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Psicologia em Revista
versión impresa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte enero./abr. 2018
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p40-59
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p40-59
O cientificismo de Freud na encruzilhada do sistema da consciência
Freud's scientism at the crossroads of the conscious system
El cientificismo de Freud en la encrucijada del sistema de la conciencia
Juliano Moreira Lagoas*; Daniela Scheinkman Chatelard**
Resumo
O objetivo deste artigo é mostrar que as dificuldades e impasses aos quais Freud é conduzido em sua reflexão sobre o tema da consciência no Projeto para uma psicologia científica, de 1895, longe de serem simplesmente um escolho à elaboração de uma teoria científica do funcionamento psíquico, à naturalização do psiquismo, constituem uma condição positiva para a hipótese do inconsciente. Pois, enquanto decorrem justamente da persistência de Freud no caminho de uma física dos processos psíquicos, psicofísica, essas dificuldades e impasses impulsionam a invenção de um novo modelo teórico para se pensar o psiquismo e, nesse sentido, medem o teor da novidade posta em curso pelo programa freudiano de uma psicologia científica. Ver-se-á, assim, que a descoberta do inconsciente está intimamente ligada às aspirações científicas de Freud, das quais o Projeto para uma psicologia científica nos fornece um testemunho incomparável.
Palavras-chave: Consciência. Percepção. Inconsciente. Ciência. Psicanálise.
Abstract
The purpose of this paper is to show that the difficulties and dilemmas Freud faced in his reflection on the theme of conscience in the "Project for a scientific psychology", 1895, far from being simply an obstacle to the development of a scientific theory of mental functioning or to the naturalization of the psyche, they constitute a positive condition for the hypothesis of the unconscious. Taking into account that, while arising precisely from Freuds persistence in pursuing a physics of mental processes, psychophysics, these difficulties and dilemmas triggered the creation of a new theoretical model aiming at thinking the psyche and, in this sense, measuring the content of novelty put underway by Freud's program of a scientific psychology. Therefore, we shall see that the discovery of the unconscious is intimately linked to Freud's scientific aspirations, from which the Project provides incomparable testimony.
Keywords: Consciouness. Perception. Unconsciousness. Science. Psychoanalysis.
Resumen
El objetivo de este artículo es mostrar que las dificultades y bloqueos a los cuales Freud es conducido en su reflexión sobre el tema de la conciencia en el Proyecto para una psicología científica, de 1985, lejos de ser éstos simplemente un obstáculo a la elaboración de una teoría científica del funcionamiento psíquico y a la naturalización del psiquismo, constituyen una condición positiva para la hipótesis del inconsciente. Ya que, en la medida en que derivan justamente de la persistencia de Freud en el camino de una física de procesos psíquicos, psicofísica, esas dificultades y bloqueos impulsan la invención de un nuevo modelo teórico para pensar el psiquismo y, en ese sentido, miden el grado de novedad puesta en marcha por el programa freudiano de una psicología científica. Se verá así, que el descubrimiento del inconsciente está íntimamente ligado a las aspiraciones científicas de Freud, de las cuales el Proyecto nos proporciona un testimonio incomparable.
Palabras clave: Conciencia. Percepción. Inconsciente. Ciencia. Psicoanálisis.
1. INTRODUÇÃO
O Projeto para uma Psicologia Científica1, de 1895, é seguramente a primeira tentativa sistemática de Freud no sentido da elaboração de uma questão que permanecerá, ao longo de sua obra, como um problema fundamental: o de determinar o lugar e o papel da consciência no funcionamento psíquico, em particular no que diz respeito às suas relações com a percepção e com o inconsciente. Como mostram Simanke & Caropreso (2005), embora presente desde a monografia Sobre a concepção das afasias, de 1891, a reflexão sobre o tema da consciência somente ganha uma importância decisiva no conjunto da investigação freudiana a partir do momento em que o psíquico passa a não mais ser identificado à consciência, isto é, em que se admite a hipótese de um "psiquismo inconsciente". E é no Projeto [ ] que Freud (1895/1996)2, Ao faz pela primeira vez. Quer dizer, é com a introdução da hipótese do estatuto inconsciente dos processos psíquicos (Freud, 1895, p. 351) que o problema da consciência recebe seu valor crítico. Pois, não estando o psiquismo originalmente ligado à consciência, resta então saber qual o papel desta no conjunto da vida psíquica. Em um dos últimos textos sobre sua pesquisa, Freud (1938a/1996) afirma: "O ponto de partida dessa investigação é o fato sem paralelo, que desafia toda explicação ou descrição o fato da consciência" (p. 171). No mesmo ano, constatará que as investigações sobre a natureza do psíquico se chocam contra esse fato como contra uma parede lisa, e não podem encontrar qualquer caminho além (Freud, 1938b/1996, p. 303). Lacan (1954-1955/1985) descreve, de uma maneira particularmente contumaz, a situação à qual Freud chega, e que se reproduz em todos os níveis da sua obra: "do sistema consciência, não se sabe o que fazer" (p. 131). Trata-se, diz o psicanalista francês em 1964, de saber "como, na perspectiva do inconsciente, podemos situar a consciência" (Lacan, 1964/1998, p. 79). E, quanto a isso, adverte-nos ainda de que o fato da consciência no discurso de Freud é marcado por sombras e reservas.
Tendo em vista essas considerações, o objetivo deste artigo é mostrar que as dificuldades e impasses aos quais Freud é conduzido em sua reflexão sobre o tema da consciência no Projeto[ ], longe de simplesmente denotarem um escolho à elaboração de uma teoria científica do funcionamento psíquico, à naturalização do psiquismo, constituem uma condição positiva para o desenvolvimento ulterior da psicanálise, para a descoberta do inconsciente, bem como para a determinação do estatuto da verdade por ele veiculada. Pois, visto que decorrem justamente, como veremos, da persistência no caminho de uma física dos processos psíquicos, psicofísica, essas dificuldades e impasses constituem a força motriz para a invenção de um novo modelo teórico do psiquismo e, nesse sentido, medem o alcance da novidade posta em curso pelo programa freudiano.
Se quisermos dar conta da novidade trazida por Freud na abordagem do problema da consciência, será preciso levar verdadeiramente a sério a intenção que ele enuncia já nas primeiras linhas do Projeto[ ], a saber, de "prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses processos claros e livres de contradição" (Freud, 1895, p. 347). E levá-la a sério significará, para nós, dar crédito ao intento freudiano, no sentido de desenvolver as ideias diretrizes com as quais ele pretende sustentá-lo, seguir os passos de suas elaborações, para vermos de que maneira as dificuldades e impasses que ele encontra no caminho vão, pouco a pouco, conduzindo-o a um domínio inteiramente novo. Não é, entretanto, nossa pretensão aqui reconstruir toda a argumentação do Projeto[ ] Antes, interessa-nos mostrar que é precisamente por insistir no ideal de construção de uma "ciência natural" dos processos psíquicos, forçando os obstáculos à constituição de um saber científico sobre o psiquismo, que Freud é levado a dele se afastar, conferindo, assim, um sentido inédito ao problema da consciência e de suas relações com o inconsciente e com a percepção. Seguimos aqui uma indicação de Pragier e Faure-Pragier (1990), segundo os quais a "aspiração científica será o fundamento que permite a Freud pensar o funcionamento psíquico em termos de movimento, segundo a física newtoniana" (p. 1410). Aspiração, entretanto, que somente poderá ser "o suporte e o apoio de toda a descoberta freudiana à condição de que dela se distancie" (Pragier & Faure-Pragier, 1990, p. 1410). De nossa parte, acrescentamos: se Freud se distancia dela, é por ter, antes, tencionado ao máximo suas consequências.
2 QUANTIDADES E NEURÔNIOS: AS BASES FISICALISTAS DO PROJETO
Para levar ao termo seu intento no Projeto[ ], Freud lança mão de duas ideias diretrizes:
a) a quantidade de energia (Q), determinada pelas "leis gerais do movimento", "distingue a atividade do repouso"; e
b) os neurônios são "partículas materiais" (Freud, 1895, p. 347).
Dessas ideias diretrizes, ele extrai duas proposições fundamentais, que deverão acompanhar todo o desenvolvimento ulterior do Projeto[ ]
A primeira proposição fundamental, econômica, diz respeito ao "princípio de inércia neurônica", segundo o qual os "neurônios tendem a se livrar de Q", e que explica "a dicotomia estrutural [dos neurônios] em motores e sensoriais, como um dispositivo para neutralizar a recepção de Qn, por meio de sua descarga" (Freud, 1895, p. 348). Todo o funcionamento do sistema nervoso é concebido, por Freud, com base na ideia de que, a uma descarga de energia no polo motor corresponde um acréscimo no polo sensorial. Essa correspondência e essa simetria são conotadas no início do Projeto[ ] por meio do "movimento reflexo". Em O Seminário, Livro 2, Lacan (1954-1955) nos dá uma metáfora bastante esclarecedora desse princípio elementar do Projeto[ ]: "Para tirar um coelho da cartola, é preciso primeiro colocá-lo lá dentro" (p. 140). É importante lembrar aqui a correlação estabelecida por Freud entre os pares investimentodescarga e desprazer-prazer: o aumento dos níveis de Q no interior do aparelho neuronal é acompanhado pela sensação de desprazer, enquanto a descarga é acompanhada pela sensação de prazer.
Mas a concepção de um acréscimo energético como fator desencadeante da descarga motora, e, consequentemente, como princípio econômico do fluxo energético no sistema nervoso, traz uma dificuldade preliminar: como explicar que, em certas condições, a descarga não ocorra, ou que ocorra apenas parcialmente, isto é, que um sistema destinado a se livrar de Q comporte-se retendo-a, opondo resistência à descarga completa? Além disso, se, no caso dos estímulos provenientes do mundo exterior, na falta de condições adequadas à descarga motora, o organismo pode recorrer ao expediente (aliás, segundo Freud, preferível) de "fuga do estímulo", com o que se mantém o "princípio de inércia neurônica", no caso dos estímulos provenientes do interior do organismo, endógenos, a mesma estratégia não logra êxito, uma vez que não é possível, para o organismo, fugir de si mesmo. E, com a possibilidade de fazer cessar a estimulação endógena, é a questão da sobrevivência mesma do organismo que está em jogo:
Com efeito, como poderia sobreviver um organismo que funcionasse segundo esse princípio [de inércia neurônica]? Como poderia ele existir se a própria noção de organismo supõe a manutenção de uma diferença estável de nível energético em relação ao que o rodeia? (Laplanche & Pontalis, 1975, p. 464).
Na impossibilidade de fugir dos estímulos provenientes do interior, é preciso que o organismo realize uma modificação no mundo exterior, produza, por meio de uma "ação específica", as condições adequadas à cessação do estímulo, empregando uma Q, segundo Freud, em geral maior que a do próprio estímulo (Freud, 1895, p. 349). Mas, se conforme o modelo do movimento arco reflexo, a uma Q descarregada no polo motor corresponde uma carga de mesma Q no polo sensorial, de onde viria essa Q "a mais" necessária à "ação específica"? Será preciso, então, admitir que "o sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original à inércia (isto é, reduzir o nível da Qn a zero)" e "tolerar [a manutenção] de um acúmulo de Qn suficiente para satisfazer as exigências de uma ação específica" (Freud, 1895, p. 349). É em virtude dessa primeira dificuldade que Freud é levado a recobrar, para o "princípio de inércia", uma dimensão teleológica que, na física clássica, ele não tem.3 E, então, podemos dizer que Freud está diante, não apenas de uma dificuldade preliminar, mas de um verdadeiro obstáculo à teorização (leia-se, científica) dos processos psíquicos. Dito de uma maneira bastante resumida, trata-se de saber como conceber uma finalidade no universo do mecanismo, ou ainda, de explicar como uma relação mecânica pode, sem deixar de ser aquilo que ela é (a expressão de leis físicas universais, como tais, matemáticas), admitir a existência de uma finalidade imanente ao sistema em que se insere, por assim dizer, a existência de uma orientação. Vejamos mais de perto como esse obstáculo surge no texto freudiano.
De início, Freud parece ignorar o teor das dificuldades decorrentes da necessidade de ter que conciliar, no "princípio de inércia neurônica", a tendência física à descarga e a tendência biológica à conservação de energia para fins de manutenção da vida. O modo pelo qual a tolerância ao acúmulo de Q se realiza, diz Freud, mostra que tendência à inércia não é por ela contradita, sendo, antes, "modificada pelo empenho de ao menos manter a Q no nível mais baixo possível e de resguardar contra qualquer aumento da mesma ou seja, mantê-la constante" (Freud, 1895, p. 349). O caso é que, agora, a neutralização dos investimentos energéticos se dá pela redução mediatizada por um "limiar", e não mais pela redução absoluta a 0, a tendência ao desinvestimento realizando-se sob a forma da tendência a evitar novos investimentos. Freud afirma, ao mesmo tempo, que o organismo abandona a tendência original à inércia e que, no entanto, sua eficácia persiste. Essa persistência, por sua vez, manifesta-se no fato de que a necessidade da conservação de Q para os fins de manutenção da vida convertese em um "ideal de constância", de estabilização do sistema "em zero mais, vale dizer, no ponto mínimo que procede ou impede a anulação" (Assoun, 1983, p. 175). Essa necessidade de estabilização pressupõe, no entanto, um distúrbio econômico no cerne do funcionamento do sistema nervoso, um déficit ou um excesso de Q, situação que cumpre ao organismo superar. E, evidentemente, Freud precisa explicar por que esse distúrbio ocorre, uma vez que as "leis gerais do movimento", predizendo a livre circulação da energia, não lhe dão nenhuma razão. A rigor, o ideal de constância não designa, no Projeto[ ], um princípio de funcionamento independente, mas uma função secundária, biológica, ou, se quisermos, modificada, da inércia física. Em todo caso, seu postulado é tão importante quanto o da própria tendência à descarga, isto é, da função primária: uma não vai sem a outra.
À concepção econômica (Q) do regime energético no interior do sistema nervoso, Freud acrescenta uma "teoria do neurônio", que constituirá a segunda proposição fundamental, tópica, do Projeto[ ] É ela que começará a lançar alguma luz sobre esse fato, enigmático do ponto de vista estritamente físico, segundo o qual um sistema cuja característica essencial é desembaraçar-se dos investimentos encontra-se constrangido a retê-los, o que significará reduzir a quantidade de energia ao nível mais baixo possível. Que a acumulação de energia responda a uma necessidade biológica de sobrevivência, isso não explica nada do que se passa do ponto de vista operativo, no interior do sistema. É então que Freud tentará localizar na estrutura dos neurônios as condições materiais do entrecruzamento das duas tendências (que, a bem da verdade, não são, para ele, senão uma) no sistema neuronal, sua capacidade de regular o conjunto dinâmico investimento-descarga.
Os neurônios são descritos, no Projeto[ ], com base em duas características principais:
a) terminam uns sobre os outros ("contato recíproco"); e
b) reproduzem internamente a dicotomia estrutural do sistema (são formados por "dendritos" receptores de estímulos e por "cilindros axiais" o "órgão da descarga").
Em conjunto, essas duas características denotam as condições anatômicas para os fluxos de Q no interior do sistema nervoso, que se tornam, assim, função das diferenças de facilitação à passagem de Q entre dois ou mais neurônios. Tais diferenças, por sua vez, são produzidas pela própria passagem de Q através da substância nervosa, o "protoplasma", originalmente indiferenciada. Ao atravessar as barreiras de contato entre um neurônio e outro(s), ou seja, ao superar as resistências que se opõem à descarga, a energia Q produz uma alteração que torna o neurônio mais apto a receber novos investimentos, em uma palavra, mais permeável. Quanto maior a diferenciação do "protoplasma", melhor é a "capacidade condutora para a condução subsequente" (Freud, 1895, p. 351). Em princípio, diz Freud, todos os neurônios apresentam resistência idêntica à passagem de Q através das "barreiras de contato", são todos igualmente impermeáveis, ou, o que é o mesmo, igualmente permeáveis, de modo que não há nenhuma razão para a preferência de uma via sobre as demais. E se não há vias privilegiadas para o fluxo de Q no interior do sistema, não se vê de que maneira o fenômeno da memória poderia se realizar, já que ele descreve uma conjuntura na qual alguns grupos de neurônios se apresentam mais fortemente ligados do que outros, estando o fluxo energético entre eles, portanto, mais facilitado. Assim, a hipótese da presença estrutural de resistências nas "barreiras de contato" entre os neurônios juntamente com a descrição do mecanismo das "facilitações" exercido pelos fluxos energéticos constituem a estratégia adotada por Freud no sentido de fornecer uma explicação mecânica para fenômeno da memória, ao mesmo tempo em que demonstrar a não contradição entre os pontos de vista físico ("princípio de inércia neurônica") e biológico ("ideal de constância") do aparelho neuronal.
Mas essa estratégia freudiana não faz senão adensar as dificuldades impostas ao intento de explicar mecanicamente os processos psíquicos. Do ponto de vista da mecânica clássica, em um sistema físico, o princípio de inércia tem como consequência que os corpos não são afetados pelos estados de movimento e repouso, não se transformam em virtude deles. A inércia é uma propriedade dos corpos e não um princípio ativo do sistema exercendo-se sobre certo nível material, transformando-o. Ora, a concepção de que a passagem de Q pelas vias de condução afeta a estrutura da célula nervosa é manifestamente contrária ao princípio da inércia na física moderna, pois supõe uma alteração permanente dos corpos a ela submetidos. É o próprio Freud quem reconhece o contraste flagrante entre a característica de alteração das células nervosas pelo movimento energético e o "modo de ação de uma matéria que permita a passagem de um movimento ondulatório, para logo voltar a seu estado primitivo" (Freud, 1895, p. 351). De um lado, é exigida uma explicação do fenômeno da memória, de onde advém a suposição da existência de resistências entre os neurônios ao nível das "barreiras de contato" e do mecanismo de facilitação diferencial das vias de condução. De outro, é necessário ratificar o modelo físico do psiquismo, o que equivale a dizer que os corpos do sistema nervoso (no caso, as células nervosas) estão permanentemente aptos a receber investimentos iguais, inferiores ou superiores aos que recebeu anteriormente, ou, o que é o mesmo, que permaneçam inalterados quanto à sua estrutura essencial. Nesse sentido, diz Freud, "os neurônios teriam que ser ao mesmo tempo, indiferenciadamente, influenciados e inalterados" (Freud, 1895, p. 351). O que, evidentemente, constitui uma contradição in adjecto. E o que faz Freud diante disso? Para que se possa pensar a contradição, quer dizer, explicá-la, ele propõe a divisão dos neurônios em duas classes distintas: os que permanecem inalterados após a passagem de Q, "células perceptuais", e os que são permanentemente influenciados pela passagem de Q, "células mnemônicas". Resultarão daí dois sistemas distintos de neurônios no aparelho neuronal: o primeiro, formado por neurônios que "deixam passar a Qn como se não tivessem barreiras de contato" (Freud, 1895, p. 351), e caracterizado pela capacidade, a cada vez inédita, de recepção dos estímulos do mundo externo; o segundo, formado por neurônios "cujas barreiras de contato se fazem sentir, de modo que só permite a passagem da Qn com dificuldade ou parcialmente" (Freud, 1895, p. 351), e caracterizado pelos processos de diferenciação das vias de condução através da passagem de Q. A esses dois sistemas Freud nomeia, respectivamente, sistema f (phi) e sistema ? (psi). Ao primeiro correspondem os fenômenos perceptivos; ao segundo, os fenômenos da memória.
3 O DISTÚRBIO ECONÔMICO NAS ORIGENS DO APARELHO NEURONAL
É procedendo a um exame minucioso acerca das fontes das excitações que Freud chega a um esclarecimento mais exaustivo das diferenças entre os sistemas f e ?. Enquanto o primeiro somente é excitado a partir da realidade exterior, nas terminações nervosas que "recebem o estímulo exógeno em seu lugar" (Freud, 1895, p. 358) e que funcionam como telas de proteção às passagens de grandes quantidades de Q, o segundo está aberto, tanto ao que provém de f, quanto ao que "parte do interior do corpo" (Freud, 1895, p. 368).4 E em relação às fontes de excitação endógenas (ao contrário das exógenas, cujas Q's já chegam filtradas pelo sistema f), o sistema ? está exposto sem proteção. Nessa exposição direta de ? aos estímulos endógenos, Freud vê a mola mestra do mecanismo psíquico (Freud, 1895, p. 368).5 Da característica peculiar aos estímulos endógenos de produzirem-se de uma "forma contínua" (pressão) e de terem efeitos psíquicos "intermitentes" (resistência) decorre uma consequência econômica decisiva: como "as barreiras de contato ? são, em geral, mais altas do que as vias [endógenas] de condução", e à proporção que os "estímulos endógenos" são incessantemente recebidos, é necessário admitir uma acumulação de Q nos neurônios do sistema ?, que, por essa razão, fica sujeito às intempéries dos fluxos energéticos. É, assim, diz Freud, "que surge no interior do sistema o impulso que sustenta toda a atividade psíquica. Conhecemos essa força como vontade o derivado das pulsões" (Freud, 1895, p. 369). Aqui, o "distúrbio econômico" recebe seu mais alto valor teórico: o de uma condição para o funcionamento do psiquismo.
Com a introdução da perspectiva de uma pressão contínua dos estímulos endógenos sobre o aparelho neuronal, e, portanto, de uma acumulação inevitável de Q, o que levará aos estados de "urgência" ou "desejo" (Freud, 1895, p. 371), a descarga motora não mais se traduzirá em sensação de prazer, uma vez que ela se mostra, agora o índice de que o aumento da tensão, o acréscimo de energia no interior do sistema, está prestes a recomeçar. É, ao contrário, um desprazer. Para evitá-lo, será preciso proceder por outra via: suspender a descarga no corpo, suportar o acúmulo energético e buscar uma intervenção que altere as condições do mundo externo ("ação específica") para tornar possível a chegada do objeto que fará cessar, momentaneamente, as precisões do organismo: por exemplo, o alimento. E, uma vez que essa intervenção se realize, completando a experiência de satisfação, na próxima ocasião em que o estado de "urgência" ou "desejo" reaparecer, os circuitos energéticos percorridos inicialmente tendem a sê-lo novamente, e a imagem mnemônica do objeto cujo aparecimento desencadeou a descarga será reativada no sistema ?. Desse modo, diz Freud, "o estado de desejo resulta numa atração positiva para o objeto desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnemônica" (Freud, 1895, p. 374). A esse processo de reativação das imagens mnemônicas, determinado pela função primária como resposta às pressões internas, Freud chama "alucinação" (Freud, 1895, p. 372). Do ponto de vista biológico, é um erro e uma ameaça à existência do indivíduo, visto que suas precisões só podem ser satisfeitas pela "ação específica", a qual, como já vimos, tem de ser realizada no mundo externo, a partir do exterior. Realizando a descarga motora unicamente com base na imagem mnemônica, "a consequência inevitável é o desapontamento" (Freud, 1895, p. 372). Todo o problema aqui, portanto, é o de engendrar uma ação mais complexa do que a simples reativação da imagem mnemônica. Uma que permita regular os fluxos energéticos em ? de tal modo que as Q's recebidas do interior do organismo somente sejam descarregadas de acordo com o critério da presença do "objeto desejado" no mundo externo, ou seja, somente quando chegar ao sistema ? a informação de que à imagem mnemônica corresponde um objeto externo, dotado da qualidade de "ser real", certificando assim "a autenticidade de uma percepção externa" (Bercherie, 1983, p. 287). Ora, nesse caso, a questão que se coloca é: como uma qualidade pode surgir no interior de um aparelho caracterizado por lidar apenas com diferenças quantitativas? É do problema das relações de ? com a realidade exterior que se trata aqui.
Embora o sistema ? não esteja diretamente exposto à realidade exterior, ele está inserido em um organismo, o qual, por sua vez, encontra-se originariamente influenciado pelo mundo externo (o que, em termos biológicos, nos é dado pelo esquema "estímulo-resposta"). Nesse sentido, é imprescindível que algo do que se passa em f seja transmitido a ? e que, consequentemente, se estabeleça uma conexão indireta entre ? e a realidade exterior, ou, como diz Lacan (1954-1955): "Aquilo que ocorre no sistema f tem de ser eficaz no sistema ?" (p. 139). É que, se não se admite alguma referência do sistema ? ao mundo externo, não se vê de que maneira ele participaria do esforço do organismo no sentido da equilibração justa com o meio, e, por conseguinte, não se tem nenhuma razão para fazê-lo entrar na "função secundária", da qual, entretanto, a experiência mostra que ele é signatário. O sistema nervoso é um sistema dentro de outro sistema, este, por sua vez, confrontado diretamente com todas as hostilidades da realidade exterior, e necessitando, para sobreviver, de enfrentá-las. Entre o organismo e o exterior interpõe-se o sistema ?, que, como bem formula Lacan (1954-1955), funciona como um "sistema-tampão" (p. 140)
4 O PROBLEMA DA ORIGEM DAS QUALIDADES E O PARADOXO DO SISTEMA DA CONSCIÊNCIA
Até aqui, "a máquina psíquica funciona sem consciência" (Bercherie, 1983, p. 284). Nem as duas ideias diretrizes do Projeto[ ] (a de que as quantidades de energia (Q) determinam os estados psíquicos e a de que os neurônios são "partículas materiais") nem as proposições que Freud delas extrai nos fazem compreender como uma "qualidade" pode surgir no domínio do psiquismo. Na verdade, de certa forma, elas tornam incompreensível esse surgimento. E, entretanto, é incontestável que, na experiência, se adotamos o ponto de vista daquele que sente, isto é, daquele que tem consciência de que sente, lidamos apenas com diferenças que "não contêm nada de quantitativo" (Freud, 1895, p. 360), quer dizer, com diferenças qualitativas. A consciência sensível não conhece quantidades. Por outro lado, o aparelho neuronal, tal como Freud o concebeu até aqui, só lida com quantidades. O problema, então, é como apreender a categoria da "qualidade" e, por conseguinte, o fenômeno da consciência, no regime econômico das quantidades energéticas. Trata-se, diz Freud (1895) de "encontrar um lugar para o conteúdo da consciência em nossos processos ? quantitativos" (p. 360). É um problema que se assenta no reconhecimento de que
Independente do que se realiza do ponto de vista da ciência natural, [uma teoria psicológica] precisa satisfazer mais um requisito fundamental. Ela tem de nos explicar tudo o que já conhecemos, da maneira mais enigmática, através de nossa consciência; e, uma vez que essa consciência nada sabe do que até agora vimos pressupondo - quantidades e neurônios -, também terá de nos explicar essa falta de conhecimento (Freud, 1895, pp. 359-60).
Significa dizer que uma psicologia não deve fazer de seu ideal de "ciência natural" um álibi para não ter que se haver com aquilo que lhe escapa: a experiência da consciência. Antes, é exatamente disso que ela precisa dar conta: dos efeitos do não saber da consciência no psiquismo. A exigência de ter que explicar esse não saber da consciência acompanha todo o desenvolvimento do Projeto[ ]. Não é certamente uma exigência simples de ser cumprida. A experiência da consciência nega as ideias diretrizes do Projeto[ ] (quantidades e neurônios). Mas Freud persiste na via de uma determinação quantitativa dos processos psíquicos.
Estamos preparados para admitir que alguns de nossos pressupostos não são confirmados pela consciência. Se não nos deixarmos confundir por causa disso, verificaremos, a partir do postulado de que a consciência não fornece conhecimentos fidedignos sobre os processos neuronais, que estes devem ser considerados em sua totalidade, antes de mais nada, como inconscientes, e que devem ser inferidos como os demais fenômenos naturais (Freud, 1895, p. 360)
O termo "inconsciente" (unbewusst) aparece aqui, pela primeira vez, no Projeto, exatamente no momento em que Freud se coloca o problema da "origem das qualidades" e, consequentemente, do lugar da consciência no aparelho neuronal. E isso nos parece, com efeito, esclarecedor no que diz respeito ao método freudiano. Pois se a consciência é incapaz de nos fazer chegar a um saber acerca dos processos neuronais, é na medida em que ela só estabelece com a realidade uma relação direta e imediata, enquanto esses processos têm a característica de somente se tornarem acessíveis indiretamente, isto é, por seus efeitos. Remontar dos fenômenos aos princípios, dos efeitos às causas, por meio de hipóteses que não têm nenhum sentido para a consciência, eis o que constitui uma das facetas do cientificismo freudiano.
Freud lança mão, a partir daí, da hipótese de um terceiro sistema de neurônios, ?, "que é excitado junto com a percepção, mas não com a reprodução, e cujos estados de excitação produzem as diversas qualidades ou seja, são sensações conscientes" (Freud, 1895, p. 361). Trata-se de um conjunto de neurônios responsável por produzir as sensações, as qualidades correspondentes àquilo que, em f e em ?, se dá apenas como quantidade.6 Não é desnecessário lembrar, e Freud o sabe muito bem, que no mundo físico, feito de puras quantidades (matéria e movimento), não há qualidades, todos os lugares são intercambiáveis, "todas as coisas, de resto, se equivalem igualmente. São todas apenas matéria e movimento" (Koyré, 1992, p. 47). Por outro lado, como o fenômeno da consciência somente se expressa à condição de uma redução significativa das quantidades, seria preciso admitir que os neurônios ? fossem ainda mais impermeáveis do que os neurônios do sistema ?. O que, entretanto, a mais simples descrição dos fenômenos de consciência desautoriza:
A mutabilidade de seu conteúdo, a transitoriedade da consciência, a fácil combinação de qualidades simultaneamente percebidas tudo isso só é compatível com uma completa permeabilidade dos neurônios ?, junto com uma total restitutio in integrum [restauração do estado anterior a eles] (Freud, 1895, p. 362).7
Com a hipótese do sistema ?, instaura-se um impasse: como conceber um sistema de neurônios que funcione com quantidades significativamente reduzidas de energia ou, como diz Lacan (1954-1955), que "possa funcionar até mesmo quando está desinvestido" (p. 152)? Pela característica da transitoriedade da consciência, seria preciso admitir que os neurônios ? são permeáveis à passagem de Q. Mas pela necessidade de terem de ser investidos por alguma quantidade energética, sem o que nada mais justificaria a apreensão desse sistema no quadro de uma psicologia quantitativa, torna-se imprescindível atribuir aos neurônios ? o caráter da impermeabilidade. Ora, nesse caso, ter-se-ia novamente que admitir a existência de neurônios que fossem, ao mesmo tempo, permeáveis e impermeáveis, do que precisamente Freud tenta escapar ao dividir o sistema neurônico em "células perceptuais" (f) e "células mnemônicas" (?).
É por meio da noção de "período" que Freud tentará uma saída para as dificuldades peremptórias que a hipótese do sistema ? impõe ao projeto de uma psicologia quantitativa. Simultaneamente às transferências de Q entre os neurônios, ocorre também a transferência do "período de excitação", daquilo que, em O problema econômico do masoquismo, Freud (1924/1996) chamará de "o ritmo, a sequência temporal de mudanças, elevações e quedas na quantidade de estímulo" (p. 178). É, portanto, às diferenças "período", e não às quantidades energia propriamente ditas, que os neurônios ? são permeáveis.
A introdução da hipótese suplementar do sistema ? aparece como uma tentativa de responder à seguinte questão: de onde vem o critério que permite ao sistema ? distinguir uma percepção verdadeira de uma alucinação, uma vez que ele só conhece quantidades, e que estas só informam diferenças de "intensidade" e "frequência", mas não dão qualquer notícia sobre a estrutura do mundo exterior, sobre suas qualidades, ou, nos termos que são os de Freud, não fornecem nenhuma "indicação de realidade" (Freud, 1895, pp. 377-378)? Da memória, já que ela é um fenômeno puramente quantitativo, não pode ser. Dos neurônios do sistema f, tendo em vista que eles somente recebem as excitações do mundo externo após estas terem passado pelas telas de proteção que são as terminações nervosas, também não. É em outro lugar, com efeito, que se deverá buscar a "indicação de realidade" que permitirá ao aparelho neuronal não ficar completamente à mercê das quantidades, o que significa: não proceder à descarga automaticamente, isto é, sempre que uma imagem mnemônica for reativada, ou ainda, sempre que o objeto que satisfez as precisões internas nas primeiras experiências for alucinado. E é por isso que Freud não pode omitir a consciência na explicação dos processos psíquicos. Tal omissão, diz ele, "não deixa os eventos psíquicos inalterados, mas acarreta a falta de contribuição de ?" (Freud, 1895, p. 363).
O sistema ? visa a dar conta do fato de que, em algum lugar, a energia acumulada em ? precisa encontrar um destino, ser assumida de maneira organizada segundo os interesses vitais do organismo, de modo a desassujeitar o aparelho das intempéries de Q. Poderíamos dizer que se trata da exigência de uma tomada de consciência, ou se quisermos, de saber jogar com os sinais de + e -. Mas a expressão não é apropriada se levarmos em conta o caráter eminentemente qualitativo da consciência, que, nesse caso, não sabe fazer contas. Então, Freud é levado a propor que, no próprio sistema ?, tenha se formado um grupo de neurônios que permanece constantemente investido e que, dessa forma, torna-se apto a influenciar as passagens de Q. Ao método por meio do qual essa influência se exerce, Freud chama de "inibição pelo eu" (Freud, 1895, p. 378). Em termos gerais, essa inibição consiste no mecanismo de "investimento colateral": no momento em que a passagem de Q a um neurônio que contém o registro de uma imagem mnemônica associada à sensação de desprazer está prestes a se realizar, em virtude das "facilitações" ali abertas pelas primeiras passagens de Q, produzse o investimento simultâneo de um neurônio adjacente, "modificando o curso [da corrente], que, de outro modo, teria tomado a direção de uma barreira de contato facilitada" (Freud, 1895, p. 376), e, assim, liberado o desprazer. Mas a economia do desprazer é sempre acompanhada da sensação de desprazer, esta não podendo originar-se no sistema ?, que, como já dissemos, apenas conhece quantidades. Mais uma vez, os neurônios ? estão à mercê dos fluxos energéticos. É por isso que a informação da descarga ocorrida em ?, e que produziu, a essa ocasião, uma sensação de prazer ou desprazer, precisa chegar até ?. Desse modo, conclui Freud, "A informação da descarga proveniente de ? constitui a indicação da qualidade ou da realidade para ?" (Freud, 1895, p. 376). Quando chega de ? a informação da descarga e o sistema ? encontra-se simultaneamente em estado de "desejo", isso funciona como um sinal de que, à imagem mnemônica investida interiormente, corresponde, no exterior, um objeto real, e a descarga em ? pode iniciar-se.
Nessa atividade de moderação dos investimentos objetais reside o essencial da função do eu, que não deve, em absoluto, ser confundido com o sistema ?, responsável por informar o sistema ? da presença, no mundo externo, do objeto desejado. É certo que o mecanismo dessa informação permanece enigmático, uma vez que ele precisa se dar por vias quantitativas, e que o sistema ? caracterizase justamente por funcionar de acordo com regras energéticas específicas, mais exatamente, por manter-se num nível em que os investimentos são mínimos.8 E mínimos porque Freud não pode admitir que sejam nulos, caso em que as ideias diretrizes do Projeto (quantidades e neurônios) não mais se sustentariam. Surge, assim, diz Lacan (1954-1955) o "paradoxo do sistema da consciência":
É preciso que, ao mesmo tempo, ele [o sistema da consciência] esteja aí e não esteja aí. Se vocês o fizerem entrar no sistema energético tal como ele está constituído no nível de ?, ele vai ser apenas uma parte dele e não poderá desempenhar seu papel de referência à realidade. No entanto, tem de haver alguma energia que passe nele. Mas ele não pode estar diretamente ligado ao acréscimo maciço de energia oriunda do mundo exterior tal como está suposto no primeiro sistema dito de descarga, ou seja, do reflexo elementar do estímulo-resposta. Muito pelo contrário, é preciso que esteja completamente separado dele, e que receba apenas fracos investimentos de energia que lhe permitam entrar em funcionamento, de maneira que a circulação se faça sempre de f a ?. E é apenas de f que esta energia mínima chegará em ?, o qual poderá graças a ela entrar em vibração (p. 152).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No fundo, Freud sabe da contradição que consiste em conceber um sistema que trabalhe, ao mesmo tempo, de acordo com um princípio mecânico (inércia) e com uma finalidade biológica (constância). Mas ao contrário de ver nessa contradição o signo da necessidade de se tomar partido entre o fisicalismo e o biologicismo, entre o mecanismo e a finalidade, ou de realizar uma síntese dessas duas perspectivas, ele procede por uma outra via: mostrar que não se trata de tomar consciência da contradição, já que a própria contradição aparece justamente em função desse ímpeto da consciência em conhecer imediatamente o que somente se dá por meio de longas elaborações, "mediante hipóteses complicadas e pouco óbvias" (p. 363). Mais tarde, em seu artigo metapsicológico sobre O inconsciente, Freud (1915/1996) dirá que, na psicanálise, não há "outra opção senão afirmar que os processos mentais são inconscientes em si mesmos" (p. 176). E isso não porque ele tenha tomado consciência de um determinado fato, mas porque a existência do psíquico é uma hipótese e, como tal, somente se sustenta a partir do momento em que nos recusamos a tomar consciência, isto é, a fiar nosso pensamento naquilo que as coisas nos parecem ser. Do fato de que vemos aquilo que vemos, não devemos concluir que nossa visão seja a apreensão imediata de uma realidade positiva. É preciso suspender essa primeira impressão, retificá-la, como nos ensina Bachelard (1996), variar as condições da experiência, "sair da contemplação do mesmo para buscar o outro" (p. 21). Ao fazê-lo minimente, constatamos que, quando alguém diz "vejo aquilo que vejo", há aí um saber sobre o que seja ver, uma visão sobre a visão, um terceiro elemento que se interpõe entre a visão e o visto, e que estrutura o fenômeno, o qual se revela, então, como já atravessado por construções do pensamento.9 Esse terceiro nós nunca o encontramos na própria realidade sensível imediata, uma vez que ele a condiciona.
O próprio psiquismo já surge como efeito necessário da tensão entre as duas tendências (a física e a biológica) do aparelho neuronal. Não há prolongamento de uma na outra, no sentido em que dizemos que uma coisa começa ali onde a outra termina. Há, inversamente, irrupção do físico no biológico, retorno do mecanismo (descarga efetuada a partir de uma imagem mnemônica) ali onde se esperava que uma finalidade (descarga regulada por um critério de realidade) se impusesse. O psíquico não é uma realidade ao lado do físico e do biológico, ou mesmo entre eles; antes, decorre de que, no homem, por ele, ao contrário do animal, não contar com uma orientação prévia sobre como agir, isto é, por ele partir do nada (Lacan, 1954-1955, p. 146), o automatismo assume a dianteira, vem no lugar em que a finalidade falta. Ou se quisermos, o não sentido irrompe na cadeia das significações vitais. Que não tenha sentido o sistema nervoso pressionar a descarga quando as exigências da vida ensinam que é preciso adiá-la, não devemos ver aí a ausência provisória de um direcionamento do comportamento no sentido do que seja útil à vida, mas uma condição mesma da vida psíquica.
Da admissão da função de desconhecimento da consciência, resta apenas um passo para a descoberta do inconsciente: reconhecer o estatuto ético da irrupção do físico no biológico. A ausência de orientação do organismo e a iminência do funcionamento automático do aparelho neuronal apontam para um domínio da experiência em que é preciso se interrogar sobre "como agir", domínio ético por excelência. Nesse caso, o campo da ética poderia ser definido como o efeito do não recobrimento do físico pelo biológico, quer dizer, pelo fato de que a finalidade biológica não apaga a dimensão mecânica do psiquismo. E é nisso que Freud está implicado: ao formular a hipótese de que os processos psíquicos são inconscientes, ele recebe, de volta, os efeitos de sua própria formulação: o não saber! Nesse sentido, Dunker (1996) afirma que a hipótese do inconsciente "não pode deixar de incluir o sujeito que a enuncia quando o faz" (p. 49). Isso quer dizer, para nós, que, no campo da ética, quando se formula uma hipótese, o primeiro a sofrer suas incidências é próprio sujeito que a formula. Não é por outra razão que Freud não sabe o que fazer com a consciência: o inconsciente de que ele nos fala é, antes de tudo, o dele.
Essa ideia de alguma coisa com a qual não se sabe o que fazer, mas que se sente não poder ser dispensada sem mais, nos parece ter uma importância capital para o desenvolvimento da psicanálise freudiana; ela subverte a maneira tradicional de se colocar o problema da consciência. Normalmente, a pergunta é feita no sentido de se saber o que, na experiência, exige a intervenção da consciência. Parte-se, dessa forma, do pressuposto da consciência como fundamento de realidade. Ao contrário, para Freud, trata-se exatamente de subverter essa formulação; não de perguntar pelos fundamentos, mas de avaliar se não é de uma falta de fundamentos que se trata. De tal modo que, conforme Zizek (2013) propõe, devemos realizar a questão "o que só podemos fazer com a consciência?" sob sua forma negativa: "o que não podemos fazer com a consciência?" (p. 364). Trata-se de levar o problema da possibilidade da consciência até o seu ponto de impossibilidade. Talvez pudéssemos mesmo dizer que, em Freud, é de uma subversão da consciência que se trata: o inconsciente seria, então, a consciência apreendida no ponto de sua impossibilidade constitutiva.
É a relação entre o saber e a verdade que se anuncia no paradoxo do sistema da consciência. Por um lado, Freud se recusa a tomar a consciência por fundamento, quer dizer, por um princípio de unificação da experiência. De outro, ele se recusa a fazer dela um epifenômeno, um mero "apêndice aos processos fisiológicopsíquicos" (Freud, 1895, p. 363). É a mesma coisa que dizíamos acima: nem dispensa a consciência, nem a explica, ela é um isso em suas mãos.10 Dessa dupla recusa resultará uma consequência decisiva para a abertura do caminho que levará Freud à hipótese do inconsciente: a falha do saber consciente sobre os processos psíquicos manifesta-se sob a forma de uma verdade inconsciente, a de que, para saber sobre isso, é preciso dizer, enunciar, formular hipóteses. Mas, nesse dizer, o sujeito que enuncia, enquanto diz de si mesmo, se é ele também que não sabe, revela-se determinado no nível de sua própria enunciação, mas como que por algo vindo de fora, do exterior. A consciência, diz Freud, "é o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos do sistema nervoso" (Freud, 1895, p. 363). Ou seja, ela não é o correlato subjetivo dos processos objetivos, mas está no campo da própria objetividade. Arriscamo-nos a acrescentar: o inconsciente é que a objetividade, no domínio do psíquico, está dividida, que ela comporta sempre um "outro lado", objetivamente subjetivo. O não saber da consciência é uma condição positiva da verdade. Lá onde só há saber, a verdade, o problema da verdade, não se coloca.
Se privilegiamos aqui o Projeto[ ] como objeto de nossa análise acerca do problema da consciência na psicanálise, foi exatamente para sublinhar esse traço que já se apresenta fortemente matizado desde o princípio da investigação freudiana: o de que o caminho que leva a uma determinação objetiva dos processos psíquicos não pode prescindir da tarefa de dar as razões do fracasso da consciência na apreensão do real matemático. É somente dessa forma que, no espírito de Freud, a Psicologia poderia se constituir como uma ciência da subjetividade. E se o futuro da psicanálise mostra que ela não se constitui como tal, não devemos ver nisso o fracasso do Projeto[ ] de Freud. Ao contrário, é aí que ele revela seu fruto mais promissor: ter feito do engano da consciência, de suas contradições intrínsecas, de sua "falta de conhecimento" não um obstáculo à racionalidade psicológica, mas o signo de um saber novo a ser edificado, um saber que só se sabe no momento em que se diz, quando já não mais se sabe, isto é, "só-depois".
REFERÊNCIAS
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Texto recebido em 28 de outubro de 2014 e aprovado para publicação em 19 de outubro de 2015.
* Doutor em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), graduado em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), professor de Psicologia no Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e pesquisador-colaborador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da UnB e no Mestrado em Psicologia do UniCeub. E-mail: julianolagoas@hotmail.com.
**Doutora em Filosofia e mestra em Psicanálise pela Université de Paris VIII, graduada em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula, professora associada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da UnB, bolsista produtividade nível 2 - CNPq.E-mail: dchatelard@gmail.com..
1 Daqui em diante referido apenas como Projeto[
]
2 A primeira data indica o ano de publicação original da obra e a segunda data indica a edição consultada pelo autor; que só será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data de publicação original.
3 Assoun (1983) observa que, no "princípio de inércia neurônica" (Prinzip der Neuronensträgheit ou Trägheitsprinzip), a presença da noção de Trägheit evidencia seu caráter notadamente fisicalista. Mas isso, diz Assoun, "não impede a inflexão da noção de Trägheit no sentido da finalidade psicofisiológica" (p. 173).
4 Para dar conta dessa dupla abertura de ? ao interior do organismo, diretamente, e ao mundo externo, indiretamente através de f, Freud é levado a propor outra divisão, agora interna ao sistema ?, entre dois grupos de neurônios: "os neurônios de pallium, que são catexizados a partir de f, e os neurônios nucleares, catexizados a partir das vias endógenas de condução" (Freud, 1895, p. 367).
5 Em Além do princípio de prazer, Freud (1920/1996) retoma claramente esse trecho do Projeto[
] e fornece-nos uma descrição ainda mais explícita da relação entre a exposição direta dos neurônios ? à pressão dos estímulos endógenos e o surgimento das pulsões: "As mais abundantes fontes dessa excitação interna são aquilo que é descrito como as 'pulsões', os representantes de todas as forças que se originam no interior do corpo e são transmitidas ao aparelho mental, desde logo o elemento mais importante e obscuro da pesquisa psicológica" (p. 45). Antes, no artigo Os instintos e suas vicissitudes Freud (1914/1996, p. 126), Freud havia realizado, a propósito das relações entre estímulos exógenos e endógenos, um exame que não deixa dúvidas quanto à prioridade destes sobre aqueles.
6 Na Carta 39 a Fliess, de 1º de janeiro de 1896, Freud (1896/1996) afirma que "os neurônios ? são os neurônios ? que só tem capacidade muito reduzida de catexia quantitativa" (p. 445).
7 Na abertura de O Ego e o Id, Freud (1923/1996) diz que "'estar consciente' é, em primeiro lugar, um termo puramente descritivo, que repousa na percepção do caráter mais imediato e certo. A experiência demonstra que um elemento psíquico (uma ideia, por exemplo) não é, via de regra, consciente por um período prolongado. Pelo contrário, um estado de consciência é, caracteristicamente, muito transitório" (p. 27).
8 Na carta 39 a Fliess, de 1º de janeiro de 1896, Freud intenta uma saída para o paradoxo que consiste em conceber uma transferência de qualidades a um sistema quantitativo. Além das duas modalidades, já explicitadas no Projeto, segundo as quais "os neurônios se afetam mutuamente", a saber, transferindo quantidades entre si e transferindo qualidades entre si, Freud acrescenta uma terceira: "exercendo, segundo determinadas regras, um efeito excitante recíproco" (Freud, 189, p. 446). Assim, os neurônios ? não transferem nenhuma qualidade a ?, mas apenas excitam os neurônios deste sistema, orientando os fluxos energéticos.
9 Em A filosofia do não, Bachelard (1978) afirma de maneira categórica: "Sem teoria, nunca saberíamos se aquilo que vemos e aquilo que sentimos correspondem ao mesmo fenômeno" (p. 7).
10Segundo Lacan (1954-1955), "O sistema ? já é uma prefiguração do sistema do isso" (p. 131).