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Psicologia em Revista

versión impresa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.1 Belo Horizonte ene./apr. 2019

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p278-291 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p278-291

 

O sentimento de culpa em Freud: entre a angústia e o desejo

 

The feeling of guilt in Freud: between anguish and desire

 

El sentimiento de culpa en Freud: entre la angustia y el deseo

 

 

Davidson Sepini Gonçalves*

 

 


Resumo

O sentimento de culpa foi tratado com grande propriedade por Freud. Destacado como o grande problema do desenvolvimento da civilização e como atributo do inconsciente que se articula com a angústia, a culpa parece estar verdadeiramente presente na estrutura do desejo humano. Ela se manifesta de múltiplas formas, que vão do remorso (o próprio Freud menciona o remorso que sentiu pela morte do irmão) à neurose, tornandose um problema de difícil solução. Este artigo pretende pensar a culpa em Freud a partir do complexo de Édipo, visto aqui como fonte desse sentimento e posteriormente na formação do supereu, momento em que se aproximam culpa e angústia. Sem a pretensão de esgotar o assunto, espera contribuir para o entendimento desse importante sentimento que frequentemente aflora na clínica psicanalítica.

Palavras-chave: Freud. Culpa. Complexo de Édipo. Angústia. Desejo.


Abstract

The sense of guilt feeling was greatly treated by Freud. Highlighted as the major problem of the development of civilization and as an attribute of the unconscious that is linked to anguish, guilt seems to be truly present in the structure of human wish. It is revealed in many ways, ranging from remorse (Freud mentions the remorse that he felt about his brother’s death) to neurosis, becoming a difficult problem to be solved. This article aims to understand the guilt in Freud’s work from the Oedipus complex, overseen here as a source of this feeling and later on present in the development of superego, a moment in which guilt and anguish come closer to each other. Nevertheless, without claiming to deplete the subject, it hopes to contribute to the understanding of this important feeling that often emerges at the psychoanalytic clinic.

Keywords: Freud. Guilt. Oedipus complex. Anguish. Wish.


Resumen

La culpa fue tratada con gran propiedad por Freud. Destacada como el principal problema del desarrollo de la civilización y como atributo del inconsciente que se vincula a la ansiedad, la culpa parece estar realmente presente en la estructura del deseo humano. Se manifiesta de muchas maneras, que van desde el remordimiento (el mismo Freud menciona el remordimiento que sentía por la muerte de su hermano) a la neurosis, volviéndose un problema de difícil solución. Este artículo pretende pensar la culpa en Freud a partir del complejo de Edipo, visto como una fuente de este sentimiento y más tarde en la formación del superyó, momento en que la culpa y la angustia se acercan. Sin pretender agotar el tema, se espera contribuir a la comprensión de este importante sentimiento que a menudo surge en la clínica psicoanalítica.

Palabras clave: Freud. Culpabilidad. Complejo de Edipo. Angustia. Deseo.

1 UMA INTRODUÇÃO À CULPA

Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é, realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a sentir culpa, porque o sentimento de culpa é expressão tanto do conflito devido à ambivalência quanto da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou de morte (Freud, 1930/2010, p. 135)1 .

Há sempre uma dívida a pagar. Endividado, o ser humano não se vê livre, ao contrário, submete-se ao trabalho árduo para conseguir livrar-se da dívida. Mas outras dívidas fazem-se necessárias durante esse processo, e a liberdade parece cada vez mais distante.

Poderíamos falar então em culpa crônica? Uma "terceira perna" que não necessitamos, mas da qual, uma vez adquirida, não conseguimos mais nos livrar?2

Algumas pistas podem nos ajudar nessa questão. Em primeiro lugar, sabe-se que o ser humano é o único animal que sente culpa. E não porque cometeu um delito ou até mesmo um crime. Ele parece trazer em si uma culpa que não remete a nenhum ato, mas à própria existência. Como se não pudesse ser realmente o que é (Carvalho, 1997, p. 44). Trata-se, portanto, de uma culpa real, desestruturadora da personalidade e provocadora de desamparo, afinal é a constatação da imperfeição e, ao mesmo tempo, a reprovação dessa imperfeição. No que diz respeito à imperfeição, o ser humano é condenado duplamente: a ser imperfeito e por ser imperfeito.

Na culpa, sentimos que não podemos ser nós mesmos. Não encontramos lugar, experimentamos algo como rejeição ou iminência de morte, uma sensação de falta de naturalidade, uma atitude contraída para com as demais pessoas ou mesmo para o ambiente que nos cerca. Sentimo-nos como estranhos, como se algo se interpusesse entre a natureza e nós – como se dela tivéssemos sido alijados ou abortados. O mundo não nos aninha. É algo como uma vergonha não localizada, gratuita, que nos deixa desconfortáveis. Temos ânsia de fazer algo para remediar, mas não sabemos o quê (Carvalho, 1997, p. 46).

Assim, tudo em nós e tudo o que é nosso parece indigno ou ineficiente. A culpa pede que busquemos algo de fora, que não existe, mas que é a única coisa que pode nos salvar. O que Freud chamou de tensão entre o eu e o eu ideal, e o que ele considerava um sentimento de culpa normal por ser uma condenação do ego pela sua instância crítica.

Esse desespero leva à "desmedida", tão abominada pelos gregos da Antiguidade clássica, tão utilizada pelos modernos. Nesse sentido, o mito de Narciso é revelador. Ao fugir da própria medida, atrai a desgraça para si e justamente pela beleza, tão desejada e tão apreciada por todos. Condenado a amar um amor impossível, Narciso se inclina para matar a sede e é absorvido pela fonte que revela sua imagem desmedidamente bela.

Narciso esclarece que o desejo de ser o que não se pode ser vem acompanhado de uma estranha certeza: a de ser melhor do que todos os demais. Essa sensação faz com que seja esquecido sentimento de indignidade. Aparentemente uma solução, tal expediente parece trazer o prenúncio da morte.

A culpa, portanto, apresenta-se assim. E pode surgir pelo sentimento de indignidade, passando pelo de poder e tendo como consequência a morte, ou pela sensação de poder que, em seu íntimo, traz o incômodo da indignidade, levando também à morte. Morte aqui percebida como destino, como consequência inevitável de ser o que se é; como um desequilíbrio psíquico, como vivência da infelicidade. Assim, a infelicidade é fruto da sensação de indignidade que nada mais é do que a culpa de ser o que se é.

Vale ressaltar que diante da menor possibilidade de eliminação da culpa de ser o que se é, inicia-se um processo que Freud chamou de "reação terapêutica negativa" que consiste na substituição da culpa pela doença.

Há certas pessoas que se comportam de maneira muito peculiar durante o trabalho de análise. Quando se lhes fala esperançosamente ou se expressa satisfação pelo progresso do tratamento, elas mostram sinais de descontentamento e seu estado invariavelmente se torna pior [. . .]. Toda solução parcial, que deveria resultar, e noutras pessoas realmente resulta, numa melhoria ou suspensão temporária de sintomas, produz nelas, por algum tempo, uma exacerbação de suas moléstias; ficam piores durante o tratamento, ao invés de ficarem melhores. Exibem o que é conhecido como "reação terapêutica negativa". [. . .] Ao final, percebemos que estamos tratando com o que pode ser chamado de fator "moral", um sentimento de culpa, que está encontrando sua satisfação na doença e se recusa a abandonar a punição do sofrimento (Freud, 1923/1996, p. 62).

Estar curado pode significar ter de assumir a culpa de ser o que se é, o que seria o mesmo que se admitir indigno e, consequentemente, infeliz.

Mas afinal, qual a origem do sentimento de culpa?

Até aqui, neste artigo, abordou-se a culpa com algo inerente ao ser humano. Um sentimento que existe e que causa grandes danos à psique humana. Mas essa constatação nos leva a buscar o momento em que esse sentimento se estabelece na mente e começa a agir como causador de infelicidade.

Para Freud, o sentimento de culpa está relacionado ao ato de fazer algo que se reconhece como "mal" e ele mesmo reconhece o quão pouco essa resposta revela verdadeiramente sua origem. Sim, porque a questão que se coloca de imediato é: o que é o mal e como o reconhecer? E, para complicar mais, sabe-se que não é o fato de ser mal que faz algo ser indesejado. O mal pode até ser prazeroso e sabe-se da possibilidade da existência de uma influência da perda do amor e da proteção na elaboração do que é bem ou mal. A perda do amor e da proteção é um mal e, por isso, deve ser evitada. Seria, portanto, para Freud o início da consciência de culpa cuja consequência seria a ação do supereu sobre o eu, atormentando-o e punindo-o.

Tal raciocínio remete ao complexo de Édipo que, segundo Freud, assim como a culpa, deveria permanecer inconsciente. Ora, a vinculação entre o sentimento de culpa e o complexo de Édipo se dá justamente na passagem da culpa inconsciente para a atitude consciente que realiza essa culpa. Assim, a culpa existe antes da atitude que torna o sujeito culpado e influencia em sua realização.

A culpa, portanto, é da ordem do supereu que se manifesta como crítica e que é percebido no eu que, por sua vez, é chamado a dar uma resposta. A necessidade do eu em apresentar uma resposta ao supereu é o sentimento de culpa. E por nascer da necessidade de uma resposta, a culpa se apresenta como autodestrutiva do sujeito que, no esforço do eu para ser moral e responder corretamente ao supereu, realiza sua pulsão de morte. Assim, a culpa é condição de estrutura do sujeito.

Freud distingue três tipos de culpa: a culpa consciente ou sentimento de culpa consciente, que o sujeito traz para negá-la ou afirmá-la; a culpa inconsciente, que está relacionada ao complexo de Édipo e por isso é recalcada; o sentimento inconsciente de culpa, identificada como silenciosa diante do parricídio e como responsável pela reação terapêutica negativa. Assim, cada uma delas provoca efeitos diferentes no sujeito. (Freud, 1923). Há de se pensar num entrelaçamento dos tipos, sendo que a cada uma das culpas pode surgir de outra e levar a outra simultaneamente.

Nas palavras de Barbieri (2001, p. 27):

A culpa inconsciente, ex-sistente ao campo do imaginário, tem seu fundo no real da pulsão, mas circula nas tramas simbólicas do discurso tendo como sujeito o do inconsciente e o Ideal como perspectiva, enquanto que o sentimento de culpa, ex-sistente ao campo do real, circula no discurso manifesto produzindo efeitos de resposta ao eu ideal que permitem uma mediação dos conflitos entre desejo e gozo.

Isso significa dizer que a culpa tem suas estratégias de acordo com a necessidade do sujeito de desculpabilizar-se. Como inocente ou como vítima, o sujeito, seja ele obsessivo, melancólico ou perverso, revela sua estratégia de minimização da culpa. O obsessivo, condenando-se pela intenção de pecar; o melancólico, por fazer recair sobre si a punição devida ao outro; e o perverso, por isentar-se de toda culpa. Não há cura para a culpa. A culpa é da estrutura do sujeito, esta que ainda é formada, além da culpa, pela angústia e pela morte. Assim, a dor da culpa é a dor de existir (Barbieri, 2001).

Não parece ser por acaso que o termo schuld, empregado por Freud, remetenos aos conceitos de culpa e dívida (Estrada, 2001). A culpa não desaparece porque é dívida que não se paga. A cura e o pagamento da dívida configuram-se como fantasia que jamais pode se tornar realidade. Assim, a culpa é impotente no que diz respeito à sua resolução. Não basta torná-la consciente. Nem mesmo resolveria absolver o sujeito de sua culpa. A culpa permanece no silêncio de quem a cultiva ou ressurge a cada novo deslize.

Esse movimento que poderia ser sintetizado num movimento de posse e falta, tendo como referência a função fálica é um movimento dialético (Corrêa, 2001). Na função fálica, a posse é referência da falta que por sua vez é referência da culpa pela perda, seja ela uma perda relacionada à demanda ou mesmo à possibilidade permanente de quem tem.

2 COMPLEXO DE ÉDIPO E CULPA

O superego é o herdeiro do complexo de Édipo (Freud, 1923, p. 61).

Qualquer coisa que se diga sobre Édipo parece esconder seu grande despropósito: um forte desejo sexual de uma criança pelos seus pais; ou seja, esconde um paradoxo entre inocência infantil e desejo sexual adulto. Assim, para entender o complexo de Édipo, é preciso entender que uma criança, em sua inocência, alimenta desejos típicos de adultos e, ainda por cima, direciona-os a seus pais (Nasio, 2007, p. 10).

Mas o paradoxo não se encerra aí. O mesmo desejo que proporciona fantasias extremamente prazerosas alimenta o medo e a angústia, e possibilita o desenvolvimento do sentimento de culpa. Uma vez que Édipo é um imperativo de canalização de desejo para que se possa viver em sociedade, carrega a culpa de proporcionar um desejo proibido e, ao mesmo tempo, de não poder realizar tal desejo.

A culpa edipiana se manifesta na idade adulta como sofrimento, fruto da ação das fantasias infantis revividas. Assim, a culpa que se inicia na idade edipiana se revela mais forte na idade adulta como uma neurose que traduz as mesmas angústias e se manifesta num sentimento silencioso em que o sujeito não se sente culpado, mas doente. Talvez por isso grande parte do sentimento de culpa permanece no inconsciente, pois o complexo de Édipo pertence ao inconsciente, e a origem da consciência está ligada ao inconsciente. Trazer esse sentimento ao nível consciente pode significar um mal ainda maior, um alívio pela perda do controle, uma desgraça.

O complexo de Édipo traz a culpa porque é o início de uma moralidade que se ressignifica na vida adulta, na figura das autoridades e na cada vez maior consciência da morte. Ressignificada porque é dessexualizada na infância e sexualizada novamente na fase adulta, por meio da moral. Nesse sentido, a culpa parece ocupar um lugar fundamental: evitar a autodestruição (masoquismo) e a destruição do outro (sadismo).

O texto de Freud é esclarecedor:

O sadismo do superego e o masoquismo do ego suplementam-se mutuamente e se unem para produzir os mesmos efeitos. Só assim, penso eu, podemos compreender como a supressão de um instinto pode, com frequência ou muito geralmente, resultar em um sentimento de culpa, e como a consciência de uma pessoa se torna mais severa e mais sensível, quanto mais se abstém da agressão contra os outros. (Freud, 1923, p. 187).

No entanto, o complexo de Édipo não coloca em pauta só o crime de incesto, mas também o parricídio. Assim, o mito revela o remorso como uma forma de amor tardio repleto de sentimento de culpa. Essa culpa permanece porque se desdobra, uma vez que não há uma conclusão do processo edipiano.

Édipo forma-se estabelecendo relações afetivas com a mãe, objeto de desejo, e com o pai, objeto de amor pela identificação. Mas a presença do pai incomoda e atrapalha a realização do desejo, o que resulta na hostilidade do filho em relação ao pai. Não é de se estranhar que o resultado desses sentimentos antagônicos (amor, ternura e vontade de eliminar o pai para substituí-lo) resultem num sentimento de culpa.

3 CULPA, ANGÚSTIA E DESEJO

"O afeto em torno do qual o Édipo masculino se organiza, culmina e chega ao desenlace é a angústia" (Nasio, 1999, p. 64).

Se, no menino, a angústia se dá pelo medo da castração do pênis, cuja fantasia é o falo; na menina, a angústia se dá pelo medo da castração do amor do pai, também fantasiado pelo falo. Nos dois casos, o que está em jogo é a inevitável escolha.

A aproximação entre culpa e angústia, tendo como motivação o desejo, parece estabelecer-se definitivamente por ocasião da internalização do complexo de Édipo e a formação do supereu. A partir daí, o sujeito passa a viver um sentimento permanente de culpa, como uma angústia ou infelicidade que independe de seu comportamento. Isso quer dizer que o sentimento de culpa não desaparece com a submissão ao supereu. Ao contrário, pode até se tornar mais acentuado. A autocensura pode evidenciar-se nos indivíduos cujo comportamento obedece às ordens do supereu.

Envolvida nessa tríade, culpa, angústia e desejo, está uma realidade fundamental: a morte. Diante da morte procuram-se culpados, e procurar culpados é uma tentativa desesperada de suportar o sofrimento. Sofrimento causado pela presença constante e insuportável de uma ausência. Nesse contexto, sempre há espaço para a culpa. Afinal, é exatamente essa dor insuportável que mantém vivo o ausente. Assim, a culpa aumenta conforme o sofrimento diminui. Culpa pela perda e culpa pelo esquecimento. Nesse sentido, a culpa dificulta o trabalho do luto, numa tentativa do sujeito de se proteger da angústia. Mais uma vez, pode-se observar a supremacia da culpa diante de outros sentimentos. Sempre a culpa é preferível, seja ao prazer ou ao sofrimento. A culpa parece levar o sujeito a seu estado inicial, natural, de onde nunca deveria ter saído.

A relação entre culpa e angústia, portanto, sinaliza para uma interdependência em que a angústia se mostra ora como "pura falta de representação", ora assumindo um valor de "representação como sinal de perigo" (Rinaldi, 2001, p. 196). Essa classificação pode ajudar a entender melhor o sentimento de culpa ligado à angústia. Pode-se pensar então no desamparo radical e traumático do nascimento como primeiro lugar de angústia, pelo medo da perda. Esse parece ser também o lugar inicial do sentimento de culpa, que se apresenta como alternativa para a angústia, como uma válvula de escape. Posteriormente, a cultura fortalece o sentimento de culpa como alternativa à felicidade, como alternativa ao princípio do prazer. Mas esse também é o lugar do desejo, uma vez que a ameaça de perda sugere o encontro de um outro. Mas a relação com o outro, longe de proporcionar satisfação, coloca o sujeito diante de si mesmo e de suas angústias. O outro é sempre enigmático e paradoxal. Assim, o desejo (como característica fundamental do sujeito) traz em si um mal-estar da sua insatisfação diante da cultura e, consequentemente, da condição humana.

Para Rinaldi (2001),

Podemos articular o excesso pulsional que Freud identifica na angústia primitiva ligada ao desamparo, derivada do trauma originário, a este enigma – a Coisa freudiana, causa de desejo, presente também na angústia de morte entre eu e o supereu, onde surge o sentimento de culpa na sua forma mais elevada. Pode–se dizer que a angústia de morte não é outra coisa senão angústia de castração, esse fator desconhecido que jaz por trás do sentimento de culpa. [. . .] Se é possível falar em herança filogenética da culpa, como quer Freud, é no sentido de que o homem está marcado desde o seu nascimento por esta falta, que o introduz na ordem simbólica, falta esta vivida como perda e dívida, tanto no sentimento de culpa quanto na angústia, mas que fundamentalmente diz respeito ao desejo (p. 198).

Trata-se, portanto, de uma aproximação (culpa, angústia e desejo) marcada pela falta de um correspondente na realidade que não seja a psíquica. A culpa não depende de uma atitude má e é exatamente por isso que se torna impossível ficar livre dela. A angústia, por sua vez, é apaziguada pela culpa, constituindo-se como sua variedade topográfica, nos dizeres de Freud. Quanto mais a culpa se desvincula de qualquer atributo, mais se aproxima da angústia e se estabelece na relação de desejo com o outro. Uma tensão se instala: "Eros" e "Thanatos" como presença edificante da vida humana em sociedade.

Nesse sentido, parece não caber à psicanálise o papel de eliminar o sentimento de culpa. O próprio Lacan declara ser um erro renunciar à culpa, uma vez que ela é a principal proteção contra a angústia. Complementa ainda que, embora muita gente acredite nisso, a humanidade não será liberada da culpa (Caruso, 1969). Pode-se concluir, portanto, que a humanidade também não será liberada da angústia e nem do desejo. Ora, o desejo se manifesta em vários níveis, cujos objetos são sinalizadores da angústia que se transforma em sentimento de culpa. O desejo gera angústia porque vislumbra a prática do mal e a perda do amor. O desamparo é protegido então pelo sentimento de culpa. Ao considerar-se o desejo como fruto de uma demanda enganosa (Peres, 2001), como demanda de outra coisa, o sujeito desejante se caracteriza permanentemente como tal, ou seja, diante do fracasso de uma satisfação completa, o sujeito permanece desejante. Aqui a culpa vem em mão dupla: minha culpa e culpa do outro, objeto que não me satisfaz. O outro não me satisfaz, mas temo perdê-lo e me angustio com isso. Esse é o sinal de perigo. É o momento de a culpa entrar em ação.

4 O MAL-ESTAR DA CIVILIZAÇÃO

"O sentimento de culpa é, claramente, apenas um medo da perda de amor, uma ansiedade social" (Freud, 1930, p. 128).

Ao sustentar que o avanço da civilização cobra o preço da perda da felicidade, Freud elege como responsável o sentimento de culpa. Originada da autoridade externa ou como medo do supereu, ela está ligada à ideia de mal, como já visto neste artigo anteriormente. Ideia de entendimento não muito simples, uma vez que a natureza do mal está relacionada a outros sentimentos, como o desamparo, a dependência e, principalmente, o medo.

Esclarece Garcia (2001):

Se o amor é perdido, deixa-se de estar protegido dos perigos. Portanto, o que é mal é o que leva à perda do amor e faz com que o sujeito se sinta ameaçado. O sentimento de culpa existe então, diz Freud, antes do supereu e da consciência, e é a expressão do medo da autoridade externa. É o derivado do conflito entre a necessidade de amor da autoridade e o impulso para a satisfação pulsional (p. 106).

O sentimento de culpa é, portanto, o mal-estar da cultura, o preço que pagamos por vivermos em sociedade, reprimindo a sexualidade e a agressividade. Sob essa ótica, o mal-estar é estrutural, próprio dos processos de organização do psiquismo do homem, do fato de ele existir, de ser, pois ele só pode ser e existir como homem dentro da civilização.

Há uma contradição entre as exigências humanas ligadas ao princípio do prazer, sejam elas da ordem da satisfação sexual e da agressividade, e as restrições impostas pela civilização para que o convívio entre as pessoas seja, pelo menos, razoável. Dessa contradição emerge a culpa e, num ser culpado, o projeto de ser feliz está comprometido.

Para Freud, a civilização é responsável pelo domínio dos perigosos desejos de agressão e exigência erótica do indivíduo, enfraquecendo-os e instituindo no seu lugar um agente para cuidar dele, como um guardião.

Os seres humanos se unem levados pelo que Freud chamou de impulso erótico interno, ao qual a civilização obedece e que, por sua vez, fortalece o sentimento de culpa. Esse sentimento que começa em relação ao pai tende a estender-se ao grupo, como condição de desenvolvimento e tendo como resultado um sentimento cada vez mais forte que segue rumo ao insuportável.

Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado a ela, só pode alcançar seu objetivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa. O que começou em relação ao pai termina em relação ao grupo. Se a civilização constitui o caminho necessário ao desenvolvimento da família à humanidade como um todo, então em resultado do conflito inato surgido da ambivalência da eterna luta entre as tendências de amor e de morte, achase a ele inextricavelmente ligado a um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo considere difícil de tolerar (Marcuse, 1968, p. 183).

Conclui-se, portanto, que o preço do desenvolvimento da civilização é alto. É o preço da perda da felicidade. Não que isso seja perceptível, o que parece complicar ainda mais a vida em sociedade, uma vez que se instala um malestar não identificado, mas sentido intensamente durante toda a vida a cada satisfação instintiva frustrada. Não raro o indivíduo volta contra si toda a sua energia destrutiva, tornando-se um masoquista, ou dirige essa mesma energia contra aqueles a quem ama, tornando-se um sádico. Uma grande necessidade de punição se desenvolve nesse momento e se estende durante a existência.

Assim, no conflito cultural entre o ser humano com suas pulsões e a civilização, a civilização encontrou mecanismos para inibir a agressividade e a sexualidade humanas. Existe um mecanismo extremamente eficiente e inusitado: a agressividade e a sexualidade são direcionadas para o interior do sujeito, instituindo o supereu que atua sob a forma de consciência, como um vigilante censor disposto a orientar a agressividade e a sexualidade na forma de punição sobre o eu. A tensão que se estabelece entre o eu e supereu é o sentimento de culpa e demanda a necessidade de punição.

Mas sabemos que o que está em jogo aqui é a possibilidade de felicidade numa civilização que tem como elemento principal o sentimento de culpa, o que torna algo insuportável essa inerente busca do ser humano pela felicidade. Quanto mais se busca a felicidade, maior a culpa por não a encontrar. Talvez por isso, o título original que Freud pretendeu dar ao texto O mal-estar da civilização era A infelicidade na cultura (Das Ungluck in der Kultur), o que parece mais revelador e instigante do que aquele oficializado posteriormente (MacMahom, 2006). Revelador porque remete diretamente ao processo cultural que instaurou com a civilização: uma busca desenfreada pela felicidade que causa um intenso mal-estar.

Ao perceber que a felicidade é impossível de ser alcançada, o sujeito sente-se culpado pela dor que sente. Detecta o ataque da infelicidade na dor física, nas forças externar e nos relacionamentos e passa a combatê-lo freneticamente, porém sem êxito.

O que fazer então diante do imperativo do gozo que a Contemporaneidade apresenta? Sabe-se que não é possível, mas não se abre mão de continuar tentando.

O alerta de Coelho (2001) é contundente:

O anônimo mercado capitalista ameaça e busca aniquilar o sujeito, dando origem à era dos objetos e do consumo. O desemprego, a fome, a destruição ambiental e as desigualdades econômico-sociais aumentam, refletindo atos políticos perversos. A falta de perspectivas e a perda de referenciais contribuem para o sentimento de vazio, ruína e baixa estima [. . .] são expressões desse novo mal-estar (p. 43).

Assim, o mal-estar permanece mesmo diante das tentativas de destruí-lo. O sujeito é seu próprio carrasco. Busca incessantemente os objetos dentre os quais o próprio remédio para o mal-estar.

É importante entender que esse mal-estar está relacionado ao fato de o sujeito desejante buscar no objeto aquilo que não é próprio dele, mas de si mesmo. Mais uma vez, a questão da topografia. O único acesso que se tem é à falta, ao lugar onde não está o que se busca, embora houvesse uma promessa de encontro. Os significantes que alimentam o desejo estão muito além do objeto encontrado e realizado. Nessa dinâmica, a culpa se estabelece definitivamente.

5 CONCLUSÃO

"Eu sou o que deve ser superior a si mesmo" (Nietzsche, 2004, p. 96-97).

À guisa de conclusão, vale a pena retomar a questão: a culpa pode ser superada? Quem é o verdadeiro credor? Pais, professores, Deus? Se o primeiro passo é entender a essência do sentimento de culpa, uma boa opção talvez seja buscar entender a necessidade de realização da existência humana (Medard, 1988, p. 37).

Ora, o ser humano se apresenta definitivamente como aquele que é e deve ser. Essa realidade traz uma sensação de dívida permanente, uma carência, uma falta. Assim, o sentimento de culpa surge desse "estar devendo sempre algo a alguém", mesmo que não se saiba o que e nem a quem. Seria essa a missão humana. Pagar uma dívida imaginária a alguém desconhecido?

Vivemos um paradoxo: por um lado, sabemos que o ser humano é essencialmente culpado e, assim, permanece até a morte, pois seu destino não se realiza antes do futuro de sua existência. Mas esse será o tempo de sua morte. Por outro lado, temos mecanismos para nos esquivarmos da eterna esperança de sermos o que não somos. Liberdade? Talvez, ou melhor, liberdade de assumir-se culpado diante do mundo com o objetivo de superar a carga e a opressão que isso representa. Eliminar as reservas, mostrar-se como fenômeno humano e abrir-se ao verdadeiro sentido da existência. Quando isso ocorre, a culpa supera-se a si mesma, renunciando a seu processo de desintegração do sujeito. Assumindo a culpa, não faz mais sentido sentir-se atormentado por ela.

É como se a representação inconsciente que culpabiliza o sujeito por suas práticas viesse à tona e deixasse de fazer sentido.

Longe de tentar eliminar a culpa, o que se coloca é a possibilidade de um convívio pacífico com ela, onipresente e destacada como sendo o maior problema de nossa civilização, enigmática em sua essência, originária do desamparo, a culpa denuncia o mal-estar do sujeito que vive a angústia de ser o que se é onde essa seria a maior proibição.

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 10 de março de 2016 e aprovado para publicação em 8 de julho de 2016.

 

 

* Doutorando em Educação pela Unesp Rio Claro, mestre em Filosofia pela PUC Campinas, psicólogo e filósofo pela PUC Minas e professor de Psicanálise, Filosofia e Cultura Religiosa, professor na PUC Minas, Campus Poços de Caldas-MG, Brasil. Endereço: Avenida Padre Francis Cletus Cox, 1661 – Jd. Country Club, Poços de Caldas–MG, Brasil. CEP: 37701-355. Telefone: (35) 98426-2499.E-mail: profsepinipuc@gmail.com..
1 A primeira data indica o ano de publicação original da obra e a segunda data indica a edição consultada pelo autor; que só será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data de publicação original.
2 No romance A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector (1977), a autora faz uma reflexão sobre a aquisição de uma terceira perna que impede o movimento, mas que estabiliza: "Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar…"

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