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Psicologia Hospitalar

versión On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.7 no.1 São Paulo  2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A escuta psicanalítica do paciente hospitalizado e da equipe de saúde: estudo de caso1

 

Psychoanalytic listening of hospitalized patients and the health team: a case study

 

 

Daniely Marin Zito2

Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina - USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Inserido na equipe de saúde, o psicólogo hospitalar se depara com diferentes objetos, objetivos e demandas (institucionais, da equipe e do paciente). Sua escuta clínica e manejo da dinâmica apresentada propiciam e mediam o encontro com o inominável. Objetivo: Buscar a compreensão do caso clínico de uma paciente portadora de Doença de Crohn, refratária às propostas clínicas adotadas; discutir sobre o manejo do psicólogo na interlocução paciente e equipe de saúde. Método: Atendimentos psicológicos em regime ambulatorial e de internação sob o referencial psicanalítico. Resultados: A paciente buscava atendimento médico e se apresentava como objeto da medicina por meio de seu corpo. Concomitantemente, recusava os procedimentos clínicos propostos por meio de sua religião, gerando na equipe sentimentos de raiva e impotência. Conclusão: A escuta psicanalítica ofereceu à paciente a possibilidade de existir para além do corpo físico. Com a equipe, buscou-se a preservação da identidade da paciente.

Palavras-chave: Medicina do comportamento; Psicanálise; Recusa do paciente ao tratamento; Equipe de assistência ao paciente.


ABSTRACT

Forming part of the health team, the hospital psychologist is faced with different objects, goals and demands (institutional, team and patient). His clinical listening and management of dynamic and provides media presented the meeting with the nameless. Objective: To find the understanding of the clinical case of a patient with Crohn's Disease refractory to medical proposals adopted, discuss the management of the psychologist and patient dialogue in the health care team. Method: psychological care in outpatient and hospitalization on psychoanalytic. Results: The patient sought medical attention and appeared as the object of medicine through his body. At the same time, refused clinical procedures proposed by her religion, leading the team feelings of anger and impotence. Conclusion: The psychoanalytic listening offered the patient the opportunity to exist beyond the physical body. With the team sought to preserve the identity of the patient.

Keywords: Behavioral medicine; Psychoanalysis; Treatment refusal; Patient care team.


 

 

1. INTRODUÇÃO

A prática da Psicologia em âmbito hospitalar possui suas peculiaridades. Dentre elas estão a transposição da prática psicanalítica para o contexto institucional e ações integradas com a equipe de saúde.

O psicólogo no hospital tem como foco as demandas psicológicas advindas do processo doença-internação-tratamento, as reações que dificultem ou agravem o problema do paciente, seja este de ordem orgânica e/ou psíquica (Sebastiani & Maia, 2005 citados por Borges & Sousa, 2007).

Segundo Rossi (2007), a doença torna o sujeito objeto de atenção e intervenção, mudando a sua posição de sujeito de intenção. Dessa forma, o indivíduo perde a sua dignidade e seu referencial, "que é acompanhado por vivências de isolamento, abandono, rompimento de laços afetivos, profissionais e sociais" (Moura, 1996 citado por Rossi, 2007, p.175).

Moreira e Pamplona (2006), psicanalistas e pesquisadoras de um hospital universitário inserido no Sistema Único de Saúde, na cidade de Belém, Pará, complementam com a prática clínica nesta instituição que, em conseqüência da hospitalização, geram-se angústias e reativam-se conflitos psíquicos nos pacientes.

Assim, ainda que os procedimentos médicos visem à sua melhora, é possível que estes adquiram caráter ameaçador e invasivo, fazendo com que o paciente possa vir a negar o seu diagnóstico, bem como recusar o tratamento, o que agrava o seu quadro clínico.

Identificadas tais reações, o psicólogo pode intervir por meio da interconsulta:

A interconsulta em Saúde Mental é um instrumento metodológico utilizado pelo profissional de saúde mental (em especial psiquiatras e psicólogos) no trabalho em hospitais gerais e outras instituições de saúde, visando compreender e contribuir para o aprimoramento da tarefa assistencial (...); proporcionando cuidados integrais, através da atenção por parte da equipe, a todos os aspectos envolvidos na situação de estar doente (Martins, 2005, p.92).

À medida que este profissional vai ao encontro de profissionais de outras áreas ou é chamado para auxiliá-los no diagnóstico e tratamento do paciente com problemas psiquiátricos ou psicossociais, deve auxiliar na comunicação e no entendimento das reações do paciente, da família e da equipe de saúde. Deve ajudar a identificar e a manejar reações mal adaptativas ao estresse devido à hospitalização, e poder dar suporte para a equipe responsável pelo paciente em relação ao equilíbrio emocional e à habilidade de conduzir situações difíceis (Carvalho & Lustosa, 2008).

Por ora, o trabalho do psicólogo dificilmente é compreendido. Um dos entraves para a aceitação deste profissional no ambiente eminentemente médico, segundo pesquisa realizada por Fighera e Saccol (2009) a respeito das relações transferenciais entre a prática médica e do analista, diz respeito a uma diferença fundamental entre a posição do médico e a do analista/psicoterapeuta em relação aos pacientes. Ao passo que o objeto da medicina é o corpo e seu objetivo é a remissão dos sintomas e/ou a cura, para a psicologia estarão o sujeito e sua implicação para com o seu sintoma, cujo tratamento é feito a partir da fala do paciente.

Sendo assim, o método da escuta em psicanálise permite transcender os sentidos do convencional e do que é consciente no discurso do sujeito, para cuja apreensão não se recorre a teorias estudadas a priori. Por meio da atenção flutuante no encontro entre o profissional e o sujeito é possível considerar as apreensões que ele faz de si e de suas relações, sejam elas internas ou externas, e que não estejam aprisionadas em modelos pré-concebidos da palavra (Gavião et al., 2004).

Figueiredo (2009) descreve sua experiência profissional inicial no contexto hospitalar, dizendo da possibilidade desta ser orientadapela psicanálise contanto que haja outro tipo de manejo clínico por parte de quem escuta para poder escutar o sujeito. A autora distingue o setting tradicional do hospitalar. Sendo que o segundo é muito mais desconfortável, intrusivo, atemporal, desmedido entre o tempo médico da alta da internação, por exemplo, e da conclusão do trabalho psíquico. Ainda que as condições não se façam favoráveis à necessidade da psicanálise, e que o paciente, a priori, não venha ao hospital com objetivo de refletir sobre o seu sintoma, mas com o de fazer cessar a sua dor, a autora ressalta a importância de ofertar a escuta ao paciente hospitalizado.

O psicanalista deve saber que este é um momento possível de o paciente ressignificar as suas vivências, já que vivencia um momento de ruptura e crise, marcado pela sua doença. Conclui-se, pois, que, independente do local, a psicanálise é sempre psicanálise à medida que preconize o uso da associação livre e da transferência (Figueiredo, 2009).

Outros autores concordam sobre a necessidade de adaptar a técnica psicanalítica na instituição hospitalar, pois, ao contrário da psicanálise dada no consultório particular enquanto um processo, no hospital, é eminentemente configurada como uma escuta analítica ao sujeito sob a atenção flutuante do analista. Assegura-se: escuta ao sujeito, e não à sua doença, e com o principal cuidado ético de resguardá-lo em sua singularidade (Moreira & Pamplona, 2006; Figueiredo, 2009).

Visto todo este contexto, a escuta psicanalítica deve atentar-se a identificar as demandas da instituição, da equipe de saúde, e do paciente. Deve-se levar em consideração que as demandas nem sempre têm caráter lógico, mas, quando dirigidas, comunicam a necessidade de serem acolhidas.

Este trabalho teve como objetivos buscar a compreensão, sob o referencial psicanalítico, da tríade: paciente, equipe de saúde, psicólogo, a partir de um caso clínico de uma paciente com Doença de Crohn (DC), internada em um hospital universitário de grande porte, na capital da cidade de São Paulo, e que foi acompanhada pela autora em regime ambulatorial e de enfermaria.

A DC faz parte do grupo das Doenças Inflamatórias Intestinais (DII), que também compreende a Retocolite Ulcerativa (RCU) (Biondo-Simões, Mandelli, Pereira & Faturi, 2003; Dewulf, Monteiro, Passos, Vieira & Troncon, 2007; Steinwurz, 2008). A incidência deste grupo de doença tem aumentado em todo o mundo, havendo variações conforme diferentes regiões. O seu início compreende as idades entre os 15 e 30 anos, tendo outro pico entre os 60 e os 80 anos, e não há predominância de sexo (Biondo-Simões et al., 2003).

As DII se caracterizam por inflamação crônica do intestino, não infecciosa, manifestando-se clinicamente por diarréia, dor abdominal, perda de peso e náusea. Caracterizam-se também por fases de atividade e de remissão dos sintomas (Steinwurz, 2008). A DC é mais comum na raça branca, usualmente com início entre os 20 e 30 anos, com importante componente genético hereditário (Biondo-Simões et al., 2003). Manifesta-se em qualquer parte do trato gastrointestinal, provocando lesões transmurais e salteadas, intercalando áreas afetadas com as livres da doença (Steinwurz, 2008). Além dos sintomas descritos para as DII, provoca febre, doença perianal e manifestações extraintestinais3.

Para o diagnóstico, colhe-se a história clínica do paciente, exame físico endoscópico, radiológico, histológico, além dos laboratoriais, pelo qual se distingue principalmente a DC de outra DII, no caso, da RCU, a fim de propor o esquema medicamentoso adequado (Biondo-Simões et al., 2003).

A etiologia das DII ainda não é definitivamente esclarecida, embora se saiba que fatores genéticos, imunológicos e ambientais estão envolvidos (Dewulf et al., 2007). A mortalidade é baixa e influenciada por alterações nutricionais, gerando desidratação e anemia devido às crises de diarréia que aumentam a morbidade (Steidler et al., 2000 citados por Biondo-Simões et al., 2003). Quando se trata de doenças de longa duração, a mortalidade está associada ao risco de câncer de cólon.

O tratamento clínico das DII depende da extensão da doença, intensidade, gravidade, além de se levar em consideração doenças preexistentes. Ainda que não haja cura, é empregado grande número de drogas com o objetivo de atingir a remissão dos sintomas e do quadro de atividade da doença. A abordagem cirúrgica é feita quando o tratamento clínico é insuficiente (Biondo-Simões et al., 2003; Steinwurz, 2008).

É, portanto, imprescindível a adesão à terapêutica para prevenir recaídas, aumento do número de hospitalizações, diminuição da qualidade de vida e custos demasiados aos serviços públicos de saúde (Robinson, 2008).

 

2. DESCRIÇÃO DO CASO CLÍNICO

H. é natural e procedente da região norte do país, solteira, atualmente desempregada, reside com pais e oito irmãs, sendo todos testemunhas de Jeová.

Foi encaminhada ao atendimento psicológico ambulatorial pela equipe médica em maio de 2009, após diagnóstico clínico de DC em março do mesmo ano, e sob a justificativa de ansiedade, que não foi especificada no pedido médico à psicologia4.

A paciente comparecia as consultas em ambulatório e enfermaria sempre acompanhada pela irmã mais velha. Apresentava-se muito emagrecida, abatida, enfraquecida, e referia incessantes dores abdominais. Além disso, não estabelecia contato visual com a psicóloga, a qual procurava se reportar diretamente à paciente, pois era a sua irmã que, inicialmente, precipitava-se a dar as respostas à medida que H. lhe fitava o olhar para que respondesse por ela.

Na primeira consulta psicológica, questionada sobre o diagnóstico que lhe fora dado (DC), a paciente concordou, e o justificou devido ao segundo diagnóstico, o de ansiedade. Considerava-se ansiosa porque se mantinha nervosa e irritada na maior parte do tempo, devido à imposição que a irmã exercia em fazê-la comer, ainda que sentisse dificuldade e/ou inapetência.

Ambas relataram que, na primeira consulta médica realizada em sua cidade de origem, a paciente foi subdiagnosticada com "Anorexia Nervosa". Isso por causa dos vômitos posteriores às refeições e da recusa a se alimentar, embora sentisse fome. Mas o que intrigava os médicos da região eram as queixas e manifestações intestinais, cujo conhecimento os recursos em sua cidade foram limitados. Com essas observações, foi encaminhada, à avaliação médica da equipe do Ambulatório de Doenças Inflamatórias Intestinais do Serviço de Cirurgia do Cólon e do Reto da Divisão de Clínica Cirúrgica II em reconhecido hospital de especialidades em São Paulo.

Nas poucas sessões que se sucederam, a psicóloga passou a chamar somente H. para adentrar a sala. A irmã, percebendo que não era chamada, permanecia sentada na recepção com o namorado - com o qual pretendia se casar, mas tiveram de adiar este plano devido à vinda da paciente à capital e a sua enfermidade. Mas H. sempre perguntava a irmã se não entraria com ela.

Nos atendimentos a H. e com a separação da irmã, foi possível notar que a paciente e sua irmã atribuíam o sintoma de ansiedade a causas distintas. A irmã atribuiu a dois eventos vivenciados pela paciente: assalto (ameaçada com uma arma em frente a sua casa) e briga familiar (com uma de suas irmãs). A paciente acreditava que sua ansiedade foi gerada após término de seu relacionamento por adultério do parceiro.

Nesta época, mesmo com uma família tradicional e religiosa, H. havia saído de casa para morar com ele, e preservava a castidade. Relatava um relacionamento muito difícil com namorado, em que imperavam brigas por causa de ciúmes e agressões físicas. Mesmo assim, planejava se casar e ter a primeira relação após o matrimônio, de acordo com os dogmas religiosos.

Em dado momento, amigas e vizinhos começaram a contar dos relacionamentos paralelos que o namorado tinha na cidade. Mesmo assim, decidiu continuar com ele por alguns meses. Até o momento de H. vê-lo com outra mulher, agredi-los fisicamente, e voltar para a casa dos pais. Neste período os sintomas clínicos surgiram, começando com uma fístula vaginal (tipo de manifestação extraintestinal), e, mais tarde, o abscesso na região perianal, que ela apelidou de "carninha." [sic]

A paciente também alegava dores e vômitos freqüentes, o que a obrigava a comer pequenas porções após a manifestação da doença. Ela dizia de uma maneira peculiar de se alimentar. Com muita fome, levava a boca pequenas porções de carne e as mastigava, sem engolir, e de forma a tomar-lhe todo o líquido. Como se sentia fraca, misturava ao copo de leite uma quantidade de farinha láctea, sentindo-se nutrida ao ingeri-lo.

Foi orientada pela nutricionista da equipe do hospital a não fazê-lo, pois este tipo de mistura poderia lhe acentuar as cólicas e aumentar as diarréias. Mesmo mudando os hábitos alimentares, referia demasiado medo de comer, de ter de ir às pressas ao banheiro evacuar, de não conseguir reter a comida no estômago, além do medo de o alimento poder lhe provocar cólicas insuportáveis.

Foi possível perceber a preocupação e apreensão da paciente frente à difícil rotina de procedimentos e exames clínicos aos quais deveria se submeter. Ela temia ser ainda mais manipulada e sentir dor. Tinha, grande preocupação de que a equipe pudesse machucar a "carninha" [sic]. Porém, devido à evolução da doença e das crises incessantes, a internação foi inevitável. Os atendimentos psicológicos realizados em ambulatório ganharam um novo cenário: a enfermaria.

Devido à complexidade e agravamento do quadro clínico apresentado pela paciente, a equipe médica propôs o procedimentos de transfusão de sangue com intuito de aplacar a anemia crônica apresentada, introdução de aporte nutricional e provável intervenção cirúrgica. A paciente recusava as propostas sugeridas pela equipe médica: a transfusão de sangue (coerente aos dogmas de sua religião) e o aporte nutricional. Neste momento, referia se sentir pressionada e incompreendida principalmente pela irmã: "ela não vê meu lado." [sic]

O trabalho da psicóloga, que pouco era "visto" na enfermaria - no sentido de ser indiferente a equipe até o momento, passou a despertar curiosidade especialmente na equipe de enfermagem: o que poderia esta profissional fazer para convencer a paciente a aceitar a transfusão de sangue? Para aceitar viver? Teria ela poderes mágicos? A abordagem da psicóloga passou a ser solicitada pela equipe de forma a evitar o agravamento no quadro clínico da paciente.

No cenário da enfermaria, a paciente era receptiva aos atendimentos da psicóloga, mas pouco falava. Em certo momento, perguntou-lhe se conversava sobre os atendimentos com a equipe, demonstrando insegurança em falar. Sentia-se ameaçada pela presença da psicóloga, muito embora lhe pedisse que puxasse uma cadeira ao lado do leito para que pudesse ser escutada, pois ela estava tão fraca que mal conseguia verbalizar.

Contrapondo os dados médicos, H. se dizia melhor a cada dia. Ao mesmo tempo, foi possível perceber que a bíblia e material impresso de sua religião se mantinham sobre o leito, à mostra a todos que se aproximassem. Nos atendimentos psicológicos, ela podia ora dizer sobre a religião, ora chorar copiosamente pelas saudades de sua cidade, pela perda da forma do corpo e do controle da doença.

Pautada na religião a transfusão de sangue passou a ser alvo de discussões entre paciente, equipe médica e família em decorrência da manifestação contrária a conduta proposta. A equipe médica se reportava a interconsulta psicológica, identificando a paciente como "menina testemunha de Jeová, que não aceitava a transfusão de sangue". A indignação da equipe de enfermagem frente a decisão da paciente foi mobilizada pelo panorama do caso que poderia ser revertido e justificava o investimento da equipe uma vez que a paciente é jovem, tinha uma vida pela frente, haveria de constituir família e ter filhos. A irmã passou a ser responsabilizada indiretamente pela recusa da paciente, consideravam a decisão mais um desejo dela do que de H.

A equipe médica acompanhava dia após dia a queda da taxa de hemoglobina e orientava a paciente e sua irmã sobre os riscos decorrentes da recusa do procedimento de transfusão de sangue. Com o auxilio da irmã, a paciente assinou o termo de responsabilidade, no qual constava embasamento religioso como razão para a recusa e ciência sobre risco de vir a óbito, bem como o agradecimento à equipe médica pela compreensão. A paciente delegou a tarefa de redigir o documento à irmã, devido a sua baixa escolaridade, e teve como testemunha o médico responsável pelo caso.

Em interconsulta psicológica realizada com o médico, este manifestou tranqüilidade frente à conduta definida, pois acredita que uma decisão tomada pela equipe que estivesse em detrimento à escolha da paciente poderia gerar resultados desfavoráveis na relação médico-paciente.

Embora estivesse debilitada fisicamente, H. iniciava o seu fortalecimento psíquico durante os atendimentos psicológicos. Naquele momento, sentia-se respeitada pela equipe, e pôde finalmente nomear o seu desespero: morrer.

De forma a evitar a incubação, a exigência maior era que, no mínimo, H. se alimentasse, o que a irmã desesperadamente tentava fazer, colocando-lhe na boca os alimentos. Sob o risco de morte e como sugestão da irmã, as visitas a paciente se tornaram mais freqüentes. A irmã, que também dera início ao acompanhamento psicológico por outra profissional da instituição, aos poucos, pôde permitir revezar a estadia no quarto com as outras irmãs, e com os pastores da igreja. Os pais nunca apareceram, pois, segundo a irmã, eram idosos, não podiam se deslocar a São Paulo, e confiam nela. Os pais tinham delegado a ela a tarefa de cuidar de H. integralmente.

Posteriormente, na ausência da irmã cuidadora, H. começou a se alimentar sozinha, ser enfeitada e estimulada pelos outros familiares a se embelezar, resgatando a vaidade e feminilidade. Reagia, então. Emocionava-se menos nos atendimentos, referindo que queria viver naquele momento, justificando à psicóloga que, desta vez, "chorava de felicidade". [sic]

Diante da morte anunciada, a paciente resistiu à instabilidade do quadro clínico. Gradativamente e para a surpresa de todos, a taxa de hemoglobina foi recuperada, o que possibilitou a alta hospitalar, a qual aconteceu três dias depois da alta dos atendimentos psicológicos.

 

3. DISCUSSÃO

É possível definir a não-adesão à medicação como um fracasso dos pacientes para desenvolver atividades ou seguir as recomendações feitas pelos prestadores de serviços a respeito do tratamento de saúde (Robinson, 2008).

Uma série de aspectos demográficos e fatores clínicos têm sido associados com a não-adesão in em pacientes com DII, e tem se dado atenção aos aspectos psicológicos que influenciam neste comportamento (Casati & Tonner, 2000; Biondo-Simões et al. 2003; Steinwurz, 2008).

Além disso, profissionais da saúde tem se conscientizado de que anterior à proposta de abordar a adesão ao tratamento de pacientes com DII é importante avaliar o contexto social em que o indivíduo está inserido e seus recursos psíquicos de enfrentamento da doença (Reiners, Azevedo, Vieira & Arruda, 2008).

Moreira e Pamplona (2006) relacionam a resistência à adesão ao tratamento médico e multiprofissional "à insuficiência do aparelho psíquico para o enfrentamento com a intensidade das forças mortíferas em ação e à violência primordial que ameaça sua existência física e, em qualquer caso, também da espécie humana" (p.15).

Contudo, a compreensão desta dinâmica do sujeito ainda é muito dificultada na prática. A partir do caso apresentado no presente trabalho, fica claro que é no momento em que o paciente se posiciona, por meio do "não querer", e seu desejo se impõe que a medicina depara-se com a sua limitação e impotência. Neste aspecto, a objetividade não tem mais função terapêutica, tampouco sentido para o estudo técnico, concretamente detectável e palpável.

Quando há a recusa do paciente por procedimentos clínicos vitais, mobilizam-se sentimentos de revolta, raiva, indignação e desaprovação. Os profissionais da saúde se deparam, assim, com a própria finitude, que remete à angústia de castração. Isso porque a recusa do tratamento também se aproxima a morte da própria equipe ao suscitar-lhe o sentimento de impotência diante do inominável e inacessível.

É interessante relembrar que a etiologia é desconhecida na DC, mas, fala-se que fatores ambientais também influenciam no aparecimento da doença (Dewulf et al., 2007). Afirma-se, ainda, que as crises e recaídas são especialmente desencadeadas por estressores emocionais (Wietersheim & Kessler, 2006), o que vai ao encontro da percepção da paciente sobre o seu diagnóstico, revelada na primeira entrevista com a psicóloga. Além da sua recusa ao tratamento, a crença na causa emocional como desencadeadora de sua doença, de certa forma, também desbancava os critérios objetivos da medicina.

Com o diagnóstico da doença e a vinda para São Paulo em busca de tratamento, a sua demanda era dirigida a quem lhe despendiam cuidados. As crises da doença configuravam-se como um ganho secundário, e compulsivamente eram repetidas. A forma de satisfação de suas pulsões se dava pela via do prazer mortífero (dor), sobre a qual H. declarava não ter controle.

Joseph (1958/1992) fala sobre a compulsão a repetição, que é típica de pacientes que a vivenciam de modo passivo, como se não a tivessem provocado, e que lhes são comumente desagradáveis. Isso acontece pela tendência com que esses pacientes lidam com ansiedades advindas de problemas. São movidos pela dependência do objeto parcial (a mãe ou o seu seio), combinando, para isso, mecanismos de defesa como cisão, identificação projetiva, introjeção e negação (Spillius, 1994).

Como H. estava distante de sua cidade natal, sendo cuidada pela irmã, que sempre estava acompanhada do namorado, H. naturalmente invejava este casal, que passaram a assumir a função de (seus) cuidadores. Ademais, formulou-se a hipótese sobre a possibilidade da aversão pela comida, das dores e diarréias terem sido desencadeadas pela experiência de frustração com o término do relacionamento afetivo.

O sadismo, posteriormente, era dirigido a todo o corpo da mãe (Klein, 1932 citada por Ferreira, 2004). O seio da mãe era o objeto atacado pelos seus dentes e mandíbulas devido às fantasias invejosas de se sentir excluída dos prazeres sexuais, a princípio orais, que os seus cuidadores podiam desfrutar entre si. O seio e o alimento, fontes de prazer, transformaram-se em objeto de desprazer, e atacava a paciente por meio de crises de cólicas terríficas. O descontrole dos esfíncteres era o foco de ansiedade relacionada ao descontrole de seu interior, assim como de seus impulsos (morder, sujar, agredir, devorar e odiar a comida). A propósito, o fato de mastigar copiosamente e sugar os alimentos, de forma a extrair apenas o líquido, cuspindo-o quando finalmente sugado, ilustrava o seu sadismo oral.

Percebia-se, ainda, que o imperativo religioso de preservação da castidade até a consolidação do matrimônio impedia H. de satisfazer seus desejos sexuais. Assim, ela suportou por muito tempo a traição do namorado, optando por não querer ver. Dessa forma, de acordo com Freud (1917/1980), em "Resistência e Repressão", os sintomas dor e inapetência puderam ser visualizados como substitutos de satisfação do que H. perdeu na vida: o namorado.

Nos atendimentos psicológicos ambulatoriais a H., o que mais a angustiava eram os procedimentos clínicos e a rotina de exames que deveria seguir. Tratava-se de sinais que alertavam suas instâncias psíquicas (ego e superego) sobre a possibilidade de um perigo externo que lhe ameaçasse e destruísse a qualquer momento (Freud, 1926/1980).

Sobre isso, Klein (1921) afirma que os mecanismos paranóides estão estreitamente relacionados com a onipotência dos esfíncteres na criança, sendo a posteriori utilizados em forma de defesa quando ela se deparar com o medo de ser repreendida. Porém, à medida que a criança conseguir introjetar normas, tenderá a constituir seu eu e organizar-se psiquicamente, o que é paralelo a organização anal (Ferreira, 2004).

A criança considera as fezes e a urina como partes do seu corpo e os significa como um primeiro presente que possa dar ou não ao outro que lhe introduz a norma de controle dos esfíncteres. Portanto, nesta fase, estão presentes o auto-erotismo e amor objetal, cuja antítese da organização anal está entre a passividade e a atividade, e não entre masculino e feminino (Ferreira, 2004). Isso podia ser claramente exposto pelo corpo da paciente: desnutrido e assexuado, na mesma medida em que regredido e infantilizado na estrutura de sua personalidade.

A atividade da doença e o limite da dor, motivos pelos quais foi internada na enfermaria, pareciam ser um recurso de extremo alerta para H. e para os que estavam envolvidos em seu caso. Na ausência de outros recursos para elaborar e manifestar as marcas de sua existência, ela expunha o seu corpo, proclamava a dor. Ademais, o fato de se recusar a comer também se caracterizava como um meio de existir como sujeito a partir do momento que expressava seu desejo.

Havia a debilidade orgânica pela desnutrição e o estado regredido, alimentado ainda mais pela relação ambivalente que mantinha com a irmã, e os cuidados excessivos desta para com a paciente. Tal realidade se originava sob o signo do amor e do ódio: "ela não me compreende, não sabe falar comigo, tenho raiva". [sic]

Spillius (1994) chamaria este funcionamento da paciente, com base nos pressupostos kleinianos, de identificação projetiva. Trata-se de uma dentre outras defesas contra a ansiedade paranóide, em que o sujeito expele excrementos nocivos, com o ódio e com partes excindidas do ego, e que são projetadas na mãe, representada, neste caso, pela irmã cuidadora. A irmã passa a ser vista como o objeto mal, não mais separado de H., que podia atacá-la, e que a paciente tentava controlar e possuir.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que a irmã lhe preservava a existência, assistindo-a integralmente, não permitia que fosse realizada a transfusão de sangue. Sua irmã não conseguia conter os sentimentos a ela projetados e, a todo tempo, relembrava H. dos artigos bíblicos que repudiavam este procedimento - os quais H. não apreendia na memória. A irmã, assim, confundindo os seus sentimentos com os de H., barrava o desejo da paciente e da medicina ao sustentar o discurso divino, e impunha o seu desejo.

Muito embora H. considerasse os cuidados dirigidos a ela, em alguns momentos, a insistência para aceitar as condutas propostas gerava sentimentos persecutórios em relação à equipe, os quais se estendiam também à psicóloga. Utilizava-se, pois, do apego as leis rigorosas de sua religião para lidar com estes sentimentos.

Nesta passagem, é possível traçar um paralelo sobre as sensações vivenciadas pelo bebê ao nascer e as dificuldades de se adaptar às novas situações. Segundo Klein (1952/1991), sendo a primeira forma de ansiedade a de natureza persecutória (da fase esquizo-paranóide), cuja causa primordial é o medo do aniquilamento por objetos e forças hostis, H. dirigia seus sentimentos de gratificação e amor para o seio "bom": a irmã que lhe cuidava e a equipe que respeitava seus dogmas religiosos. E seus impulsos destrutivos e sentimento de perseguição eram dirigidos para o que lhe frustrava, a irmã que lhe impunha atitudes, a equipe que lhe pressionava a comer, e a fazer os exames, ou mesmo a psicóloga que lhe oferecia a escuta , isto é, eram todos o seio "mau".

Sob as considerações de Winnicott (1963), H. não comia exatamente por temer o horror do vazio e compulsivamente o buscava, negando o aporte nutricional. A vontade de morrer ou de não existir era parte de uma defesa (Winnicott, 1963). Pois, ao mesmo tempo em que H. dispunha-se à morte, projetava na equipe de saúde a morte ou o fracasso, já que esta respeitava a recusa da paciente da transfusão sanguínea e corria o risco de não salvar uma vida.

Dessa forma, H. também se sentia perseguida pela equipe de saúde, e negava tudo que não fosse ela mesma, na unicidade com Jeová, o deus de sua religião. Então, seu existir se transformava em culto: "manter-se pura", sem o sangue alheio, configurando-se a indiscriminação, que é uma defesa organizada e poderosa e que não permite o estabelecimento de um self.

Embora parte da equipe respeitasse sua decisão, outra impunha persistentemente o dever de H. ceder a ela, o que a ofendia, porque contrariava o seu narcisismo infantil.

Todavia, com a ajuda das outras irmãs que vinham lhe visitar na fase mais crítica da internação, parece que H. começava a renunciar às múltiplas crises de diarréia e de seus produtos. As irmãs traziam-lhe objetos pessoais, emprestavam-lhe os seus, maquiagem, esmaltes, pentes e acessórios de cabelo. Assim, sentimentos narcisistas mortíferos eram transferidos a outros objetos que valorizavam a sua feminilidade, os quais eram trazidos para ela, que recebia elogios quando os usava, e, assim, era legitimada pelo apontamento do outro. H. estabelecia, assim, diferente tipo de relação com o outro.

A abertura para a escuta do inominável propiciada pela atuação da psicóloga ofereceu à paciente a possibilidade de poder existir para além do corpo físico, já que o corpo da psicanálise preconiza o sujeito do inconsciente.

Isto é, por meio do método da escuta psicanalítica, devolveu-se paulatinamente ao sujeito a possibilidade de deprimir-se por causa da enfermidade e, futuramente, poder se implicar com os problemas (Moreira & Pamplona, 2006). Ou seja, não houve a intenção de suprimir os sintomas.

Além de recordar a sua história, retomar-lhe sobre o sigilo dos atendimentos, a escuta ofertada a paciente permita-lhe expressar o desejo de morrer por "não agüentar mais" [sic]. Por conseguinte, H. pôde ressignificar tal impulso mortífero, e evocar o real desejo de viver.

O trabalho da psicóloga junto à equipe buscou acolher as angústias da equipe frente à impotência gerada. Em alguns momentos e sutilmente, a psicóloga apontava a mistura dos sentimentos da equipe com os da paciente, de quem mal se sabia o nome. Assim, também se buscou a preservação da identidade da paciente, à medida que ela fosse considerada pela equipe de saúde como sujeito e além de seu corpo físico.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Primeiramente, cabe destacar que a atuação da psicóloga se dá em uma instituição com a qual há uma transferência idealizada de tratamento e cura, cuja assistência se destina a usuários da rede pública de saúde. Freqüentemente, os pacientes vêem a assistência da saúde não como um direito adquirido ou um dever garantido pelo Estado.

Por conseqüência, o que se observa na prática clínica neste local é a freqüência com que o paciente se assujeita às intervenções e ao tratamento proposto, sem questionamento algum sobre o que será feito a respeito do próprio corpo. Desta forma, é dificultada a implicação do paciente com o sintoma, o que corrobora para uma posição passiva em relação ao discurso médico.

A propósito, também é difícil para o psicólogo compreender o discurso da medicina e adentrar este terreno. O exercício da prática neste ambiente também lhe gera sentimentos de impotência e de fragilidade. Mesmo que se utilize da neutralidade no trabalho, o psicólogo não está isento de se identificar com alguns pacientes e com a história de vida, bem como com os outros profissionais que atuam na instituição hospitalar. Assim sendo, é de suma importância que ele não perca o foco do trabalho: o paciente hospitalizado em implicação ou não com o seu adoecimento.

Ademais, faz-se imprescindível a análise da dinâmica estabelecida entre as partes envolvidas: equipe, psicólogo, paciente e familiares a fim de que este profissional compreenda o contexto em que o paciente está inserido e as relações transferenciais estabelecidas.

Para tanto, além da sustentação teórica do trabalho, é necessário que sua prática profissional seja orientada, e, somados à análise pessoal, desenvolva a empatia e compreensão do não dito. Ou seja, que ele possa compreender o que é da ordem do insuportável ouvir: a própria impotência e a questão humana da finitude que, além da cura e tratamento, permeiam a atmosfera hospitalar.

 

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Endereço para correspondência
Rua Nova Granada, 18, Vila Baruel
CEP: 02522-050, São Paulo-SP
Endereço eletrônico: danielym.zito@yahoo.com.br

 

 

Agradecimentos
À paciente H., pelo aprendizado a mim proporcionado. À querida supervisora Ana Lúcia Barreto Sampaio, pela atenção e orientação na confecção inicial e compreensão deste trabalho.
1 A escrita deste trabalho, bem como a sua publicação, foi autorizada pelo paciente protagonista deste estudo de caso. Sua identidade também foi preservada, sendo referenciado no corpo do texto como "H."
2 Psicóloga especialista em Psicologia Hospitalar em Hospital Geral pela Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (ICHC/FMUSP).
3 Manifestações extraintestinais tratam-se do acometimento dos sintomas da doença em outros sistemas além do aparelho digestivo, tais como os sistemas articular, dermatológico, oftalmológico, hepatobiliar, urológico, vascular, pulmonar etc. (Mota et al., 2007).
4 Por causa da alta rotatividade de profissionais/residentes de medicina na instituição faz-se difícil ir ao encontro dos mesmos para solicitar informações e maiores esclarecimentos sobre os pacientes que são encaminhados ao serviço de Psicologia do hospital. Trata-se, pois, de um entrave na comunicação multiprofissional e de um obstáculo à interdisciplinaridade.

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