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Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.1 n.2 supl.2 São Paulo dic. 1990

 

INFORME

 

Wittgendtein e a ética

 

 

Leônidas Hegenberg

Professor titular-colaborador do Instituto de Psicologia da USP

 

 

Wittgenstein discute questões éticas em uma conferência pronunciada em fins de 1929 ou meados de 1930. A conferência, reconstituída com base em anotações de F. Waismann, só foi publicada em janeiro de 1965, no primeiro fascículo do volume 74 do Philosophical Review.

As idéias do Tractatus acham-se, pois, a meio caminho, entre as registradas nos Notebooks (1914 a 1916) e as encontradas nesse texto lido em 1929 ou 1930.

Em certa medida, parece razoável admitir que os "tateios" dos Notebooks receberam uma primeira ordenação no Tractatus atingindo versão "final" ma conferência. Mesmo que assim não aconteça, é com base nesta exposição de 1929/30 que habitualmente se examina a ética wittgensteiniana.

· · ·

Para Wittgenstein, a ética é uma disciplina que investiga o "sentido da vida". Nosso autor sabe que não conseguiria esclarecer, de modo satisfatório, o significado dessa expressão. Isso não impede que procure mostrar porque um discurso sobre a moral seria destituído de significado.

Com esse propósito, lembra que as expressões lingüísticas da ética podem ser utilizadas ora em sentido relativo, ora em sentido absoluto. Em sentido relativo se fala, p. ex., de "um bom aluno" ou de "uma boa poltrona", de acordo com atributos previamente dispostos em uma escala. Enunciados assim construídos dizem respeito a fatos e, por isso, hão de ser verdadeiros ou falsos, conforme o caso (ou seja, conforme der Fall).

Enunciados absolutos, porém, não podem dizer respeito ao mundo. Isso leva à indagação: "Que são juízos absolutos de valor?" Diriam respeito a nossas sensações? Wittgenstein responde negativamente: tristeza, indignação, raiva, etc., também fazem parte do mundo dos fatos (exatamente como os corpos e seus movimentos). Enunciados éticos não se equiparam a proposições. Por conseguinte, não pode haver uma ciência da ética (T, 6.42). Não obstante, a ética é um momento fundamental da vida humana, um elemento que não pode ser ignorado pelos seres humanos. Necessitando falar das questões éticas, o ser humano emprega, pois, a primeira pessoa do singular.

Wittgenstein, na tentativa de esclarecer o que seriam os valores absolutos, refere-se, então (em primeira pessoa do singular), a vivências que lhe parecem ter valor absoluto.

Comenta (1) o espanto (o espanto que nos causa a simples existência do mundo); (2) a segurança (exemplificada na frase "Nada me pode acontecer", dita por uma pessoa que se sinta protegida, nas "mãos de Deus"); e (3) o sentimento de culpa (de alguém que confesse "Deus condena minha conduta").

Contudo, as três vivências são fatos. Como fatos, podem ser descritas. Daí um paradoxo: sendo vivências, são pessoais, são particulares; entretanto, parecem ter um valor sobrenatural.

Segundo R. Haller, reconhecer esse paradoxo é o que distingue a reflexão feita por Wittgenstein de outras reflexões encontradas na história da ética. Ainda de acordo com Haller, Wittgenstein não pretende, de modo algum, "afrouxar" as fronteiras que separam bem relativo e bem absoluto. Como, então, enfrentar o paradoxo?

· · ·

Wittgenstein assevera que "fora da lógica, nada no mundo precisa ser como é"; em outras palavras, "só existe necessidade lógica".

A par disso, a questão "Pode nossa vontade alterar o mundo?" recebe resposta negativa em Wittgenstein: "O mundo independe de minha vontade" (T., 6.373).

Não há, portanto, necessidade natural. Boa (ou má) vontade não afetam o mundo.

E fica a pergunta: "Que são, afinal, os valores absolutos?"

Já aos 24 anos de idade, Wittgenstein afirmava que

(i) enunciados científicos dizem respeito aos fatos do mundo;
(ii) enunciados lógicos dizem respeito à estrutura dos enunciados da ciência;
(iii) enunciados metafísicos dizem respeito ao Ser.

Estes últimos não são enunciados claros; segundo Wittgenstein, não pode haver clareza fora da ciência. Sem embargo, a ciência não nos basta.

A questão dos valores absolutos é respondida pelo Wittgenstein "metafísico". E a resposta não deixa de ser surpreendente — porque não afasta o paradoxo, mas, ao contrário, parece reforçá-lo ou ampliá-lo.

Valores absolutos não podem ser descritos com enunciados científicos ou lógicos; a boa (ou má) vontade, embora não altere o mundo dos fatos, pode alterar o mundo "como um todo".

Com a boa (ou má) vontade, atingimos as fronteiras do mundo. Estas fronteiras, de acordo com Wittgenstein, temos a capacidade de modificar — fazendo com que o mundo cresça ou diminua.

Todas as ocasiões em que Wittgenstein aborda o assunto, ele compara dois tipos de vida: a feliz e a infeliz. Para Wittgenstein, aliás, a vida feliz é o bem e a infeliz é o mal.

Nos Notebooks (30 julho 1916) encontramos:

A vida feliz parece, em algum sentido, mais harmônica do que a infeliz. Em que sentido? Qual é a marca objetiva da vida feliz, ou harmônica? É claro que não existe uma tal marca, em condições de receber descrição.

Daí a sugestão de conduzir o discurso até as fronteiras do passível de ser claramente descrito; e, desse ponto em diante, deixar de falar.

Aí fica delineada, com clareza, a linha divisória entre as possíveis questões científicas e o problema da vida.

Mas Wittgenstein não silencia a respeito da vida feliz. Em vários pontos, procura examinar o que ela poderia ser. A melhor maneira de caracterizá-la seria, talvez, asseverar que

na vida feliz (e em fases felizes da vida) há uma coincidência entre mim e o mundo. Quem vive feliz não tem medo; não se preocupa com o futuro, nem se aborrece com os atos passados — não se desequilibra...

Em seguida, Wittgenstein chega a alguns resultados mais "concretos" que as discussões precedententes — que, porém, não procura aprofundar.

Um dos resultados é este:

O mundo e a vida são uma só coisa (Die Welt und das Leben sind Eins).

Por isso, nosso corpo é parte do mundo (assim como os corpos dos animais ou como as plantas ou como as pedras).

Entretanto, a existência de um eu metafísico (um sujeito que não é parte do mundo, mas fronteira do mundo) é tão clara quanto a existência do mundo.

Há duas divindades: o mundo e meu eu independente, afirma Wittgenstein em seus Notebooks, em 8 de julho de 1916. Essas duas divindades é que se devem fundir em uma única para que o mundo humano se torne feliz.

Daí o imperativo wittgensteiniano: "Viva feliz".

· · ·

As considerações anteriores caracterizam uma ética em que a única solicitação parece ser "Viva feliz" — como se tal imperativo estivesse ao nosso alcance.

Retornando, porém, ao paradoxo (nada no mundo pode representar valor absoluto; o absoluto só se apresenta nas vivências), talvez se perceba, com alguma nitidez, que o mundo da pessoa feliz difere do mundo da infeliz.

De acordo com Wittgenstein, só o infeliz tem o direito de sentir pena dos outros. A um primeiro olhar, isso parece "restritivo": todos deveriam ter os mesmos direitos. No entanto, o "ter pena" vem de fora quando manifestado pela pessoa feliz; um "ter pena" só seria legítimo vindo de dentro, ou seja, de outra pessoa infeliz.

A alma humana (o eu metafísico) de que fala Wittgenstein não é um ponto imóvel; é algo que abraça todo um mundo, reconhecido como nosso (ou de quem o abraça). Nas fronteiras desse mundo — lá onde nossa língua não pode ancorar nas coisas — é que se encontram os valores absolutos.

Esses valores só ganham forma quando, nas vivências, se manifestam como suposições, sentimentos ou desejos.

· · ·

Não há resposta satisfatória para a questão central da vida; mas é mais ou menos suave o caminho que conduz ao ponto proposto por Wittgenstein: a ética jamais será ciência porque as regras adotadas no fazer ou operam com valores relativos e deixam de ser universais; ou operam com valores absolutos cuja validade é apenas subjetiva.