tão presa a regras.
Quanto ao seu desenvolvimento, Cláudia ainda está num estágio pré-edípico em que ainda não foi capaz de internalizar a castração. Sua mãe tem muita dificuldade em impor-lhe limites. A palavra do pai tem pouco poder, a mãe é quem se encarrega de fazer a lei e, além disso, o casal parece estar em crise. Ou seja, não há relação triangular, a menina não é a terceira da relação: existe somente a mãe e a filha. Cláudia ainda pede pelo seio da mãe quando muito angustiada. Não havendo relação triangular, não há Complexo de Édipo, não se internaliza a culpa nem a castração, e a criança não se desenvolve.
Contribuição de Piaget e Discussões
Um processo interventivo/terapêutico que levasse somente em consideração os aspectos dinâmicos/emocionais e familiares seria suficiente ou se obteria um progresso muito lento no desenvolvimento da menina? Sem dúvida, essa mãe excessivamente preocupada com a ordem e a higiene também influenciava para o atraso de Cláudia. Quanto à questão dos limites, não é totalmente correto afirmar que a mãe não os colocava. Ela colocava-os, mas de uma forma que não era significativa para a criança. A mãe, possuindo uma postura muito pedagógica no brincar com sua filha, impondo um ensino de habilidades específicas dentro do seu desejo e não o que a criança tinha interesse em aprender, tira a possibilidade menina adquirir uma identidade, aprendendo por conta própria, por meio um processo de interação com um ambiente criativo e facilitador. Além disso, tais habilidades que essa mãe impõe à filha pressupõem uma estrutura cognitiva que Cláudia ainda não desenvolveu. Por exemplo, os pais insistiam em fazer com que a menina respondesse o nome correto das cores e copiasse o que eles desenhavam, mas a menina ainda possui a capacidade simbólica pouco desenvolvida. Muitas vezes, nem sequer pode compreender o que os pais estão pedindo.
Se fôssemos classificar Cláudia num dos períodos da teoria do desenvolvimento de Piaget, podíamos facilmente perceber que ela ainda se encontra no estágio sensório-motor, embora já demonstre uma precária capacitação da função simbólica, como conseguir representar os bonecos de pano como pessoas de sua família, indicando um bom prognóstico. A menina demonstra grande interesse em fazer a exploração sensorial do seu ambiente - o que contribuiria enormemente para seu desenvolvimento -, mas a preocupação excessiva dessa mãe com a ordem e a higiene limita suas possibilidades de fazer esta exploração.
Conclusão
Concluindo, a idéia de articular conceitos da psicanálise (Freudiana e Winnicottiana) com a teoria de desenvolvimento de Piaget tem como finalidade ampliar a visão do clínico, principalmente em casos que envolvam atrasos ou déficits no desenvolvimento infantil, como o ilustrado anteriormente.
Referências
Flavell, J. H. (1975). A teoria. In A psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget. (cap. 3-4) São Paulo: Pioneira. [ Links ]
Otta, E. (1994). O sorriso e seus significados. (p. 32). Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]
Pellegrino, H. (1983, 11 de setembro). Pacto Edípico e pacto social. Folha de S. Paulo, São Paulo, Folhetim. [ Links ]
Piaget, J. (1975). O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1982). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, RS: Artes Médicas Sul. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Endereço para correspondência:
E-mail: isagomes@nw.com.br
Encaminhado em 18/02/03
Aceito em 08/07/03
Sobre os autores:
* Isabel Cristina Gomes é Professora Doutora do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP.
** Ricardo Hissashi Sakamoto é Aluno de Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
1 Nomes fictícios para preservar a identidade dos pacientes atendidos na clínica-escola do IPUSP.
2 Ao longo do processo psicodiagnóstico, foram realizadas entrevistas com o casal, entrevistas familiares e entrevistas com a mãe e a filha, e o pai e a menina com a finalidade de se entender o estabelecimento dos vários vínculos familiares.