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Psicologia Hospitalar

versión On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.17 no.1 São Paulo ene. 2019

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Tramas do inconsciente: surto psicótico pela abordagem analítica

 

Plots of the unconscious: psychotic outbreak by analytic approach

 

 

Iris Miyake Okumura1; Maribel Pelaez Dóro2

Universidade Federal do Paraná, Brasil.


Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tratamento hematológico pode implicar em processo longo e invasivo, como é o transplante de medula óssea. Ainda que proposto com intenções curativas, intercorrências clínicas causam impactos na saúde física, psicológica e emocional do indivíduo. Este artigo é um relato de experiência profissional e objetivou descrever a psicogênese de um episódio de surto psicótico, cujos conteúdos manifestos foram analisados pelo referencial teórico da Psicologia Analítica. Diante de situações que extrapolaram a capacidade de ressignificação do paciente, conteúdos inconscientes emergiram quiçá em busca de uma reintegração da compreensão simbólica perdida. De um modo próprio e singular de ser, vivenciou conflitos com conteúdos beligerantes sobre crenças e valores oriundos da sua psique e de um contexto sociocultural inóspito, que dificultaram o processo de desenvolvimento pessoal. A intervenção psicológica possibilitou a integração de aspectos conscientes e inconscientes cindidos, sobretudo na relação negativa com o feminino (anima) e a doutrina religiosa.

Palavras-chave: Psicologia clínica, Transtornos psicóticos, Transplante de medula óssea.


ABSTRACT

Hematological treatment can involve a long and invasive process, such as bone marrow transplantation. Although being proposed with curative intentions, clinical intercurrences cause impacts on the individual’s physical, psychological and emotional health. This article is a professional experience report and had the objective to describe the psychogenesis of a psychotic outbreak episode, whose manifested contents were analyzed through the theoretical background of Analytical Psychology. Faced with situations that extrapolated the patient's resignification capacity, unconscious contents perhaps emerged in search of a reintegration of the lost symbolic understanding. In a unique and particular way of being, experienced conflicts with belligerent content about beliefs and values arising from their psyche and an inhospitable socio-cultural context, which hindered the process of personal development. Psychological intervention enabled the integration of split conscious and unconscious aspects, mainly in relation with the feminine (anima) and the religious doctrine.

Keywords: Psychology clinical, Psychotic disorders, Bone marrow transplantation.


 

 

INTRODUÇÃO

O modelo biomédico visa ao enquadramento dos sintomas descritos pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5) e pela Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-10). Assim, é possível obter um diagnóstico e delinear um plano de tratamento. Historicamente, o emprego de uma conduta racionalista foi essencial no atendimento eficaz aos problemas de saúde da sociedade.

Inconsistente com as demandas contemporâneas, esse modelo tem sido criticado (Moraes, Giacomin, Santos, & Firmo, 2016) e atualmente se preza pelo relacionamento humanizado e hermenêutico entre profissional de saúde e paciente. Valoriza-se uma intervenção continente que possibilite a compreensão e participação do paciente em seu tratamento, e não apenas com enfoque na semiologia.

Conhecimentos biomédicos previamente adquiridos são insuficientes para compreender a natureza da alma. O entendimento psiquiátrico do processo patológico de modo algum possibilita o seu enquadramento no âmbito geral da psique. Da mesma forma, a simples racionalização é um instrumento insuficiente. A história sempre de novo nos ensina que, ao contrário da expectativa racional, fatores assim chamados irracionais exercem o papel principal, e mesmo decisivo, em todos os processos de transformação da alma. (Jung, 1911/2011g, p. 17).

É importante que o profissional se atente às manifestações discursivas, corporais, comportamentais e psíquicas do paciente. Diante de um surto psicótico, por exemplo, considerar a expressão do conteúdo no âmbito da frequência, intensidade e de valorização do significado (conforme o sentido atribuído pelo paciente) poderão ser relevantes no acompanhamento e prognóstico do caso.

A análise psicológica deve, primeiramente, viabilizar o relato do paciente, desprendendo-se dos conhecimentos prévios e da ânsia pelo fechamento diagnóstico (Bizzaria, Tassigny, Oliveira, & Jesuíno, 2013). “(...) A rotina deve ser descartada de antemão e não nos resta outra alternativa senão aceitar por ora uma receptividade primária do inconsciente bem superior à do consciente” (Jung, 1902/2011h, p. 94, §138).

Na perspectiva da Psicologia Analítica, essa exaltação do inconsciente está associada ao conceito de complexo. Jung constatou em seus estudos que determinadas palavras evocavam respostas verbais e não-verbais distintas e com tempos de reação diferentes. Àquelas em que o paciente hesitava ou tinha alguma reação detectada por fenômenos galvânicos estava potencialmente ligada a um complexo, porque provocava efeito maior de sensibilização e/ou perturbação (Jung, 1935/2011c, pp. 64-67, §97-105).

Portanto, por produzirem reações físicas, psíquicas e emocionais, os complexos são dotados de maior ou menor carga afetiva. Quanto mais energia aglomerada, mais autônomo será o complexo, isto é, será manifesto pelo inconsciente e desprovido do controle da consciência. O movimento de emergir na consciência significa a constelação de um complexo. “Qualquer incompatibilidade de personalidade pode causar dissociação e uma separação muito grande entre o pensamento e o sentimento, por exemplo, já constitui uma ligeira neurose” (Jung, 1935/2011c, p. 186, §383).

Compreende-se que um surto se forma na psique do indivíduo. Configura-se a partir de um novo complexo carregado de afetos que se fortalecem e deslocam as ideias originárias e constituintes do ego para um segundo plano. Tal complexo apresenta autonomia e onipotência, e mesmo que momentaneamente, “permite substituir aquelas que dizem respeito à sua situação, podendo inclusive (...) recalcar as ideias contrárias mais fortes até um estado de completa (mas temporária) inconsciência” (Jung, 1907/2011d, p. 51, §84).

Este estado inconsciente também acontece no episódio psicótico, descrito como: “delírios e/ou alucinações e/ou discurso desorganizado e/ou comportamento desorganizado, com ausência de insight do paciente para a natureza desses sintomas, caracterizando um amplo comprometimento do juízo crítico da realidade” (Del-Ben, Rufino, Azevedo-Marques, & Menezes, 2010, p. 79).

Jung (1935/2011c, p. 24-25, §19) afirma que quando o ego se desintegra os valores do indivíduo também desaparecem. A função egoica passa a não atuar mais inteiramente, tão pouco de forma voluntária. Conforme a autonomia do complexo, este é capaz de perturbar mais intensamente ou menos o ego, desencadeando efeito dissociativo por perturbar o equilíbrio psíquico (Kalshed, 2013, p. 171).

Para a Psicologia Analítica é imprescindível que o conteúdo psíquico expresso no relato do paciente seja entendido não apenas no campo do intelecto, mas também do afetivo, com interpretações e associações simbólicas. Jung considera que os símbolos são resultantes do inconsciente do homem, o qual usa as imagens para expressar a linguagem da alma humana (Jung, 1911-1912/2011g, p. 277, §346; Rodrigues, 2012, p. 49). Portanto, além da história descrita, é preciso compreender o valor e o sentido dos componentes dessa fala. “(...) o próprio psicoterapeuta tem antes do mais a tarefa de recompreender os símbolos para poder compreender seu paciente nesta procura compensatória inconsciente por uma tomada de posição que exprima a totalidade da alma humana” (Jung, 1911/2011g, p. 277, §346).

Objetivou-se o relato de um caso atípico de experiência profissional ocorrido em contexto hospitalar. Constatou-se que o complexo constelado ocorreu posterior à demanda inicial dos atendimentos ao paciente, tornando-o intrigante porque as temáticas e associações que emergiram eram desconhecidas até então. Adiante, foram apresentadas interpretações simbólicas pelo referencial teórico Junguiano, bem como o encaminhamento por parte da Psicologia no contexto hospitalar.

 

MÉTODO

Foram realizados atendimentos psicológicos clínicos semanais ao paciente em enfermaria entre fevereiro a julho de 2014, e acompanhamento à cuidadora primária (mãe) em sala privativa, como parte da rotina de enfermaria do Serviço de Transplante de Medula Óssea de um hospital universitário.

O protocolo do setor de atendimento ao paciente cumpre as fases de 1) acolhimento (quando este é encaminhado para ser submetido ao TMO), 2) avaliação psicológica pré-transplante, 3) atendimento psicológico durante a internação do transplante, 4) acompanhamento pós-alta em hospital dia e 5) disponibilização do atendimento conforme solicitação da equipe e/ou do próprio paciente no período pós-TMO. Os atendimentos à familiar visam ao suporte psicológico e emocional da rede de apoio e contribuíram para coletar dados sobre a história pessoal do paciente, o que auxiliou na diferenciação entre elementos reais e fantasiosos na história narrada.

O recurso do desenho foi utilizado de forma complementar ao relato, a fim de enriquecer a compreensão do conteúdo simbólico presente na vivência do surto. Os conteúdos do inconsciente podem projetar empiricamente algo que esteja concomitantemente ocorrendo no corpo. Gregg M. Furth (2004) corrobora esta compreensão ao dizer que os desenhos são comunicações diretas provenientes do inconsciente e que não são facilmente camufladas, oposto à comunicação verbal.

Desenvolvimento
Relato do caso: agricultor de profissão e jardineiro da alma

Gênero masculino, 35 anos, solteiro, agricultor, criado em ambiente rural sob os cuidados maternos com educação rígida e forte crença cristã. Diagnosticado com Síndrome Mielodisplásica, uma doença hematológica em que ocorre a produção insuficiente de células sanguíneas. Apresenta incidência de 2 a 12 em cada 100.000 habitantes/ano na população geral e a média de idade dos indivíduos acometidos é de 65 a 70 anos (Macedo, Mattos & Silva, 2016; Silva & Nascimento, 2018). No presente caso analisado, a doença se originou de forma secundária no contato com agrotóxicos.

Foi submetido ao Transplante de Medula Óssea (TMO) para fins curativos. O tratamento em si é invasivo, de longa duração com possibilidade significativa de ocorrerem intercorrências clínicas. O paciente passou por algumas reinternações devido a infecções virais e monitoramento da Doença do Enxerto Contra o Hospedeiro, sendo a última admissão marcada pela produção psíquica que se apresentou como um surto psicótico, foco de discussão no presente trabalho.

Ressalta-se que na avaliação psicológica pré-transplante, não apresentou indícios de transtornos de humor, tão pouco histórico de acompanhamento psicológico e psiquiátrico na história mórbida pregressa, tanto pessoal como no contexto familiar. A avaliação constatou baixa escolaridade, condições de organização do ambiente e autocuidado pouco favoráveis ao pós-transplante e alteração cognitiva com necessidade de adequação das orientações clínicas ao nível de compreensão do paciente, o que compõem fatores de vulnerabilidade psicossocial.

Foram realizados exames e ajustes nas medicações por uma suspeita de dose não controlada e má adesão ao tratamento. Porém, mesmo sob o monitoramento em ambiente de internação, o parecer final das comorbidades comportamentais não apresentou causa definida, enfraquecendo a hipótese de reação adversa medicamentosa. Há registro na literatura de quadro de surto psicótico em pacientes transplantados, contudo não é a adversidade mais frequente associado ao TMO. Encontra-se maior desenvolvimento de transtornos psicológicos como transtorno de ajustamento, ansiedade e depressão e disfunções neurocognitivas (Sasaki et al., 2000; Khan et al., 2007; Buchbinder et al., 2018).

Ocorreram várias crises e conflitos no processo de tratamento do paciente que denotam o detrimento da personalidade, com a presença da tensão originária na própria angústia. Esta, por sua vez, busca o equilíbrio advindo da falta de unidade projetada por meio do conteúdo delirante, cujos recortes experienciados pelo paciente serão detalhados a seguir. A análise dos conteúdos do delírio foi feita a partir de três produções verbais espontâneas, sendo duas complementadas com produções gráficas feitas pelo paciente.

Complexidade psíquica manifesta: representação do espírito corporificado

Relato do conteúdo do surto: Uma mulher de 30 anos foi assassinada a tiros, facadas e mutilada pelo marido. Segundo o paciente, ela foi morta há cinco meses no mesmo quarto da pensão em que ele estava hospedado. A mulher possuía duas configurações visuais: uma humana e outra como espírito. O crime aconteceu próximo à cama e ela foi levada até a porta do banheiro, onde permanece em estado de putrefação. O paciente contou que havia marcas de tiro no chão, uma bala ainda cravada e riscos feitos com faca. Seu corpo estava sob os tacos de madeira do chão e provocavam um cheiro de morte impregnante que contaminava as roupas do paciente e que também era sentido internamente, ativando um gosto amargo na boca. O espírito bagunçava o quarto da pensão e era possível ouvi-lo se movimentar, emitindo som semelhante ao de um plástico sendo arrastado. O paciente estava convicto que a mulher estava nervosa porque não recebeu a última benção do padre – a unção dos enfermos – para descansar em paz.

Neste atendimento psicológico, ele estava em vigília há 30 horas, pois tinha medo e assustava-se facilmente. Durante a madrugada, já readmitido à unidade de internação, o paciente não via mais o espírito, mas ainda se sentia observado, com uma convicção dogmática inabalável; sabia de sua proximidade quando sentia frio ou se a torneira gotejasse sem ser intencionalmente aberta. Inervações e sensações corporais acompanham a tonalidade afetiva, tendo o paciente apresentado taquicardia, respiração ofegante, olhar carregado e tom de voz mais grave.

Com delírios de prejuízo e de perseguição, ele acreditava que o espírito queria lhe fazer mal e que poderia até matá-lo caso não ficasse atento. Diante da ameaça, o medo gerado resultou em associações expressas por reações corporais. Encontrava-se tão indiferenciado nesse surto agudo que a intensidade dos pensamentos delirantes (toda a narrativa construída) e alucinações visuais (espírito e evidências do crime), auditivas (som do plástico), olfativas (cheiro impregnante) e gustativas (sensação de amargura na boca) chegavam a contaminar seu corpo. Isso é inferido devido aos automatismos sensoriais, sensitivos e psicomotor, e pela percepção e interpretação equivocadas da realidade em si.

Jung (1907/2011d, p. 50, §83) coloca que a nossa personalidade – o modo como agimos, sentimos e pensamos – é formada por afetos que formam um complexo, cuja instância psíquica mais evidente é o Eu. Quando em situação de perigo, o complexo do Eu que está carregado de tonalidade afetiva, é enfraquecido e se torna secundário. O foco passa para a situação ameaçadora que constela um complexo afetivo mais forte do que a expressão psicológica do Eu.

Concomitante às projeções de complexos constelados e delirantes, o paciente apresentava prognóstico reservado nessa etapa do tratamento. Já havia passado por todo o processo invasivo que caracteriza o TMO e, devido à piora do estado de saúde, aproximava-se da morte. Na narrativa o paciente constatou que a mulher buscava pela unção dos enfermos, tal como ele também demandava. O sacramento da extrema-unção isenta o sofrimento dos fiéis após a morte e assegura um bom final de vida (Costa & Martins, 2011, p. 253).

Esse recorte da trama é análogo ao conflito interno vivido em que almejava a purificação, a ressurreição. É como se essa ideia-imagem pudesse lhe ajudar no resgate da integração psíquica que se apresentava perturbada e em desequilíbrio significativo naquele momento. A imagem conflitante representava o que o paciente necessitava, apaziguar após a dissociação e polarização de suas sensações e crença de ser um pagão impuro.

Além do ritual de purificação dos pecados, o batismo simboliza “uma lavagem moral ligada ao arrependimento e mudança efetiva na condução da vida por meio da efetiva mudança de mentalidade” (Kruse, 2013, p. 56). Nos atendimentos psicológicos pré-TMO foram construídas, junto com o paciente, correlações do tratamento com o seu cotidiano enquanto agricultor: enxertar células-sementes para uma futura pega medular é equivalente a semear para obter um bom plantio. Por meio desse recurso metafórico, o paciente poderia compreender e ressignificar com maior facilidade o processo pelo qual seria submetido.

Em análise simbólica, o TMO se assemelha ao processo de renascimento das células hematológicas. Assim, renovadas, é como se o sistema sanguíneo fosse tão jovem como o de um bebê. Por ser um tratamento com intenção curativa, apesar do alto índice de morbimortalidade (Gratwohl et al., 2010), há também a analogia com uma segunda chance de vida. A trajetória é envolta por sacrifícios e pela incerteza na balança entre a vida e morte.

A metáfora da renovação – correlação do novo com o puro – levou o paciente a procurar por um padre por entender que precisava ser batizado novamente no ritual cristão, já que não havia sido abençoado com o organismo internamente novo. “O batismo, pois, faz parte da ação salvífica de Deus em favor do ser humano” (Kruse, 2013, p. 64). Porém, seu pedido foi recusado porque já fora batizado ao nascer. A declinação do padre gerou grande irritação e abatimento ao paciente.

O renascimento também se faz presente nas representações coletivas. Jung descreve que “o próprio Cristo nasceu duas vezes: através de seu batismo no Jordão ele renasceu pela água e pelo espírito” (1936/2000, p. 56, §93). A correlação simbólica da fala do paciente com o cristianismo está presente em suas crenças pessoais trazidas desde o primeiro internamento. Em anamnese psicológica pré-TMO, constatou-se que a religião exercia fator protetivo ao seu funcionamento psíquico. Tendo isso em vista, releva-se a correlação da simbologia cristã no relato do paciente.

Descida ao Hades: o desvelamento de conteúdos psíquicos

Descrição de uma das ilustrações do surto psicótico: Havia três túmulos em um cemitério. Sobre a primeira cova havia uma galinha preta depenada e morta, um pedaço de papelão com um garfo posicionado verticalmente. O garfo indicava que a pessoa enterrada foi morta por afogamento. No segundo túmulo havia um abacaxi cortado ao meio, sendo uma metade cheia de pregos fincados e, a outra, dada para o morto comer. O paciente não soube dizer para quê foi usada, mas a fruta representava a pessoa. Cada prego foi colocado como se espetasse uma parte do corpo. No terceiro túmulo, o paciente encontrou suas vestes de primeira comunhão enterradas. Ele e a sua mãe cavaram a terra até retirarem as roupas. Disse ainda que sua irmã as colocou ali e que tem certeza de que ela poderia lhe fazer algum mal.

Segundo a mãe, a situação descrita no cemitério nunca aconteceu e ela apresentava um posicionamento judicioso em relação ao filho, sendo repressiva diante do interesse dele sobre os rituais nos túmulos, censurando tudo o que contradissesse a crença cristã.

A análise simbólica deste cenário permite inferir que o abacaxi que retratava a pessoa remete à prática de vodu e também ao sacrifício de Jesus quando foi crucificado. Além disso, outro elemento cristão presente no relato é a roupa da primeira comunhão. A cor branca e o período em que este ritual acontece, na infância, reportam à época em que o paciente ainda se considerava puro. A forte crença religiosa o guiava para se manter puro, isto é, absolvendo-o de maus pensamentos. “A relação com o sagrado puro torna puro aquele que dele se aproxima; inversamente, a abertura ao sagrado impuro arrasta para a impureza aquele que dele faz experiência” (Varanda, 2003, p. 387).

Outro elemento passível de análise psicológica clínica e simbólica é o garfo. Alusivo ao tridente, simboliza o Deus dos Mares – Poseidon. O finado neste túmulo foi afogado, o que remete a uma morte muito angustiante, pois impede forçosamente de captar um elemento vital à sobrevivência humana – o ar. A figura mitológica é conhecida pela ira e vingança ao criar monstros e tempestades que destruíram cidades inteiras.

Assim como o temperamento de Poseidon, ora nos encontramos na superfície, ora mergulhamos “em águas mais profundas onde a luz não penetra, imperando aí o reino dos instintos bravios e dominadores” (Oliveira, 2009, p. 153). O paciente trouxe o que havia de mais profundo em si, apresentando-se de forma agressiva e hostil quando desacreditado ou fisicamente contido no momento do surto. Uma vez que a sensação é experienciada, torna-se praticamente impossível desmentir a vivência ou retornar ao estado anterior sem se deixar influenciar pelo ocorrido, pela revelação da sombra.

Segundo Jung (1935/2011c, p. 253, §537), a aproximação do mistério da morte provoca uma adumbratio, uma sombra projetada, que invade a vida, os sonhos e fantasias do paciente. Ao olhar retrospectivamente a trajetória pessoal, abrem-se perspectivas assustadoras sobre vida e morte, sendo esta última dificilmente percebida como continuação de um processo natural. “Em confronto com a morte, a vida nos parece sempre como um fluir constante, como a marcha de um relógio a que se deu corda e cuja parada afinal é automaticamente esperada” (Jung, 1934/2011a, p.361, §796).

Dando sequência às interpretações da narrativa, pontua-se sobre a relação do paciente com a imagem internalizada da figura materna. Esta foi constituída pelas experiências vividas nas realidades objetiva e subjetiva, somada aos registros de desaprovação real e imaginária sobre o contato com rituais pagãos. De fato, a imagem de mãe também engloba o papel de proteger seu filho contra os perigos da alma: “(...) encerra em si tudo o que há de maternal, tudo o que existe de solicitude e simpatia; encerra, ainda, certa autoridade mágica e uma sabedoria que não vem da razão, da instrução, do estudo” (Santos, 1976, p. 51).

A mãe é a primeira imagem da alma (Jung, 1911/2011g, p. 508, §678), vista como representante do feminino no homem, a feminilidade inconsciente, isto é, a anima. Tudo relativo ao feminino se manifestava de forma negativa na vida do paciente: o espírito feminino que quer lhe ferir; a desconfiança na irmã e a certeza de que ela lhe faria um mal; insucessos nas poucas tentativas de se relacionar amorosamente com uma mulher; a educação materna rígida pautada no catolicismo. Pode-se tratar da presença da anima negativa.

A anima é um fator de maior importância na Psicologia do homem, sempre que são mobilizadas suas emoções e afetos. Ela intensifica, exagera, falseia e mitologiza todas as relações emocionais com a profissão e pessoas de ambos os sexos. As teias da fantasia a ela subjacentes são obra sua. Quando a anima é constelada mais intensamente ela abranda o caráter do homem, tornando-o excessivamente sensível, irritável, de humor instável, ciumento, vaidoso e desajustado. (Jung, 1936/2000, p. 82, §144)

“O complexo forma, por assim dizer, uma pequena psique fechada, cuja fantasia desenvolve uma atividade própria. Aliás, a fantasia é a atividade espontânea da alma, que sempre irrompe quando a inibição provocada pela consciência diminui ou cessa por completo (...)” (Jung, 1929/2011b, p. 69, §125).

Isso se traduz em um confronto com a anima visando à resolução do conflito interno. Na narrativa há a cena do paciente junto com a mãe (representante do feminino) cavando a terra, indo ao fundo, às profundezas do inconsciente, em busca da aceitação e integração da anima e do complexo materno. Integração aqui não se refere à fusão indiferenciada; deve ser entendida como a síntese elaborada a partir da união entre consciente e inconsciente (Jung, 1911/2011g, p. 359, §459).

Jung nomeou de processo de individuação o movimento de: estruturação do ego, autoconhecimento crescente e gradativo e diferenciação de si em relação a estruturas inconscientes que levam à realização da personalidade originária. Apesar de produzir confronto entre sujeito e objeto, o processo de individuação também está implicado na separação e distinção da mãe (Jung, 1911/2011g, p. 469 - nota de rodapé 14). O embate entre os opostos “causam tensão no psiquismo do indivíduo, tensão que o leva a progredir, a caminhar para sua individuação” (Santos, 1976, p. 52).

Manter os opostos afastados serve para evitar conflitos. Se por um lado não causa embates com o inconsciente, por outro, o indivíduo não evolui e tão pouco se transforma. Em outras palavras, ele permanece na repetição e não se cura do próprio veneno.

A condição interna inerente ao próprio paciente, somada à limitação do meio social e familiar não fomentaram a busca por desenvolvimento pessoal ou autorrealização. Não foram constatadas oportunidades e nem possibilidades motivacionais e pessoais de executar grandes mudanças internas, por isso, o paciente se encontrava passivo e resignado na convivência com a mãe e no cumprimento do trabalho agrícola. Não ampliava a consciência em suas atividades de rotina e, portanto, não conseguiu se desenvolver e nem investir em seu processo de individuação.

Em contraponto, observou-se a valorização e construção da persona, ou seja, maior investimento na adequação ao coletivo, ao que o externo desejava que o indivíduo fosse. Por conseguinte, a identidade do paciente se limitava às características impostas: trabalhador, agricultor, bom filho – ainda preso pelas forças sedutoras e estagnantes da anima negativa internalizada. Contudo, a persona não pode ser sustentada por muito tempo, e inerentemente, o inconsciente busca uma forma de aproximar o que é da ordem do natural, direcionando ao processo de individuação (Jung, 1928/2011e, p. 85, §310).

Quando o homem está em desarmonia consigo mesmo, possibilita o aparecimento de compulsões advindas do inconsciente, elementos até então indiferenciados. A proposta de conscientização de certos conteúdos visa à diferenciação do indivíduo em relação ao coletivo (Jung, 1928/2011e, p. 116, §373).

O contexto da doença, tratamento e da ambientação hospitalar podem ter revelado a existência de uma falta significativa em relação às próprias tendências, desejos, aspirações e necessidades. A internação para o transplante implica o isolamento e essa condição indica aumento da tensão-ansiedade em comparação ao estado anterior à hospitalização dos pacientes (Sasaki et al., 2000). O afastamento físico do mundo possibilita a imersão subjetiva, ou seja, aproximação simbólica de si.

O contato com um novo cenário sugere que um maior impulso mandatório para esse processo ocorreu na chegada à capital e suas consequentes descobertas contrastantes: pessoas, ambiente urbano / hospitalar, tecnologias, aprendizados, estilos musicais diferenciados, roupas menos recatadas. A apreensão das novidades aliada ao desejo inconsciente de busca pela autonomia (independência da mãe, casamento e das próprias amarras sombrias), extrapolaram os recursos que o paciente conhecia para que conseguisse lidar com a angústia e a tensão situacional de forma consciente. Infere-se que o indivíduo visava à integração interna, que pode ser representada pela imagem da anima (negativamente constelada), mas acabou sendo tomado pela expressão traumática e caótica dos conteúdos psíquicos provenientes do seu inconsciente criativo durante a vivência do surto.

Jung (1955/2011f, p.19, §1) explica que essa questão dos opostos é manifesta como dissociação da personalidade no campo psíquico. A união dos opostos, denominada de coniunctio, não se trata da integração entre desiguais, mas de elementos singulares que complementam o indivíduo, contribuindo à vivência harmônica.

Jogo da vida: recolhimento da consciência na escolha das próprias cartas

Descrição de outra ilustração feita pelo paciente: Explicou como se joga as cartas de tarô para visualizar o futuro amoroso. Paciente relatou que não tinha o costume de jogar as cartas de amor, apenas as que referiam à vida pessoal, família de origem e ao trabalho. Segundo ele, as cartas de amor do baralho contêm desenhos como aranha, coruja, corvo e cobra.

Os animais também possuem significados simbólicos. A aranha está carregada por elementos contraditórios (Becker, 1999) por ser capaz de tecer com arte e estrutura, é representante da ordem cósmica. Mas também, sua teia é facilmente rompível, então simboliza a presença de mau instinto e do azar.

É partícipe do status da coruja que está entre as aves noturnas que não suportam a luz e é vista como aquela que prenuncia algo funesto. O corvo também representa mau-presságio, que anuncia a doença, conflito e morte, sendo que a bíblia o coloca entre os animais impuros. Por fim, o simbolismo da cobra perpassa desde o mundo dos mortos até o renascimento, uma analogia com as constantes transformações oriundas das trocas de pele (Becker, 1999).

A doença e o tratamento se encaixam nas metáforas com alguns animais por remeter à escuridão, impureza e mundo nefasto. Estas fizeram parte do seu processo de individuação e serviram às forças anímicas como oportunidade fomentadora de renovação e renascimento.

Até então, o paciente nunca havia exposto relatos de relacionamento amoroso, o que tornou a temática interessante aos atendimentos clínicos pré e pós-episódio do surto psicótico agudo. Tal como as cartas em um jogo, esse assunto era descartado de sua vida; tinha somente o hábito de jogar com as cartas que representavam o coletivo, exatamente como sua vida era conduzida.

Em relação às cartas de amor do baralho, o paciente as ilustrou e disse que para ver o futuro amoroso de um homem, é preciso dispor três cartas que formam um triângulo com a ponta voltada para cima. Para a mulher, colocam-se três cartas que formam um triângulo invertido. Unem-se as seis cartas, obtendo-se o formato de um losango. Simbolicamente, Becker coloca que o triângulo com a ponta para cima “é símbolo do fogo e da força geradora masculina”, enquanto o triângulo com a ponta para baixo “é símbolo do fogo e da água e do sexo feminino” (1999, p. 281).

A fala do paciente associada à representação simbólica dos componentes de seu discurso descrevem elementos advindos do inconsciente coletivo. Lembrando que ele era morador da região rural, com nível de escolaridade fundamental incompleto, leigo em termos de estudo sobre simbologias, e que sua mãe nega que ele tivera contato com esse tipo de temática.

No último atendimento da Psicologia, o paciente referiu-se ao espírito uma única vez como uma experiência difícil de esquecer. O complexo constelado pelas alucinações e delírios ainda se faziam presentes na realidade subjetiva do paciente. Surgiu um sentimento de medo, pois contrapõe ao que é conhecido do mundo, abalando as crenças do indivíduo (Jung, 1928/2011e, p. 93-94, §324). Uma carga afetiva dessa intensidade não poderia permanecer reprimida sem que houvesse um fechamento ou explicação para o paciente elaborar essa vivência e resgatar sua singularidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão de um diagnóstico pela mera rotulação se torna improdutiva por desperdiçar parte do relato daquele que experienciou, sendo preciso humildade, competência, relação e escuta qualificada e tempo para desenvolvê-lo no trabalho entre o indivíduo e o psicólogo. O caso discutido evidencia a complexidade das forças anímicas e elaborativas que precisam ser integradas para compreender a qualidade da concepção perceptiva do sujeito.

O prosseguimento do trabalho psicológico com o paciente visou ao processo de individuação por meio da integração da anima. O manejo com os conteúdos e a imagética do inconsciente é delicado, porém necessário para que haja transformação. Sendo assim, é preciso investir sobre o processo de conscientização ao viver as fantasias que se corporificam. Estas ganham forma para se expressar no mundo palpável e visível, deixando a condição anterior, fluída e fugidia, da imagem que assombra.

De acordo com Jung (1929/2011b, pp. 100-107, §193-208), a psicoterapia deve ir além dos três estágios do procedimento médico (anamnese, diagnóstico e terapia), porque o olhar do psicoterapeuta circunda o ser humano psiquicamente constituído e no reconhecimento da doença como expressão dos conteúdos dos complexos em si, e não tanto da doença enquanto quadro clínico.

A partir dessa análise é possível delinear o histórico pessoal do indivíduo e conectá-lo à demanda clínica apresentada. Essa construção se dá em prol do paciente, mas também beneficia o trabalho multiprofissional, pois auxilia o grupo a compreender e a lidar melhor com o quadro psicótico.

Diante de um surto, muitos comportamentos manifestos pelo paciente não advêm de um controle egoico, isto é, ele expressa agressividade, desconfiança e projeta suas alucinações de forma inconsciente, acarretando em angústia e dificuldades na assistência por parte dos profissionais. O mesmo ocorreu no presente estudo de caso e, apesar da aparência frágil, o paciente foi capaz de reagir inicialmente à contenção física, necessitando ser medicado para se acalmar. A Psicologia interveio na manhã seguinte ao episódio do surto, tendo (a)colhido o relato da equipe e do paciente.

Cabe ao psicólogo mediar a relação entre a equipe e o paciente de forma a resgatar o cuidado compreensivo, empático de ambos os lados e reestabelecer o convívio no âmbito hospitalar. O vínculo terapêutico construído ao longo dos atendimentos psicológicos se mostrou essencial, sobretudo no agravamento do caso. Nesse momento, poucos profissionais eram bem recebidos no quarto do paciente; somente aqueles que não haviam participado da contenção. O psicólogo passa a ser figura representativa de confiança e possibilidade de compartilhamento das angústias sem as respostas aversivas que inibem a expressão subjetiva e estimulam a defesa pessoal.

O paciente em surto psicótico apresentou discurso misto, no sentido de haver elementos que compunham vivências pessoais (fragmentos egoicos do campo da consciência) e componentes subliminares. Há benefícios no ritual de elaboração das cisões por contribuírem para a diminuição do medo e sua transformação em carga afetiva a nível suportável.

No contexto hospitalar, o acompanhamento psicológico pode favorecer na ressignificação da experiência para que o trabalho psíquico se processe e os complexos não obcequem a consciência. É importante que os conteúdos aflorados sejam manejados na relação psicoterapêutica enquanto possibilidade de via régia para o inconsciente.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: iris.okumura@yahoo.com.br

 

 

1Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Brasil.
2Unidade de Transplante de Medula Óssea, Oncologia e Hematologia do Complexo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Brasil.

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