Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Psic: revista da Vetor Editora
versión impresa ISSN 1676-7314
Psic v.7 n.2 São Paulo dic. 2006
ARTIGOS
Homofobia em contextos jovens urbanos: contribuições dos estudos de gênero
Homophobia in young urban contexts: contribution to the gender studies
Homofobia en contextos jóvenes urbanos: contribuciones de los estudios de género
Maria Juracy Filgueiras Toneli 1
Universidade Federal de Santa Catarina
RESUMO
O presente trabalho baseia-se em resultados concernentes à cidade de Florianópolis, SC, de pesquisa multicêntrica desenvolvida em cinco capitais brasileiras e financiada pelo Ministério da Saúde. Investigou-se o exercício da sexualidade em contextos jovens urbanos, por meio de entrevistas semi-estruturadas e grupos focais com estudantes de 15 a 24 anos matriculados em escolas públicas. O recorte utilizado focaliza os depoimentos sobre as relações homoeróticas e os direitos dos homossexuais. Destaca-se o caráter homofóbico dos discursos de muitos jovens que argumentam pelo temor do assédio dos homossexuais, bem como pela sua própria reputação como homens viris caso sejam identificados por meio de relações de amizade com gays. Essencialismos biológicos e fundamentalismos religiosos são identificados nos depoimentos, visibilizando concepções binárias de gênero e sexualidade, que classificam os sujeitos a partir de identidades sexuais fixas. Conclui-se que os preconceitos se mantêm presentes no grupo investigado, a despeito dos poucos depoimentos que relativizam essas posições.
Palavras-chave: Sexualidade, Juventude, Relações de gênero.
ABSTRACT
This work is based on results collected in Florianópolis (Brazil), of a multicentric research developed in five Brazilian capitals and financed by the Health Department. The exercise of the sexuality in young urban contexts was investigated by semi-structuralized interviews and focal groups with public schools students from 15 to 24 years old. The clipping focuses the declarations about homoerotic relationships and the rights of the homosexuals. The homophobic character is highlighted in the speeches of younger men that argue for the fear of the siege of the homosexuals, as well as for its own reputation as males if they are identified by other people by means of the friendship with gays. Biological essentialisms and religious fundamentalisms are present, giving visibility the binary conceptions on gender and sexuality that classify the citizens from fixed sexual identities. The conclusion was that the preconceptions remain in the investigated group, in spite of the few statements that balance their positions.
Keywords: Sexuality, Youth, Gender relationship.
RESUMEN
Este trabajo está cimentado en resultados referentes a la ciudad de Florianópolis (Brasil), de una pesquisa multicéntrica desarrollada en cinco capitales brasileñas y financiada por el Ministerio de la Salud. Se ha investigado el ejercicio de la sexualidad en contextos jóvenes urbanos por medio de entrevistas e grupos focales con estudiantes de 15 a 24 años de escuelas públicas. El recorte utilizado centra las declaraciones sobre las relaciones homo eróticas y los derechos de los homosexuales. Se ha destacado el carácter homo fóbico de los discursos de muchos jóvenes que argumentan que tienen miedo del asedio de los homosexuales, así como por su reputación como hombres viriles en el caso de ser identificados por medio de relaciones de amistad con gays. Esencias biológicas e fundamentalismos religiosos han sido identificados en las declaraciones, permitiendo una visibilidad de concepciones binarias de género y sexualidad que clasifican a los sujetos a partir de identidades sexuales fijas. Se ha concluido que los preconceptos en el grupo investigado se mantienen presentes, a pesar de las pocas declaraciones que se refieren a esas posiciones.
Palabras clave: Sexualidad, Juventud, Relaciones de género.
Introdução
No dia 22 de setembro de 2005, toda a região do Largo da Ordem em Curitiba - tradicional reduto de bares, artistas, boêmios e da feira de artesanato aos domingos - amanheceu repleta de palavras de ordem contra negros e homossexuais. Acontecimentos como esse que incitam à extinção da diversidade, seja ela sexual, étnica/racial, religiosa, não são recentes na história da humanidade. Resquícios eugenistas também podem ser identificados em discursos contemporâneos como o utilizado pelo governador do estado de Santa Catarina, em um artigo no qual defendeu a utilização das descobertas sobre o genoma humano para que as pessoas possam evitar que seus filhos nasçam "feios, deformados, deficientes ou idiotas" e que a clonagem poderia favorecer a duplicação de "gênios ou pessoas de beleza excepcional" 2. Fundamentalismos de naturezas distintas atravessam nossa vida cotidiana tornando cada vez mais difícil a convivência com a diversidade, que, por outro lado, é fundante do sujeito constituído em meio e por meio de relações sociais complexas, a partir de práticas discursivas e não discursivas distintas. É nesse cenário que proponho a discussão que aqui será desenvolvida, na tentativa de contribuir para o debate sobre gênero, Psicologia e violência.
Tomou-se por base as idéias de Michel Foucault, para quem a sexualidade foi inventada como um "instrumento-efeito na expansão do biopoder" (Dreyfus & Rabinow, 1995, p. 185). Na passagem do século XVIII para o século XIX, houve uma mudança de uma sexualidade como aspecto indiferenciado da vida cotidiana e relativamente livre, para outra vigiada e controlada. O dispositivo da sexualidade (entendido como estratégias de força que suportam tipos de saber e vice-versa) permitiu ao biopoder estender suas redes ao sujeito individual. Com efeito, até o século XVIII, os principais códigos legais ocidentais centravam-se no dispositivo da aliança que articulava as obrigações religiosas ou legais do casamento com a transmissão da propriedade e dos laços de sangue, constituindo o sistema social. O dispositivo da "sexualidade" tem sua origem na separação do sexo do dispositivo da aliança.
A sexualidade é da ordem do indivíduo. Diz respeito aos prazeres e às fantasias ocultos, aos excessos perigosos para o corpo e passou a ser considerada como a essência do ser humano individual e núcleo da identidade pessoal. Para Foucault (1984, 1994, 1997), as formas de dominação ligadas à identidade sexual são características de nossas sociedades ocidentais e, por isso mesmo, mais difíceis de serem identificadas por nós que preferimos acreditar que os movimentos de auto-expressão sexual são resistências às formas de poder em vigor. Foucault (1984, 1994, 1997) não os vê como inerentemente livres ou opostos à dominação. A reformulação do discurso sobre a sexualidade em termos médicos demonstra bem sua articulação com uma forma poderosa de saber que conecta indivíduo, grupo, sentido e controle. As classificações das perversões, das sexualidades desviantes e "improdutivas", encontram-se associadas a uma "ortopedia" do sexo que incide sobre o corpo - o lugar da sexualidade - que passa a ser escrutinado nos menores detalhes em busca de todos os segredos biológicos e psíquicos.
Considerando gênero como uma produção histórica e cultural baseada nas diferenças percebidas entre os sexos que organiza a vida social por meio de relações assimétricas, o que importa aqui é sublinhar as relações possíveis entre gênero, subjetividade, sexualidade e violência à luz das contribuições dos estudos de gênero (Butler, 1990, 1993; Connel, 1995, 1997, 1998; Fuller, 1997; Godelier, 1996; Kimmel, 1997, 1998a, 1998b; Nascimento, 1999; Welzer-Laing, 2001, 2004).
O objeto da discussão desenvolvido é fruto de pesquisa concluída pelo Núcleo de Pesquisa MARGENS (Modos de Vida, Família e Relações de Gênero), na qual, em parceria com as organizações não-governamentais Instituto Papai (PE) e ECOS (SP), com financiamento do Ministério da Saúde, foram investigados aspectos relacionados à vida sexual e reprodutiva de jovens estudantes de 15 a 24 anos, matriculados em escolas da rede pública de ensino em cinco capitais brasileiras. Nessa pesquisa, entre outros elementos, buscou-se identificar como os jovens vivenciam sua sexualidade, a iniciação sexual, parceiros, cuidados com a saúde sexual e reprodutiva, bem como a relação com o próprio corpo e suas transformações.
Pesquisas realizadas pela WHO (2000, 2001), no âmbito do exercício da sexualidade em populações jovens, sugerem a vulnerabilidade desses grupos não apenas com relação às DST/Aids, mas, também, com relação às situações de violência relacionadas aos padrões culturais de gênero, especialmente entre os jovens homens. Entende-se, portanto, a importância de investigações de caráter qualitativo que incidam sobre o exercício da sexualidade em populações jovens pelo desafio de:
tentar compreender o comportamento: como ele é gerado e o que o alimenta. A partir desse entendimento, é necessário propor alternativas em diferentes focos, buscando canais de comunicação e diálogo para auxiliar os jovens no enfrentamento das problemáticas que põem em risco suas vidas e qualidades de vida. [...] Propostas de intervenção devem ser desenvolvidas a partir do entendimento da lógica que rege o comportamento dos indivíduos e grupos (Rios, Pimenta, Brito, Terto Jr. & Parker, 2002, p. 59).
Método
Como procedimentos básicos foram utilizados grupos focais (divididos por sexo e faixa etária - 15 a 19 anos e 20 a 24 anos -, totalizando oito grupos e 64 sujeitos) e entrevistas semidirigidas (no total de 12, também divididas por sexo e faixa etária). O acesso aos jovens se deu por meio de contatos realizados com a equipe técnica de uma grande escola da rede pública de ensino de Florianópolis. Esse acesso foi facilitado uma vez que o núcleo já vinha desenvolvendo projetos de pesquisa naquela unidade escolar. Cada jovem foi contatado individualmente, contato este mediado pelas orientadoras educacionais uma vez que havia o critério etário, e, caso concordasse em participar ciente de seus direitos e das especificidades da investigação, assinava o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (sendo que os menores de idade levavam o documento para que o responsável o assinasse). As entrevistas e os grupos focais foram agendados conforme a disponibilidade de horário e data dos jovens e realizados na própria escola. Seguiram um roteiro padrão que constava de grandes blocos temáticos: vivências e práticas sexuais; cuidados; direitos e acesso a serviços. Em cada um desses blocos, observou-se a preocupação em identificar os motivos que subjaziam às concepções e comportamentos explicitados. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.
Todo o material foi gravado em áudio e transcrito na íntegra. Foi utilizada a análise de conteúdo temática, com base na pauta das entrevistas e grupos focais, sendo que foram elaboradas categorias a posteriori. Não se utilizou análise de recorrência e, sim, a análise dos significados e sentidos identificados no material discursivo.
Esses jovens investigados são oriundos de camadas populares e moradores de bolsões de miséria instalados nos morros por trás da escola onde estudam. Esta, por sua vez, fica na rua principal de um bairro de camadas médias altas, próximo a outro habitado pelas elites da cidade. Também não fica distante do único shopping center do município que serve de local de lazer gratuito para esses rapazes e moças que ali transitam nos finais de semana. Pode-se identificar que a idade média de iniciação sexual encontra-se em torno dos 15 anos para ambos os sexos. Muitos dos rapazes envolvem-se com a rede de tráfico de drogas em busca de uma renda fácil que lhes permita o acesso a bens de consumo como aqueles com os quais convivem cotidianamente nas imediações da escola. A rede proporciona, ainda, o alcance de posições de prestígio e atesta, por suas implicações e riscos, a virilidade desses jovens homens que se pautam em um modelo de masculinidade que engendra características como: força, coragem, ousadia, mando (Connell, 1997, 1998; Kimmel, 1998b; Nascimento, 1999). O risco de vida, demonstrado pelas estatísticas de homicídios de jovens homens pobres no Brasil e em Florianópolis, não lhes é desconhecido. Funciona, no entanto, como mais um elemento que atesta sua masculinidade. O uso de bebidas alcoólicas inclui-se nesse lócus que tem nesses elementos-alvo de investimento e de marca de um masculino exaltado pelos pares e pelas garotas também.
Resultados
O material discursivo obtido evidenciou posições sobre as relações homoeróticas e os direitos de minorias como aquelas representadas pelo movimento GLBTT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros). São expostos trechos desses discursos, entendendo que são produzidos por meio de relações sociais complexas mediadas semioticamente nas quais múltiplos sujeitos se fazem presentes (e não apenas aquele que fala em um determinado momento). Ou seja, não se propôs aqui que esses jovens representem toda uma diversidade de posições. Foi proposto, no entanto, que, como sujeitos, são produzidos a partir de práticas discursivas múltiplas oriundas de momentos históricos e grupos culturais diferentes.
Todos os discursos remetem invariavelmente a um universo heterossexual, no qual a homossexualidade é o abjeto, diferenciando de forma marcante o "nós" e os "outros". Butler (1990) discute como gênero, prática sexual e desejo foram estabelecidos e argumenta que é por meio da instauração da "matriz heterossexual" que a inteligibilidade de gênero naturaliza corpos, gêneros e desejos. Rapazes e moças entrevistados evitaram falar sobre a sexualidade homoerótica como algo presente em suas próprias vivências. Admitiram conhecer homossexuais, de ambos os sexos, bem como conviver com eles. No entanto, circulam entre as normas e os padrões aceitos pelo grupo de iguais, nos quais a homossexualidade continua sendo um tabu. Comentam que, se os rapazes homossexuais deles se aproximarem, preocupam-se em esclarecer que não há qualquer interesse erótico-amoroso entre eles.
Não relatam experiências de convívio homoerótico, evidenciando que se trata de um campo que não se pode tocar, nem nomear. Pautam-se em padrões de moralidade baseados em modelos de masculinidades nos quais a virilidade heterossexual é almejada. Seguindo os modelos de constituição familiar do sul do país, marcado por colonizações alemãs e italianas, bem como portuguesa dos Açores no caso específico de Florianópolis, há uma padronização de moral e de costumes que reforça valores heteronormativos. Não se trata, porém, de um caso singular, descolado da heteronormatividade dominante nas relações sociais.
Os garotos de 15 a 19 anos tratam o tema com resistência, afirmando serem contra. Fazem piadas, riem e remetem a colegas e a um professor da escola. Alguns afirmam que quando um amigo é gay a amizade não muda, porém fazem piadas e demonstram preocupação com a opinião dos colegas e medo de o garoto "dar em cima" deles. Alguns afirmam que os homossexuais também são cidadãos e deveriam ter os mesmos direitos que os heterossexuais, mas não os têm. Já em outro grupo focal da mesma faixa etária, esse tema gera uma maior discussão, na qual alguns defendem a idéia de que homossexuais não devem ter os mesmos direitos. Mais de um informante citou a influência religiosa nessas questões, colocando que não aceitam a homossexualidade, como na seguinte afirmação: "Não, não têm direito. Se Deus fez o homem e a mulher é porque o homem é pra mulher e a mulher pro homem. Não tem essa de você e ela. Só porque inventaram o veado, veado é um animal." (GF Meninos 15-19 anos)
Nos grupos de garotos de 20 a 24 anos o tema foi tratado com muita discussão, surgindo desde opiniões homofóbicas a outras que aceitam até que homossexuais adotem filhos. Nota-se que diferente dos grupos de meninos mais jovens, que repudiavam a homossexualidade de forma enfática, associando-a ao universo feminino e ameaçador para a masculinidade, o grupo de garotos mais velhos mostrou uma maior diversidade de opiniões. Surgiram desde afirmações que repudiam a homossexualidade e amigos homossexuais, com medo do que outras pessoas possam pensar de sua própria sexualidade, a outras afirmações que colocam os homossexuais como amigos e pessoas que conhecem mais o universo das garotas. Nesse caso, os homossexuais são vistos como aqueles que podem ajudá-los em suas conquistas, apresentando amigas e orientando os homens heterossexuais a terem sucesso nos jogos de sedução amorosa, como ilustrado nesta fala: "É legal porque eles dão uns toques sobre as mulheres, porque elas fazem as coisas na frente deles." (GF Meninos 20-24 anos)
Interessante observar a diferença entre os grupos de meninos mais novos e mais velhos sobre a amizade com gays. Os garotos mais jovens buscam se afirmar mais em grupo, vendo a amizade com gays como uma ameaça à sua masculinidade. Já alguns garotos mais velhos, afirmam sem problemas que têm amigos gays. No entanto, o medo do assédio mantém-se presente exigindo uma delimitação de posições para que a relação de amizade possa ser estabelecida, como demonstra o trecho seguinte:
Eu tenho amigos que são assim. Mas antes eu tive uma conversa, disse assim: "Quer ser meu amigo, tudo bem, vou tratar igual, mas não vem para cima de mim." A gente se abraça, beija, normal, às vezes eu fico meio assim, mas normal. (GF Meninos 20-24 anos)
É possível identificar uma confusão em relação à definição da homossexualidade, surgindo afirmações de que "gay não é homem", aproximando os homossexuais do universo feminino e repudiando os bissexuais. Vê-se, também, uma tentativa dicotômica de classificar os sujeitos como masculinos ou femininos, a partir de uma lógica binária, atada à concepção de identidades sexuais fixas reveladoras dos sujeitos e suas verdades. A confusão instaura-se entre os jovens quando esses pólos não estão bem-definidos. Os homossexuais que não se enquadram nas categorias dos travestis e drags são tidos como masculinos e discretos. Os bissexuais, por sua vez, são repudiados talvez exatamente porque mantêm a ambigüidade perigosa, representando uma ameaça silenciosa e constante de assédio. As explicações essencialistas fundamentam as lógicas argumentativas utilizadas por rapazes e moças, como o seguinte trecho que afirma a inexistência de bissexuais, uma vez que se nasce homossexual, não sendo possível tornar-se um durante a vida adulta:
Quando a sexualidade se forma, a pessoa... A criança, com 6 anos, a partir dos 6 anos que se forma se você vai ser homossexual ou não. Não é... não é opção, opção da pessoa. Não, é "eu vou ser homossexual", geralmente já vem. (GF Meninos 20-24 anos)
A afetividade entre as mulheres também pode ser vista a partir do prisma essencialista, sendo que um dos jovens estabelece uma relação entre as formas de sociabilidade femininas e a homossexualidade. Esse jovem afirma que as mulheres, por serem mais afetivas entre elas, teriam tendências homossexuais, como se evidencia em sua fala:
A mulher, eu acho que já tem uma tendência à homossexualidade. Porque a mulher se abraça, faz carinho, brinca, já tem uma certa tendência. Aí pra mulher, o problema não é tão grande. Acho que a mulher já tem uma certa tendência. (GF Meninos 20-24 anos)
O tema adoção por homossexuais e direitos gerou bastante polêmica nos grupos de garotos, nos quais alguns jovens se manifestaram contra, justificando-se pelo preconceito que o filho iria sofrer e por fragmentos vulgarizados das teorias de desenvolvimento divulgadas pela mídia. Outros apontavam opiniões favoráveis, principalmente quando o casal homossexual tem um bom padrão financeiro, considerando o número de crianças abandonadas e que passam necessidades. Ou seja, a adoção por homossexuais pode significar algo menos pior do que o abandono.
Somente nesse grupo de garotos de 20 a 24 anos, surgiu o tema relações pagas, quando se discutia a homossexualidade. Um dos jovens comenta sobre colegas de um time de futebol que se relacionavam sexualmente com gays quando se encontravam em dificuldades financeiras e colegas do trabalho que recebiam propostas em dinheiro por parte de homossexuais para serem vistos nus.
Quando questionadas sobre relações homoeróticas, as garotas são contraditórias, dizendo primeiramente que acham "normal", porém quando começam a citar exemplos de pessoas que conhecem ou situações específicas, surgem preconceitos, principalmente nas falas das mais jovens. Em um dos grupos de 15 a 19 anos, por exemplo, uma das garotas afirmou a respeito de uma lésbica por ela conhecida: "Ela tem uma filha normal, porque ela era casada com um homem." A maior preocupação das meninas em terem uma amiga lésbica, de maneira semelhante aos jovens homens investigados, é o possível assédio que imaginam vir a sofrer.
Apesar dessa preocupação e de não demonstrarem abertura às experiências homoeróticas, bem como não relatarem qualquer tipo de curiosidade ou sequer considerarem a possibilidade de elas próprias terem vivências dessa ordem, as garotas afirmam que não teriam problema em ter uma amiga que se relacionasse com outra menina. Elas imaginam que, diferentemente, os garotos não aceitariam ter um amigo gay pelo mesmo motivo: o medo de serem assediados. Este receio faz com que acreditem que homens que se relacionam com outros homens e mulheres que se relacionam com mulheres devam "assumir" que são gays ou lésbicas, como se quisessem delimitar o "lugar", a posição de cada pessoa (Butler, 1993; Foucault, 1997, 1994, 1984). Como afirmaram em um dos grupos de garotas de 20 a 24 anos: "Acho que tem que ser fiel ao que diz"; "(...) ele tem que assumir o que é"; "ele tem que demonstrar para todo mundo o caráter dele, o que ele é".
Quando se trata dos direitos dos homossexuais, as garotas de 15 a 19 anos falam sucintamente dizendo apenas que eles deveriam ser os mesmos de qualquer cidadão, mas que isso não acontece por existir muito preconceito na sociedade em geral. Já as de 20 a 24 anos discorrem mais sobre a temática, centrando-se na questão da adoção. Defendem que esse direito deva ser estendido aos homossexuais, alegando que existem muitas crianças abandonadas e que poderiam ser mais bem cuidadas por eles ou elas, por geralmente possuírem melhores rendimentos do que a maioria dos heterossexuais e terem muita vontade de ter filhos. Os argumentos, portanto, são os mesmos de alguns dos rapazes.
Discussão e conclusão
Os teóricos que escrevem sobre as masculinidades, entre eles Connel (1995, 1997, 1998) e Kimmel (1997, 1998a, 1998b), são enfáticos ao afirmarem que a busca de afirmação de uma sexualidade que se distancie de elementos ditos femininos é marcadamente central na constituição das masculinidades. Assim, a homofobia aparece como elemento que rege as interrelações dos homens em seus diversos contextos, de forma tal que busca afastar e rechaçar aproximações em torno de tudo que lembre o feminino, o que inclui os modelos homossexuais.
Kimmel (1997) afirma que as mulheres e os homens gays vêm a se converter em outros contra os quais os homens heterossexuais projetam suas identidades, de tal modo que eles devam afirmar sua virilidade colocando-se em posição de destaque em relação a esses outros, suprimindo-os e proclamando, assim, sua própria virilidade. Outrossim, Fuller (1997) afirma que se forma um simulacro, um repúdio que busca dar conta da maneira como a identificação de gênero se volta e se fixa em cada sujeito. Remetendo-se a Butler (1993), Fuller diz que esse espectro do que o sujeito não deve ser, no qual se instalam a homofobia e o sexismo, seria mais bem trabalhado por meio do conceito de abjeto. Ou seja, o ponto, esse lugar que se encontra nas brechas, em que o sujeito estaria perdendo sua condição de tal. Em outros termos, configuraria um lugar de busca de saída dos binarismos tais como homem e mulher, embasados em "fantasmas normativos do sexo".
As chamadas "teorias queer" apontam exatamente para a necessidade da desconstrução dos binarismos estanques. Welzer-Lang (2001), por exemplo, argumenta que o gênero é definido, mantido e regulado por violências, o que tende à perpetuação dos poderes atribuídos coletiva e individualmente aos homens à custa das mulheres. Embora existam diversas constituições de homens e de masculinidades, elas remetem e são remetidas a uma suposta "natureza superior" do homem que, por sua vez, remete à dominação masculina. Nesse sentido, sustentam a existência de uma visão heteronormativa do mundo e da sexualidade, bem como das desigualdades vividas pelas mulheres como efeito das vantagens atribuídas aos homens. A dominação masculina e as relações homens-homens são marcadas por violências, simbólicas e concretas, de sorte que para ser homem é imperativo distanciar-se do oposto - mulheres e crianças, tornando o feminino o aspecto central a ser rejeitado, sob pena de ser (mal)tratado como tal (núcleo da homofobia). Ademais, os próprios homens são submetidos a hierarquias masculinas que incluem vetores como os de classe e de etnia.
Segundo o autor, existem diversas constituições de homens (entre elas, as drag-queens e os travestis). Os modelos e as reivindicações destes homens expõem uma variedade extrema, mas eles têm em comum o fato de se colocar objetivamente e/ou que existe uma pseudo-natureza superior do homem, que engendra (e justificaria) a dominação masculina. Para Welzer-Lang (2001, 2004), assim como para Connel (1995, 1997, 1998) e Kimmel (1997, 1998a, 1998b), o gênero mantêm-se e é definido e regulado por violências, o que tende a perpetuar os poderes que se atribuem coletivamente e individualmente aos homens à custa das mulheres. Dessa maneira, a dominação masculina e as relações homens-homens são marcadas por violências, simbólicas e concretas, assim como as pesquisas de Godelier (1996) com sociedades primitivas demonstram sobre "a casa dos homens": rituais de passagem para construir o fortalecimento dos homens em detrimento das mulheres.
Fazendo um paralelo entre as sociedades complexas, Welzer-Lang (2001, 2004) afirma que aprender a sofrer é norma para ser homem. Aceitando as leis dos maiores, os que detêm a dominação, os homens que são poderosos e que oprimem outros homens e outras mulheres, é que se constituem as identidades masculinas. Ademais, para ser homem é preciso se distanciar do oposto, ou seja, das mulheres e das crianças. Para ser homem é preciso não ser associado à mulher. O feminino torna-se o pólo de rejeição central, o inimigo interior que deve ser combatido sob pena de também ser assimilado a uma mulher e também ser (mal)tratado como tal. Apreende-se a sexualidade masculina por dessa iniciação, a partir dos prazeres de se estar entre homens e ser distinguido das mulheres.
Em relação aos homens, a dominação produz homofobia para que, com ameaças, os homens se calquem sobre os esquemas ditos normais da virilidade. Mesmo sendo um homem, um grande homem, todo homem está também submetido às hierarquias masculinas. Nesse duplo poder, aparecem homens que têm poder sobre homens e sobre mulheres, estruturando-se, assim, as hierarquias masculinas.
Como se pode identificar, a partir desse exemplo de pesquisa, eles e elas, entre 15 e 24 anos, mantêm concepções essencialistas e preconceituosas com relação ao homoerotismo. Algumas delas fundamentam-se em idéias religiosas e/ou oriundas de explicações biológicas e psicológicas vulgarizadas no âmbito do senso comum. Nenhum deles ou delas relatou, mesmo nas entrevistas individuais, qualquer envolvimento ou experiência homoerótica. Subjetividades jovens materializadas em corpos sexuados e produzidas a partir de práticas discursivas heteronormativas permanecem atadas à identidade sexual, impossibilitadas de criarem novas formas de subjetivação para além daquelas que as assujeitam.
A influência biomédica pode ser identificada até os dias atuais quando o próprio Conselho Federal de Psicologia, em resolução de 1999, teve o cuidado de alertar os psicólogos brasileiros sobre o fato de que a homossexualidade "não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão" e de que "há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida sócio-culturalmente", além de que "a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações".
No DSM IV (APA, 1995), as anomalias referentes à sexualidade mantêm-se presentes, a despeito da retirada do termo "homossexualismo" em 1971. Pode-se considerar como um eufemismo o termo classificatório agora utilizado: transtorno de identidade de gênero. Observa-se aqui, a heteronormatividade adotada como padrão, embora haja uma tentativa de separação entre o transtorno como é definido (incluindo o desconforto e a insatisfação com o próprio sexo) e a orientação sexual. As orientações sobre os sinais de transtornos nas diversas fases do ciclo vital permitem identificar os limites tênues que podem desencadear confusões mesmo entre os profissionais, como no trecho seguinte:
Em meninos, a identificação com o gênero oposto é manifestada por uma acentuada preocupação com atividades tradicionalmente femininas. Eles podem manifestar uma preferência por vestir-se com roupas de meninas ou mulheres ou improvisar esses itens a partir de materiais disponíveis, quando os artigos genuínos não estão à sua disposição. [...] Esses meninos evitam brincadeiras rudes e esportes competitivos e demonstram pouco interesse por carrinhos ou caminhões ou outros brinquedos não-agressivos, porém estereotipicamente masculinos. [...] Pode haver, também, uma insistência em urinar sentados e em fingir que não possuem pênis, escondendo-o entre as pernas. (APA, 1995, p.183)
A heteronormatividade impera ainda nos dias atuais como um padrão que estende suas implicações desde o cotidiano da vida dos sujeitos até os estudos e concepções sobre a normalidade e as anomalias nesse cenário. As terminologias mudam (gays, lésbicas, travestis, transgêneros, drags, etc), mas as regras morais associadas às explicações científicas parecem perdurar compreendendo a sexualidade de forma naturalizada e perigosa. O fetichismo, o travestismo e o sadomasoquismo, por exemplo, continuam presentes como transtornos tanto no DSM IV (APA, 1995), quanto no CID 10 (WHO, 2005), assim como os transtornos da identidade de gênero. Nesse caso, pode-se argumentar que o caráter polimórfico da sexualidade humana não é visto como "normal", a despeito de todas as lutas nesse sentido.
Não parece estranho, portanto, que os rapazes e as moças que participaram da pesquisa mantenham a heterossexualidade como normativa e temam as referências a qualquer coisa que fuja a esse padrão. Esses devires homens e mulheres permanecem assujeitados à verdade imperativa do sexo, correndo o risco, até mesmo, de perpetuarem preconceitos e outras modalidades de violência nesse cenário. Os lugares da Psicologia e da Educação nesse campo precisam ser continuamente revistos e debatidos, sob pena de colaborarem para a manutenção de uma ordem societária discriminatória e excludente.
Referências
American Psychiatric Association (1995). DSM IV - Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Butler, J. (1990). Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York: Routledge. [ Links ]
Butler, J. (1993). Bodies that matter: On the discursive limits of sex. New York & London: Routledge. [ Links ]
Connell, R. W. (1995). Masculinities. Berkeley: University of California Press. [ Links ]
Connell, R. W. (1997). La organización social de la masculinidad. Em T. Valdés, & J. Olavarria (Orgs.). Masculinidad/es (pp. 31-48). Santiago: FLACSO. [ Links ]
Connell, R. W. (1998). El imperialismo y el cuerpo de los hombres. Em T. Valdés, & J. Olavarría (Orgs.) Masculinidades y equidad de género en América Latina (pp. 76-89). Santiago: FLACSO. [ Links ]
Conselho Federal de Psicologia (1999). Resolução 01/1999. Disponível em www.pol.org.br. [ Links ]
Dreyfus, H., & Rabinow, P. (1995). Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. [ Links ]
Foucault, M. (1984). História da Sexualidade - O Uso dos Prazeres (Vol. 2). Rio de Janeiro: Graal. [ Links ]
Foucault, M. (1994). Dits et écrits (Vol. 5). Paris: Gallimard. [ Links ]
Foucault, M. (1997). História da Sexualidade - A Vontade de Saber (Vol. 1). Rio de Janeiro: Graal. [ Links ]
Fuller, N. (1997). Identidades masculinas. Lima: Fondo Editorial Pontificia Universidad Católica del Perú. [ Links ]
Godelier, M. (1996). La production des Grands Hommes. Paris: Fayard. [ Links ]
Kimmel, M. (1997). Homofobia, temor, vergüenza y silencio en la identidad masculina. Em T. Valdés, & J. Olavarria (Orgs.). Masculinidades (pp. 49-62). Santiago/Chile: FLACSO. [ Links ]
Kimmel, M (1998a). A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos, 4(9), 103-117. [ Links ]
Kimmel, M. (1998b). El desarrollo (de género) del subdesarrollo (de género): la producción simultánea de masculinidades hegemónicas y dependientes en Europa y Estados Unidos. Em T. Valdés, & J. Olavarría (Orgs.). Masculinidades y equidad de género en América Latina (pp. 207-217). Santiago/Chile: FLACSO. [ Links ]
Nascimento, P. (1999). 'Ser homem ou nada': Diversidade de experiências e estratégias de atualização do modelo hegemônico da masculinidade em Camaragibe/PE. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, Recife. [ Links ]
Rios, L. F., Pimenta, C., Brito, I., Terto Jr., V., & Parker, R. (2002). Rumo à adultez: oportunidades e barreiras para a saúde sexual dos jovens brasileiros. Cadernos CEDES 57 - Antropologia e Educação Interfaces do Ensino e da Pesquisa, 45-62. [ Links ]
Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, 16(2), 5-22. [ Links ]
Welzer-Lang, D. (2001). A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Estudos Feministas, 9(2), 460-482. [ Links ]
Welzer-Lang, D (2004). Os homens e o masculino numa perspectiva de relações sociais de sexo. Em M. R. Schpun (Org.), Masculinidades (pp. 107-128). São Paulo: Boitempo/Santa Cruz do Sul: Edunisc. [ Links ]
World Healthy Organization (2000). Boys in the picture. Geneva: WHO. [ Links ]
World Healthy Organization (2001). Sexual relations among young people in developing countries: evidence from WHO case studies. Geneva: WHO. [ Links ]
World Healthy Organization (2005). Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças - CID 10. Disponível em http://www.who.int/classifications/icd/en/index.html. Acessado em 25 de julho de 2005. [ Links ]
Endereço para correspondência
Av. César Seara, 192
88040-500 - Florianópolis - SC
E-mail: juracy@cfh.ufsc.br
Recebido em: junho 2006
Revisado em: setembro 2006
Aprovado em:outubro 2006
Sobre a autora:
1 Maria Juracy Filgueiras Toneli é mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina.
2 Com o título O DNA Espartano (em referência às práticas de seleção de crianças na antiga cidade grega de Esparta), o texto foi publicado, no dia 28 de agosto de 2005, no jornal diário A Notícia (an.uol.com.br), de Joinville, no qual o governador assina semanalmente um texto opinativo exclusivo. O governador foi ministro da Ciência e Tecnologia, entre 1987 e 1988 (governo Sarney).