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Psicologia em Revista

versión impresa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.19 no.2 Belo Horizonte  2013

https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9563.2013v19n2p271 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2013v19n2p271

 

O autoritário no discurso pedagógico e a inclusão do heterogêneo

 

The authoritarian in pedagogical discourse and inclusion of the heterogeneous

 

El autoritario en el discurso pedagógico y la inclusión del heterogéneo

 

 

Daniela Giorgenon*; Lucília Maria Sousa Romão**

 

 


Resumo

Pretendemos provocar um giro no discurso pedagógico e no discurso da inclusão ao efetuarmos uma leitura sobre o que concebemos como heterogêneo, apoiadas em uma revisão de literatura efetuada com base na análise de discurso de matriz francesa, especificamente na tipologia discursiva de Orlandi e de contribuições provenientes da psicanálise freudiana e lacaniana. O método empregado nesta revisão de literatura é pautado na teoria e análise discursiva, a qual expõe sentidos legitimados à opacidade. E, para efetuarmos essa leitura/ interpretação, ancoramo-nos em alguns recortes literários e em uma capa de uma revista de cunho pedagógico para compormos a discussão sobre o discurso pedagógico e sua tendência ao autoritário. Propomos, por meio do discurso lúdico e polêmico, a possibilidade de uma inclusão que leve em conta o sujeito, que chamamos de heterogêneo, em contraponto à homogeneidade instalada nos moldes escolares.

Palavras-chave: Sujeito. Discurso pedagógico. Inclusão escolar.


Abstract

We intend to bring about a turnaround in pedagogical and inclusion discourse by interpreting what we conceive as heterogeneous, supported by a literature review based on French Discourse Analysis, specifically on the discursive typology by Orlandi, and on contributions from Freudian and Lacanian psychoanalysis. The method used in this literature review is grounded on theory and discursive analysis, which exposes legitimate meanings to opacity, and in order to perform such interpretation, anchoring to some literary excerpts and on the cover of a pedagogical magazine so as to compose the discussion on pedagogical discourse and its tendency to the authoritarian. By means of lucid and controversial discourse, we propose the possibility of inclusion that takes into account the subject, to whom we refer to as heterogeneous, in opposition to the homogeneity installed in school patterns.

Keywords: Subject. Pedagogical discourse. School inclusion.


Resumen

Nuestra finalidad es provocar un giro en el discurso de la inclusión y en el discurso pedagógico, a partir de una lectura acerca de lo que consideramos heterogéneo apoyados en una revisión de la literatura basada en el análisis del discurso de matriz francés, específicamente de la tipología discursiva de Orlandi y de las contribuciones del psicoanálisis desarrollado por Freud y Lacan. El método utilizado en esta revisión de literatura se basa en la teoría y el análisis del discurso que expone sentidos legitimados a la opacidad. Para realizar esta lectura /interpretación, analizamos algunos recortes literarios y la portada de una revista de carácter pedagógico para estructurar la discusión sobre el discurso pedagógico y su tendencia a lo autoritario. Proponemos, a través del discurso lúdico y polémico, la posibilidad de una inclusión que tenga en cuenta al sujeto, que llamamos heterogéneo, en contrapunto a la homogeneidad instalada en los moldes escolares.

Palabras clave: Sujeto. Discurso pedagógico. Inclusión escolar.


 

 

A inclusão do heterogêneo no discurso pedagógico

"Mas como é que faz pra sair da ilha?

Pela ponte, pela ponte [...]

A ponte é até aonde vai o meu pensamento

A ponte não é para ir nem pra voltar

A ponte é somente pra atravessar

Caminhar sobre as águas desse momento."

(Lenine. A ponte)

Abordaremos o discurso pedagógico e o que chamamos de inclusão do heterogêneo, apoiadas na análise de discurso (AD) de matriz francesa, a fim de trazermos à tona uma posição-leitor que busca se descolar de algumas concepções parafrásticas que circulam na escola. Apontamos que tais concepções capturam a voz dos sujeitos que transitam na e fora da escola, legitimando sentidos enrijecidos e supostamente aplicáveis a todos. E, para provocarmos essa outra escuta ao discurso pedagógico, apoiadas principalmente em Orlandi (2003) e também em contribuições da psicanálise freudiana e lacaniana, temos feito algumas leituras (Giorgenon & Romão, 2012; Giorgenon, 2011; Giorgenon & Romão, 2010; Giorgenon, Pacífico & Romão, 2008) sobre a (não) entrada do heterogêneo na sala de aula regular e sobre o quanto o discurso pedagógico se esforça para continuar homogeneizando o aluno.

Amparamos este estudo principalmente na dissertação de mestrado "Sentidos de inclusão e exclusão na voz de sujeitos escolares: o deslocamento do déficit pela via da falta" (Giorgenon, 2011), na qual, com base em escuta de entrevistas feitas com professores do ensino fundamental de escolas de Ribeirão Preto, pontuamos que o discurso da inclusão, embora abra as portas da escola regular para alunos considerados fora dos padrões de normalidade, não tem incluído a singularidade de cada sujeito, seja ele nomeado como com ou sem deficiência. Temos trabalhado, desde então, com a hipótese de que, atravessado pelo discurso pedagógico que tende ao autoritário (Orlandi, 2003) e à homogeneização dos indivíduos e das práticas, o discurso da inclusão ganha voz apenas na massificação, em dizeres de "socialização", na colocação de alunos para dentro da escola, sem, no entanto, haver lugar para a inclusão do heterogêneo. Para esta revisão de literatura, que foca a singularidade, o trabalho com a exclusão e a inclusão, escolhemos trabalhar com recortes literários e recortes da capa de uma revista de cunho pedagógico para mobilizarmos uma leitura/interpretação das teorias que mencionamos, com o intuito de compormos uma análise discursiva que fure sentidos cristalizados.

Tecemos algumas considerações sobre o significante "heterogêneo", pois, na AD e na psicanálise freudiana e lacaniana, ele atravessa o conceito de sujeito com o qual trabalhamos. Um sujeito que é ser de linguagem, é cindido, e, por isso, heterogêneo. Contudo passível de ser capturado pela homogeneidade ao seu dizer ser amordaçado, como veremos ocorrer reiteradamente na captura do sujeito pelo discurso pedagógico vigente. Salientamos, assim, a inclusão do heterogêneo - do (conceito de) sujeito de que tratamos - na escola porque, embora as leis e práticas chamadas inclusivas corroborem para sentidos de acolhimento a pessoas consideradas fora dos padrões de normalidade (até então não autorizados a frequentar os bancos escolares regulares), elas tendem a massificá-los, repetindo o fazer emoldurado oferecido aos considerados dentro dos padrões de normalidade. Assim, a nosso ver, não há o acréscimo de um novo discurso na instituição escolar que inclua a singularidade na pluralidade, que inclua o (e cada) sujeito cindido que se depara com o (não) saber de modo muito peculiar (Santiago, 2005), conforme nos alerta a psicanálise freudiana e lacaniana.

Também tecemos considerações quanto ao significante "inclusão". Segundo Mendes (2006, p. 391), "[...] o termo ‘inclusão' apareceu na literatura por volta de 1990, como substituto do termo ‘integração' e associado à ideia de colocação de alunos com dificuldades prioritariamente nas classes comuns [...]". Resgatando sentidos tecidos sobre a historicidade da inclusão e exclusão da pessoa considerada fora dos padrões de normalidade, temos que o extermínio era a lei de ordem na Idade Antiga. Na Idade Média, a lei de ordem foi promulgada pelo cristianismo, que proibiu o extermínio e instituiu o enclausuramento. No final desse período, a noção de deficiência passou do âmbito espiritual para o domínio do campo médico e pedagógico, resultando em diversas produções científicas que visa(va)m compreender tal condição, surgindo, então, a educação especial. Até o século XIX e metade do século XX, predominou a segregação institucional: os considerados fora dos padrões de normalidade ainda não eram autorizados a ocupar a sala de aula regular, eram recebidos em instituições especializadas ou em classes especiais dentro das escolas regulares (Mendes, 2006; Aranha, 1995; Silva & Dessen, 2011).

A oferta de educação, nas escolas regulares e nas salas regulares, para pessoas consideradas com deficiência passou a compor leis a partir da década de 1970, motivada pelo princípio filosófico nomeado normalização. Este estabelecera que todas as pessoas deviam ser tratadas como seres plenos, independente de suas limitações e provocou um movimento de inserção dos considerados deficientes na comunidade. Na década de 1980, a partir do movimento chamado integração, em nível mundial, as escolas regulares passaram a receber com maior frequência alunos considerados com deficiência em classes regulares ou ainda em classes especiais. Esse movimento previa níveis de ensino conforme os avanços dos alunos, os quais poderiam ser passados para as classes regulares. Porém, conforme enfatiza Mendes (2006), essa passagem raramente acontecia por questões criadas pelas instituições e pelos profissionais e não por não avanços dos alunos (Mendes, 2006).

Trazemos essa historicidade para apontarmos que, embora vários passos tenham sido dados (ao longo dos séculos, na tensão entre sentidos de inclusão e exclusão) em prol da inclusão na sala de aula regular, juntamente com os considerados não deficientes, do aluno considerado com deficiência, o discurso pedagógico carece de levar o significante "inclusão" às últimas consequências, no sentido de incluir cada e qualquer sujeito (seja ele considerado deficitário ou não) e sua relação peculiar com o saber, e incluir no discurso uma tensão entre paráfrase e polissemia, entre exclusão (o sentido recorrente) e inclusão (a possibilidade do novo) que resulte em um discurso menos hermético e mais impulsionador de saber.

 

Uma concepção de método, de discurso e de sujeito

Antes de apresentarmos a concepção de discurso pedagógico discutida por Orlandi (2003), torna-se importante apresentar a noção de método discursivo, de discurso e de sujeito que amparam nossa escuta. A AD veio à tona na década de 1960, na França, como um referencial teóricometodológico alicerçado por Michel Pêcheux, marcando uma nova noção de leitura/interpretação (Orlandi, 2007), para a qual contribuem o materialismo histórico de Marx e Althusser, a linguística de Saussure e a psicanálise de Freud e Lacan (Pêcheux &#$38; Fuchs, 1993). É inaugurada, nessa época, uma teoria que não se separa da análise, compondo um batimento, um ir e vir, movimento pendular que faz da escuta discursiva algo que rompe com o lugar estanque das ciências vigentes até então (Indursky, 2008; Leandro-Ferreira, 2003; Orlandi, 1999; Pêcheux, 2008).

Ressaltamos esse lugar de escuta como método de trabalho que se dedica à captura de indícios que desvelem a opacidade da linguagem e do sujeito, e que se norteia, como no paradigma indiciário, pelos pormenores mais negligenciáveis (Ginzburg, 1989) dos/nos meandros discursivos, como temos feito, na escuta de sentidos de exclusão no aparente discurso da inclusão. No campo discursivo, o analista de discurso trabalha expondo uma formação discursiva em relação de tensão com outras - assim como faremos com a tipologia discursiva de Orlandi (2003) em relação com os recortes literários e da revista -, em relação de tensão com sentidos histórica-inconscienteideologicamente outrora circulantes para propor a desobturação de alguns sentidos e a circulação de outros. Destacamos que a interpretação do analista, também atravessada pela ideologia e pelo inconsciente, é feita dentro de (im)possibilidades, amparada em um dispositivo teórico e um dispositivo analítico que visam a expor sentidos à opacidade e não a tomá-los como naturais, como os únicos possíveis, convidando o leitor também a esse movimento de tessituras outras, privilegiando a tensão (Leandro-Ferreira, 2003; Orlandi, 2007; Orlandi, 1999).

Foi duvidando da transparência da linguagem que Pêcheux (1997b) concebeu o discurso como efeito de sentidos entre interlocutores, passível a engodos, a deslizes, a atos (não) falhos, que remetem a outro(s) sentido(s) e que deslocam o sujeito da noção de completude, de onisciência e de falha atrelada ao erro. Pêcheux (2008) nos apresenta o discurso como estrutura e acontecimento, ou seja, como um constante devir de repetição e de renovação de sentidos. "A questão do discurso reclama a compreensão de que sempre há justaposição de vozes no molejo do intradiscurso sobre o interdiscurso, processo esse de manutenções e rupturas de sentido" (Romão, 2006, p. 304). Em relação ao sujeito, com a contribuição da psicanálise, é um outro sujeito que entra em cena na AD, um sujeito à linguagem, um sujeito do inconsciente, sujeito ao Outro que, pela ação do recalque, é fal(t)ante. E é pela via da falta, fundante e estruturante do sujeito e da linguagem, que é possível a essa instância enunciar, tecer sentidos sobre costuras já tecidas, trazendo sempre a marca do impossível de tudo dizer (Freud, 1996a, 1996b, 1996c, 1996d; Lacan, 1998a, 1998b, 1999, 2003).

Esse sujeito barrado é tomado na AD como uma posição discursiva que faz falar certos sentidos e não outros em determinado contexto sóciohistórico, pois que atravessado pela incidência do recalque inconsciente, que lhe apresenta o Outro e a anterioridade das palavras, e pela ideologia, um mecanismo que naturaliza sentidos e produz o silenciamento de outros. Apontamos que, para tapear esse esburacamento a que o sujeito é assujeitado e causar-lhe a impressão de homogeneidade, a incidência do que Pêcheux (1997b) chama de "esquecimentos" é alicerçante. O autor nomeia como esquecimento número 1 o efeito de apagamento dos "já-ditos" pela ação do recalque, ofertando ao sujeito a ilusão de que é a origem do dizer. No esquecimento número 2, pelo efeito ideológico de legitimação de sentidos, o sujeito tem a ilusão de que as palavras e as coisas são evidentes e só podem ser significadas de um modo: o vigente. E, ainda que assujeitado, Pêcheux (1997b, p. 281) chama esse sujeito a se posicionar discursivamente: "[...] ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja: primado prático do inconsciente, que significa que é preciso suportar o que venha a ser pensado, isto é, é preciso ousar pensar por si mesmo".

 

A tipologia discursiva

Com base no arcabouço discursivo pecheutiano, Orlandi (2003) inaugura, no âmbito da AD, uma tipologia discursiva que prima a análise do objeto discursivo sob o ângulo da interação e da polissemia. Analisando o funcionamento discursivo e intentando dar conta da relação linguagem/ contexto, ela inaugura sua tipologia composta pelo que chama de discurso lúdico, discurso polêmico e discurso autoritário.

Quanto ao funcionamento do discurso lúdico, Orlandi (2003) anuncia que a polissemia tende a ser aberta, expandida, estando o objeto discursivo, ou ainda, o referente, exposto aos interlocutores num jogo em que se preserva o máximo de sentidos possíveis; por ser um discurso que se alimenta da reversibilidade, não há simetria entre os interlocutores. A respeito do discurso polêmico, a autora afirma que há, entre os interlocutores, uma disputa pelo referente que resulta na tentativa de domínio do objeto discursivo e que se caracteriza por um equilíbrio entre paráfrase e polissemia, sendo que a reversibilidade se dá sob condições, já que há uma disputa instalada, embora se procure uma simetria entre os sujeitos do discurso. Já no discurso autoritário, o objeto discursivo está oculto e não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida, no sentido de que o que está em jogo não é o objeto discursivo, mas o comando do dizer. Neste tipo, a polissemia é contida, e a paráfrase reina. Assim, a reversibilidade é estancada, já que só um agente enuncia, buscando a assimetria, de cima para baixo.

A autora delineia que os tipos por ela elaborados não se distinguem de forma acabada e hermética, ao contrário, ela aponta um ir e vir de um discurso em outro, mas com uma dominância, uma tendência. Dessa teorização, Orlandi (2003) desliza para o discurso pedagógico e analisa sua tendência ao discurso de tipo autoritário, desvelando o modo como este se apropria da linguagem como instrumento de comunicação e, mais, como instrumento de dominação, que exclui sujeitos do campo do saber e mantém bem afixadas as ilusões dos esquecimentos constitutivos, fazendo circular o preestabelecido.

 

O discurso pedagógico e sua captura pelo tipo autoritário

Orlandi (2003) faz considerações sobre o discurso pedagógico, anunciando-o como um discurso circular, que gira em torno de si mesmo, ao produzir um dizer institucionalizado que se garante pela instituição e garante a instituição em que se origina, sendo a escola a sede desse discurso. Isso por meio das formações discursivas dos sujeitos que nela e para fora dela circulam. A autora explana que a conceituação recorrente, e a qual critica, do discurso pedagógico o caracteriza como um discurso neutro que visa a transmitir informações e que tem por objetivo a ausência de problemas na enunciação. Nesse âmbito, a tensão entre o emissor e o receptor é contida, haja vista que o emissor é supostamente dotado de conhecimento e o receptor está lá para ser banhado pelos dizeres que lhe são passados e para reproduzi-los enquanto tal.

Fazendo furar a suposta neutralidade do discurso pedagógico, Orlandi (2003) se pauta em contribuições althusserianas e pecheutianas para deslocar sentidos que legitimam a transparência das informações e da organização escolar. Pêcheux (1997b) e Althusser (1996) falam d(ess)a instituição como um lugar onde se estabelece a luta ideológica de classes e que essa inculca nos sujeitos dizeres de evidência, de naturalização de sentidos no interior de suas formações discursivas e, consequentemente, ideológicas. Apontam que a instituição escolar faz isso de modo silencioso, velado, apresentando "[...] certa quantidade de ‘saberes' embrulhados pela ideologia dominante (francês, aritmética, história natural, ciências, literatura), ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro (ética, orientação cívica, filosofia) [...]" (Althusser, 1996, p. 121). Orlandi (2003), por sua via, afirma que a instituição escolar atua por meio da convenção, imbuindo seu meio de costumes e de valores que determinam o que é válido ou não dentro de um grupo, o que já descarta a sua imparcialidade. O posicionamento da escola e dos sujeitos que nela habitam são atravessados por esses costumes/valores/moldes que determinam desde o conteúdo até os sujeitos que podem reproduzi-lo.

Guiando-nos por esses autores, trazemos recortes literários do "Conto de escola" de Machado de Assis (2001) e da obra "O Ateneu" de Raul Pompeia (1983), a fim de percorrermos dizeres escolares e tecermos costuras com a concepção do discurso pedagógico capturado pelo tipo discursivo autoritário. Apresentamos o conto, narrado pelo personagem-aluno Pilar, a fim de pontuarmos também alguns movimentos de ruptura do personagem com o discurso legitimado, ainda que seja imbuído de receios de isso fazer, oscilando entre seu desejo e o imposto pela escola.

Conta o personagem sobre seus desvios de percurso ao faltar da escola para saber de outros saberes que lá não eram oferecidos/permitidos/despertados e, como consequência, faltar/falhar na escola. No enredo, Pilar tece formações imaginárias sobre os colegas de classe e o professor, pautadas no medo ("voz trêmula"), e ainda que este existisse, ele e seu colega Raimundo, filho do professor Policarpo, fazem um acordo: o de Pilar ensinar a Raimundo, escondido, durante a aula e por meio de bilhetes, a tarefa ordenada por Policarpo, em troca de uma moeda paga pelo aluno com dificuldade, descrito por Pilar como "aplicado, embora de ‘inteligência tarda'" (Assis, 2001, p. 31).

Do enredo destacamos o preço a se pagar/a se receber para se saber o saber do professor, os artifícios dos alunos para saber lidar com a posição de receptores/reprodutores de informações, para saber lidar com um ensino moldado em que não cabem perguntas ao mestre, com um ensino em que se deve saber que o discurso de tipo autoritário é um discurso de mão única e que, portanto, distancia o aluno da produção de saber, em prol da evitação do castigo, da reprovação.

Da obra "O Ateneu" recortamos alguns apontamentos do personagem Sérgio, que descreve o internato como um lugar de poder, no qual não todos podem adentrar: "[...] não havia família de dinheiro [...] que não reputasse um compromisso de honra com a posteridade doméstica dentre seus jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu" (Pompeia, 1983, p. 4, grifo do autor). De um lugar social distinto do enunciado por Pilar, que caracteriza sua escola como "um sobradinho de grade de pau" (Assis, 2001, p. 31), Sérgio enuncia sentidos consonantes à noção de poder, de dominação, atribuídas pelo narrador do conto ao professor Policarpo e, desta vez, atribuída pelo narrador de "O Ateneu" ao Dr. Aristarco e "seu renome de pedagogo", indiciando um lugar de autoridade, do poder dizer, do poder transmitir, devendo os alunos reproduzirem os ensinamentos (e mais uma vez não produzirem). Assim, atentamo-nos aos sentidos de inclusão e exclusão, de poder, de saber, de (não) poder saber, atrelado não somente aos que estão fora dos padrões de normalidade, mas aos que estão fora de padrões financeiros, de conduta moral e tantos outros instituídos, e também aos que estão dentro.

E quanto aos papéis/funções escolares, de acordo com a concepção de Orlandi (2003), as formações imaginárias legitimadas preestabelecem lugares para o aluno, para o professor, para o referente, enfim, para a escola, como vimos, e, quanto ao referente, conforme Romão e Pacífico (2006), muitos objetos discursivos ofertados na instituição não fazem sentido para os alunos, estando dissociados das experiências cotidianas destes, o que escutamos no desejo de Pilar cabular aula. Tomando a forma de exercícios, de provas, de provações, de obrigatoriedades, segundo Orlandi (2003), o referente é apresentado como algo que "se deve saber", o que coloca em cena, para os que não sabem, a noção de erro, de falha, de exclusão. Isso é indiciado quando Raimundo, por medo da repreensão do professor-pai ao não saber fazer a tarefa, arquiteta meios para não errar trazendo sentidos do quão difícil é não se enquadrar na homogeneidade.

Quanto ao ensinar, no discurso pedagógico filiado ao tipo autoritário, Orlandi (2003), em consonância com Pêcheux (1997b) e Althusser (1996), explana sobre este como inculcação, o que se enquadra na noção de paráfrase, na legitimação de um só sentido, como já dissemos, que vai do professor para o aluno (de Policarpo e Aristarco a Pilar, Raimundo e Sérgio), estando a via inversa ainda tantas vezes proibida. Prosseguindo com Orlandi (2003), a autora nos diz da anulação do conteúdo referencial do ensino em prol de conteúdos ideológicos, os quais mascaram as razões do sistema com a legitimação do conhecimento escolar (Pilar cabula aula, interessa-lhe conhecer outros conheceres, mas o legitimado é o que o professor Policarpo repete), distinguindo-o do senso comum. Sendo assim, o que é de interesse do professor ou do aluno, ou ainda o que estes trazem como "arquivo" (Pêcheux, 1997a), como bagagem extraescola, fica obturado em prol de uma grade curricular ideologicamente sustentada e que amordaça eventuais manejos necessários a transmissão do conhecimento, desmotivando parcela de alunos e também de professores que vão se alojando à margem.

Ainda sobre o âmbito do "dever" que recai sobre o "dever saber", Orlandi (2003) explana a respeito do repetitório "é porque é", sendo que o que é explicado é a razão do "é porque é" e não a razão do objeto de estudo. A nosso ver, tal postura retrata o silenciamento da historicidade do saber, da relação do sujeito com o saber, da instigação ao saber. Ao contrário de despertar curiosidade nos alunos, o discurso pedagógico de tipo autoritário a massacra, reduzindo-a ao "[...] desânimo e a falta de motivação dos alunos e dos professores" diante da "domesticação de alguns sentidos como aceitos, legitimados, tidos como corretos e reconhecidos como merecedores de credibilidade. [...]" (Romão & Pacífico, 2006, p. 17). Assim, as questões sobre o objeto discursivo são abafadas em prol do saber institucionalizado que não revela suas raízes, apenas o produto pronto e acabado, sem o articular ainda ao cotidiano do aluno.

Para Orlandi (2003), as divisões estanques dos moldes escolares pagam o preço da perda da unidade do conhecimento, e, para ela, tal unidade é recuperada no conceito de homogeneidade que abriga as divisões de sala, de seriação, de disciplina, de nível, inferindo sobre quem entra em qual destas categorias, tornando cada seção homogênea, não comportando o heterogêneo. Nessa fôrma, foram criados os critérios de vinculação de idade à seriação, a qual excluiu os alunos considerados deficitários dos bancos escolares por estes não acompanharem o conteúdo ofertado aos supostamente considerados homogêneos.

Articulando sentidos sobre inclusão e exclusão, com a autora, apontamos que o conhecimento escolar é ancorado na ideia de que há um desenvolvimento que ocorre paralelamente ao da maturação do aluno. Segundo Pfeiffer (2002, p. 12), "Este sentido está filiado a uma epistemologia positivista que vê o crescimento do sujeito como sempre linear, cumulativo: evolutivo", o que enfatizamos ser o avesso do proposto pela psicanálise freudiana e lacaniana, pois, conforme Jerusalinsky (2004), o sujeito não se desenvolve e sim suas funções. É com base no índice evolutivo que Raimundo é nomeado como de "inteligência tardia".

Jerusalinsky (2004), desprendendo-se das noções desenvolvimentistas que instauram um lugar incômodo para os que estão dentro ou fora dos padrões de normalidade, aponta que, embora os percalços do desenvolvimento possam de fato apresentar obstáculos à estruturação psíquica, não é do corpo que depende a simbolização psíquica, mas sim do "Outro, [que] desejante da criança, engrendrou-a ou adotou-a para que ocupe um lugar em sua cadeia significante" (Jerusalinsky, 2004, p. 37). Lugar este inexistente até pouco tempo atrás na escola regular e ainda parcamente materializado no discurso dos sujeitos escolares (Giorgenon, 2011).

Trazemos uma leitura/interpretação, dentre muitas outras possíveis, da capa da revista Nova Escola – Edição Especial1 (2009, julho - Figura I, anexo), da qual pinçamos a formação discursiva "Como ensinar os conteúdos do currículo para os alunos com deficiência". E desvelamos o silenciamento de um "Por quê?": Por que (se deve?) ensinar os conteúdos do currículo para os alunos com ou sem deficiência? E levantamos outro questionamento: será que "é porque é"? É, e deve ser assim? Com isso, denunciamos a captura dos sujeitos escolares pelo "é porque é" anunciado por Orlandi (2003), já que essa formação discursiva esquece o questionamento e trata do "como", da modelagem, do modo como os alunos e professores devem se moldar ao currículo homogeneizador, estabelecido para todos, como se todos aprendessem e ensinassem da mesma maneira. Em nossa leitura dessa formação discursiva, pontuamos a legitimação do dever aprender e não do desejo de aprender. Assim, pela escuta que empreendemos, a inclusão na escola tem sido da ordem da imposição curricular, da ordem de se manter o ensino moldado e de se calar qualquer possibilidade de se questionar os ensinamentos vigentes e instalados. Discurso que capturou a voz da revista e que é recorrente na voz de tantos outros sujeitos, que tem a ilusão de dizer de inclusão enquanto, como afirmamos, o significante inclusão não é levado a termo e, assim, a inclusão do heterogêneo não tem sido incluída no discurso, o que pudemos escutar desde o "aprender a tarefa", no Conto de Escola, ao "ensinar o conteúdo" proposto na capa da revista.

Com Alves, Ferrarezi e Romão (2007, p. 9), inferimos que, desse modo, "determinados sentidos são instaurados, [...] silenciando-o [sujeito], na medida em que ele tem anulada a sua capacidade de produzir outros sentidos, polemizar e discursivizar o diferente e, por fim, refletir criticamente". Sinalizamos, portanto, a opacidade da linguagem, "caracterizada pela multiplicidade de sentidos que não são evidentes" (Ferrarezi et al., 2011, p. 20). É preciso, como temos afirmado, uma escuta ao discurso dominante para fazê-lo furar, para fazê-lo incluir a inclusão do sujeito na escola, a inclusão da polissemia.

No tocante ao "ensinar", posto em discurso na formação discursiva da revista, e o "currículo", trazemos a contribuição de Pacífico (2007, p. 15), que levanta a polêmica do aprisionamento do professor ao livro didático (frequentemente adotado no currículo escolar), o qual emudece o seu (não) saber e de seus alunos, apagando "outras possibilidades de leitura e interpretação, quando os sujeitos escolares têm a ilusão de que só a resposta do livro é cabível". Pfeiffer (2002) e Orlandi (2003) apontam que, nesse sentido, o professor é autorizado a reproduzir os conhecimentos, sendo seu saber restringido. Essas autoras abordam sobre a necessidade de autorização dos sujeitos escolares a produzirem conhecimento e não "a-penas" reproduzirem, repetirem o já formulado, desprendendo-se dos moldes fixos e, em consonância com Romão e Pacífico (2006, p. 21), apontamos que, se as "grades" escolares supostamente são organizadoras da homogeneidade, por outro lado, prendem o fazer de alunos e professores, escamoteando "janelas abertas à reflexão".

Com esses apontamentos, salientamos que não nos opomos ao preestabelecido enquanto homogeneidade que instala uma ordem (já que a linguagem só se sustenta na disputa entre paráfrase - repetível - e polissemia - o renovado/ inovado), contudo indicamos que temos observado que tal ordem, do modo como vigora e é legitimada, tem massacrado a heterogeneidade de vozes na escola, sendo pertinente abrir suas "grades". Fizemos esse percurso sobre o discurso pedagógico para apontarmos o quanto a inclusão, tal como a propomos, pouco tem circulado em formações discursivas. Salientamos que a inclusão do heterogêneo não se restringe ao processo de inclusão de crianças e adolescentes considerados com deficiência nas salas regulares; vai além desta e se propõe a acolher a peculiaridade de cada sujeito em relação ao saber, incluindo, portanto, "qual-quer" sujeito.

Tendo Orlandi (2003, p. 32) apresentado o discurso pedagógico de tipo autoritário permeado por tantos furos, camuflados pela homogeneidade, ressaltamos com ela que "se a ideologia dominante coloca, então, certos pressupostos, certos implícitos, é preciso inferir na constituição dos sentidos assim construídos", o que certamente pode contribuir para a desenodamento de tantos impasses na instituição escolar.

O autoritário no discurso pedagógico e a inclusão do heterogêneo

Buscamos sinalizar que a instituição escolar é composta por sujeitos e que, nas tramas do ensinar, palpita o discurso pedagógico filiado ao discurso autoritário, com poucos espaços para a polissemia e o jogo de sentidos. Nesse lugar, a singularidade ainda está para ser discursivizada, de modo a não pesar e esmagar aqueles que imaginariamente não se encaixam em um padrão e ainda aqueles que imaginariamente se encaixam.

Pretendemos expor à opacidade tais padrões/moldes para fazer advir a peculiaridade do sujeito em relação ao saber e deslocar, assim, o discurso homogeneizante da inclusão, para que haja a circulação da inclusão do heterogêneo, do sujeito fal(t)ante que, a nosso ver, é possível a partir de um giro no discurso pedagógico a ser efetuado pela inclusão do discurso lúdico e do polêmico. A partir de um giro que faz da paráfrase tensão pol(iss)êmica. Tensão entre "o autoritário no discurso pedagógico e a inclusão do heterogêneo", entre o sentido fixado e o por vir, havendo assim lugar para o(s) sujeito(s) no discurso, no fazer escolar, no desejo de saber fazer, na produção (possível) a cada um, a ser compartilhada com o(s) outro(s).

 

Referências

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Anexo

 

 

 

*Doutoranda e mestra em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP), pós-graduada em Psicanálise pela Universidade de Franca, graduada em Psicologia pela Universidade de Ribeirão Preto, membro fundadora de Lalíngua - espaço de interlocução em psicanálise, membro do grupo de pesquisa Discurso e Memória: movimentos do sujeito (CNPQ) e pesquisadora do E-L@DIS, Laboratório Discursivo: sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos, financiado pela FAPESP. E-mail: danielagiorgenon@gmail.com.
**Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP); livre-docência em Ciência da Informação pela mesma instituição, graduada em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá de Ribeirão Preto; docente com dedicação exclusiva da Universidade de São Paulo, onde dá aulas e orienta alunos de graduação, mestrado, doutorado e supervisiona pós-doutorado; bolsista 2 do CNPq; parecerista ad hoc do CNPQ e FAPESP; membro de Abralin, ALED, ALFAL, GEL e GT de Análise do Discurso da ANPOLL. Especialista em Análise do Discurso, atua principalmente na investigação de materialidades discursivas ligadas aos seguintes temas: memória, mídia, questão agrária, textualidade digital e leitura. Publicou livros, além de artigos em revistas científicas e capítulos de livros. Coordena o Grupo de Pesquisa Discurso e memória: movimentos do sujeito, cadastrado junto ao Diretório de Grupos do CNPQ, e o E-L@DIS, Laboratório Discursivo: sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos, financiado pela FAPESP. E-mail: luciliamsr@uol.com.br.
1 Recuperado em 30 de agosto de 2009, de http://revistaescola.abril.com.br/edicoes-especiais/026.shtml.