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Psicologia em Revista
versión impresa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.19 no.2 Belo Horizonte 2013
https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9563.2013v19n2p287
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9563.2013v19n2p287
A clínica na carne: subjetividade, corpo e transe em psicoterapia*
The clinic in the flesh: subjectivity, body, and trance in psychotherapy
La clínica en la carne: subjetividad, cuerpo y trance en psicoterapia
Maurício da Silva Neubern**
Resumo
Este trabalho busca, numa perspectiva da subjetividade, uma compreensão sobre a experiência de mundo do sujeito em termos de corpo e transe em psicoterapia. Partindo de dois casos clínicos, busca transcender dicotomias comuns no pensamento psicológico (como mente-corpo, indivíduo-social, real-imaginário), chegando a uma noção complexa dessa experiência que envolve a produção de sentidos, imagens, enredos simbólicos, personagens, relações e crenças que habitam o espaço vivido onde o corpo ocupa um lugar central. Em ambos os casos, o transe é concebido como uma forma de acesso a esse mundo simbólico que também proporciona às pacientes a possibilidade da mudança. O trabalho é concluído destacando os processos de imaginação e memória vividos ligados a determinadas partes do corpo e as possibilidades terapêuticas proporcionadas pelo transe, quando este é considerado em termos da experiência de mundo do sujeito.
Palavras-chave: Corpo. Hipnose. Subjetividade. Psicoterapia.
Abstract
This paper seeks to understand the subject's world in terms of body and psychotherapy trance from a subjectivity perspective. Two clinical cases are presented in an endeavor to go beyond common dichotomies found in psychological thought (such as mind-body, individual-social, realimaginary) and reach more complex perspectives that involve producing feelings, images, symbolic themes, characters, relationships, and beliefs that inhabit life experiences in which the body is central. In both cases trance was used as a way to access these symbolic worlds that can help patients change. The conclusion highlights imagination and memory processes experienced in connection with certain parts of the body and the therapeutic possibilities enabled by trance that takes the subject's life experience into consideration.
Keywords: Body. Hypnosis. Subjectivity. Psychotherapy.
Resumen
El presente trabajo pretende, en una perspectiva de subjetividad, una comprensión sobre la experiencia de mundo del sujeto en términos de cuerpo y trance en la psicoterapía. Partiendo de dos casos clínicos, pretende trascender dicotomías comunes en el pensamiento psicológico (como mente-cuerpo, individuo-social, real-imaginario) llegando a una noción compleja de esa experiencia que envuelve la producción de sentidos, imágenes, enredos simbólicos, personajes, relaciones y creencias que habitan el espacio vivido donde el cuerpo ocupa un lugar central. En ambos casos, el trance es concebido como una forma de acceso a ese mundo simbólico que también proporciona a las pacientes la posibilidad de cambio. El trabajo es concluido destacando los procesos de imaginación y memoria vividos vinculados a determinadas partes del cuerpo y las posibilidades terapéuticas proporcionadas por el trance, cuando éste es considerado en términos de experiencia de mundo del sujeto.
Palabras clave: Cuerpo. Hipnosis. Subjetividad. Psicoterapia.
Introdução
A inclusão do corpo em psicoterapia não consiste em novidade contemporânea, uma vez que é possível averiguar diferentes noções sobre como o tema aparece logo que a psicoterapia se torna uma prática social corriqueira nas sociedades ocidentais (Carroy, 2000; Neubern, 2009). No entanto, o corpo frequentemente aparece nas referências psicológicas como um território biológico e individualizado, um campo virgem a ser desbravado pela cultura que apenas tardiamente poderia impor suas heranças e significados, conferindo humanidade a um terreno animal em sua essência (Despret, 1999). Tais perspectivas, que clamam por uma visão causalista, são habitadas por pensamentos lineares, situando o corpo como um território separado do mundo, autônomo, que até poderia se relacionar com a cultura e as trocas sociais, mas, permaneceria, antes de tudo, como fruto da biologia, sobre o qual outros conhecimentos pouco teriam a dizer. Visto de fora e sob o afã da objetividade, o corpo acaba se associando, em psicoterapia, a uma noção de indivíduo próxima do determinismo e de concepções universais (Rey, 2007) que se distanciam da noção de sujeito e da compreensão de seu mundo, uma vez que a ênfase recai sobre padrões e significados que não contemplam a singularidade das experiências dos sujeitos.
Em termos teóricos e conceituais, a compreensão da vivência do sujeito em psicoterapia sobre suas demandas e seu mundo de experiências, nas quais o corpo tem um papel central, torna-se precária, já que tais metáforas procuram satisfazer o olhar externo e objetivo do terapeuta (Binswanger, 2008). Como suas expressões são traduzidas em padrões e regularidades, cria-se um espaço obscuro na compreensão sobre o que o sujeito vivencia no processo terapêutico, a produção de sentidos que desenvolve, como seu mundo se entrelaça com a cultura e as trocas sociais e, em suma, como o corpo participa e integra esse seu mundo (Csordas, 2002). A complexidade das vivências que o habitam, sua participação na produção da identidade, na materialidade das trocas sociais, no uso da linguagem, na fabricação de emoções e nas práticas culturais se tornam um campo pouco explorado, uma vez que a riqueza que as perpassa é desprezada em nome dos padrões e do universalismo. Nesse sentido, as críticas sobre o distanciamento quanto ao cenário subjetivo do paciente (Neubern, 2010; Rey, 2007) tornam-se pertinentes também no que se refere ao corpo vivido que, frequentemente, não chega a ser considerado e aprofundado no processo terapêutico, permanecendo como um campo nebuloso sobre o qual o psicoterapeuta pouco tem a dizer.
As contribuições fenomenológicas e existenciais (Ellenberger, 2004) constituem-se como importantes exceções nesse sentido, uma vez que situam as experiências vividas como noções centrais de suas propostas de pensamento. Indo além da dicotomia mente-corpo, consideram este como um processo vivido em que o sujeito habita (Merleau-Ponty, 2008), que é perpassado pelas dimensões existenciais do tempo (Minkowski, 2005) e habitado pela linguagem e pelas trocas com o outro (Binswanger, 2008). Sendo um espaço de significados essenciais da experiência, consiste também numa das questões centrais da psicoterapia pela qual o sujeito deve passar, necessariamente, em termos de uma reconciliação consigo mesmo através de seu corpo vivido. Entretanto, apesar da visibilidade conferida à dimensão vivida, tais propostas não lograram, de forma significativa e ampla, uma discussão mais aprofundada sobre o transe hipnótico em psicoterapia, comumente considerado por tais autores como técnica objetivista e externa ao sujeito que em nada remeteria a seu mundo de experiências (Binswanger, 2008). Mesmo a obra de autores da hipnose que têm afinidades e muitas possibilidades de diálogo com essas contribuições (Neubern, 2009) parece não despertar a atenção de autores fenomenológicos e existenciais, que não costumam se pronunciar sobre o tema nem parecem se interessar sobre ele, apesar das várias reflexões que produzem sobre temas afins ao transe, como os processos oníricos (Merleau-Ponty, 2008), as diferentes ordens de alucinação (Minkowski, 2005) e o uso do paradoxo em psicoterapia (Frankl, 1980).
Desse modo, este trabalho visa, numa perspectiva da subjetividade (Neubern, 2009; 2010; Stengers, 2001), a oferecer uma compreensão sobre a vivência do corpo e do transe em psicoterapia, buscando apreender a experiência de mundo do sujeito. A subjetividade tal como é aqui compreendida abarca não apenas a produção de sentidos subjetivos (Rey, 2007), mas também toda uma produção configuracional de imagens, enredos simbólicos, relações, personagens e noções oriundas de sistemas de crenças (Neubern, 2010) que ocorre num espaço vivido onde o corpo ocupa um lugar privilegiado. Tal proposta abre espaço para a compreensão do sujeito com base em suas próprias referências e sentidos e não em um enfoque externo e objetivo, calcado em padrões que nada dizem de sua vivência. Trata-se de uma proposta teórica e clínica que visa a uma forma complexa de articulação entre territórios distintos e geralmente opostos no pensamento psicológico (Neubern, 2010), como corpo e mente, o individual e as trocas socioculturais, e a realidade e o imaginário. Nela, o transe hipnótico será concebido como um processo de ruptura parcial das referências eu-mundo (tempo, espaço, matéria, corpo, outro) que permite uma flexibilização das fronteiras desses territórios, facilitando a reconfiguração dos processos vividos pelo sujeito (Neubern, 2009; 2010). Uma pessoa em transe participa, ao mesmo tempo, da realidade consensual socialmente partilhada com suas próprias referências eu-mundo como também da realidade inconsciente, que modifica tais referências de modo significativo, o que pode envolver importantes mudanças configuracionais e subjetivas para a pessoa. Para tanto, serão apresentadas duas ilustrações clínicas de pacientes portadoras de dores crônicas que buscaram ajuda na clínica-escola onde o autor atuava como pesquisador e terapeuta, a fim de se submeterem a uma pesquisa sobre o uso da hipnose1 (Erickson & Rossi, 1979) em dores crônicas.
Marli e a herança familiar
Marli, 53 anos, funcionária pública e mãe de um rapaz de 25 anos, chegou à terapia em busca de alívio para suas dores físicas, provenientes de lúpus, e para uma depressão persistente que já a acompanhava há vários anos. Sua terapia até o momento havia durado cinco meses, tendo durado 18 meses no total. O que chamou a atenção, desde o início em seu processo, foi a intensa carga de maus-tratos em sua herança familiar: abusos físicos, sexuais, trabalhos forçados e muitos apelidos racistas quanto à sua origem africana. A partir de semelhantes experiências, Marli se acreditava uma mulher infeliz, em constante depressão, dona de uma história marcada pela decepção e pela violência que jamais permitiria algum tipo de realização em sua vida. Como forma de lidar com isso, Marli transitava entre o espiritismo de Allan Kardec, com o qual alegava se identificar mais, e o candomblé, que lhe acenava com outras possibilidades para remediar seu desespero. Nesse sentido, sua experiência de corpo, como processo vivido (Merleau-Ponty, 2008), era marcada pela dor física acompanhada por um sofrimento quase constante, como se existir implicasse em carregar um fardo grande e pesado. Grande parte das possibilidades de movimento era permeada por um peso considerável, uma dificuldade muito grande para mover um corpo pesado e dolorido. Dirigir o carro, transitar pelo mundo social, estudar para progredir profissionalmente, fazer amigos, frequentar lugares de bom gosto consistia em práticas que poderiam até ser raramente realizadas, mas com muito custo e sob as piadas dos familiares.
O início de cada manhã era visto como a retomada desse ciclo de peso que parecia nunca terminar ("Vai começar tudo de novo"), o que era caracterizado por uma grande dificuldade de se levantar e sair da cama. A produção subjetiva de sua identidade passava por uma forma de conceber sua relação com o mundo na qual houvesse sempre algo muito ruim que lhe deveria acontecer para puni-la, trazer muita dor e impedir a realização de seus sonhos e projetos, como se o mundo conspirasse para seu constante martírio. Essa rejeição a si mesma se refletia na relação consigo como corporeidade (Csordas, 2002), na qual Marli não conseguia se encarar no espelho e tinha imensa dificuldade de fazer qualquer observação de seu próprio rosto, chegando mesmo a demonstrar, em meio a fortes expressões emocionais, grande repulsa e aversão quanto a ele, sem, contudo, poder explicar as razões de semelhantes expressões.
Mesmo que remetessem, em larga medida, a uma causalidade orgânica, suas dores pareciam guardar as lembranças das violências, tristezas e humilhações sofridas, concentrando-se, na própria carne, como memória simbólica de experiências duras que poderiam ser ativadas diante das contrariedades e injustiças de sua vida atual. Assim, em um dado momento da terapia, quando Marli já havia conseguido efetivar mudanças significativas, ocorreu o seguinte episódio durante um transe hipnótico. Após se concentrar em diferentes partes do corpo, com o intuito de relaxar e viver experiências construtivas a partir de cada uma delas, ela expressou muita dor na cabeça, colocando-se a chorar e dizer que não, que ali não era o lugar para isso acontecer de novo. Como as explosões emocionais vieram de forma intensa e catártica, o terapeuta se pôs a intervir com a técnica da levitação de braço2 (Erickson, 1985), desviando seu foco para um dos braços, que ficou num estado de profundo relaxamento, quase anestesiado, ao mesmo tempo em que passava sugestões de que sua cabeça seria isolada do resto do corpo e continuaria seu tratamento pelas forças que já cuidavam dela. Explicando o que havia ocorrido, a paciente relatou a seguinte experiência:
- Quando comecei a focar a cabeça, e vieram várias imagens de minha infância. Meu pai me humilhando, me batendo, me dizendo muitas coisas horríveis... Foi horrível. Parecia que eu via aquele filme todo de novo... Na roça, o mato, o rio, os trabalhos duros... Então, veio alguém por trás de mim e colocou uma esponja que parecia sugar o que estava dentro de minha cabeça. Não tirava tudo, mas absorvia uma coisa escura que estava lá dentro... E senti que alguma coisa dividia minha cabeça do resto do corpo. Senti uma paz no resto do corpo, mas fiquei preocupada, pois aquelas coisas ruins estão na minha cabeça...
Nesse processo, nota-se que o transe hipnótico, por consistir em rupturas de referências que favorecem o acesso ao mundo inconsciente e simbólico (Neubern, 2010), permite que as imagens consigam sintetizar, de forma pertinente, as temáticas trazidas pelo sujeito com relação à forma como a cabeça era vivida. A cabeça, por um lado, representa, em nossa cultura (Csordas, 1997), o centro do comando, o lugar do cérebro e, portanto, a sede das decisões que uma pessoa toma, de suas percepções e juízos sobre si e sobre o mundo. No caso de Marli, há também uma produção cultural acentuada ligada a suas experiências religiosas, seja no candomblé, no qual a cabeça é o sítio do qual o orixá se apropria (Augrás, 2008), seja no espiritismo (Bergé, 1995), em que ela é vista como principal órgão do livre-arbítrio e da comunicação com o mundo espiritual. Tais aspectos não estavam ali apenas como teoria racional oriunda de ensinos religiosos: eles vieram à tona por meio das rupturas favorecidas pelo transe hipnótico, imbuídos de toda uma emocionalidade e produção simbólica ancoradas na carne, com imagens pertinentes sobre sua própria história: Marli sempre se perguntou o que havia de errado com ela para que seus próprios pais, pessoas tidas como justas na cidade, tratassem-na tão mal, como se desejassem destruí-la ou torná-la uma pessoa infeliz.
Essa indagação comum em suas reflexões ("O que há de errado comigo?") remetia intensamente à produção histórica de sua identidade de maneira que a paciente sempre a associava aos sofrimentos e injustiças causados pelos outros que deveriam, pelos próprios laços familiares, devotar-lhe amor e proteção. Nesse sentido, seria coerente conceber que a forma como a cabeça foi vivida nesse momento do transe remetia não só a uma reprovação do que pensava, mas a uma violenta rejeição dirigida à sua própria pessoa, algo que se repetiu diversas vezes na sua vida e acabou por se colocar como uma referência simbólica central em sua relação com o mundo, consigo e com o destino. Não era sem razões que, para ela, a experiência de encarar-se no espelho era aterradora, pois o rosto era um dos maiores símbolos de sua própria identidade, profundamente perpassada por ser uma pessoa errada no mundo, algo tão ruim que merecia ser desprezada e humilhada pelos próprios pais.
De modo similar, as rupturas proporcionadas pelo transe, em termos temporais (envolvendo o passado vivido no presente) e de outro (envolvendo suas relações com outras pessoas e seres), representaram sua cabeça com a imagem de uma substância escura e repugnante. As humilhações, as violências, os maus-tratos eram ali simbolizados como essa substância escura, acumulada em muitos anos de sofrimento, em que a história passada não deixava de reverberar e ser revivida no presente. No entanto as imagens trouxeram também outra possibilidade importante, já que ocorreram num contexto terapêutico e num momento em que a paciente já havia conquistado importantes mudanças em termos terapêuticos, em sua forma de se posicionar diante dos outros. Não foi sem razões que, embora a cena não liquidasse o sofrimento, houve a imagem de alguém (oriundo de seu sistema social de crenças) que vinha por trás e usava uma espécie de esponja que sugava boa parte da substância escura. Esse alguém, concebido por ela como um ser espiritual, estava numa posição de cuidador, buscando limpar uma substância deletéria ali acumulada por muitos anos, o que simbolizou algo que, por muito tempo, pareceu ser utópico para Marli: a possibilidade de receber cuidado e, portanto, de mudança.
Diante do acima exposto, é possível conceber que o corpo vivido apareceu como lugar habitado pelas experiências familiares marcantes de sua existência. Não se refere a uma máquina formada por músculos, ossos e nervos, mas a um cenário vivo em que suas experiências se enraizaram e foram registradas com suas tramas, relações e personagens sem, contudo, manter uma relação linear com os acontecimentos concretos, pelo próprio caráter imaginário que implicam. Ao mesmo tempo, ele não é um território individualizado e alheio ao mundo, mas um lugar existencial que, mesmo pertencendo a um sujeito, é também habitado pelos personagens que compõem a subjetividade social na qual esse sujeito toma parte. Ele é um registro vivo que guarda na própria carne as marcas da herança familiar que serão ativadas, modificadas ou adormecidas de acordo com o posicionamento do sujeito diante de si, do outro e de seu porvir. Em suma, ele diz daquilo que o sujeito recebeu como herança afetiva ou missão familiar, dos papéis que desempenhou e do lugar que ocupou nessa família, embora não deva ser tomado numa perspectiva determinista, posto que muitas das possibilidades de crescimento também se encontram escondidas, isto é, inconscientes, nesse manancial vivo que é o corpo.
Nesse sentido, o transe pode se constituir como importante recurso terapêutico, não só por proporcionar acesso ao mundo complexo e simbólico de imagens, sonhos e experiências inconscientes, mas também por poder apontar possibilidades de modificação dessa herança. Tal como aqui concebido (Erickson & Rossi, 1979), ele não remete a um conjunto de ordens proferidas pelo terapeuta, mas consiste numa experiência em que o sujeito se reinsere em seu mundo, sob uma nova perspectiva, onde pode estabelecer uma relação distinta com as marcas deixadas como herança por sua família. Houve aqui uma espécie de flexibilização entre territórios distintos, como se o presente, no qual Marli era sujeito com capacidade de ação, pudesse incidir sobre o passado, de modo a reconfigurá-lo em algum nível, e o social pudesse influenciar em sua experiência individual (como o ser espiritual que entra em cena para ajudá-la), reduzindo os impactos negativos dos maus-tratos. Desse modo, ao mesmo tempo em que pôde se reencontrar com as imagens de maus-tratos passados, o transe lhe proporcionou também a imagem de alguém que vinha em seu socorro e lhe prestava cuidados e atenções especiais, de maneira a apontar para outro lado da experiência, muito relevante para aquele momento da terapia. Se seu mundo era marcado por experiências infernais, como ela mesma dizia, ele passou também a ser marcada por algo distinto, trazendo-lhe uma percepção diferente de si e dos outros, podendo conceber sua história e seu futuro sob outra ótica.
Helena e o sistema de crenças
Helena, 36 anos, profissional liberal, desde muito jovem, havia tomado contato com o espiritismo de Kardec, fosse devido a sua mediunidade, fosse devido a uma larga história de sofrimento originário de sua família. Segundo Helena, a violência familiar fazia com que se refugiasse em seu mundo, brincando no quintal com suas bonecas, subindo nas árvores e conversando com amigos imaginários que, mais tarde, veio a conceber como espíritos. Ao final de sua adolescência, foi acometida por crises de saúde com diagnósticos indefinidos e crises espirituais, pela quais tinha visões de seres que a perseguiam, de insetos ameaçadores que andavam em seu corpo, que apareciam e desapareciam misteriosamente de sua casa. Chegou mesmo a ficar alguns meses em cadeira de rodas, principalmente devido a intensas dores e à fadiga persistente. Com sua ida ao centro espírita, onde foi acolhida e recebeu tratamentos espirituais, e sua participação em variadas práticas mediúnicas, Helena pôde se restabelecer de maneira a retomar sua vida com relativa tranquilidade, vindo mais tarde a se casar e ter três filhas. Tornara-se uma médium importante em sua comunidade, de maneira a exercer vários trabalhos e se constituir como referência de ajuda a muitas pessoas que a procuravam em busca de amparo e esclarecimento.
No entanto, na época em que buscou a terapia, esta que durou cerca de dois anos, Helena se sentia deprimida em função de várias questões e também havia descoberto uma doença semelhante ao lúpus, mas que não teve diagnóstico concluído. Ela se queixava de profunda solidão, como se faltasse algo ou alguém em sua vida, que ela não sabia explicar o que era. A constante busca de auxílio por parte de outras pessoas a esgotava, agravando seus conflitos, pois se via no dever de compreender os outros, mas não tinha alguém com quem pudesse falar de si e que a compreendesse. Seu marido parecia um homem distante que não entendia suas queixas, não lhe apoiava e mantinha suas preocupações voltadas para os negócios. Ao mesmo tempo, sua doença a castigava intensamente, com dores em várias partes do corpo que se alternavam e atacavam diferentes órgãos e regiões numa intensidade tal que a paralisava, não a deixava dormir, traziam-lhe muita fadiga e a impediam de continuar suas atividades profissionais e cotidianas (como cuidado com a casa e com as filhas). Chamavam a atenção as persistentes dores que sentia no peito, na bacia e nas pernas que não se aliviavam com os medicamentos e se expressavam, segundo ela, como se seus ossos tivessem sido feitos em pedaços. A ausência de um diagnóstico preciso e de explicações sobre sua situação a levavam a profundas indagações, permeados pelo sofrimento e pela depressão, sobre quais seriam os sentidos ligados a esse momento de sua existência.
Chegado a um determinado momento da terapia, Helena afirmou que seu mentor espiritual havia lhe dito que tanto o terapeuta quanto ela deveriam se preparar para um aprofundamento do processo terapêutico, pois a paciente já estaria em condição de compreender melhor sua situação em termos espirituais. Assim, compreendendo que tal demanda era pertinente para aquele momento da terapia, o terapeuta ofereceu um espaço mais longo durante algumas sessões, de maneira a facilitar as expressões espontâneas que viessem durante o transe, respeitando-se o tempo, as condições emocionais e a integridade da paciente para semelhante investigação. Após uma série de técnicas hipnóticas de proteção3 (Erickson & Rossi, 1979), Helena relatou viver em um país de língua francesa, onde teria sido filha de seu mentor espiritual, na época encarnado, fugido com um homem belo e sedutor e se jogado num precipício, após ser enganada por tal homem. Discorreu, em meio a profundas expressões emocionais e catárticas, sobre os detalhes das dores de ossos que se quebravam e sua torturante culpa por fazer sofrer seu amado pai que quase enlouqueceu ao ter notícia de seu suicídio. Como esses processos se encontravam numa dimensão profunda de seu inconsciente, guardados por fortes mecanismos de recalque, o terapeuta proferiu algumas sugestões para que tais lembranças permanecessem inconscientes e só pudessem ser reveladas à paciente caso fosse importante para seu processo, o que ocorreria de forma gradativa por meio de breves reminiscências e sonhos que ela costumava anotar num caderno.
Após algumas sessões com experiências dessa natureza, Helena participou de um trabalho espiritual em que tinha a visão na qual uma cadeira de rodas vazia era dobrada e recolhida para não ser mais utilizada por ela, que, pelo andamento de sua doença, temia ter novamente sua vida restrita a tal situação. Essa visão, à qual só atribuiu significados meses depois, coincidiu com importantes mudanças em seu processo terapêutico, como melhora de sua qualidade de vida, redução considerável de suas dores, um espaço de diálogo com seu marido e novas perspectivas de futuro em termos de trabalho e projetos de fazer o mestrado. Helena relatou ter visto sair de si um molde escuro de seu corpo, sendo colocado de lado, o que, segundo seu mentor, era o sofrimento que estava saindo, embora ela ainda necessitasse de atenções médicas. Relatou ainda que os médicos espirituais haviam colocado um novo molde espiritual em seu corpo, para reequilibrá-lo, e que isso ainda lhe traria alguns incômodos, que, porém, não seriam nada comparáveis aos sofrimentos pelos quais havia passado. Apesar de não ter uma lembrança clara de suas experiências de outras vidas, a paciente relatava ter maior consciência de sua situação atual, de maneira que as dores semelhantes a ossos quebrados quase não a incomodassem mais e a sensação de que faltava algo parecia ter sido suprida pelos sentidos subjetivos promovidos por tais experiências e pela presença constante de seu antigo pai, atual mentor espiritual.
A breve exposição acima consiste numa bela ilustração sobre a inserção do mundo cultural e social, em termos de seus sistemas de crenças, sobre a experiência vivida do sujeito em seu próprio corpo (Csordas, 1997; 2002) acessadas por meio do transe. Embora suas crenças fossem corriqueiras em termos conscientes, o transe lhe proporciona um nível de experiência nas quais tais crenças tomam forma mediante imagens de cenas, personagens, enredos simbólicos, que remetem a seus processos complexos de vida, como seu círculo social, suas práticas espirituais e sua doença. Assim, ao serem focadas no transe, as sensações de ossos quebrados remeteram a imagens e sensações de seu mundo de experiências que foram profundamente perpassadas pelos conceitos espíritas, cuja importância foi central na produção de novos sentidos para suas provações de vida. O que parecia encarnado nessas dores, em termos de sua produção de sentido de Helena, era a condição de seu corpo sofrido e doente nesta vida e a sensação de solidão e incompreensão no plano social, ambos consequências do suicídio e do desprezo de importantes vínculos amorosos e familiares de outra encarnação. As referidas dores do corpo vivido, portanto, remetiam a uma dimensão transcendente, dificilmente acessível aos conhecimentos e referências humanas, mas que encontravam amparo na reencarnação e na lei de causa e efeito, dois importantes conceitos espíritas (Bergé, 1995) que foram de grande relevância para a compreensão profunda de um sofrimento que, durante boa parte de sua vida, não encontrou uma explicação eficaz em termos de sua transformação de mundo.
Malgrado as diversas explicações intelectuais que recebeu de seus companheiros espíritas, Helena talvez ainda não houvesse vivido uma experiência que viesse de seu mundo e fosse apropriada por ela mesma. No entanto a vivência do transe em psicoterapia era concebido por Helena como um processo mediúnico, outra importante prática social espírita, que permitiu acesso a seu próprio mundo onde os diferentes acontecimentos, personagens e tramas de sua experiência parecem entrar em nova forma de relação, apontando novas perspectivas de produção de sentido. Isso lhe permitiu um processo de reconciliação consigo mesma (Binswanger, 2008) que não passava, inicialmente, por crenças superficiais, mas por uma possibilidade de aceitação de si mesma em termos de corpo vivido e do próprio sofrimento que já por tanto tempo a acompanhava. Suas dores, a violência causada pelos outros, sua solidão não eram apenas eventos que simplesmente aconteciam, mas pareciam ganhar, por meio de seu sistema de crenças, sentidos legítimos vindos de sua própria experiência. Assim, diante de tantas provas mediúnicas, cármicas e reencarnacionistas que ela mesma vivenciou, tornava-se possível a Helena concretizar em seu próprio corpo o ensino espírita da resignação, na qual o sujeito, apesar do sofrimento, não se revolta e segue a sua vida na prática do bem. Por não se limitar a repetir o que os outros lhe diziam, mas por viver tais ensinos em seu corpo, ela pôde se apropriar de tais conceitos e promover mudanças legítimas em seu próprio mundo.
Considerações finais
A perspectiva de Merleau-Ponty (2008), segundo a qual não temos um corpo, mas habitamos um corpo e somos um corpo, remete as reflexões aqui desenvolvidas a importantes considerações para a clínica em termos teóricos e epistemológicos. O corpo consiste em um importante momento do mundo de experiências vividas do sujeito, mundo este que transcende à dicotomia comum no pensamento psicológico entre o individual e o social. Como nos exemplos aqui discutidos, esse mundo é habitado por personagens históricos que existiram no plano real, mas também por espíritos, seres e conceitos pertencentes aos sistemas de crenças dos sujeitos (Neubern, 2010) que interagem nesse cenário, seguindo os enredos e metáforas de sua história de vida, estabelecendo relações, tramas, confrontos e solidariedade entre si mesmos e com o sujeito.
É assim que, no caso de Marli, a partir do momento em que ela entra em conexão com seu corpo pelo transe, seus pais surgem ainda estando lá, gritando com ela, humilhando-a e maltratando-a naquele mesmo lugar da roça, com trabalhos forçados, lavoura, rios e mata. De outra parte, a figura de apoio de Helena, seu mentor espiritual, além de toda uma relação afetiva que desenvolvia com a paciente, tornou-se compreensível para ela a partir de noções-chave do espiritismo, como a existência do espírito, que dava uma razão de ser à imagem do mentor, a mediunidade, por meio da qual se comunicavam, e a reencarnação, que explicava a origem de seus vínculos e sofrimentos (Bergé, 1995). Ambas pareciam viver na interação com tais personagens sob enredos simbólicos traçados, em grande parte, coletivamente e assumindo papéis, lugares e perspectivas que muitas vezes confirmaram as premissas de tais enredos.
Todavia isso não implica conceber que o sujeito seja diluído no mundo social, como parece preconizar certas perspectivas discursivas (Rey, 2007; Neubern, 2009), mas que o sujeito guarda sua individualidade ao mesmo tempo em que tem em si e a seu modo algo das comunidades nas quais toma parte. Toda a presença do social, com sua materialidade subjetiva e simbólica, perpassa e ajuda a construir esse mundo de experiências do sujeito, que o faz segundo suas lógicas de produção de sentido e de posicionamento diante do mundo. Mais que isso, a atitude que o sujeito assume diante de toda essa influência é decisiva para a definição do espaço que ocupará nesses enredos simbólicos, como na definição se será ou não ator e criador em seu próprio mundo de experiência (Binswanger, 2008). Tal perspectiva é mais fácil de ser percebida no processo de Helena, que passou a se posicionar de outra forma diante do marido, a refazer projetos de vida e a redefinir seus modos de produção de sentido diante de sua vida e sua doença. Já no caso de Marli, no momento aqui discutido, é possível notar a inclusão de uma nova perspectiva em seu mundo, uma perspectiva na qual existe a possibilidade da mudança por meio do tratamento que recebeu do ser espiritual de suas visões. Tal momento foi de grande importância por marcar uma transição na qual, apesar do sofrimento, seria possível se posicionar de outra forma diante dele e de um modo mais ativo diante de suas escolhas na vida. Curiosamente, essa possibilidade coincide com uma redução acentuada de suas dores e com o retorno da disposição para suas atividades.
A produção de imagens durante o transe remete também a uma dimensão da mais alta relevância nessa forma de compreensão. Elas abarcam a flexibilização dialética das fronteiras entre o sujeito e o social, não só pela presença de outros personagens, mas também por consistirem em metáforas vivas e animadas que sintetizam as temáticas simbólicas vividas pelos sujeitos, por serem ancoradas em seus corpos com seus sentidos e emocionalidade e por remeterem a um mundo inconsciente, anterior aos pensamentos deliberados dos sujeitos. Nos casos aqui discutidos, as imagens podem se aproximar das concepções de Lakoff e Johnson (2003) sobre as metáforas, uma vez que estas parecem estabelecer roteiros de vida, papéis, formas de relação e de enxergar o mundo, permanecendo, em larga medida, inconscientes para as pessoas. As imagens surgem como metáforas visuais que os sujeitos enxergam durante o transe, mas não conseguem compreender, ao menos de início, toda a rede de configurações marcadas por sentidos subjetivos determinantes em seus mundos. Elas sintetizam em si vários elementos que compõem o tema vivido pelo sujeito naquele momento de vida, com suas tramas e roteiros simbólicos, apontando disposições possíveis do porvir, como se comunicassem algo ao sujeito que pode ficar um bom tempo sem tomar consciência do que querem dizer. É por essa razão que a imagem da cadeira de rodas sendo recolhida ficou por muito tempo sendo processada por Helena, de maneira a fazer sentido a partir do momento em que as mudanças em sua vida se concretizaram e se tornaram estáveis.
Nesse ponto, diverge-se da perspectiva fenomenológica levantada por Csordas (2002), para quem tal dimensão da experiência seria concebida como um mundo natural preenchido pela cultura. Embora se reconheça a pertinência de sua contribuição em termos de se levantar uma dimensão além do pensar racional e causalista, o termo natural, com suas implicações transcendentes, remete-se, por vezes, a uma condição de mundo inacessível ao sujeito e ao próprio terapeuta, um mundo com exigências metodológicas talvez inalcançáveis. Prefere-se aqui a referência de um inconsciente permeado pela produção imaginária (Erickson, 1985), acessível por meio de um processo empático na relação e por uma tecnologia de sugestões (Erickson & Rossi, 1979) que permitem que as imagens reorganizem as relações entre passado e presente, como entre o individual e o social (Neubern, 2009). A dimensão imaginária desse mundo inconsciente (Bachelard, 2002) perpassa, interage, confronta-se com a da realidade consensual na produção de variados processos subjetivos, de maneira a se constituir como um ponto-chave da articulação entre o sujeito e mundo social, sem, contudo, guardar uma linearidade com ele.
A imagem dos referidos personagens consiste em símbolos que remetem à forma como pessoas, crenças, relações, acontecimentos ou ainda outros processos imaginários foram simbolizados pelo sujeito sem que com isso se conceba que o imaginário guarde dependência e relação direta com as dinâmicas do plano real. Apesar de ter existido concretamente, o pai de Marli, como muitos de seus familiares, ficou registrado em seu imaginário como um homem rude e cruel, um vilão, cuja meta era a de maltratá-la de maneira que não havia, nesse símbolo, espaço para uma visibilidade de outras facetas de seu pai que mostrassem a típica contradição presente nas pessoas, com seus vários lados e papéis. Já o mentor espiritual de Helena, que não existiu concretamente em sua história, afigurou-se como um representante do imaginário, perpassado pelas crenças espíritas, com o qual desenvolveu intenso vínculo afetivo e que tem uma participação decisiva durante momentos críticos de sua vida. Era o anjo guardião ou mentor que remetia a seu sistema de crenças, mas também a dimensões de seu mundo que eram muito particulares.
Também é importante destacar que a produção subjetiva das imagens no transe não ocorre como fruto de uma entidade reificada e impessoal, como uma função mental ou fisiológica qualquer, mas acontece como processo de um sujeito encarnado em seu corpo vivido. Nesse sentido, a perspectiva fenomenológica de Csordas (1997) é de grande relevância por não conceber as imagens como efeitos de uma causa, mas por abordá-las de forma descritiva, destacando como aparecem para o sujeito, com que partes do corpo se ligam e com que processos da história, da cultura e das trocas sociais se relacionam. No entanto, se, por um lado, determinadas partes do corpo parecem funcionar como depositárias de experiências vividas do passado, por outro, o transe hipnótico permite mostrar que não consistem em processos a serem descritos, tal como simplesmente aparecem aos sujeitos, conforme preconiza a fenomenologia (Csordas, 2002), mas em experiências que são, de alguma forma, influenciadas pelo sujeito, mesmo que por muito tempo.
Assim, por um lado, torna-se possível conceber como a cabeça, no caso de Marli, que remetia a toda uma história familiar e à herança maldita da qual foi vítima, redundou na construção de sua própria identidade, como alguém que, rejeitada pelos pais, deveria ser ruim em sua essência. Várias situações infelizes de sua vida parecem alimentar os significados negativos de tais experiências, fortalecendo-as cada vez mais, confirmando para ela a certeza de um destino infeliz. Já no caso de Helena, as dores fortes pelo corpo, a intensa solidão e o histórico de maus-tratos pareciam distanciados de suas crenças espirituais, como se estas fossem externas, desvencilhadas de seu corpo, o que parecia lhe incutir uma ausência de sentido em termos de destino existencial e a produção de um processo depressivo cada vez mais intenso. As dores pelo corpo não encontravam amparo em termos de estrutura de significados em nenhum dos focos importantes de suas crenças, o que parecia favorecer um processo desesperador sobre o que seria de sua vida e os porquês de tanto sofrimento.
Por outro lado, ao serem colocadas em transe, à perspectiva, as pacientes não se colocaram como expectadoras passivas diante das cenas emergentes nem como marionetes da vontade externa do terapeuta, mas como sujeitos de seus respectivos processos. Isso porque entrar em contato com tais cenas já implica estabelecer uma relação com elas e uma relação por meio de uma postura ativa, na qual cada sujeito pode trabalhar a favor de seu próprio processo terapêutico (Erickson & Rossi, 1979). Com todo o processo de flexibilização de referências favorecido pelas sugestões hipnóticas, a experiência de transe se torna um campo de possibilidades terapêuticas de grande relevância, uma vez que está sob a influência, tanto da ação do sujeito, como da influência terapêutica do contexto clínico, aqui voltado para a busca de soluções. Quando as cenas de sofrimento surgem tanto para Helena como para Marli, há toda uma mobilização para que ambas se posicionem de outra forma diante dessas e que os recursos terapêuticos existentes favoreçam uma solução distinta e favorável para elas. Ao mesmo tempo em que Marli é, aos poucos, conduzida a se libertar da cena negativa, o que consiste num aprendizado para se desvencilhar do sofrimento na cena, uma figura positiva (o enfermeiro espiritual) surge e limpa a substância escura de sua cabeça, trazendo-lhe um grande alívio. De modo similar, quando Helena se vê frente a cenas terríveis do seu passado espiritual, as intervenções de seu mentor (como a saída de um molde escuro do corpo) proporcionaram uma compreensão distinta de sua vida, com novas possibilidades de produção de sentido e estabelecimento de relações. Em suma, em ambos os casos, a influência do sujeito, no campo imaginário flexível proporcionado pelo transe, sobre processos ali mantidos por vários anos, proporcionou importantes mudanças terapêuticas para as pacientes.
Torna-se, então, possível considerar o corpo como um lugar de potencialidades encarnadas que pode ser acionadas e reconfiguradas por meio do transe para fins terapêuticos. As memórias plenas de sentidos evocadas pelas imagens remetem a experiências onde há o sofrimento, mas também o potencial capaz de orquestrar e tornar as mudanças possíveis a partir do próprio sujeito. Em ambos os casos aqui discutidos, pode-se imaginar como o processo seria doloroso para as pacientes, caso seus transes se restringissem à catarse ligada ao sofrimento, de maneira a confirmar todo o negativismo existente em suas identidades e em seus próprios destinos. É provável que apenas lhes mostrasse, de forma convincente, a força de seus sofrimentos contra aos quais nada poderiam fazer, a não ser assumir a impotência e se render a seu império. Portanto a experiência de acesso, construída mutuamente, precisa ser legítima para o paciente, algo vindo dele, apropriada por ele, e, ao mesmo tempo, permitir que ele possa se movimentar como sujeito nessa experiência de modo a participar ativamente da reconstrução de seu mundo vivido (Erickson & Rossi, 1979).
No entanto, o processo de acessar o mundo do outro demanda uma atitude de compreensão dos sentidos produzidos por ele no tocante a sua própria experiência e a diversidade de processos e personagens que a compõem. É por essa razão que as imagens que brotam da experiência vivida do sujeito devem ser compreendidas nos sentidos subjetivos que possuem em seus respectivos cenários e não reduzidas a algum território colonizado pelo pensamento científico que as reduzam à imaginação, mitos, complexos e alucinações de origem psíquica ou fisiológica. Nos casos aqui discutidos, mesmo que se considerasse a riqueza simbólica das imagens, elas não são concebidas como frutos de processos imaginativos, numa lógica linear de causa e efeito, mas como aberturas para o mundo simbólico, vivido e inconsciente do sujeito com seus próprios sentidos subjetivos. Todavia, as perspectivas de acesso ao mundo abertas pelas imagens abrem ainda perspectivas de compreensão de suas relações com o sujeito e das possibilidades de relação com o terapeuta que começa a adentrar esse mundo, como alguém que negocia em nome das demandas do sujeito, como ocorreu no caso de Helena, quando o mentor advertiu ao terapeuta e à paciente de que havia chegado o momento para um maior aprofundamento do processo.
Talvez fossem possíveis muitos questionamentos quanto à postura acolhedora do terapeuta a tal advertência, se isso não consistiria numa atitude subserviente e sem critérios, se isso seria da alçada ética de seu trabalho ou se ele assim procedia avaliando os possíveis riscos e demandas do processo de sua paciente. Todas essas considerações foram levadas em conta, pois a negociação com o mundo de experiências do sujeito não deve dispensar os pressupostos éticos da profissão nem ainda as necessidades e riscos quanto à integridade do sujeito. Porém uma delas foi decisiva para que o terapeuta fosse acolhedor: o sentido que tal advertência tinha para Helena. A imagem do mentor, naquele momento específico, simbolizava não só a comunicação com o anjo guardião, mas também a vinda de uma nova fase de vida, de uma relação franca com suas feridas que a levaria a novas possibilidades de se posicionar no mundo, ou seja, uma experiência que não deveria ser desprezada em nome de seu próprio processo terapêutico. Assim, mesmo que não fossem possíveis explicações nos moldes de uma psicologia modernista, concebeu-se que havia a necessidade de que a pessoa fosse considerada em seu mundo particular de experiência, com tudo o que era importante, afetivo, valoroso e significativo para ela. Talvez, apenas assim, mesmo que na perplexidade ou principalmente por ela, fosse possível um processo terapêutico legítimo no crescimento da própria Helena que também contemplasse a perspectiva de novas formas de conhecimento.
Referências
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*Este trabalho é fruto do projeto do autor, junto a esta universidade, intitulado "Hipnose, subjetividade e dor crônica: construindo o contexto terapêutico". Tal projeto cumpre com todos os requisitos éticos exigidos pelo Comitê de Ética da instituição (CEP-IH), como a assinatura do "termo de consentimento livre e esclarecido". O autor também agradece ao Departamento de Pós-graduação e Pesquisa (DPP/UnB) pelo financiamento de alguns equipamentos da pesquisa e ao Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos (CAEP/IP) pelo apoio à pesquisa.
**Doutor em Psicologia, professor adjunto do Departamento de Psicologia Clínica (PCL) do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de Brasília, psicoterapeuta. E-mail: mauricio.neubern@gmail.com.
1 Embora o foco do trabalho não seja a descrição da técnica hipnótica, destaca-se que tal estudo foi inspirado na proposta de Milton Erickson (Erickson & Rossi, 1979) que se fundamenta, em linhas gerais, no potencial criativo e ativo do sujeito para criar suas próprias soluções, no uso de sugestões indiretas (metáforas, contos) e na utilização dos comportamentos, expressões e características do próprio sujeito a favor de seu processo terapêutico.
2 Técnica desenvolvida por Erickson (1958), que consiste em fixar a atenção do sujeito em seu braço, que fica suspenso. Com essa fixação, ele pode, sob certas sugestões, entrar em transe ou aprofundar esse estado.
3 Consistem em técnicas que conectam o sujeito a experiências (lembranças, personagens, acontecimentos) construtivas e positivas de seu mundo, com o intuito de favorecer a reconfiguração de sua autoimagem, como também de fortalecê-lo para lidar com temáticas de sofrimento.