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Avaliação Psicológica
versión impresa ISSN 1677-0471versión On-line ISSN 2175-3431
Aval. psicol. v.3 n.2 Porto Alegre nov. 2004
ARTIGOS
Relato verbal na avaliação psicológica da dor
Verbal reports in the psychological evaluation of pain
Joselma Tavares Frutuoso; Roberto Moraes Cruz
Universidade Federal de Santa Catarina
RESUMO
A dor é um fenômeno multidimensional com componentes sensitivos, emocionais e cognitivos. Os aspectos psicológicos têm um papel de destaque no início, agravamento e manutenção da dor. A dor é descrita como algo desagradável, independente da sua duração (aguda, crônica, episódica) ou origem (provocada por nocicepção, desaferentação, mista ou psicogênica). Sua intensidade, freqüência geram desconfortos físicos e psicológicos que dificultam o desenvolvimento das atividades cotidianas. O relato verbal (oral ou escrito) é uma forma de tornar público dados que ajudam a diagnosticar e planejar estratégias de prevenção e tratamento. O Questionário de McGill ilustra a importância do relato verbal na avaliação da dor descrevendo aspectos quantitativos e qualitativos de sua percepção. O objetivo desse artigo é discutir a importância do relato verbal na avaliação psicológica da dor.
Palavras-chave: Relato verbal, Avaliação Psicológica de dor, Questionário McGill.
ABSTRACT
This article discusses the importance of verbal reports in the psychological evaluation of pain. Pain is a multidimensional phenomenon with sensory, emotional and cognitive elements. Psychological aspects play an important role in the initiation, aggravation and maintenance of pain. Irrespective of duration (acute, chronic or episodic), pain is described as unpleasant. Its intensity and frequency generate physical and psychological discomfort that interfere in daily activities. In providing information regarding pain, verbal reports (oral or written) help in diagnosis and the development of prevention and treatment strategies. The McGill Pain Questionnaire illustrates the importance of verbal reports in pain evaluation, describing quantitative and qualitative aspects of pain perception.
Keywords: Verbal reports, Psychological evaluation of pain, McGill Pain Questionnaire.
A avaliação de fenômenos psicológicos é uma atribuição dos psicólogos que envolvem necessariamente o processo de mensuração das características a serem estudadas e a interpretação dos resultados desse processo com base nas teorias psicológicas. A Avaliação psicológica pode ser caracterizada em termos de forma e função. A forma depende do método utilizado e a função pode ser de diagnóstico, prevenção, tratamento e encaminhamento. De acordo com Cruz (2002), alguns requisitos são fundamentais para a condução e realização de uma avaliação psicológica, tais como: Qual o fenômeno psicológico a ser avaliado? Qual o campo de conhecimento teórico sobre esse fenômeno? Como acessar esse fenômeno? Além de responder a essas perguntas, é necessário, antes de iniciar uma avaliação psicológica, ter a ciência de quatro características: 1- o objetivo da avaliação, 2-a meta a ser atingida (objetivo visado), 3- o campo teórico e 4- o método a ser utilizado (Cruz, 2002).
Os métodos e técnicas utilizados numa avaliação psicológica podem ser: entrevistas, observações diretas, testes, questionários, inventários, diários e técnicas projetivas que permitem acessar diferentes comportamentos (ex. emoções, sentimentos, cognições)1.
A dor é considerada um fenômeno multidimensional com componentes sensoriais, emocionais e cognitivos. A dor é um fenômeno com dimensões psicológicas acompanhada de correlatos orgânicos (lesão real ou potencial do tecido) sendo objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento. Os aspectos envolvidos com a compreensão da dor englobam, por exemplo, a fisiologia humana, constituição genética do indivíduo, história e estilo de vida, tipos de aprendizagens, ambiente social e cultural da pessoa, dentre outros.
As medidas psicológicas são recursos metodológicos que possibilitam a investigação da experiência dolorosa em termos de intensidade e/ou freqüência de ocorrência, e dos aspectos subjetivos relacionados com essa experiência. A delimitação da área de conhecimento da avaliação poderá facilitar tanto na escolha do método para realização da avaliação como definir qual será a sua função (preventiva, investigativa, intervenção/tratamento, ou de encaminhamento).
Neste artigo a percepção da dor é considerada como um fenômeno psicológico tal como é a percepção de cores. Ou seja, para compreender em mais detalhe a percepção de cores é necessário acessar um arcabouço de conhecimento teórico sobre a fisiologia da visão e a do olho (Carlson, 1995). Do mesmo modo, para compreender a percepção da dor, podemos ter acesso às informações sobre a fisiologia e etiologia da nocicepcão (estimulação e condução da informação nociceptiva) bem como dos aspectos psicológicos associados com a experiência dolorosa. A pessoa portadora de dor está em constante interação com sua realidade familiar, laboral, cultural, social e histórica, e as interações estabelecidas nesses ambientes fazem parte do quadro multidimensional da compreensão da experiência dolorosa.
Nesse contexto, de características multidimensionais relacionadas com a dor, os aspectos psicológicos podem ter um papel de destaque no início, na gravidade, no exacerbamento ou mesmo na manutenção da dor (ver Transtornos Dolorosos no Manual de Estatística e Diagnostico Mental, DSM-IV). Torna-se necessário e, em alguns casos, indispensável a avaliação psicológica da dor no processo de investigação dos aspectos psicológico presentes em quadros álgicos.
Características fisiológicas e psicológicas da dor
A International Association for the Study of Pain (IASP) define a dor como uma experiência emocional, sensitiva, de caráter desagradável, provocada ou não por lesão real ou em potencial dos tecidos do organismo (American Psychiatric Association, 1994). Nessa definição fica contemplado o componente sensitivo (lesão visceral, somática visceral, somática músculo-esquelética e neuropatias2, o componente emocional (raiva, tristeza, medo, frustração, ansiedade, depressão, etc.) e o componente cognitivo e avaliativo (pensamento, memória, atenção, raciocínio, tomada de decisão, etc.). Todos esses componentes fazem parte ou contribuem para a experiência subjetiva da dor. Os comportamentos manifestos de dor observados em posturas, gestos, expressões faciais, verbalizações (auto-relato); e aspectos sócio-culturais, tais como: atividade de trabalho, contexto ocupacional, nível de educação, organização social, estilo de vida, ganhos financeiros, comportamentos de fuga e esquiva de situações e/ou responsabilidades estão to-dos relacionados com a construção da percepção de dor.
Melzack e Wall (1965) desenvolveram o "Modelo de comporta ou teoria do portal" para elucidar o possível funcionamento da ativação e inibição da dor3. De acordo com esse modelo, as informações provenientes das vias eferentes do encéfalo (no caso, diferentes estruturas cerebrais) estariam atuando sobre a inibição e ativação da sensação dolorosa. Segundo os autores, além das estruturas cerebrais "[...] é possível que atividades subjacentes do sistema nervoso central como atenção, emoção e a memória de experiências recentes exerçam controle sobre a entrada de estimulação sensorial" (p.976). Desse modo, o modelo abriu uma perspectiva para o estudo da dor como fenômeno multidimensional, dando ênfase aos aspectos psicológicos arrolados na ativação e inibição da dor.
De acordo com Teixeira (1999a), o modelo de comporta ou teoria de portal não é sustentado por evidências empíricas (anatômicas, eletrofisiológicas, neuroquímicas), porém, ele contribuiu para a concepção da dor como um evento multidimensional nos estudos posteriores sobre os componentes afetivos e cognitivos presentes na experiência dolorosa.
O entendimento da fisiopatologia da dor engloba a compreensão dos diferentes mecanismos, dos vários tipos de neurotransmissores além do conhecimento das estruturas do Sistema Nervoso Periférico e Central (SNP e SNC), que estão envolvidas e são responsáveis pela estimulação nociceptiva que provoca a sensação de dor. Teixeira (1999a) descreve alguns dos prováveis mecanismos e estruturas do SNP e SNC que atuam no processo da nocicepção. Os mecanismos operam aparentemente de forma conflitante ou mesmo antagônica, o que evidencia o caráter complexo da experiência dolorosa.
Geralmente, quando a dor é orgânica podemos classificá-la em dois grandes grupos: a dor provocada por nocicepção4 e a dor provocada por desaferentação5. A dor por nocicepcão é, geralmente, causa-da por traumatismo com a liberação de substâncias algiogênicas no tecido, ao passo que a dor provocada por desaferentação é causada por lesões do SNP, da medula, do tronco encefálico ou de estruturas do encéfalo. Os quadros álgicos possuem várias subdivisões, conforme a natureza do órgão e da estrutura acometida, a dor é classificada de dor por nocicepção e por desaferentação, ou por ambas (como é o caso da dor mista). Dor psicogênica é uma classificação adotada para dores que não apresentam causas orgânicas. Conforme a duração do quadro álgico, a dor pode ser classificada: aguda, crônica, ou episódica (ver Tabela 1).
A dor aguda, especialmente provocada por nocicepção, pode ser fundamental para preservação da integridade física do organismo, uma vez que ela tem a função de alertar ou sinalizar a existência de perigo (lesão real ou potencial do tecido). A dor aguda é rápida, localizada, permanece enquanto durar o agente agressor. A dor crônica não mantém relação tão direta com a sobrevivência. Geralmente, esse tipo de dor causa danos psicológicos ao portador, pois sua duração pode prolongar-se por meses ou até anos. Seja qual for o tipo de dor e, em especial a dor crônica pela sua intensidade e freqüência, geram desconforto físico e psicológico devido às limitações e dificuldades que impedem o portador de desenvolver as suas atividades cotidianas. De acordo com Oliveira (2000), o conhecimento dos mecanismos biológicos não é suficiente para compreender as síndromes de dor crônica como lombalgias, cervicobraquialgias e mialgias, que são diagnósticadas pelos neurologistas como síndromes ou doenças que não possuem anormalidades orgânicas significativas. Para ilustrar a presença de distúrbios e transtornos psicológicos associados à dor crônica, temos a pesquisa de Sardá, Kupek e Cruz (2000) cujo resultado aponta para as associações entre ansiedade, depressão e somatização com dores lombálgicas e lombociáticas.
Geralmente, a dor aguda é mais estudada do que a dor crônica. É difícil a reprodução e criação de modelos experimentais para estudar a dor crônica, apesar de ser mais incapacitante que a dor aguda. Segundo Teixeira (1999a, p.64), na presença de um quadro de dor crônica " [...] seu controle, mais do que a eliminação do elemento causal, é o objetivo primordial do tratamento. Os componentes emocionais envolvidos na experiência dolorosa crônica podem ser mais significativos do que os sensitivos". Assim, diante de um quadro álgico de dor crônica é preciso investi-gar, além dos sintomas físicos e orgânicos, os aspectos psicológicos associados à experiência dolorosa (Sanford et all, 2002, Sardá, Kupek, & Cruz 2000, Crossi et all, 1999, Sarda, 1999, Erskine, 1990, McGrath, 1994, Ciccone & Grzesiak, 1984, e Skevington, 1983).
O auto-relato e a experiência dolorosa
A percepção de dor é auto-observada, adquirida por meio de processos de aprendizagem, sendo o relato verbal (oral ou escrito) uma das formas de descrever e comunicar essa percepção. Em todas as culturas, a dor é um tipo de sensação descrita como algo desagradável, independente da sua duração (aguda, crônica, episódica) ou da sua origem (provocada por nocicepção, por desaferentação, mista ou psicogênica).
A criança, desde muito cedo, aprende a descrever e comunicar os tipos de estimulações internas proveniente do sistema interoceptivo (informações dos órgãos, glândulas, aparelho digestivo) e do sistema proprioceptivo (informações de postura e movimento provenientes dos músculos, articulações, tendões entre outros.). Essas informações, procedentes do mundo interior (localizadas dentro da pele) são de difícil acesso por outrem, porém, a sua existência é inquestionável, conforme afirma: Skinner "Nós a sentimos e, num certo sentido, a observamos e seria loucura negligenciar tal fonte de in-formação só por ser a própria pessoa a única capaz de estabelecer contato com o seu mundo interior" (Skinner, 1982, p.23). Além disso, a criança aprende a relatar também tipos de estimulações externas provenientes do sistema exteroceptivo relacionadas com o ver, ouvir, degustar e sentir (ou seja, informações sobre as coisas do mundo que nos cerca). Essas informações externas (exteroceptivas) somadas as internas (interoceptivas e proprioceptivas), permitem obter tanto o conhecimento das coisas do mundo quanto do nosso próprio corpo, e o relato verbal é uma forma de tornar público o que pensamos e sentimos (Catania, 1999).
A comunidade na qual o indivíduo está inserido ensina-o a nomear informações provenientes dos três sistemas supracitados por meio de práticas culturais que usam o incentivo (fazendo correções quando necessário) ou práticas que usam a punição e reforços negativos. Segundo Murray (1995) e Zanotto (2000) esse último tipo de prática não recomendado. Assim, a criança aprende através da mediação do outro, por exemplo, a nomear as cores dos objetos que nos cercam e verbalizar as condições internas do organismo (sensações, pensamentos, emoções, etc.). A comunidade não pode acessar diretamente o mundo dentro da pele (privado e subjetivo). Dessa forma; a solução é ensinar o indivíduo a descrever o que ele sente usando correlatos públicos disponíveis para narrar as condições internas. Nesse sentido "[...] quando a criança sofre um golpe ou corte forte, o golpe ou corte público pode ser correlacionado de maneira assaz fidedigna com os estímulos privados gerados por ele" (Skinner, 1982, p.24). Nessa situação, a comunidade utiliza, por exemplo, a palavra "dói", e a criança aprende a dizer "dói". Portanto, as palavras utilizadas para descrever estados subjetivos apresentam algum tipo de vínculo com a circunstância externa, com o contexto diretamente relacionado ao evento descrito.
Geralmente, nas culturas ocidentais há uma quantidade de termos usados para descrever sensações, afetos, emoções e sentimentos relacionados com a experiência dolorosa. As pessoas constroem significados das palavras, conforme já mencionado, por meio das interações sociais. Este processo de atribuir significado às palavras se inicia na mais tenra idade e prossegue ad infinitum, o limite para essa aprendizagem é a morte do indivíduo. Existem vários modelos teóricos para explicar o processo de aprendizagem de uma língua e de como os significados são construídos, no entanto, não há consenso na literatura sobre a aquisição da linguagem e do pensamento. Qualquer que seja o modelo explicativo, a essência é que o ser humano, durante o seu desenvolvimento, aprende o significado de novas palavras e amplia-o em seu cotidiano.
O mundo privado de uma pessoa torna-se público quando ela o relata, porém, esse relato será sempre questionável no sentido de que não há uma correspondência ponto a ponto entre uma palavra (ensinada e compatibilizada pelos membros de uma cultura) com os estados fisiológicos, biológicos e sócio-culturais que supostamente estão sendo descritos pela palavra. Por exemplo, nós não podemos garantir que a frustração de uma pessoa seja exatamente igual à frustração sentida por uma outra. Certamente, ambas estão vivenciando uma experiência desagradável que incomoda, gerando sofrimento e/ou constrangimento, porém de forma diferente. Utilizar a palavra 'frustração' para comunicar essa vivência é válido, porém, não há garantia 100% que os significados construídos são utilizados com a mesmíssima função pelos indivíduos que compõem uma cultura. Paradoxalmente, podemos inferir e afirmar que os significados são parecidos, que são compartilhados em vários aspectos, os quais são suficientes para assegurar a eficiência da comunicação dos comportamentos adotados pela comunidade verbal para nomear e descrever os estados internos.
As palavras (relato verbal oral ou escrito) têm papel de destaque nos instrumentos desenvolvidos para auxiliar na avaliação psicológica por possibilitarem o acesso aos aspectos psicológicos associados à dor. As propriedades psicométricas validade, precisão e padronização (explicadas na próxima seção) devem ser usadas no processo de construção e/ou tradução de um instrumento para a língua portuguesa com o objetivo de aumentar o grau de compreensão entre o que é descrito e o que é avaliado. Assim, considerando a importância do relato verbal nas medidas psicológicas, será apresentado como ilustração o Questionário de dor de McGill desenvolvido por Melzack em 1975, que utiliza palavras para descrever a percepção da dor. Esse questionário foi adaptado e padronizado para a língua portuguesa por Pimenta e Teixeira (1996). Ele contém uma quantidade de palavras (descritores) com a função de descrever aspectos quantitativos e qualitativos da dor, levando em consideração três dimensões da dor: sensorial-discriminativa, motivacional-afetiva e cognitiva-avaliativa. O componente sensorial-discriminativo se refere às propriedades mecânicas, térmicas, de vividez e espaciais da dor. O componente motivacionalafetivo se refere aos aspectos de tensão, medo e respostas neurovegetativas da dimensão afetiva da dor. O componente cognitivo-avaliativo permite ao portador descrever qual é sua avaliação global (Pimenta & Teixeira, 1996).
O questionário possui 78 descritores organizados em 20 subgrupos. Os subgrupos de 1-10 são para os componentes sensorial-discriminativo, subgrupos de 11-15 para os componentes afetivos, subgrupo 16 para o componente cognitivo-avaliativo e os subgrupos de 17-20 é uma mistura dos três componentes, denominado de uma miscelânea6. Dentro de cada subgrupo há uma ordem crescente de intensidade dos descritores. Cada subgrupo possui dois ou no máximo seis descritores com nuanças que os tornam diferentes em magnitude/intensidade. Exemplo, no sub-grupo nº13 (componente; afetivo), os descritores da dor estão organizados na seguinte escala de intensidade: 1.= amedrontadora, 2.= apavorante e 3.= aterrorizante. A pessoa só pode escolher uma palavra de cada subgrupo, totalizando no máximo 20 descritores escolhidos para narrar sua dor. A informação quantitativa é fornecida através do índice de intensidade da dor, valor máximo do índice é de 78, quando as respostas são de intensidade máxima em todos os 20 subgrupos. Esse questionário contém ainda informações sobre periodicidade e duração da dor, um diagrama corporal para a pessoa localizar a região da dor e uma escala de 0-5 de intensidade de dor.
Dos 78 descritores constam na Tabela-2 apenas os 28 que sofreram alterações realizadas por Pimenta e Teixeira (1996), durante o processo de adaptação para a língua portuguesa. Na Tabela 2 é possível visualizar aquelas palavras utilizadas na primeira aplicação com suas respectivas alterações na segunda aplicação (versão final).
Medidas psicológicas e avaliação da dor
As medidas psicológicas devem manter uma correspondência entre o valor mesurado e o fenômeno psicológico avaliado. Os instrumentos7 utiliza-dos para obter uma medida psicológica são construídos e utilizados com a finalidade de ajudar e acelerar a investigação dos aspectos psicológicos diretamente relacionados com o fenômeno psicológico estudado. No caso da avaliação psicológica da dor, os resultados devem auxiliar na compreensão e no planejamento de estratégias de intervenção, prevenção e tratamento. Todavia, uma avaliação psicológica não deve ser reduzida ou confundida com a mera aplicação de instrumentos para obter um valor numérico desconectado de significado teórico e sem comprometimento com fenômeno investigado. A avaliação psicológica pode ser realizada com ou sem aplicação de instrumentos, porém quando for preciso utilizá-los esses devem, "[...] medir uma deter-minada ação, e esta medida será mais eficiente se houver uma adequada representação da con-dição medida (atributo medido) com o procedimento utilizado." (Alchieri & Cruz, 2003, p. 42).
A construção de instrumentos psicológicos deve respeitar algumas características psicométricas tais como: validade, precisão (ou fidedignidade) e padronização, que garantem o comprometimento do instrumento com o fenômeno psicológico investigado. De uma maneira geral, a validade está relacionada à capacidade do instrumento em medir o que se propõe a medir, já a precisão está relacionada com a estabilidade dos resultados obtidos em diferentes ocasiões de aplicação. Por fim, a padronização está relacionada com as condições pré-determinadas para a unificação da aplicação, dos critérios de correção e de interpretação dos resultados (Alchieri & Cruz, 2003, Erthal, 2001, e Pasquali, 1996).
Os aspectos psicológicos presentes nos quadros álgicos (tanto de dor aguda como crônica) envolvidos com a instalação e/ou manutenção de transtornos comportamentais e mentais merecem ser investigados e conhecidos para que intervenções possam ser programadas e executadas (Oostdam & Duivenvoorden, 1987, Pincu & Williams, 1999, McGrath, 1994, e Ciccone & Grzesiak, 1984). Con-forme mencionado anteriormente, a avaliação psicológica pode ajudar no diagnóstico dos aspectos psicológicos associados com a dor, além de permitir ao profissional de saúde planejar intervenções que vão do diagnóstico até a prevenção, o manejo e o tratamento da dor.
Nem sempre a experiência dolorosa comporta, simultaneamente, fatores fisiológicos, orgânicos e psicológicos. Quando a experiência dolorosa está somada ou faz parte dos transtornos comportamentais e mentais, ou ainda, de doenças psiquiátricas, os sintomas psicológicos associados à dor podem ser considerados tanto a sua causa como conseqüência. Existem, na literatura especializada, dois modelos teóricos para explicar as relações de causa e conseqüência dos sintomas psicológicos na experiência da dor (Wallis, Susan & Bogduk, 1997). No modelo psicológico os transtornos e/ou desordens psicológicas seriam a causa primária, de acordo com esse modelo se tratados os sintomas psicológicos poderíamos obter o alívio e/ou cura da dor crônica. No modelo médico, os sintomas psicológicos são secundários, de acordo c modelo médico se tratada a causa orgânica da dor crônica (ou seja, a lesão), os sintomas psicológicos desaparecem sem necessidade de atendimento psicológico concomitante ou posteriormente ao tratamento médico. De fato, doenças cuja lesão possui diagnóstico preciso e, cujo tratamento é conhecido, parecem que os sintomas psicológicos são secundários (ou seja, eles são conseqüência da dor) conforme argumenta e demonstra Wallis, Susan e Bogduk (1997). Entretanto, em algumas síndromes de dor crônica, o modelo médico não se encaixa, sendo o modelo psicológico o mais plausível. As síndromes de dor crônica incluem: as cefaléias, as lombalgias, as cervicobraquialgias (reforços repetitivos - LER), as doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho (DROT) e as mialgias. Elas fazem parte das queixas apresentadas em consultórios de neurologistas com diagnóstico baseado na ausência de sinais orgânicos, cujos portadores alegam sofrimento e incapacidade (Oliveira, 2000).
As medidas psicológicas também podem ser obtidas por meio da observação direta dos comportamentos manifestos de dor (postura, expressões faciais, gestos). Esses comportamentos ocorrem na presença e na ausência de dor, podendo ser confundidos com os transtornos factícios ou com a simulação, uma vez que ambos têm como conseqüência obter algum tipo de ganho (ver o manual estatístico de doenças mentais - DSM-4, da American Psychiatric Association). Nos transtornos factícios, os sinais e sintomas, predominantemente físicos, são apresentados pelas pessoas para obterem um estatus de doente, cujas conseqüências podem ser: ganhar aposentadoria precoce, indenização financeira, entre outras. Na simulação, os sintomas somáticos são produzidos para fugir ou esquivar-se de situações aversivas obtendo ganhos tais como: a atenção da família, ou eximindo-se de responsabilidades, dentre outras vantagens (Oliveira, 2000 e Murta, 1999). Quando os comportamentos manifestos de dor ocorrem na presença de dor (excluir os transtornos factícios e a simulação) então é necessário conduzir uma investigação médica e psicológica para eliminar ou reduzir o desconforto físico e psicológico que a dor provoca.
Tanto as medidas baseadas no auto-relato como as baseadas nos comportamentos manifestos de dor apresentam vantagens e limitações (Murta, 1999). Uma saída metodológica para a avaliação da dor é usar uma combinação de instrumentos que inclua mais de um tipo de medida.
Conclusão
A percepção da dor é uma experiência individual e subjetiva, que pode gerar dificuldades para ser relatada. Em nossa comunidade verbal, por meio de práticas culturais, são ensinadas as maneiras de relatar, narrar ou descrever o que se sente e a pensar em sua língua vernácula. O relato verbal é uma das formas mais utilizadas para comunicar nossas experiências. Esse relato (oral ou escrito) é um dos principais veículos de acesso aos estados psicológicos relacionados ou associados com a vivência dolorosa. Encontrar palavras que possam indicar como, quanto, quando, onde e porque dói requer uma auto-observação acompanhada de 'fluência verbal' para se expressar.
O cuidado dos profissionais que usam o relato verbal para avaliar de quadros álgicos deve ser no sentido de ampliar a compreensão das características do sofrimento de pessoas portadoras de dor que têm dificuldades em ter uma vida saudável e produtiva. Nesse contexto, a função e o significado que as palavras ocupam na descrição de estados subjetivos, associados à percepção de dor, é de fundamental importância. Esforços devem ser dirigidos para que o uso das palavras e seu significado sejam desfrutados e compartilhados de forma parecida por diferentes membros de uma mesma cultura. Portanto, a tradução de instrumentos estrangeiros requer cuidados relacionados com a validade, precisão e padronização. O resultado de uma avaliação psicológica fornece informações sobre os aspectos psicológicos da experiência dolorosa e que pode ajudar no planejamento de estratégias de prevenção, tratamento e encaminhamento. O questionário de MacGill neste artigo foi utilizado como ilustração de uma ferramenta que contém palavras para descrever e avaliar a dor, porém, quando é necessário fazer medição do evento psicológico durante o processo de avaliação, a recomendação é empregar mais de um tipo de instrumento e medida. Conforme mencionado anteriormente, os instrumentos auxiliam a investigação, no entanto uma avaliação psicológica não deve ser reduzida ou confundida com a mera aplicação de instrumentos para obter um valor numérico desconectando de significado teórico e sem comprometimento com fenômeno investigado.
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Endereço para correspondência
Universidade Federal de Santa Catarina
Campus da UFSC
Departamento de Psicologia
Trindade, Caixa Postal 476
88040-970 Florianópolis - Santa Catarina
E-mails: frutuoso@cfh.ufsc.br / rcruz@cfh.ufsc.br
Recebido 22-12-04
Aceito 15/06/2005
1 Entende-se por comportamento ações humanas que ocorrem em um determinado contexto ou situação, que por sua vez, geram conseqüências que repercutem tanto no individuo como na sua realidade. O comportamento pode ser de ordem emocional, afetiva, social, verbal dentre outros.
2 Neuropatia é considerada sinônimo para nervosismo constitucional, fragilidade nervosa ou labilidade vegetativa, são sintomas características: hiper excitabilidade vaso motora, distúrbios na inervação das glândulas, perturbações do estomago, intestino, bexiga, dos órgãos genitais, do corpo e distúrbios dos reflexos. A psiquiatria a designa como uma facilidade inata para distúrbios das funções orgânicas, de modo especial no sistema nervoso vegetativo" (Dorsch, Hãcker & Stapf, 2001).
3 A atividade das fibras aferentes da coluna espinhal de diâmetro largo "L fibers" e estreito "S fibers" se projetam para a substância gelatinosa (presente na medula). O efeito de inibição é exercido pela substância gelatinosa sobre as fibras "L e S" aumentado pela atividade das fibras "L" e diminuído pela atividade das fibras "S"). Paralelamente, haveria um sistema de controle central das fibras eferentes do cérebro que atuariam diretamente sobre fibras aferentes do tipo "L". O balanço final da atividade das fibras "S e L", na substância gelatinosa, iriam gerar um padrão excitatório e inibitório que é interpretado como uma espécie de comporta, quando aberta, facilita a transmissão da dor, quando fechada, inibi a dor (Melzack e Wall, 1965).
4 Teixeira (1999b) ao escrever sobre as síndromes dolorosas classifica a dor provocada por nocicepção de dor somática, visceral, e músculo-esquelética.
5 Exemplos de dor provocada por desaferentação: 1- neuropatias periféricas, 2- neuropatias radiculares, 3- neuropatias radiculares, 4-neuropatias plexulares, 5- neuropatias tronculares, 6- síndromes polineuropáticas, 7- síndromes dolorosas do órgão amputado, 8-neuropatias centrais, 9- neuropatias medulares, 10- neuropatias encefálicas (10.1- lesão bulbares, 10.2 neuropatias mesenfálicas e pontinas, 10.3- síndrome talâmica, 10.4-síndrome sensitivas corticais, 10.5- síndrome sensitivas corticais, 10-6- síndrome de hipertensão intracraniana). Com relação ao quadro álgico e a duração da dor, Teixeira classifica em dor mista (mistura de nocicepção e desaferentação), dor psicogênica, dor aguda, dor crônica e dor episódica (Teixeira, 1999b).
6 O grupo miscelânea foi criado porque alguns doentes sentiram falta de outras palavras para relatar sua experiência dolorosa.
7 Informações gerais sobre alguns instrumentos utilizados para avaliação da dor podem ser encontradas em Keefe (1984), Sardá (1999) e, Tollison e Hinnant (1996).