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Psicologia em Revista

versión impresa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.1 Belo Horizonte ene./apr. 2019

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p99-117 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p99-117

 

Quando o olhar é capturado: o interesse dos adolescentes pelo cinema de horror na atualidade: a adolescência e suas imagens1

 

When the view is captured: adolescents’ interest in horror movies nowadays: adolescence and its images

 

Cuando la mirada es capturada: el interés de los adolescentes por el cine de horror en la actualidad: adolescencia y sus imágenes

 

 

Natalia Dalla Côrte Cantarelli*

 

 


Resumo

Esta pesquisa objetivou compreender o grande interesse dos adolescentes pelo cinema de horror na atualidade. O estudo realizou-se por uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório, e utilizou o grupo focal como técnica para a coleta de dados. Participaram 16 adolescentes de ambos os sexos, com idades entre 12 e 17 anos, alunos de uma escola do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Realizaram-se três grupos focais, número determinado pelo critério de saturação. Utilizou-se a análise de conteúdo para processar os dados, sendo duas as categorias emergentes: "O horror no lugar da ausência", a qual contempla a íntima relação entre a adolescência e o cinema de horror, apresentando e discutindo os momentos de início e de importância dos encontros com a filmografia; "Do horror solitário ao laço simbólico", que aponta para a experiência de assistir aos filmes como espaço de expressão, de compartilhamento de experiências, de construção de laço simbólico.

Palavras-chave: Adolescência. Cinema. Horror. Psicanálise.


Abstract

This research aimed to understand teenagers’ interest in horror movies nowadays. The study was carried out by means of a qualitative, exploratory approach using the focal group technique to collect data. The participants are sixteen adolescents, male and female, aged from 12 to 17 years old, attending a school in the State of Rio Grande do Sul, Brazil. Three focal groups were carried out, which were based on saturation criterion. Content analysis was used for data analysis, emerging two categories: "The horror in the place of absence" which overlooks the intimate relation between adolescence and horror movies, presenting and discussing the initial moments and those marked by importance within the relationship with the filmography; "From the solitary horror to the symbolic bound" which approaches the experience of watching movies as a possibility of expression of subjective truth, of sharing experiences, and the construction of a symbolic tie.

Keywords: Adolescence. Movies. Horror. Psychoanalysis.


Resumen

Esta investigación tuvo como objetivo comprender el gran interés de los adolescentes por el cine de horror en la actualidad. El estudio se realizó a través de un abordaje cualitativo, de carácter exploratorio y utilizó el grupo focal como técnica para recolección de datos. Participaron 16 adolescentes de ambos los sexos, con edades entre 12 y 17 años, alumnos de una escuela del Estado de Rio Grande del Sur, Brasil. Fueron realizados 3 grupos focales, número determinado por criterio de saturación. Se utilizó el análisis de contenido para análisis de los datos, siendo dos las categorías emergentes: "El horror en el lugar de la ausencia", la cual contempla la íntima relación entre la adolescencia y el cine de horror, presentando y discutiendo los momentos del inicio y de la importancia de los encuentros con la filmografía; "Del horror solitario al lazo simbólico", que aborda la experiencia de ver a las películas como posibilidad de expresión de verdades subjetivas, de compartimiento de experiencias, de construcción de lazo simbólico.

Palabras clave: Adolescencia. Cine. Horror. Psicoanálisis.

1 INTRODUÇÃO

O século XIX, ao mesmo tempo em que terminava, testemunhava a apresentação de duas invenções que transformariam a relação do homem consigo mesmo e com o mundo. Cinema e psicanálise, além de contemporâneos, desenvolveram-se com relevantes aproximações, pois ambos se ocuparam, cada um à sua maneira, da importância do registro imaginário para a construção dos sujeitos e da arte (Froemming, Weinmann, Mendes, Sousa & Cervo, 2013).

Diversos são os pontos de aproximação entre o cinema e a psicanálise. Lembremos de um, especificamente, o qual assume grande importância neste estudo e que se refere às semelhanças entre o universo imagético da narrativa fílmica e do mecanismo onírico (Rivera, 2008; Souza & Pereira, 2011; Magdaleno Júnior, 2012; Santaella, 2014). Este último, vale lembrar, tão caro à psicanálise, pois, para Freud (1900/1996)3, o sonho consiste na via real de expressão do inconsciente.

Com base na reconhecida semelhança entre esses universos imaginários, podese dizer que, no encontro do sujeito com as imagens fílmicas, tal como ocorre no sonho, o olhador estará diante dos seus desejos mais particulares e das mais ocultas e veladas marcas que fazem parte de sua história (Rivera, 2008). Podese dizer, então, que o espectador nunca é um mero observador, mas intervém subjetivamente na porção de imaginário recortada pela tela, fato que conduz a pensar que a preferência por determinadas obras fílmicas ocorre não somente pelo entretenimento, mas também, e talvez, principalmente, pelo envolvimento na teia de identificações com as imagens projetadas (Froemming & Rainone, 2008; Souza & Pereira, 2011).

Sob a premissa de que a predileção por determinados filmes pode portar um saber sobre o sujeito, considera-se importante mencionar uma ocorrência que tem sido apontada por alguns autores (Ribeiro, 2009; Corso & Corso, 2011; Tavares, 2011; Matos, 2013) e que despertou o interesse para a esta pesquisa, a qual diz respeito à preferência dos adolescentes pelo cinema de horror na atualidade. No cenário vigente, assiste-se à estética do horror capturar esses sujeitos, fato que ocorre não apenas na ficção, por uma figuração da narrativa que se repete, na qual adolescentes que vivem um momento de lazer se tornam vítimas preferenciais de serial killer, deste mundo ou do mundo das trevas (Corso & Corso, 2011); mas também pelo interesse que exerce em seu olhar. Diante da reconhecida predileção dos adolescentes por filmes de horror na atualidade, buscou-se realizar um estudo com sujeitos com idades entre 12 e 17 anos, a fim de compreender o que desperta esse grande interesse.

2 MÉTODO

No intuito de que os objetivos propostos pudessem ser alcançados, este estudo foi desenvolvido de acordo com uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório e utilizou o grupo focal como técnica para a coleta de dados. A pesquisa foi realizada em uma escola estadual do interior do Rio Grande do Sul, a qual promove um projeto que objetiva o desenvolvimento de oficinas sobre cinema com os alunos. Os participantes deste estudo, portanto, foram adolescentes que têm interesse pela filmografia de horror e que participam do projeto mencionado. Cabe dizer que adolescente, neste estudo, foi entendido como o sujeito com idade entre 12 e 18 anos, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069,1990).

A fim de selecionar os sujeitos da pesquisa, primeiramente, os adolescentes foram informados sobre os objetivos do estudo e, na sequência, questionados sobre o interesse em integrá-lo. Participaram 16 sujeitos, os quais compuseram três grupos focais. Com o intuito de determinar o número total de grupos focais, considerou-se o critério de saturação, que diz que os grupos se esgotam quando não apresentam novidades em termos de conteúdo, pois os depoimentos se tornam repetitivos (Kind, 2004).

Considera-se importante dizer que esta pesquisa se fundamentou nas Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos, correspondente à Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e, portanto, respeitou os referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Além disso, faz-se necessário mencionar que o estudo somente foi colocado em prática após a autorização da instituição e a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética desta, tendo sido aprovado com o número do CAAE 30269514.4.0000.5346.

Para a realização da análise dos dados, os grupos focais foram gravados em áudio e transcritos na íntegra, a fim de que fosse possível efetuar a análise de conteúdo proposta por Bardin (2009). Esse processo envolveu três momentos: pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados foram submetidos à análise de conteúdo e, a partir disso, identificou-se duas categorias. A primeira, nomeada como "O horror no lugar da ausência", aborda certos conteúdos particulares dos sujeitos associados à sinistra cumplicidade com o horror fílmico, apresentando e discutindo momentos de encontro com a tecitura fílmica. Encontros que se iniciaram ainda muito cedo em suas histórias, tendo retornado como forte presença na adolescência. E a segunda, nomeada como "Do horror solitário ao laço simbólico", que aponta para a possibilidade de expressão de conteúdos particulares, permitindo a produção de laço pelo enlace entre o mundo interno e o mundo compartilhado. Optou-se por apresentar os resultados em duas seções, que correspondem às categorias. Esses conteúdos encontram-se na base da produção textual que se segue.

Importante dizer que, no intuito de assegurar o anonimato dos participantes, os adolescentes foram identificados por nomes de personagens de filmes de horror. A escolha pelos personagens que encobrem as identificações foi feita com base nos filmes que os próprios adolescentes explicitaram ao longo do desenvolvimento dos grupos focais.

3.1 O horror no lugar da ausência

Um dos pontos mencionados diversas vezes nas falas dos adolescentes diz respeito ao momento de suas vidas em que recordam terem tido o primeiro encontro com os filmes de horror. Descritas como experiências que remontam à mais tenra idade, os participantes da pesquisa situam esse primeiro contato por volta dos 4, 5, 6 anos. Abaixo, excertos das falas que demonstram essa particularidade:

"Eu era bem pequeno, eu tinha menos de 5 anos." (Jason, 13 anos)

"O meu primeiro foi Pânico na Floresta. Eu tinha uns 6 anos, eu quase morri…" (Boneca Assassina, 16 anos)

Vale dizer que, dos 16 adolescentes que fizeram parte do estudo, o sujeito que menciona ter iniciado o contato com os filmes de horror mais tardiamente diz ter sido aos 9 anos. Além das primeiras experiências terem começado bastante cedo, outro ponto explicitado diz respeito ao fato de que as recordações dos primeiros encontros com as narrativas cinematográficas de horror vieram coladas, diversas vezes, às lembranças de ausência dos pais. Curiosamente, ao mencionarem recordações das primeiras experiências com o horror cinematográfico, deixaram uma espécie de resto no caminho discursivo que sinalizava a importância de atentar para a ausência dessas referências.

"Meu vô me colocava pra ver filme de terror, e tá, eu assistia [risos], e isso eu era bem pequeno, eu tinha menos de 5 anos quando eu morava com ele. Eu lembro que ficou cravado na minha cabeça [. . .] eu ficava com ele porque a minha mãe trabalhava o dia todo e o meu pai estudava, então o meu pai, raramente, eu via." (Jason, 13 anos)

Tão viva quanto as lembranças das imagens fílmicas foram as imagens mnêmicas de situações de solidão em relação às figuras paternas. Vivenciadas na companhia dos avós, dos irmãos, dos amigos ou em solidão; os adolescentes recordam-se das situações de proximidade com as imagens de horror e enfatizam essa ausência. Relatos que sugerem que o horror, não por acaso, possa ter sido uma espécie de presença no lugar dessa ausência.

Para além da experiência com o horror fílmico, em que, diversas vezes, ressaltaram o fato de que os pais não estavam presentes, os adolescentes mencionaram a necessidade de dar conta das marcas produzidas por esse encontro, curiosamente, de forma solitária. A seguir, excertos de falas que expressam essa questão:

"Eu lembro que eu vi a Boneca Assassina [. . .] eu tinha uns 6, 7 anos e eu tinha uma boneca grande assim – mostra com as mãos – eu lembro que eu tinha visto o filme e a boneca tava sentada na cama da irmã, daí quando eu passei, no escuro, eu vi a sombra dela [risos] e eu morria de medo. Eu lembro que eu sentia muito medo, eu fui correndo no meu quarto e escondi todas as minhas bonecas e segui assim um tempão [risos]." (Boneca Assassina, 16 anos)

"Mas eu, quando era pequeno, eu olhava e me assustava muito, lembro que eu até chorava de medo na hora de ir dormir, eu não conseguia dormir, eu ficava olhando para todos os lados, eu ficava pensando no boneco, ficava imaginando o Chucky, mas eu vivia em segredo aquilo né, hoje eu dou risada [. . .]" (Chucky, 16 anos)

Percebe-se, através das falas, uma espécie de incursão aos terrores vivenciados, os quais não ocorreram durante a experiência de assistir ao filme apenas, mas extravasaram a tela, obscurecendo a fronteira entre o real e a fantasia. Sobre isso, considera-se digno de nota o fato de que a ação do "choro" e de "esconder as bonecas", evidenciados nas falas, sugerem que, além do horror vivenciado, poderia estar implícito nessas expressões, a busca do olhar do outro para esse sofrimento.

Talvez como um pedido de amparo, de trazer esse outro para perto, para que escutasse o pavor que se fazia presente. No entanto, na sequência das falas apresentadas e, também, expressa em outras, ao revelarem que as bonecas seguiram retiradas da visão por um "tempão" e que o horror vivido seguia “em segredo”, direciona-se a pensar que essas tentativas, talvez, não tenham obtido sucesso.

Tendo isso em vista, ao falarem das imagens fílmicas, o discurso dos sujeitos apontou para esta outra experiência horrífica, a qual situava-se numa espécie de desamparo vivido em relação ao outro. Quer dizer, além dos sentimentos terríficos produzidos pelo encontro com as imagens fílmicas, a experiência de desamparo em relação a este outro já deixava marcas de horror em suas vidas. As falas demonstraram, portanto, que nas entrelinhas da relação com as imagens móveis, havia mais horror do que se podia supor.

A partir do que foi explicitado, portanto, pareceu relevante pensar o sentido que haveria nessa relação, tão presente nos discursos. Para tanto, considerou-se necessário trazer à cena o famoso ensaio de Freud (1920), intitulado Além do princípio do prazer, mais especificamente, quando traz o jogo denominado de fort-da, realizado por seu próprio netinho. Recordemos que o netinho de Freud, na época com 18 meses, realizava um jogo que consistia em fazer desaparecer um carretel, que segurava por um fio, acompanhado de um o-o-o-o (fort/ausência) prolongado, depois saudando o seu reaparecimento, encontrava-o com um alegre da (aí está/presença).

Freud (1920/1996), pelo olhar destinado à situação observada, revelou alguns elementos, antecedentes ao jogo, que são importantes peças do mosaico de compreensão da situação e que sinalizam que certo horror se encontrava presente. O autor observou que o brinquedo desenvolvido pela criança tinha associação com a ausência de sua mãe, fato que ocorreu tempos antes do início da brincadeira e que alerta, dizendo, não poderia ser tratado com indiferença ou como sendo prazeroso. Com base nessa análise, Freud concluiu que a brincadeira com o carretel compreendia uma importante função, pois, pela encenação do desaparecimento da mãe, tornava-se possível viver, ainda que minimamente de forma ativa, isso que dolorosamente fora vivenciado de forma totalmente passiva, em companhia do desamparo.

Assim, a brincadeira com o carretel foi desenvolvida repetidas vezes, pela tentativa de colocar em cena a situação traumática experienciada com a ausência da mãe, mas agora, com a possibilidade de vivenciá-la de forma ativa, como sujeito da ação, como quem provoca este desaparecimento. A partir disso, podese pensar que o encontro com as imagens fílmicas de horror também possa servir aos sujeitos como uma possibilidade de viver essa ausência dos pais numa outra condição. Não como alguém que, passivamente a vive, mas como alguém que acredita ter alguma possibilidade de ação sobre a situação.

Tendo isso em vista, parece importante o questionamento acerca do porquê da escolha pelas imagens horríficas como algo a ser colocado no lugar dessa ausência, tanto na infância como na adolescência. Para pensar essa questão, considera-se necessário mencionar uma diferenciação abordada pelos adolescentes acerca das imagens móveis de horror, pois, ao revelarem suas relações particulares com a filmografia, apontaram para uma dupla dimensão da imagem.

Os sujeitos diferenciaram duas formas de estética horrífica, sendo uma pertencente a filmes mais remotos, mas também a certas tecituras atuais que se assemelham a esses antigos; e outra, presente majoritariamente na cena atual de horror.

A diferença esteve no fato de que, segundo os adolescentes, certas filmografias colocam em cena um enredo que trabalha o agenciamento das imagens, as quais são capazes de cercar, de envolver o sujeito em sua trama. Trazem em sua estética algo que marca e que perturba, mas, ao mesmo tempo, que repele e atrai. São tratadas com imenso interesse, capazes de provocar a emersão de diversos sentimentos, e, ao mesmo tempo, capazes de evocar certa estranheza pela inquietude que, também, é despertada. Por outro lado, muito dos filmes atuais, tais como Jogos mortais, O albergue, foram descritos como imagens mais fechadas, desenhadas pela dureza da violência pura, da banalidade desse desconhecido que é tão caro e particular ao sujeito. São imagens intensamente perturbadoras, mas que, ao mesmo tempo, delas não se consegue desviar o olhar.

Nesse sentido, referindo-se a essa segunda imagem, reconhecida como "fechada", acredita-se ser relevante trazer à discussão as considerações de Feitoza (2009) acerca das imagens informalmente chamadas de torture porn, tão presentes em filmes atuais e que se caracterizam por uma exibição da tortura, pela mutilação, pelo sofrimento excessivo das vítimas. São imagens que apelam para um tipo de ânsia no espectador e que despertam fascínio justamente pela busca desesperada pelo desvelamento do real. Segundo o autor, está em questão imagens representantes de uma estética em que há a possibilidade de exercer um gozo perverso consentido.

Em acordo com esse pensamento, Gondar (2003) discorre a respeito dessas imagens que fascinam, que causam mal-estar, mas que, ao mesmo tempo, não se consegue não olhar. São imagens que apresentam uma intensidade maior de violência, tanto no conteúdo quanto na forma, bem como na relação que se estabelece entre o espectador e as imagens. Colocam-se à disposição do olhar e acabam por fascinar pela experiência direta do real. A busca por essa imagem darse- ia pelo fato de que responde, de alguma maneira, à condição de desamparo do indivíduo. Nas palavras de Gondar (2003):

"Assim como o hipnotizador aparece como figura idealizada, promessa de unificação e tranquilização das aflições de quem a ele se assujeita, a imagem totalizante parece preencher o vazio e o desamparo daquele que a vê sem ser capaz de olhá-la" (p. 26).

Apesar da dupla dimensão da imagem, referenciada pelos sujeitos, podese pensar que em ambas esteja presente o horror (Schreck), que Freud (1920) descreveu em Além do princípio do prazer como o fator determinante da neurose traumática, visto que é o afeto do trauma. Sobre isso, o autor afirma que, diante de uma situação de pavor, a Angst/Angústia é o que protege o sujeito contra o susto, uma vez que a expectativa gerada pela possibilidade do perigo ajudaria o indivíduo a se preparar para tal ameaça. No entanto, no momento em que essa preparação falha, o sujeito experiencia a sensação de Schreck (Freud, 1920). Faz-se alusão a isso para pensar a ideia de que, nesse encontro com as imagens móveis de horror, os adolescentes vivenciam o susto, não por acaso, mas por apresentarem-se totalmente à mercê da situação que os envolve.

Assim, lembremos o que Freud (1919/1996) menciona a respeito da categoria de coisas unheimlich, que compreende as expressões artísticas um tanto quanto obscuras e até negligenciados esteticamente, visto que se opõe ao que se convencionou chamar de belo.

Está implícita nessa estética unheimlich a característica da ambivalência, pois são encontros que suscitam nos sujeitos sentimentos de familiaridade, mas, ao mesmo tempo, de estranhamento e horror. A imanência da sensação de estranhamento no familiar é decorrente da particularidade que essa categoria de coisas tem de remontar ao "há muito já conhecido, há muito já familiar", pois o elemento que horroriza remete a algo traumático. Para Freud, confirmando o que Schelling havia sugerido, o unheimlich consiste em "tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz" (Freud, 1919, p. 282).

Além disso, encontra-se nessa experiência unheimlich a presença de forte ameaça, a qual pode ser identificada nas próprias falas. Quando o adolescente, nomeado ficticiamente por Chucky, relembra que assistia aos filmes na companhia do susto e que, ao ir dormir, não conseguia pegar no sono, pois ficava imaginando o boneco Chucky aparecer, e tudo isso era vivido em segredo; não parece difícil imaginar o sentimento de ameaça que deveria estar presente junto à experiência vivida.4

Com base nessas considerações, pode-se pensar que a escolha pelas imagens de horror se dê, justamente, por guardar algo do traumático. Essas imagens que não cessam de retornar pela repetição e que, ao mesmo tempo em que atraem, provocam repulsa. Sugerem que, pelas imagens horríficas, projetam-se na tela situações extremamente dolorosas de desamparo vivenciadas outrora e que são atualizadas nesse momento da adolescência.

Diante disso, pode-se pensar que, não por acaso, o horror tenha sido feito presença no lugar da traumática ausência vivenciada na infância e que, agora, retorna despertando um grande fascínio. Atualmente, cabe mencionar, a adolescência também carrega algo de traumático em sua constituição, pois tem se produzido como um trabalho psíquico feito de forma bastante solitária e impregnada da atmosfera de horror. O adolescente experiencia a emergência de um corpo que transborda bem como a necessidade de um reposicionamento em relação a si mesmo e ao outro, o que repercute em terríficos questionamentos vivenciados em intensa solidão (Macedo, Azevedo, & Castan, 2012).

Em relação a isso, acredita-se que, não coincidentemente, a fala dos adolescentes traz na figura do monstro uma forma de autorretrato. Revelam, por meio dessa identificação, esse momento de suas vidas em que experienciam uma espécie de desfiguração corporal, de um corpo que extravasa, que carece de contornos:

"Lobisomem vem de uma lenda, ele nasce humano e, quando vai crescendo, na adolescência [. . .] ele vira lobo em noite de lua cheia. Mas daí ele vira lobo, ele deixou de ser humano e virou um bicho feroz, peludo, com garras. O que que é bonito nisso?" (Drácula, 17 anos)

Pode-se pensar, com base na fala expressa, que esse corpo adolescente que se encontra em transformação assemelha-se à figura do monstro, que traz na aparência a falta de jeito, de graça, de belo. Como um humano que se transforma em lobo, o adolescente transborda esse horror que o "possuiu".

Sem dúvidas, essas transformações corporais contribuem, muito, para o malestar do adolescente. Sabe-se que, na adolescência, de forma inevitável, o sujeito será intensamente convocado a revisitar e a se reposicionar psiquicamente na intricada e complexa relação entre o eu e o outro, e, nesse intenso trabalho, o corpo assume grande importância. Isso porque, ao falar em corpo, estamos falando de um todo de pulsão em movimento, de um constructo que se produz pelas trocas subjetivas, tendo nas relações alteritárias a possibilidade de sua construção (Freud, 1915/1996).

o que fazer com esse corpo que, agora, se vê inundado pelo horror? Corpo este que se identifica com a figura do monstro, o qual se constitui pela expressão de coisas que são vistas com repulsa, em que as próprias palavras dos adolescentes dão contorno a esse excesso: "O que é bonito nisso?".

Talvez resida justamente nessa questão um dos importantes pontos que fascinam o olhar em direção às imagens de horror, visto que os monstros, conforme diz Brandão (2012), são a forma iconográfica de tudo o que gostaríamos de expurgar, de rejeitar. São a forma nada contida de demonstração do que Kristeva (1982) chamou por "abjeto", em que está implícito isso do humano que se gostaria de rejeitar, de desviar o olhar, que produz repulsa. Nas palavras dos adolescentes:

"Centopeia Humana, bah, esse filme é forte! Conta a experiência de um médico alemão de fazer uma centopeia humana com umas mulheres que foram sequestradas, daí, pra fazer isso, ele liga a boca de uma ao [mostra com a mão algo que remete ao ânus] da outra. Tu sente nojo com aquilo, mas, sei lá [. . .], ao mesmo tempo, tu quer ver! [Risos]" (Hannibal Lecter, 17 anos).

Nesse recorte, percebe-se a dimensão da presença do "abjeto", pois demonstra essa particularidade humana que o monstro representa e que o torna nojento, justamente, porque nós nos reconhecemos nele. Sobre isso, considera-se pertinente trazer à discussão a afirmação de Melo e Baptista (2015) sobre o fato de que, diversas vezes, o elemento que mais causa incômodo ao olhar as imagens horríficas diz respeito a aspectos da natureza humana que se gostaria de negar. Encontra-se justamente nesse humano monstruoso a presença do abjeto, visto que esse componente que desperta nojo e do qual se gostaria de desviar o olhar desperta também uma forte atração. Esse componente, em última instância, revela algo do humano.

Melo e Baptista (2015) referem ainda que a filmografia de horror abre a possibilidade de exercício simbólico de aspectos que, no resto do tempo, precisam ser mantidos sob controle. Em relação a isso, pode-se pensar na importância que o encontro com as imagens móveis pode suscitar nos adolescentes, no sentido de servir como espaço simbólico de expressão, visto que o lugar em que se encontram atualmente é um lugar de conflito, pois, ao mesmo tempo em que se reconhecem na figura do monstro, experimentando diversas transformações difíceis, também precisam lidar com o fato de estarem constantemente associados socialmente a um pesado ideal cultural.

Segundo Corso e Corso (2011, p. 189), além dos conflitos internos e relacionais que permeiam as múltiplas experiências de transformações e rupturas dessa fase, o sujeito adolescente terá de lidar como uma cultura que impõe uma "carga de expectativas e fantasias que pesa sobre os seus ombros". Os autores mencionam que, em decorrências das mudanças sociais, vive-se atualmente a adolescência como "uma utopia etária, vendida como a melhor idade da vida", fantasia que é produtora de grande sofrimento e angústia para os "protagonistas".

Com base numa lógica hedonista e de busca incessante pela felicidade, restou aos adolescentes o imperativo de que precisam ser livres e tirar o melhor proveito da vida, já que vivenciam a melhor fase enquanto podem gozar de privilégios por ter todas as possibilidades pela frente. E vivem esse imperativo sob a ameaça de que deve realmente ser aproveitada, pois sua finitude é inegável e se aproxima a cada dia (Corso & Corso, 2011).

Em sua obra A psicanálise na Terra do Nunca, Corso e Corso (2011) tecem algumas definições sobre a adolescência contemporânea e usam, para isso, a ficção como ferramenta. Os autores referem a importância da ficção para pensar os sujeitos, visto que consiste num "veículo através do qual se estabelece um cânone imaginário utilizado para elaborar algum aspecto da nossa subjetividade ou realidade social". Nessa obra, os autores chamam a atenção para a predileção dos adolescentes pelos filmes de horror na atualidade. E com base nessa evidência, questionam-se sobre o que esses sujeitos que, há pouco, saíram da infância querem com "vingativas almas de outro mundo, zumbis, sangue jorrando, corpos espedaçados e monstros assustadores". E arriscam a dizer que esse interesse sinaliza uma "dimensão de pesadelo" que está compreendida na própria época da vida que estão vivenciando.

Diante das atuais configurações sociais, na qual os sujeitos encontram-se imersos em frágeis relações alteritárias, parece faltar aos adolescentes a presença do outro que sirva como sustentação simbólica (Cardoso, 2014). Disso decorre o aumento excessivo de uma intensidade pulsional, que é sentida como angústia. O sujeito adolescente está à mercê de seu sofrimento, não há espaço para falar do que sente, pois deve aproveitar ao máximo "a melhor idade da vida" e não encontra no outro a possibilidade de ser amparado (Corso & Corso, 2011).

Tendo isso em vista e conforme sustenta Ruffino (2009), a experiência da adolescência acabou se constituindo como sendo a única possibilidade de resposta do sujeito ao desamparo que vivencia. Tem-se na adolescência a expressão de um sintoma social relacionado ao impasse na transmissão da lei sob a qual se sustenta a sociedade, restando ao jovem constituir intrapsiquicamente a função paterna que deveria ser encontrada no mundo social. Assiste-se, atualmente, à pulverização das referências simbólicas a serem transmitidas e compartilhadas, as quais dão consistência ao laço social, o que, por sua vez, afeta particularmente os adolescentes. Com o decurso do tempo e da cultura, esse sujeito foi sendo exilado forçosamente do laço social, restando viver a adolescência de forma bastante solitária (Coutinho, 2009).

Com base nisso, pode-se pensar que esse transbordar-se de si mesmo que vive o adolescente, de alguma forma, encontra contorno nas imagens de horror. É como se elas se emprestassem aos sujeitos como possibilidades de encontros alteritários, encontros dos quais tanto carecem os adolescentes.

3.2 Do horror solitário ao laço simbólico

Diversas vezes presente nos discursos, os adolescentes mencionaram a importância de assistir aos filmes de horror na companhia de alguém. Ainda que recordem situações na infância em que o encontro com essa cinematografia tenha sido vivenciado de forma solitária, atualmente assistir a eles nessa condição é revelado quase como uma impossibilidade. O outro é considerado necessário nessa experiência. Nas palavras dos adolescentes:

"Eu gosto de romance. Esses outros eu vejo sozinha, numa boa, mas é que é bem diferente, porque, com esses filmes, tem a diversão, a história de amor, daí tranquilo ver sozinho, mas com filme de terror, é medo, é morte, é difícil ver sozinho!" (Annabelle, 16 anos)

Com base nesses recortes, pode-se pensar a hipótese de que a experiência de assistir aos filmes de horror permite um enlaçamento entre o mundo interno e o mundo compartilhado, abrindo, assim, a possibilidade de inscrição do sujeito em algum laço social. Lembremos, sobre isso, do que Freud (1908/1996) afirmou, ainda no início do século XX, a respeito do fazer artístico, no sentido de constituir-se numa incrível possibilidade de descortinar, de interpretar e de expressar conteúdos recalcados de um determinado contexto social. Isso porque, segundo o autor, os artistas teriam a capacidade de alcançar os conteúdos ocultos e, ao mesmo tempo, tão caros aos sujeitos, tornando visíveis certas verdades subjetivas com a expressão artística. E é justamente nessa pincelada de inconsciente presente nas obras que a imagem compromete o olhador. É esse traço que precipita que toca o sujeito com a intensidade de um golpe, de forma a desacomodá-lo, a lançá-lo ao questionamento acerca do seu lugar ou não lugar no mundo.

A arte, portanto, faz uso de recursos imaginários e simbólicos para trazer o real à cena, circunscrevê-lo por meio de um contorno que possibilite a abertura do olhar. Uma obra de arte é uma forma extremamente particular de expressão das verdades subjetivas, mas que tem, igualmente, a capacidade de tocar nesse real que é comum a todos, que é universal.

Nesse sentido, considera-se possível pensar que as imagens móveis de horror têm a capacidade de expressar esse conteúdo traumático, vivido na infância e que, agora, atualiza-se com a entrada na adolescência. E é justamente ao revelar o que há de mais particular que se torna possível tocar o universal sem que essa dimensão de exclusividade se perca. Percebe-se, pelas falas, que o cinema de horror faz eco no outro.

Ainda em relação à preferência por assistir aos filmes na companhia de outras pessoas, os adolescentes enfatizam que não se trata de qualquer outro, mas um outro que lhes é familiar. Segue recorte dos discursos que expressam essa particularidade: "Eu prefiro ver com alguém que eu já conheça há bastante tempo [. . .] ou que já participou da minha vida, no caso, família ou amigos [. . .]" (V de Vingança, 14 anos).

Percebe-se a relevância que compreende o fato de estar com alguém que se considera familiar, o que, pode-se pensar, relacione-se com a ideia de estar com alguém que possa suportar o que a imagem pode despertar. Em relação a isso, Gurski, Carla e Moschen (2013) mencionam que “as lentes do cinema, como representação de um outro olhar, podem ser tomadas na dimensão da alteridade”. Dessa forma, não apenas olhamos a imagem, visto que ela também é capaz de nos olhar de volta.

Didi-Huberman (1998, p. 82), parafraseando o episódio do fort-da, narrado por Freud e já mencionado neste texto, diz que "o carretel só é 'vivo' e dançante ao figurar a ausência, e só 'joga' ao eternizar o desejo, como um mar demasiado vivo devora o corpo afogado, como uma sepultura eterniza a morte para os vivos". Isso porque a imagem é capaz de nos olhar no momento em que recusamos seu poder de nos impor a sua visualidade, instalando-se, assim, "o lugar onde o que vemos aponta para além do princípio do prazer; o lugar onde ver é perder, e onde o objeto da perda sem recurso nos olha. É o lugar da inquietante estranheza" (Didi-Huberman, 1998, p. 227).

Além disso, na fala mencionada, percebe-se a importância denotada à identificação com o outro. Ressalta-se uma certa cumplicidade, a possibilidade de reconhecimento de si próprio no horror do outro. É como se o horror permitisse que o que foi vivenciado de forma singular se conectasse ao simbólico do outro, possibilitando a produção de algum enlaçamento.

Em relação à importância que este outro familiar assume para junto atravessar essa experiência, os adolescentes dizem evitar as sessões de filmes de horror nos cinemas, justamente pela preferência de assistir aos filmes em um ambiente familiar. Seguem excertos das falas que expressam esta questão:

"É diferente, porque ali tu conhece todo mundo, tu tá num ambiente familiar [. . .] e no cinema não [. . .] até porque nas junções que a gente faz, vai, vai que sempre acaba em filme de terror [. . .] Dai vai pro terror [. . .] e depois a gente vai conversar sobre aquilo ali que a gente viu, vai trocar ideias, isso é muito massa!" (Norman Bates, 14 anos)

Além da grande relevância atribuída ao fato de assistir com um outro que seja familiar, pode-se perceber, na fala acima e em outras citadas, o fato de que os adolescentes atribuem grande importância aos momentos que se seguem ao final dos filmes, no sentido de produzir situações de trocas sobre o que se acabou de olhar. É o momento de dizer sobre o que se viu. Percebe-se que esse momento serve como uma espécie de ancoragem, em que se identifica no outro certa cumplicidade com o sofrimento e, ao mesmo tempo, a confiança de que suporta o que se tem para dizer.

Talvez, não por acaso, narrar assuma um papel importante dentro dessas experiências com o horror fílmico, visto que, lembremos que Cyrulnik (2005) refere que a narração é de extrema importância para auxiliar na tão sofrida experiência do trauma. Tendo em vista as falas dos sujeitos, parece ser de grande importância esse momento de trocas de narrativas sobre o que se acabou de ver. Não apenas falar de suas experiências é importante, mas tanto ou mais importante é recolher as palavras do outro, talvez como uma forma de reordenar e narrar as próprias experiências que se viveu. De acordo com essas considerações, acreditase ser relevante mencionar uma pesquisa realizada com jovens participantes de um cineclube universitário, na qual foram questionados sobre a sua relação com o cinema. Dalethese (2013), a partir do estudo, pôde concluir que:

O valor narrativo nesse movimento de contar suas histórias reside na possibilidade de confrontar experiências passadas com os sentidos atribuídos no presente. Desse modo, as lembranças quando narradas vão sendo elaboradas através dos olhares de hoje, o que configura movimentos de reconstruir essas trajetórias.

No que se refere a isso, considera-se importante lembrar do famoso ensaio Experiência e pobreza, de Benjamin (1993), no qual o autor faz uma série de constatações sobre a cultura e ressalta que a experiência está atualmente empobrecida. Importante situar que, longe de ser uma posição nostálgica, Benjamin provoca a reflexão sobre o declínio da experiência no mundo moderno, orientando a pensar o novo lugar do sujeito na cultura. O autor alerta que não se deve ver nessa particularidade um sintoma de decadência, mas, ao contrário, uma repercussão do decurso do tempo e da história, em que se torna preciso pensar em outras narrativas que sirvam como produção de enlaçamento simbólico (Benjamin, 1993).

Faz-se necessário lembrar que Benjamin (1993) expõe a constatação de que a experiência compartilhada passa a viver um empobrecimento a partir de sua relação com um mundo completamente transformado pela barbárie das guerras mundiais. Percebeu-se que os combatentes da Primeira Guerra Mundial, curiosamente, voltavam silenciosos dos campos de batalha. Acontecia que esses sujeitos voltavam sem histórias para contar, visto que não havia como colocar em palavras as experiências de horror pelas quais passaram. Restava silenciar o inenarrável.

Assim, incrustrada nessa experiência de guerra, estaria o início do fim da narrativa tradicional. E somado às marcas da guerra, o autor situa o incessante desenvolvimento tecnológico como algo que, também, acarretou mudanças no compartilhamento da experiência. Atualmente estamos imersos em um cotidiano que se distanciou, em muito, da realidade cultural que era vigente, tendo gerado um intenso descompasso geracional. Principalmente em decorrência da intensa aceleração tecnológica gerada nos últimos tempos, a experiência das gerações passadas, hoje, não serve mais para os filhos. A cadeia de transmissão, em razão deste descompasso, teria caminhado para o empobrecimento. Experiencia-se, portanto, um contexto cultural fragilizado em sua possibilidade de produção de laços simbólicos, por vivências que se delineiam pela falta de demarcações alteritárias. É tempo de construção de novas narrativas que produzam enlaçamento e, a partir das falas dos adolescentes, pode-se pensar que as narrativas fílmicas de horror sejam importantes possibilidades nesse sentido.

Tendo isso em vista, acredita-se que a predileção pelas imagens móveis de horror compreende também a busca pela expressão e pelo compartilhamento de experiências, pois, ainda que não seja possível significar o traumático, temse a possibilidade de fala, de depoimento. E assim, por essa construção de laços vem a possibilidade de, junto ao outro, criar novas experiências e dessas novas experiências, novos sujeitos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelos discursos explicitados pelos sujeitos nos grupos focais, tornou-se possível certa aproximação com a sinistra cumplicidade existente entre os adolescentes e o cinema de horror na atualidade. A partir disso, pôde-se evidenciar que o interesse despertado pelos encontros com as obras cinematográficas de horror realmente ocupa um lugar privilegiado em suas vidas.

Iniciado, ainda na infância, o encontro com as narrativas fílmicas de horror, parece ter entrado em suas vidas não por acaso, mas justamente num momento em que vivenciavam uma espécie de intenso desamparo em relação ao outro. Pelo encontro com a ficção, os sujeitos demonstraram a possibilidade de vivenciar ativamente o horror que, na vida real, vivenciavam de forma totalmente passiva.

Além disso, com base nos conteúdos explicitados, pôde-se concluir que, também não por acaso, o horror retorne a ser forte presença nesse momento de suas vidas, visto que, novamente, experienciam momentos de grande fragilidade e da necessidade de um outro que lhes dê a mão para fazer a travessia da adolescência. Decorrente das intensas mudanças pubertárias e do surgimento de um excesso pulsional, a irrupção da adolescência convoca, intensamente, uma dimensão de alteridade para vivenciar esse horror que transborda.

No entanto, justamente, nesse momento em que o sujeito tanto precisa de um outro que lhe dê a mão, parece, também, ser o momento em que se encontra extremamente carente de trocas alteritárias, de relações em que o outro sirva como suporte. Diante disso, o horror fílmico cumpre importantes funções, pois sugere que, além de servir como uma espécie de espelhamento ao que se vivencia, emprestando certo contorno ao transbordamento pulsional que irrompe nesse momento, é explicitado como a possibilidade de produção de laço simbólico, de compartilhamento de experiências, de construção de alteridade.

Ao término deste estudo, considera-se importante mencionar a limitação que o envolve, visto tratar-se de uma pesquisa com uma amostra reduzida de 16 adolescentes. Espera-se que novos estudos sejam desenvolvidos e que, assim, o tema possa ser trabalhado de forma mais ampla e aprofundada.

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Texto recebido em 17 de novembro de 2015 e aprovado para publicação em 8 de junho de 2016.

 

 

1 Considera-se importante mencionar que este estudo não teve fontes de financiamento externas. Além disso, os autores afirmam que o estudo não teve conflitos de interesse.

* Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria. (UFSM), especialista em Psicologia Hospitalar pela Residência Multiprofissional Integrada em Sistema Público de Saúde, Ênfase Hospitalar, graduada em Psicologia pela UFSM.E-mail: naty_cantarelli@yahoo.com.
3 A primeira data indica o ano de publicação original da obra, e a segunda, a edição consultada pelo autor, a qual somente será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data de publicação original.
4 Considera-se importante pensar essa questão em relação à noção de angústia, trabalhada por Freud em Além do princípio do prazer. No entanto, não será abordada neste trabalho, pois foi desenvolvida em outro, intitulado A imagem de horror como abertura.

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