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Psicologia em Revista

versión impresa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.1 Belo Horizonte ene./apr. 2019

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p118-132 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p118-132

 

"Malucos de estrada": subversão e verdade

 

"Malucos de estrada": subversion and truth

 

"Malucos de estrada": subversión y verdad

 

 

Oswaldo França Neto*

 

 


Resumo

Tendo como referência o documentário Malucos de estrada, de Rafael Lage, este texto se propõe a discutir a forma com que a verdade de uma dada sociedade pode se operacionalizar nesta. Contrapondo a concepção do que significaria o termo "viver" para a sociedade ocidental contemporânea e para a psicanálise, propõe que a vida somente tem sentido se referenciada na verdade que serve de solo para a existência, identificada por Freud como sendo a verdade do inconsciente, e que se faria apresentar sempre como furo no saber estabelecido, como subversão deste. Propõe, então, que os personagens desse documentário, por se apresentarem na cena social de uma forma não predicativa, podem nos auxiliar a pensar a verdade, em termos sociais, como algo assubstancial, somente passível de se processar por meio da subversão daquilo que se apresenta subsumido à lógica classificatória e hierarquizante de uma dada sociedade.

Palavras-chave: "Malucos de estrada". Verdade. Subversão. Lógica não predicativa.


Abstract

Referring to the documentary film Malucos de estrada, by Rafael Lage, the purpose of this text is to discuss the way the truth of a certain society may take place within it. Counterpointing to what the term "live" would mean for the contemporary Western society and psychoanalysis, it proposes that life is only meaningful if evidenced in the truth that serves as ground for the existence, identified by Freud as being the truth of the unconscious, which would always be presented as a hole in the established knowledge, its subversion. This study proposes that the characters of this documentary film, having in mind that they are presented in the social scenario in a non predicative way, may help us view the truth not as a substantial thing but as something that may only be processed by the subversion of everything presented in subjection to a classificatory and hierarchical logic of a certain society.

Keywords: "Malucos de Estrada". Truth. Subversion. Non-predicative logic.


Resumen

Teniendo como referencia el documentario Malucos de estrada, de Rafael Lage, este texto se propone a discutir la forma como la verdad de dicha sociedad puede operar en ella. Contraponiendo la concepción de qué significaría el término "vivir" para la sociedad occidental contemporánea y para el psicoanálisis, propone que la vida solo tiene sentido si referenciada en la verdad que sirve de suelo para la existencia, identificada por Freud como siendo la verdad del inconsciente, y que se haría presentar siempre como perforación en el saber establecido. Propone, entonces, que los personajes de ese documentario, puesto que se presentan en la escena social de una forma no predictiva, nos pueden ayudar a pensar la verdad, en términos sociales, como algo no sustancial, pasible solamente de procesarse por medio de la subversión de lo que se presenta subsumido a la lógica clasificatoria y de jerarquización de dicha sociedad.

Palabras clave: "Malucos de estrada". Verdad. Subversión. Lógica no predictiva.

1 INTRODUÇÃO

Em 2009, o cineasta Rafael Lage começou uma série de entrevistas com pessoas que habitavam as ruas de Belo Horizonte-MG. Seu objetivo era denunciar a atuação dos fiscais da Prefeitura de Belo Horizonte e da Polícia Militar de Minas Gerais, que apreendiam arbitrariamente os bens pessoais, os artesanatos e as ferramentas das pessoas que viviam nas ruas. Quando o artesão acusava o furto institucionalizado, era preso por desacato.

Mas conforme as filmagens avançavam, Lage começou a se dar conta de um universo do qual nós apenas precariamente sabemos a existência. Percebeu que seu intento de justa denúncia da discriminação a que esses sujeitos eram submetidos dificilmente alcançaria qualquer resultado efetivo enquanto um maior esclarecimento do que eram aquelas pessoas e das escolhas que faziam não fosse trazido também à discussão:

Com o tempo, percebemos que não bastava denunciar a violência do Estado, pois ela, em sua raiz, era fruto do preconceito e do enorme desconhecimento da sociedade sobre quem são estas pessoas. Então tínhamos também de mostrar a cultura, trazer à tona a realidade desse universo cultural, e foi assim que surgiu a trilogia Malucos de Estrada (Lage apud Delorenzo, 2015).

Autodenominados por "malucos", alguns desses andarilhos tinham abandonado casa, família, estudo e se lançado nas estradas, fazendo a opção pelo despojamento de tudo o que, na opinião deles, cerceavam suas possibilidades de descobertas e de interações com o mundo:

O maluco é um canibal cultural, um antropófago. Seu caminhar, sua rota o define. As culturas com as quais têm contato, as diferentes pessoas que atravessam seu caminho, as geografias que ele percorre, tudo isso cria um ser único, paradoxal e multifacetado (Lage <i>apud</ Delorenzo, 2015)

Rafael Lage se lançou, assim, em uma pesquisa muito maior do que a inicialmente imaginada. Suas aproximadamente 300 entrevistas estenderamse de 2009 a 2014, com filmagens que percorreram 19 Estados brasileiros, desembocando ao fim na elaboração da trilogia Malucos de estrada. Vamos aqui nos dedicar ao segundo episódio dessa trilogia, trazendo para a discussão o que conseguirmos extrair dos relatos de história e dos trajetos escolhidos pelos personagens mostrados no filme.

2 O FILME

No início, o filme nos apresenta, entre outros, um homem de mais idade, barbas brancas, de bicicleta, percorrendo trilhas e estradas no Estado de Mato Grosso do Sul. À noite, ele se deita em postos de gasolina, no quintal de uma casa na beira da estrada ou onde conseguir se acomodar. Sua bagagem é pequena, apenas o suficiente para transportar consigo sobre as rodas de seu meio de locomoção.

Concomitantemente, e em sequência, o filme entrevista e acompanha o dia a dia de uma série de pessoas de idades variadas que, como a primeira, habitam ruas e estradas de nosso país. Eles compartilham uma série de termos e expressões que lhe são próprios, como mangueio, sucata, rádio-cipó, pedra de maluco, micróbio, "shop-chão", pano de maluco, ataque soviético, desandar, xerox, entre outros, que denotam certas atividades específicas de seu cotidiano. Em comum, têm também uma diversidade imensa de histórias pessoais, todas elas desembocando nas estradas e em uma vida itinerante. Artesãos, sempre em movimento, munidos de alicates, fios de cobre, penas, ossos e dentes de animais mortos pelos veículos nas estradas, pequenas coisas que recolhem na natureza ou nos refugos de nossas cidades, eles passam os dias produzindo, vendendo ou trocando pequenas peças de artesanato, atividades que auxiliam e fazem parte de seu caminhar. Chama a atenção o modo solto de andar, falar e gesticular. Eles interagem intensamente com tudo o que os cerca, o que frequentemente causa receio nas pessoas com as quais encontram em seu caminho.

De um jeito ou de outro, apesar de espalhados por todo o território brasileiro e no exterior, eles se conhecem pelo nome, e as informações circulam de boca em boca nos encontros sempre casuais nas estradas, nas praças ou em qualquer lugar para onde se dirijam. Se não chegam a formar um corpo delineável objetivamente, não se deixando cernir por limites geográficos ou origem social, parecem, no entanto, compor uma rede:

"Nós somos uma tribo, sim. Ainda não percebemos que somos, mas somos."

"Maluco é família. Nós somos uma família."

"Você vê um maluco na estrada, você vai, você cumprimenta, você respeita."

"O que um come todos comem. O que um bebe todos bebem. Onde um dorme todos dormem."

Consideram-se uma herança dos hippies, mas não se identificam integralmente com eles. Preferem denominar-se "malucos de estrada", apontando como característica principal que os especificaria o envolvimento com o trabalho artesão e com uma concepção de vida na qual esse labor seria fundamental:

"Porque somos do princípio da humanidade. Nós somos legítimos. Viemos muito antes desse processo de apropriação da indústria. Nós iniciamos a humanidade com isso aqui. Tudo o que existia era feito à mão. Se as comunidades cresceram e houve a necessidade de um consumo maior, isso é problema da sociedade, não é nosso. Nós somos a atividade cultural, somos cultura."

A diversidade entre eles é imensa, muitos demonstrando grande fluência e domínio do que se consideraria uma linguagem tradicionalmente culta. Porém, apesar de terem origens distintas e histórias singulares, o que torna cada um único, todos se apresentam irmanados em sua concepção sobre a sociedade e de como esta se insurgiria no cerceamento da liberdade de todo e qualquer cidadão, independentemente de sua condição econômica ou cultural. Ao se lançarem em uma conversa, para o que parecem estar sempre disponíveis, demonstram clareza na forma como entendem a estrutura social e o que eles mesmos representam para esta:

"O problema todo está na estrutura da sociedade e o que ela nos impõe."

"Para o sistema, não é interessante que você seja independente. Para o sistema, não é interessante que você pense, que você questione. Pra eles, é legal que você não pense, que você não questione, que você fique só olhando para um lado só, que é sustentar ele."

"Todos os que questionam o sistema são chamados de louco. Por que que você acha que nós somos chamados de malucos?"

Desconectados da lógica do consumo, apesar de fazerem uso do dinheiro no cotidiano das situações que se colocam, fazem ácidas críticas à forma com que a sociedade capitalista se esmera em tentar neutralizar tudo e todos os que se apresentam como sendo uma proposta diferente, incluindo aí a tentativa desta em apreender e reciclar, em seu ideário consumista, o estilo de vida que eles, malucos de estrada, abraçaram:

"A indústria pode querer tomar conta, fazer um exército de artesões, de hippies, mas não consegue."

"Tem quem ache legal ser maluco, se fazer de maluco. Mas quem quer ser alguma coisa não é. O cara que é maluco não quer ser maluco, ele é maluco!"

"Ser maluco não é uma filosofia, é um jeito de ser, uma atitude. O cara já nasce maluco!"

"O cara que é maluco não faz parte de uma ONG, ele faz parte de uma BR, ele faz parte da estrada."

É marcante como a estrada, em sua potencialidade do inesperado e incontrolável, apresenta-se como algo norteador para eles:

"A estrada tem muitas entradas e milhões de saídas."

"A estrada é a escola. Ela é luz."

"A estrada que te guia."

"A estrada tem uma grande potencialidade, uma grande oportunidade, pois tudo acontece ali."

"Quem não se movimenta não sente as cadeias que o prendem."

"Ser maluco é traçar uma rota e fazer. Eu vou!"

Mas, apesar dessa perspectiva aparentemente romântica, o face a face com a estrada e sua realidade crua, não mediatizada pelas malhas de segurança que nossa sociedade constrói e nos envolve, exige deles a clareza dos riscos de sua escolha:

"Não romantizar pegar a estrada, por que lá acontece tudo."

"A BR é violenta, não por causa dos malucos, mas porque a vida é violenta."

Violência esta que, às vezes, devido à própria situação de esgarçamento social à qual estão submetidos, os atinge de forma devastadora. Por estarem imersos na sociedade, mesmo que em suas franjas, o maluco convive, vez ou outra, de forma impactante com os produtos que nela circulam. Esse foi, por exemplo, o caso do crack. Apesar de nem todos fazerem uso de drogas:

"Acho que a única questão disso que tem que ser quebrada é a regra de que todo maluco usa droga. Mentira. Tem muito naturalista. Tem muita gente aí na pegada que se anestesia de outras formas: mentalmente, meditação, que trabalha com a alimentação, que lê… Tem vários tipos de pessoas. Você não pode criar um estereótipo."

O crack alterou profundamente o entorno dessa comunidade:

"Depois que o crack veio pra rua, veio muita gente pra rua, morar na rua. Então a nossa tribo ficou ali no meio, né, porque a gente já era da rua antes. Antes do crack nós já morávamos na rua. Nós éramos uma das tribos mesmo que moravam na rua. E agora, depois do crack, apareceu muita gente. Acho que triplicou o número de morador de rua, não só aqui no Pará, como em todo o Brasil. E a Praça da República tá passando simplesmente por isso aí: a era do crack mesmo."

Além de deixar consequências nefastas em boa parte dessa "tribo":

"O crack é uma situação muito difícil. O crack é uma droga que aniquila o cérebro do ser humano."

"O crack parece que foi o que chegou igual um tsunami mesmo na nossa história. O que sobrou, juntou os pedaços e [. . .] sobrou isso. Nossa, o crack degradou legal a galera."

Trata-se, para as pessoas dessa comunidade, de uma existência que, muitas vezes, se consome com maior velocidade, mas também com maior brilho ou intensidade. Elas passam seus dias sem o medo da morte sempre iminente que sub-repticiamente nos determina em nossa existência e que nos faz buscar ilusórias redes de proteção, como os infindáveis seguros que cotidianamente nos são oferecidos e com os quais estabelecemos uma relação apaziguadora (seguros de carro, de saúde, de vida, de casa, de aposentadoria, etc.). O maluco vive com a roupa do corpo, experienciando o aqui e agora. E, ao mesmo tempo em que tenta fazer isso sem romantismos, para não ser tragado pela dura realidade de uma existência nas estradas e à margem da sociedade, são guiados por uma ideia ou concepção de vida que, de fora, parece ser romântica.

3 O QUE É VIVER?

No livro Logiques des mondes, Alain Badiou nomeia o último capítulo, que ali está a título de conclusão, com uma pergunta: "O que é viver?" (Badiou, 2006, p. 529, tradução nossa). Segundo o filósofo, independentemente dos variados caminhos que a Filosofia percorre, a ela cabe, ao final, responder a essa questão. Mas não no sentido que a nossa sociedade considera o que importa na palavra "viver", qual seja, "perseverar nas livres virtuosidades do corpo" (Badiou, 2006, p. 529, tradução nossa). Não se trata de nossa existência animal e da exploração dos prazeres corporais que ela possa nos fornecer antes do inevitável perecimento e morte. Essa concepção de vida é a que sustenta, ideologicamente, o sistema capitalista. Para o capitalismo, para o qual o que interessa é a imersão dos seres humanos na engrenagem do consumo, a essência proposta para o que seria o humano reduzir-se-ia à sua faceta animal. Ao homem, como todo animal, o objetivo determinante que o definiria seria a satisfação de suas necessidades, ou seja, impor o domínio sobre a natureza (e os outros seres humanos estariam sob essa rubrica, entendidos também enquanto seres naturais), de forma a se preservar organicamente vivo e de melhor usufruir dos prazeres que seu corpo pede (alimentar-se, reproduzir, gozar [. . .]).

Badiou, contrapondo-se a essa concepção, propõe que, em corte com essa noção de animal corporal, e, portanto, distinguindo-se do que entendemos por natureza, os seres humanos definem-se primordialmente por serem seres de linguagem. Para o filósofo francês, em consonância com Freud e Lacan, ao nos definirmos dessa forma, não é mais de seres que se trata, mas de sujeitos; não é mais de satisfação de necessidades, mas de realização de desejos. Viver, para nós, como sujeitos de linguagem, somente tem sentido se desconectados dos limites da mera sobrevivência e necessidades de nossos corpos. Retornando a Aristóteles, viver somente tem sentido se for "em imortal" (Badiou, 2006, p. 529, tradução nossa).

Se a vida não se reduz ao que se apresenta como objetivamente existente, ela então não se identifica à lógica que determina, hierarquiza e classifica o aparecer de objetos e relações de um dado mundo. Ela deve fazer existir o que foi condenado à inexistência pelas normatizações de uma determinada situação. Viver, para o filósofo francês, somente é pensável na fruição, em intensidade máxima, de toda a potencialidade que um sujeito desejante pode carrear, o que apenas é possível mediante o resgate daquilo que em nós é imortal, e que teria sido silenciado pela pura administração do necessário para a sobrevivência dos corpos que o pragmatismo cotidiano nos convida. Seria, para Badiou, a fruição propiciada pelo resgate daquilo que estaria condenado à existência mínima. O que antes era nada, desprovido de qualquer valor e sem direito à visibilidade naquela dada sociedade, passa a se fazer apresentar com intensidade máxima, posto que portador de uma verdade até então inapercebida (até então condenada à ex-timidade, ou à exterioridade mais íntima).

Viver, para Badiou, só vale a pena se isso significar o resgate da imortalidade da verdade de um sujeito, que foi subsumida quando o império do pragmatismo da luta contra a mortalidade corporal se impôs.

Mas se a verdade imortal não está no corpo (ainda que, para que ela venha a se produzir como efeito em um mundo qualquer, ela tenha que, de alguma forma, se fazer apresentar naquele mundo), onde ela se encontra? Para responder a essa questão, Badiou se remete a Platão, mais especificamente à sua alegoria do Mito da Caverna e o mundo das Ideias. Para o filósofo francês, é retornando à Grécia antiga e àquele que teria inaugurado a Filosofia ocidental que encontraríamos a possibilidade de melhor pensarmos, pelo menos para nós, herdeiros dessa tradição, sobre o que seria a verdade eterna, e não perecível, que nos constitui como sujeitos no mundo. Verdade esta que, apesar de eterna e imutável, sua presentificação só se possa processar de forma contingente e localizada.

4 A VERDADE NA SUBVERSÃO

Platão, no livro 7 de A república (1996), propõe a alegoria do Mito da Caverna para descrever o que ele considera ser a nossa impossibilidade de acessar a verdade. Esta última, a seus olhos, corresponderia ao mundo das Ideias. De acordo com o mito, nós habitamos o interior de uma caverna, voltados para as suas paredes e de costas para a saída que nos daria acesso ao mundo exterior, onde estariam as Ideias em seu estado puro, não corrompidas. Destas somente teríamos acesso ao que delas se reflete nas paredes internas, reflexos estes sempre passíveis de estarem, em maior ou menor grau, corrompidos no processo. Por desconhecermos esse confinamento, desconhecemos também a pouca fidedignidade daquilo que se apresenta a nossos olhos, tomando por verdade as imagens e os simulacros que se projetam nas paredes de nossa prisão. Platão propõe então que todos aqueles que, de alguma forma, conseguem realizar a experiência do exterior da caverna, tenham a obrigação de trazer essa experiência para os iludidos que desconhecem o próprio confinamento.

Interessante, aqui, a vinculação necessária entre a saída e o retorno. Não apenas como um compromisso ético de nutrir com sua experiência aqueles que ainda não a tiveram, mas também, em consonância com Freud e Lacan, em razão da impossibilidade de vivermos fora do enquadre que vivenciamos como sendo nossa experiência consciente (ou cavernosa). É possível tomarmos ciência de que vivemos na caverna, mas esse saber está vinculado ao vislumbre de que esse engodo que nos enquadra não se reduz a uma mera aparência, algo que poderíamos dispensar, atingindo, dessa forma, uma verdade oculta que estaria lá, à espera de ser desvelada. Não nos é franqueado viver, ou sobreviver, na ausência dos limites determinados pelo confinamento de nosso princípio de realidade. Ele é o responsável pela administração do necessário, sem o qual nossa existência tornar-se-ia inadministrável. Se a Ideia, com “I” maiúsculo, pode vir a se tornar uma referência (como parece propor Platão), as condições pragmáticas e os acontecimentos contingentes do aqui e agora evidenciam o traço de impossibilidade para a existência cotidiana que essa pura Ideia platônica carreia. Fazendo uma analogia das imagens que se projetam nas paredes internas da caverna platônica com o engodo da consciência, poderíamos aventar ser a consciência a moldura necessária que viabiliza a vida nas condições pragmáticas da realidade que habitamos/constituímos. Se nos voltarmos para a saída, seremos cegados pela luz fulgurante da verdade que nos determina, impossibilitandonos de negociarmos com as exigências que a existência cotidiana nos coloca. A verdade ofusca, e, para podermos discernir e trabalhar as necessidades corruptíveis do aqui e agora da realidade cavernosa, somos obrigados a torná-la ex-sistente (uma exterioridade íntima), tomando ilusoriamente por verdadeiras as imagens distorcidas que o enquadre de nossa consciência produz.

Voltando-nos para o processo de cura analítica, poderíamos propor que esta não tem como objetivo que o analisante se coloque plenamente à mercê de sua verdade inconsciente, como se fosse possível não apenas alcançar uma total liberdade com relação ao enquadre da consciência, mas sobretudo como se consciência e inconsciente fossem entidades distintas, topograficamente separáveis. No fim da análise, longe de se ver livre de seu confinamento à consciência, o analisante apenas percebe o engodo que ela é (mesmo que se trate de um engodo necessário, impossível de se desvencilhar).

Esse resultado pode parecer frustrante para os que se submetem a um tratamento analítico, já que mais do que apreender o caráter irredutivelmente ilusório de tudo aquilo que até então ele considerava como sendo fidedigno, o que o analisante de mais importante percebe é a impossibilidade de se depurar desse confinamento e de se submeter plenamente ao fugaz vislumbre de uma verdade que lhe seria inconsciente. Mas, mesmo sendo frustrante à primeira vista, trata-se, na análise, de um grande e difícil passo, com efeitos incomensuráveis na história de vida de um sujeito.

Retornando a Platão, tomar consciência de que nós habitamos a caverna, mesmo que isso não nos tire dela, de certa forma nos liberta, pois a partir de então ela vai deixar de ser o senhor absoluto, dessacralizando-se. Ela deixar-se-á apreender como a ficção que efetivamente é, e não como algo ao qual estaríamos irredutivelmente submetidos. Após o percurso de uma cura analítica exitosa, onde a realidade que se deixa apreender conscientemente passa a ser percebida como engodo, nós vamos nos viabilizar, como sujeitos, na operacionalização de um protagonismo precário, porém fundamental, de contínua subversão e reconstrução de um confinamento vivido agora como eterna questão.

Realçar aqui o termo subversão é fundamental. Ele nos alerta para não cairmos no próximo engodo, que seria um dos frequentes desvios que a teoria psicanalítica se viu incorrer: primeiro, que real e verdade seriam termos equivalentes; e, segundo, que o real teria existência própria, separada do enquadre da realidade. Se na forma com que habitualmente nos acostumamos a interpretar esse mito de Platão, a Ideia (verdade) estaria fora da caverna, condenando-nos a conviver exclusivamente com as cópias e os simulacros que dela conseguimos ver refletida nas paredes da caverna, para Badiou, o pensamento do grande filósofo grego teria ido mais longe. Discorrendo sobre as figuras de cavalo pintadas nas paredes da gruta Chauvet há 30 mil anos pelos homens primitivos que lá buscavam refúgio, Badiou propõe a seguinte interpretação:

Resulta de tudo o que foi discutido até agora, que pintar um animal sobre a parede de uma gruta é exatamente - como no mito platônico, só que ao inverso - evadir-se da gruta para tornar a subir em direção à luz da Ideia. O que Platão finge não ver: a imagem, aqui, é o contrário da sombra. Ela atesta a Ideia da invariância variada de seu signo pictórico. Ela é, de forma alguma, a descida da Ideia no sensível, mas a criação sensível da Ideia [. . .] (Badiou, 2006, p. 27, tradução nossa).

Para Badiou, o real, ou aquilo do qual a Ideia platônica seria a figuração impossível, não se encontra propriamente exterior ao enquadre da realidade, como se fosse uma outra realidade separada, portadora de existência própria. O evadir-se da caverna, ou o fato de tomar consciência da irredutível faceta de engodo da realidade, não nos franqueia um livre acesso à verdade das Ideias (ou ao real que está na sua gênese), mas se trataria da "criação sensível", portanto impossível (já que ela não pode existir, mas tão somente ex-sistir), "da Ideia". O real está incluso no próprio enquadre, como o estrangeiro que lhe é mais íntimo. Não há, nos termos de Lacan, uma separação entre real e semblante, como se fosse factível, ao eliminarmos o segundo, termos acesso ao primeiro (Zizek, 2011). O encontro impossível com o real, do qual a Ideia, como verdade, seria a figuração ex-sistente, só é passível de se processar no movimento de subversão do enquadre, momento em que se torna possível, de forma precária e evanescente, em um movimento de transformação, causado por uma intimidade "êxtima" ao próprio enquadre, da produção de algo marcado por uma singularidade.

Zizek, em livro relativamente recente, A visão em paralaxe (Zizek, 2008), fala dessa perspectiva meio deslocada, em diagonal. Com base na noção de paralaxe, na qual a modificação na posição de quem observa produz como efeito algo de um deslocamento do objeto observado, fazendo vacilar o que ficticiamente se apresenta como naturalizado, pode nos ajudar a pensar em outra forma de se articular o que tradicionalmente costumamos entender como sendo uma oposição binária entre essência e imagem. O real, na perspectiva proposta por Zizek, não se trata de algo que se possa pegar, mas sim de algo impossível de se apreender, que se atualiza no movimento, como construção que se operacionaliza na subversão do semblante que delineia, e que se apresenta, como nossa realidade mundana.

Giorgio Agamben, filósofo italiano, tematizando sobre a arte, diz que ser contemporâneo não significa estar submetido ao aqui e agora de seu tempo, mas é estar meio deslocado, meio estranho, não situável em relação à normalidade que o circunda. Segundo ele, a verdade de um tempo está não nas normas que tornam esse contexto estabilizado, mas naquilo que foi excluído para que essas normas se estabelecessem:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (Agamben, 2009, pp. 58-59).

Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo do Museu de História Natural do Estado do Rio de Janeiro, trabalhando os índios do continente americano, propõe que eles se situam no mundo de forma a-substancial, em que a distinção entre eu e outro, ou entre sujeito e objeto, não apenas se esvaece, mas se constitui e se transforma em movimento. Para que consigamos apreender essa forma de funcionamento, temos de nos descolar de nossa própria concepção de homem e daquilo que seria a Antropologia:

Trata-se de tomar o discurso dos povos que estudamos (os "nativos", sejam quem forem) como interlocutores horizontalmente situados em relação ao discurso dos "observadores" (os "antropólogos"). O que a antropologia estuda são sempre outras antropologias, as antropologias dos outros, que articulam conceitos radicalmente diversos dos nossos sobre o que é o anthropos, o “humano”, e sobre o que é o logos (o conhecimento). Descolonizar o pensamento é explodir a distinção entre sujeito e objeto de conhecimento, e aceitar que só existe entreconhecimento, conhecimento comparativo, e que a antropologia como “estudo do outro” é sempre uma tradução (e uma tradução sempre equívoca) para nosso vocabulário conceitual do estudo do outro. O maior desafio vivido hoje pela antropologia é o de aceitar isso e tirar daí todas as consequências, inclusive as consequências políticas (Castro apud Freitas, 2015).

5 IN FINI…

Trata-se, neste texto, de realçar o engodo do que chamaremos de lógica predicativa, ferramenta necessária para o estabelecimento e a estabilidade de não importa qual sociedade. As predicações, ao mesmo tempo em que nos oferecem um solo seguro e estável, garantindo a propriedade e a preservação dos interesses particulares, condenam ao esquecimento a verdade não localizável e, portanto, não interesseira, de uma dada estrutura social. Utilizando termos psicanalíticos, em um processo de cura, o desejo inconsciente se apresenta, sempre, como furo no saber consciente, subvertendo e forçando à reformulação de uma situação até então enclausurada em classificações e hierarquizações, que lá foram instituídas na tentativa de se controlar o inapreensível real que nos determina.

Os malucos de estrada, ao se despojarem das predicações que normatizam, classificam e hierarquizam nossa sociedade, tornam-se franqueados ao uso dos objetos que nos cercam de uma forma dessacralizada. Deslocando-se em relação ao instituído, a eles são permitidas novas formas de apreender e operacionalizar relações que, para nós, encontram-se cristalizadas, lançando-se em um processo de continua subversão do que se apresenta como sendo a nossa estrutura social.

Em outro filme documentário, Estamira, de Marcos Prado, premiado em diversos festivais de cinema no Brasil e no exterior nos anos de 2004 e 2005, é-nos apresentado o percurso de uma portadora de sofrimento mental, psicótica, de 63 anos, que, conseguindo manter-se à margem da rotina dos dispositivos terapêuticos institucionais, não se deixa cronificar, construindo uma temporalidade própria a partir de sua trajetória de vida como catadora de lixo, por mais de 20 anos, no Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, no Estado do Rio de Janeiro.

Garcia (2011), ao trabalhar esse filme, propõe que são exatamente esses personagens que habitam as franjas da sociedade, e que ele nomeia por “irregulares”, que são potencialmente capazes de se reapropriarem daquilo que rejeitamos como resto, refugo, sem valor. Essa reapropriação do que foi rejeitado, reinserindo-o na cena, seria o caminho para o resgate de uma universalidade perdida após as normatizações que estabelecem o que deve ou não existir. O resto, o lixo, o que foi despojado de predicações e insígnias de valor e levado à invisibilidade, é material informe, rico em sua potencialidade infinita a adquirir forma.

Se partirmos do princípio de que a noção de Contemporaneidade proposta por Giorgio Agamben faz sentido, poderíamos aventar que talvez sejam eles, pessoas como a Estamira e os malucos de estrada, exatamente por não estarem alienados na lógica predicativa de nosso tempo, com todas as consequências que tal situação enseja, aqueles que em melhores condições estariam de apreender aquilo que se apresenta como a verdade de nossa época e de nossa civilização. Em consonância com o cineasta Rafael Lage, mais importante do que denunciar as atitudes arbitrárias e segregativas de nosso aparato policial em relação a esses sujeitos situados ativamente em situação de exclusão, talvez seja trazer à luz a escolha de vida que os mobiliza. Ou seja, trazer para a cena aquilo que, com tanto empenho, esforçamo-nos em levar à invisibilidade. Esse, provavelmente, é o primeiro passo no sentido de colocarmos no divã nossa sociedade, criando as condições para que possamos repensar o que estaria na gênese das normatizações que, ao nos classificar e hierarquizar carreia, como consequência direta, o apagamento do sujeito e sua verdade.

Mas, para que uma subversão predicativa de nossa sociedade realmente ocorra, ou seja, para que ela se coloque no divã, não basta filmar e apresentar uma nova "tribo", até então condenada à invisibilidade. Não basta tomarmos consciência, racionalmente, de sua existência, da mesma forma como em nada resolve, segundo Freud, comunicar racionalmente ao paciente possíveis motivos inconscientes de seus sintomas. É necessário que haja uma incorporação ativa disso que estava excluído, tornando-nos partícipes da composição desse novo corpo subjetivo: "É necessário tornar-se um elemento ativo desse corpo" (Badiou, 2006, p. 530). A organização lógica, compartilhada por todos, que condena essas pessoas à inexistência, deve entrar em disfuncionamento, tornando-as não somente visíveis, mas, a partir de então, impossíveis de não serem levadas em consideração. Em uma transmutação de lugares, elas vão se tornar discerníveis uma a uma, porém sem se deixarem apreender como um corpo bem delineável. Ou seja, sem se deixarem cernir, como conjunto, como uma daquelas partes que, amparados por um saber predeterminado, autorizava-nos a classificá-las e a estabelecer sua exclusão com base nas predicações que lhes imputávamos.

Retornando à cura analítica, de forma similar a um cidadão qualquer estavelmente incluído no meio social, poderíamos propor que um paciente em análise, se quiser entrar na trilha de sua verdade, deve realizar que esta somente pode ser pensada, em qualquer das partes objetivamente dadas, se estiver, de alguma forma, incorporada ou em consonância com o processo criativo de constituição daquele corpo subjetivo, até então "êxtimo", estranho, e com o qual ele, a partir desse momento, não mais será capaz de destacar-se ou de se conceber como não estando concernido.

"Espontâneos e instintivos lá estão os irregulares na periferia das grandes cidades, nos arrebaldes do planeta, frequentemente ligados à tradição oral, à música hip-hop ou rap, à dança" (Garcia, 2011, p. 14, grifo no original). Sua lógica é a da não predicação, o que possibilita que não sejam afetados pela régua de valores que nos determina socialmente, fazendo uso dos objetos de uma forma dessacralizada. Como diz Garcia: "Os irregulares, aqueles que são supostamente excluídos, ao mesmo tempo em que nos dizem como continuar" (Garcia, 2011, p. 14).

REFERÊNCIAS

Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos.         [ Links ]

Badiou, A. (2006). Logiques des mondes. Paris: Seuil.         [ Links ]

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Texto recebido em 9 de janeiro de 2016 e aprovado para publicação em 26 de setembro de 2016.

 

 

* Professor associado do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Endereço: Rua Serranos, 105, ap. 401 - bairro Serra, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 30220-250.E-mail: oswaldofranca@yahoo.com.Telefones: (31) 3324-0174 e (31) 98826-0174.

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