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Revista da SPAGESP
versión impresa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP v.6 n.1 Ribeirão Preto jun. 2005
ARTIGOS
Reflexões psicanalíticas-construtivistas sobre uma experiência teórico-prática, clínico-escolar, com crianças-adolescentes, psicóticos-autistas
Psychoanalytical-construtivist reflexions about a theorethical-practical and clinical-pedagogical experience with autistic and psychotic Children and adolescents
Reflexiones psicoanaliticas-constructivistas sobre una experiencia teorico-practica, clinico-escolar, con ninos-adolescentes, psicoticos-autistas
Marly Terra Verdi 1
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
O presente trabalho é um relato de experiência institucional, que descreve as atividades clínicas e pedagógicas conduzidas em uma instituição pública municipal que atende a 40 crianças e adolescentes autistas e psicóticos. Analisa, a partir dos pressupostos teóricos da Psicanálise e do Construtivismo, a construção desse trabalho, relatando a organização das atividades, a interação destas crianças e adolescentes com as propostas institucionais. Descreve o funcionamento da equipe multidisciplinar e os vários âmbitos de atuação desta equipe. Traz ainda exemplos práticos ocorridos no cotidiano dessa instituição.
Palavras-chave: Psicanálise; Construtivismo; Autismo; Psicose; Instituição pública.
ABSTRACT
The present paper shows a institutional experience, describing the clinical and pedagogical activities conducted in a public institution that takes care of 40 autistic and psychotic children and adolescents. This study analyses with the theoretical foundations of Psychoanalysis and Constructivism, the construction of this work, describing the organization of the activities, the interactions of the children and adolescents with the institutional propositions. Furthermore, it describes the functioning of the multiprofissional team and their multiple fields of actuation, and also is brings practical examples of the daily work in the Institution.
Keywords: Psychoanalysis; Constructivism; Autism; Psychosis; Public institution.
RESUMEN
El presente articulo es el relato de una experiencia institucional, que describe las actividades clinicas y pedagogicas en una institución publica de la municipalidad que atiende 40 niños y adolescentes autistas y psicoticos. Analisamos, desde los marcos teoricos del Psicoanalisis y del Construtivismo, la construción de ese trabajo, describiendo la organización de las actividades, la interación de eses ninos y adolecentes con las propostas institucionales. El articulo describe el funcionamiento del equipo multidisciplinar y los varios ambitos de la atuación de ese equipo. Trae aun ejemplos practicos acaecidos en el cotidiano de esa institución.
Palabras clave: Psicoanalisis; Constructivismo; Autismo; Psicosis; Institución publica.
Uma interessante reflexão se faz a partir deste título, estas polaridades, oscilações ou vértices que permeiam esse trabalho institucional.
A instituição pública “Escola Municipal Maria Lúcia de Oliveira”, de São José do Rio Preto, SP, é pautada por estas duplicidades que norteiam, todo o tempo, as práticas ali propostas.
Como definições teóricas adotamos a Psicanálise e o Construtivismo, tentando a partir destas compreender a complexidade da vivência autista ou psicótica, e ao mesmo tempo, a evolução emocional e do pensamento, buscando embasar as formas das propostas pedagógicas ou clínicas.
Através dessas duas visões teóricas buscamos a compreensão dos quadros, bastante graves, de psicose e autismo que atendemos, apreendendo a partir dessas teorias os fenômenos complexos e de transformação e evolução difíceis, mas possíveis para estes quadros.
Estes “duplos”, descritos já no título, nos auxiliam a criar um conjunto de vértices e relações que num estranho caleidoscópio, tenta dar sentido a experiências distantes ou estranhas (FREUD, 1919), com as quais nos defrontamos no cotidiano de nosso trabalho.
Buscar em cada criança ou adolescente o ser, para além de seu diagnóstico, para além de seu fechamento autístico ou para além do estranho mundo de suas psicoses, e lá, além, buscar encontrar aquele que às vezes tão distante, mal podemos vislumbrar. Acreditar, antes de se deparar com os primeiros sinais, que ali existe o ser, com suas particularidades, intuir, ter fé (BION, 1975) e seguir nesta busca é o que nos propomos.
Nesta tarefa todos os duplos sentidos, estranhos processos, são analisados e buscados compreender, numa lógica psicanalítica, na outra lógica, aquela do inconsciente.
A INSTITUIÇÃO
Esta é uma clínica-escola que atende a 40 crianças e adolescentes de idades que variam de 3 a 34 anos, todos eles com graves comprometimentos que impedem sua inserção nas escolas comuns.
Temos como proposta buscar, a partir da evolução possível em cada caso, sua reinserção nas escolas da comunidade, quando isso parece o indicado para aquela criança ou adolescente. Nestas situações prestamos assessoria à escola que recebe esta criança, auxiliando o professor, diretor e mesmo os pais, na aceitação e melhor manejo com as diferenças, pois lidar com um psiquismo ainda frágil exigirá isto.
Temos dois períodos diários de atendimento, de quatro horas cada. O período da manhã recebe as crianças até 14 anos e o da tarde, a partir desta idade.
Cada grupo de até cinco crianças, dividido por características de desenvolvimento, interesses, socialização, etc., tem um professor de referência, e realizam as atividades em salas-ambiente, nas quais rodiziam - Sala de Jogos, Criatividade, Escrita e Artesanato. Além dessas atividades diárias, vários Ateliês foram sendo criados ao longo dos anos: Ateliê de Música, Artes Plásticas, História ou Assembléia, Teatro e Computação.
Por exemplo: o Ateliê de História, que desenvolvi durante quatro anos, e hoje prossegue sob a coordenação de uma fonoaudióloga e de professores, busca incluir as histórias da vida de cada criança na dinâmica da história de fadas que está sendo relatada. Lembro-me que, em certo momento, ao ler um livro de história, disse: “Então, o papai e a mamãe eram muito pobres e não podiam alimentar seus filhos, aí resolveram deixá-los na floresta.”. Um menino, autista de sete anos, adotivo, levanta e corre da roda de história. Eu me dirijo a ele: “Seus pais não deixaram você na floresta, como não podiam cuidar de você, arranjaram outro papai e outra mamãe que cuidaram.”. Ele se interessou em ouvir (contrariando o que acontece em geral com as crianças autistas), e se acalmando, voltou a se aproximar da atividade.
Em outra ocasião, quando um menino de nove anos estava vivendo sérias situações de brigas familiares, nas quais o pai era sentido pela família como violento, no momento em que falo do “gigante muito bravo”, ele sai da roda, bastante assustado. Dirijo-me a ele para acalmá-lo: “É só história, não há gigante aqui na escola”. E, no momento em que ele se reaproximou, pudemos conversar como às vezes os adultos, professor, papai, mamãe, eram grandes, e pareciam até gigantes, e se ficavam bravos, ou brigavam, podiam assustar as crianças, mas não eram gigantes, como o da história, que era mau, e também este, na história, foi vencido pelo rei, que era grande e muito bom.
Analisamos sempre o desenvolvimento de cada Ateliê, sua busca ou envolvimento por parte das crianças, e assim, ao longo do tempo, vamos adequando estratégias, tanto para as propostas coletivas, como individualizando outras para atender as demandas.
Por exemplo: o Ateliê de História, que tão bem se presta ao trabalho com os menores, passou a ser evitado pelos maiores de catorze anos. Analisamos que talvez isso ocorresse por remetê-los ao universo da infância, e propusemos a eles transformar este encontro em uma Assembléia.
Inicialmente nos perguntávamos se compreenderiam o sentido desta proposta, Assembléia seria propor e decidir coletivamente as demandas do grupo. No início houve um episódio que nos mostrou como buscavam mesmo apreender o sentido. Foi o seguinte: estávamos em nosso terceiro encontro e discutíamos o encaminhamento de uma festa na escola, como seria, o que teria, etc.. Eles votavam e às vezes pareciam escolher, outras só imitar o levantar das mãos que outros, nós os professores e técnicos, fazíamos.
No meio disso, um adolescente psicótico começa a proclamar: “Esta escola tem o demônio. Vou limpar isto, vou orar.” Se levanta e começa uma espécie de pregação, neste momento alguns adolescentes autistas se retiram assustados, e eu lhe digo: “Esta ameaça de demônio, esta história que você está contando os assustou.” Ele continua “pregando” alto e de repente me parece muito teatral, diferente de momentos outros de seus delírios. Vem-me a idéia e lhe pergunto: “Você está achando que aqui é a Assembléia de Deus?” E ele responde: “É”, e eu lhe explico: “Não, só tem o mesmo nome, como manga de camisa ou a manga fruta. Tem o mesmo nome mas são muito diferentes.” Ele concorda e imediatamente cessa seu discurso, senta-se e continua conversando sobre a festa, retomando nossas conversas e decisões.
Durante bastante tempo me parecia que buscavam compreender do que se tratava, mas cada vez mais tomavam aquele espaço como um lugar no qual as demandas individuais e coletivas podiam vir a se concretizar. Várias propostas surgiram e foram realizadas, deixando-os muito satisfeitos ao verem que o que ali é decidido se cumpre.
Para a festa de Natal, foi naquele espaço da Assembléia que trouxemos os cartões criados na Ateliê de Artes, em um projeto que envolveu artistas plásticos da cidade. Seus trabalhos com guache, que ficaram lindíssimos, foram transformados em cartões de Natal, impressos e vendidos. Escolheram transformá-los em convites para a festa da escola. O Ateliê de Música trabalhou sobre as apresentações que eles escolheram livremente fazer. O Ateliê de Teatro criou o personagem do Papai Noel, que foi votado a partir do pedido de um adolescente que desejava ser o Papai Noel da festa. Os outros aceitaram unanimemente. O Ateliê de Teatro organizou com ele o personagem, foram visitar um Papai Noel em um Shopping da cidade, preparam as roupas e ensaiaram sua participação.
Foi um Papai Noel incrível, em nossa festa de Natal, com uma sensibilidade e sabedoria na forma de atender as crianças na entrega dos presentes, que emocionou a todos nós. No momento em que se deparou com seu próprio presente disse: “Ho, ho, ho, ele não pôde vir, mas depois eu entrego o presente dele.” E numa emocionante demonstração de suportar a frustração, já que normalmente adora receber presentes, e nunca pode esperar, só abriu o seu ao tirar sua fantasia de Papai Noel, nos mostrando a divisão de papéis que conseguiu realizar, tão diferente de seus delírios onde todos os personagens se misturam, em um caos desordenado.
Todas as propostas são tentativas de chamá-los ao mundo cultural, de uma forma na qual os objetos os toquem com cordialidade, como diriam os fenomenólogos. Tentamos observar quais são os objetos assustadores, quais as situações evitadas, e vamos buscando percursos outros no decorrer de nosso caminhar com eles.
É como se lhes déssemos a segurança de nosso afeto, e ofertássemos caminhos a percorrer, buscando dentro de nós lembrar que, como disse Antonio Machado “Caminhante, não há caminhos, se faz o caminho ao andar”.
Mostramos trilhas e nos dispomos a nos surpreender com eles a cada pedra ou curva, e também com eles caminhar pelo plano, pelo mais seguro ou tranqüilo segundo cada um. Parece que este percurso tem sido positivo, e muito aprendemos, tanto eles como nós, com as descobertas de cada curva.
Não é fácil, principalmente porque são sensíveis a cada nuance de cor, cada som inusitado, cada encruzilhada.
Algumas crianças conhecem pelo cheiro, outras pela ordem da rotina. Parecem esconder-se em si mesmos, e assustar-se quando são percebidos por nós, ou tocados por algo que vêem, ou ouvem. Outro dia me dava conta de que um adolescente, e depois observei o mesmo em uma criança, ambos autistas, quando os chamava pelo nome, ou me dirigia diretamente a eles, parecia que os tocava não com a voz, mas com algo violento, quase como um chute. Percebi, e entendi, porque este adolescente muitas vezes chuta aqueles que se aproximam demais, quando está assustado.
Comecei a falar com eles e explicar que estavam assustados porque falei com eles, e que se sentiram assim porque cheguei muito perto sem os avisar. No livro O Ramo de Ouro (FRAZER, 1982) descreve-se que povos primitivos acreditavam que os sacerdotes ou magos escondiam sua alma em lugar seguro para se protegerem da morte. Acreditavam que o corpo não morre se a alma não estiver nele. Parece-me que estas crianças se ausentam como se suas almas permanecessem em algum outro lugar seguro. Se conseguimos contato, trazendo de volta sua alma de onde se escondem, isso pode assustá-las, e precisamos delicadamente as tranqüilizar. Nesta obra Frazer, no capítulo chamado “A alma externa”, diz que estes povos acreditavam que a alma poderia retornar se estivesse segura de não haver ameaça à vida.
Temos conseguido tranqüilizá-los, tentando oferecer um ambiente acolhedor, que incentive uma volta segura à vida de relações, e os resultados têm sido surpreendentes, para seu desenvolvimento pessoal e para o nosso, como equipe de trabalho.
O trabalho clínico que desenvolvemos abrange as áreas de Psiquiatria, Neurologia, Genética, Psicologia, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional e Serviço Social. As crianças e adolescentes, assim como suas famílias, são incluídas em todos estes atendimentos, que são definidos e desenvolvidos de acordo com cada caso, segundo suas necessidades específicas.
Alguns, principalmente os menores, são atendidos em terapias individuais; outros, principalmente os adolescentes, em terapias grupais. As famílias participam em trabalhos como grupos de pais e em suas urgências fazem terapia familiar breve.
Todos estes atendimentos se integram em ações conjuntas da equipe. Para isto existem reuniões semanais e a equipe conta com cursos teóricos de Psicanálise, reuniões clínicas e pedagógicas, de Estudo de Caso (onde cada criança ou adolescente é discutida entre os profissionais que a atendem).
Uma equipe que se propõe trilhar este percurso de ir em busca de resgatar do mar do inconsciente alguém que lá se perdeu, deve contar com inúmeros salva-vidas, botes de socorro, etc.. Busca-se dar isto à equipe na forma de supervisões, vivências quinzenais sócio-dramáticas, Assembléias, incentivos ao trabalho terapêutico individual de cada membro da equipe, etc.
Nesta busca, às vezes “o mar não está para peixe”, às vezes é revolto, sujeito às intempéries do tempo institucional. Falta apoio financeiro necessário a um trabalho caro como este, ocorrem remanejamentos na equipe, situações familiares graves emergem, acidentes de todas as naturezas. Mas natureza é assim mesmo, sujeita a intempéries, e a frágil natureza humana principalmente.
Acreditamos que todos estes percalços se pensados e compreendidos nos levarão a uma compreensão cada vez maior desses frágeis e sensíveis seres que tão cedo sucumbiram às vicissitudes de nossa luta mental para lidar com a realidade, e trilhar um caminho de crescimento.
Construir uma instituição com estas características é difícil e envolvente, como o viver.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BION, W. Aprendiendo de la experiencia. Buenos Aires: Paidós, 1975. [ Links ]
FRAZER, J.G. O ramo de ouro. Edição de Mary Douglas. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. [ Links ]
FREUD, S. O estranho. In:________. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1988. v. 17. [ Links ]
Endereço para correspondência
Marly Terra Verdi
E-mail: marlyver@terra.com.br
Recebido em 02/02/05.
1ª Revisão em 11/04/05.
Aceite Final em 26/05/05.
1 Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, membro do NESME e da SPAGESP.