SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número1-2A questão da alteridadeA alteridade da arte: estética e psicologia índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A presença do outro na arte

 

The presence of the "other" in art

 

 

José Américo Motta Pessanha

Departamento de Filosofia da UFRJ

 

 


RESUMO

A questão da alteridade referida à arte é antiga. Pode-se pensá-la, em toda a sua complexidade, através da Filosofia de Platão. Porém, neste ensaio, ela é abordada, principalmente, através da Poética criada por G. Bachelard, pela via dos conceitos de "ressonância" e e "repercussão". A questão da Arte, nesse sentido, torna-se impensável sem a presença do Outro, não apenas nos níveis psicológico e sociológico, mas sobretudo no nível ontológico. O outro é uma categoria constitutiva do ser mesmo da imagem e da significação mesma do que é o objeto artístico.

Descritores: Arte. Subjetividade. Poética. Imagem.


ABSTRACT

In this paper the question of alterity is discussed in the light of some of the concepts of Bachelard' Poetics. There is no art without the presence of the "other", which is a constitutive category of imagery and signification of artistic objects.

Index terms: Art. Subjectivity. Poetics. Imagery.


 

 

Para pensar esse tema tão amplo e ao mesmo tempo tão vertiginoso como o tema da presença do outro na arte, pareceu-me possível propor, do ponto de vista filosófico, duas entradas, duas linhas de abordagem.

A primeira é aquela que admite o outro enquanto aquele a quem o artista dirige intencionalmente a sua obra, ou aquele que acaba sendo de fato o que usufrui, o que apreende, o que recebe, o que acolhe, o que aprecia, o que consome etc. — cada verbo sugerindo, aí, um tipo de relação com a obra de arte. Aquele, portanto, recebe, acolhe, aprecia, consome o fruto do trabalho artístico. Ou seja, nessa primeira linha de abordagem, o que se coloca é a relação entre o autor e aquilo que, por enquanto, genericamente, poderíamos chamar de seu público, através de um vínculo que é o vínculo da obra. Alguém faz algo, supostamente uma obra de arte, essa obra de arte é recebida, acolhida, apreendida, percebida, usufruída, consumida por alguém. Cria-se, assim, evidentemente, um circuito que possui uma intencionalidade mais direta, mais explícita, ou uma intencionalidade genérica e vaga. O que estamos entendendo por isso? Estamos entendendo que essa intencionalidade, para usarmos uma daquelas expressões sugeridas por um daqueles verbos — o autor e o consumidor, o autor e o apreciador, o autor e o apreendedor da obra de arte — pode ser uma intencionalidade direta, forte e explícita, tal como aparece, às vezes, até na dedicatória da obra. Beethoven compõe für Elise, "para Elisa", e ela é evidentemente a Elisa, o outro mais forte, mais direto dessa composição de Beethoven; só que o für Elise é infinitas vezes tocado, não apenas por Elisa ou para Elisa, mas para qualquer um de nós. E nesse momento a intencionalidade dispersa, ampla, se coloca na relação autor e público/Então, nós podemos pensar nesse circuito de intencionalidade forte, direta e explícita, no caso da obra dedicada, ou podemos, e é o caso mais freqüente, pensar na obra que, simplesmente por ser obra, por ser objetivada, por ser exposta, por ser dada ao público, por ser entregue ao público, passa a ser, agora, consumida, usufruída, apreciada, recebida... por um público. Ou seja, essa maneira de pensar a questão do outro na arte é sempre aquela maneira que sai do autor e chega a alguém, a muitas pessoas, através de um circuito que a obra estabelece. E, repetimos, é um circuito intencional, de intencionalidade direta e explícita ou de intencionalidade dispersa na própria publicidade que se dá ao produto do trabalho.

Trata-se, portanto — e essa é uma dimensão que nós não podemos jamais esquecer na apreciação desse problema — de um circuito intersubjetivo, um circuito que tem sido analisado e compreendido de inúmeras maneiras, sob diversos ângulos. Pode ser apreciado desde a relação alma a alma, numa relação íntima de uma obra que é entregue a alguém, que é feita para alguém, e nesse sentido podemos pensar numa forma romântica de pensar a obra de arte. Passa também por uma relação muito mais mediatizada, que é a maneira de apreciar esse circuito na relação autor-público via a mediatização da indústria e do mercado cultural. Esclarecendo melhor, o circuito intersubjetivo e interpessoal, que é o circuito da relação autor-público, autor-consumidor (o apreendedor da obra), via a própria obra, aquela intencionalidade mais forte ou mais dispersa pode ser tanto uma intencionalidade dirigida para alguém como pode estar amplamente, fortemente mediatizada por todos esses mecanismos que, sobretudo hoje, interferem na apreciação, na apreensão da obra de arte, que são os mecanismos da indústria cultural e do mercado cultural. Conforme enfoquemos a relação alma-alma ou a relação autor-público via mercado, teremos níveis de abordagem totalmente diferentes.

Se fôssemos aqui mapear todas essas possibilidades de intersubjetividade e de níveis desse circuito, evidentemente abriríamos um leque amplíssimo para a discussão do problema do outro na arte; do outro na condição de intersubjetividade, do outro que aparece como aquele a quem a obra se dirige, para quem a obra é feita intencionalmente, numa intencionalidade direta ou numa intencionalidade dispersa. Evidentemente, não nos será possível apreciarmos todos esses caminhos que levam a reflexões variadíssimas.

Gostaríamos aqui, apenas para ilustrar uma maneira de entender esse tipo de circuito, de usar um dos meus referenciais filosóficos prediletos, que eu mais tenho freqüentado: a colocação bachelardiana a respeito dessa questão, a respeito desse circuito. Em vários trabalhos de Bachelard, essa questão é colocada, mas aparece explícita e de forma muito polêmica, embora muito clara, na sua famosa "Introdução" à Poética do Espaço. Nessa obra, Bachelard rompe claramente com todas as explicações causais, de tipo psicologista, para explicar a verdadeira imagem poética, e não qualquer imagem considerada poética. Ele vai falar exatamente de uma relação autor-público, uma relação intersubjetiva, baseada numa categoria que ele extrai de Minkovski, a categoria da repercussão, a categoria do retentissement.

Só para esclarecer e ilustrar esse tipo de abordagem, porque existe uma segunda muito rica, que nos leva a outra ordem de considerações, é necessário lembrar que Bachelard, questiona a possibilidade que a imagem poética ser explicada dentro de uma perspectiva causal ou seja, que possamos encontrar antecedentes ou fundamentos que expliquem a natureza da verdadeira imagem poética. Com isso ele vai se contrapor frontalmente aos psicólogos, de modo geral, e de uma forma ainda mais dura a um certo tipo de psicanálise freudiana que prevalecia no seu tempo, e que tentava explicar psicanaliticamente, e de forma exaustiva, a questão da imagem poética, a questão da obra de arte. O que Bachelard vai dizer, contrapondo-se a psicólogos e a psicanalistas, de uma forma geral, é que não podemos, de forma nenhuma, reduzir a imagem poética verdadeira ao aparecer de uma questão psicológica formulada sublimadamente através do artifício da obra de arte. Bachelard vai, dentro de todo o seu trabalho, mas sobretudo nessa "Introdução à Poética do Espaço", insistir que a imagem poética verdadeira não tem causa antecedente porque ela é uma novidade, uma irrupção dentro de um certo tipo de linguagem, é um momento de linguagem jovem, é o aparecer do novo, e esse novo jamais se reduz aos velhos antecendentes que, por pressuposto, estariam no fundo justificando essa imagem. Por isso mesmo, se ela não tem uma causa antecedente, se ela não pode ser explicada através da categoria de causa ou de fundamento, ela, evidentemente, terá de ser apreendida e justificada nela mesma, através daquilo que ele chama de apreensão direta, de fenomenologia direta, de fenomenologia que apreende diretamente o ser, o ontos da imagem, sem tentar ver na imagem a tradução ou o escatemoteamento de uma outra coisa da qual ela, imagem, seria apenas o disfarce, apenas a cobertura.

Ao longo de todos os seus trabalhos sobre a imaginação, Bachelard vem insistindo nesta tecla: na verdade eu não posso interpretar toda imagem, qualquer imagem, sobretudo a verdadeira imagem poética, como sendo um símbolo, uma cobertura, algo que esconde uma outra coisa e que, por isso mesmo, quando tenho a imagem, tenho de traduzi-la sempre, para tirar de dentro dela aquilo que não é ela, mas que diz o que ela é, aquilo que ela seria, mas que ela mesma não pode dizer plenamente. Ou seja, Bachelard recusa um tipo de intelectualismo que ele percebe também no pensamento de Sartre, que está trabalhando sobre a questão da imaginação nessa mesma época, recusa a postura intelectualista de fundo cartesiano que chega até Sartre e que faz com que toda a imagem seja, no fundo, o disfarce de um conceito, um conceito revestido, um conceito mascarado e, por isso mesmo, o trabalho da apreensão da imagem acaba sendo sempre um trabalho de tradução, um trabalho de dizer da imagem aquilo que a própria imagem não diz de si mesma. Por isso, o trabalho de apreensão acaba sendo um trabalho de leitura, de tradução e de transformação da imagem no conceito, ou seja, a negação de uma possibilidade ontológica na imagem, a afirmação da impossibilidade de a imagem, de alguma imagem, nem que seja a verdadeira imagem poética, ser imagem propriamente.

Dito de outra maneira, o que Bachelard acusa (depois veremos como isso leva à questão do outro) nessa maneira intelectualista de sempre cobrar da imagem que ela seja traduzida e tire de dentro de si mesma o conceito que está ali escondido, o que ele acusa ali, na verdade, é a interpretação da imagem poética como sendo, necessariamente, sempre, uma alegoria. Ou seja, toda imagem deveria remeter a uma significação fora dela, a um ales, a alguma coisa exterior a ela própria. Se ela conduz para fora dela, então, toda imagem é traduzível e toda imagem é alegoria. Ao contrário, Bachelard não usa essa expressão. Essa expressão pode ser encontrada em outros autores. Ao contrário, o que Bachelard mostra é que a verdadeira imagem poética, fundo do discurso artístico verdadeiro, é uma imagem tautegórica, ou seja, que se remete para si mesma, que tem uma significação enquanto imagem em si mesma, e é como tal que ela tem de ser apreendida.

Por isso mesmo é que Bachelard luta com as interpretações chamadas psicologistas, psicanalíticas, sobretudo contra a psicanálise de seu tempo. E faz isso por vários motivos, ao longo de sua obra. Defende que nós admitamos um ontos próprio da imagem poética, da verdadeira imagem poética, esse evento novo de linguagem, essa criação, essa irrupção do novo, essa juventude de linguagem, como ele diz. E aí que entra a nossa questão, a questão do outro que pode ser importante na relação do artista com seu público e do artista com a sua própria obra. Mostra Bachelard que a imagem verdadeira, verdadeiramente poética, apresenta uma característica muito curiosa: independente de quando e onde foi produzida, ela pode chegar a mim, a qualquer um de nós como um impacto, como um impacto que me transtorna fundamentalmente, como um impacto que de alguma maneira produz em mim um retentissement, uma repercussão. Ora, diz Bachelard, se eu pudesse explicá-la na sua origem, na sua produção, lá na obra de arte, no discurso artístico, como sendo apenas fruto de uma experiência pessoal, expressão de problemas psicológicos ou situações psicológicas vividas pelo autor, se ela fosse apenas isso, eu poderia com ela explicar a vida, quem sabe a infância do autor, mas eu jamais poderia explicar porque ela, estando tão arraigada, tão fundamentalmente arraigada na psicologia do autor, na vivência do autor, no tempo do autor, na circunstância do autor, consegue vir a mim atravessando os séculos, atravessando culturas e produzir em mim aquele retentissement, aquela repercussão. Se ela fosse apenas a expressão camuflada, escamoteada de um problema psicológico, de uma situação psicológica, ela seria a expressão do problema dele; no entanto, quando ela chega a mim, quando eu a apreendo e ela me transtorna, me abala, e mais, quando eu tenho a impressão — e freqüentemente nós temos esta impressão — de que aquela imagem, na verdade, deveria ser minha, que eu poderia ter sido autor dela, ela me diz respeito, ela me concerne; quando nós, na apreensão da imagem, temos esse tipo de impressão, quando participamos da imagem com essa força, o que fica negado aí é o enraizamento total e completo daquela imagem nas circunstâncias, nas molduras psicológicas do produtor, do autor. Ela, na verdade, fica sendo algo cuja estranha natureza, natureza de não-coisa, diz Bachelard concordando com Sartre, natureza de não-coisa que aparece para nós como uma quase-coisa, continua ele concordando com Sartre, ela mostra nessa sua estranha natureza de não-coisa quase-coisa, quase-coisa que aparece num aparecer que não é um aparecer de objeto, que é um aparecer de não-objeto ou de quase-objeto o tempo todo (estou falando sobretudo da imagem poética, literária). Ela é alguma coisa que tem essa sua estranha e específica natureza mostrada nesse processo de encontro entre um produtor que pode estar distante — pode ser Homero — e um que a apreende, que a recebe, que a sofre e que a padece e que, de certa maneira, vê que ela ecoa nele de uma tal forma que ela parece dele, outro que a recebe. Ou seja, o fato de existir esse circuito, o fato de haver o retentissement coloca o ontos, a natureza da imagem, nesse circuito da relação, e impede que ela possa ser reduzida a qualquer tipo de explicação causal que a torna a expressão do produtor ou simplesmente a justificativa ou a explicação daquele que a recebe. Ela passa a ter uma ontologia que se define pela possibilidade da repercussão, ou seja, ela tem uma ontologia que se institui no circuito intersubjetivo, que nesse momento ignora as limitações de tempo, de espaço e de circunstância. Ela não se reduz a quem a produz, ela não se reduz a quem a recebe, ela existe, ela existe multiplamente, em múltiplos circuitos transubjetivos e intersubjetivos, e só aí é que ela vive enquanto imagem poética.

Apesar de não desejarmos tornar longa demais esta exposição, vamos tentar lembrar aqui algumas pequenas passagens de Bachelard1 onde essa questão é tematizada. Diz ele:

é muitas vezes no inverso da causalidade, na repercussão (retentissement), tão cuidadosamente estudada por Minkovsky, que acreditamos encontrar as verdadeiras medidas do ser de uma imagem poética. Nessa percussão, a imagem poética terá uma sonoridade do ser. O poeta fala no âmago do ser. Será necessário pois, para determinar o ser de uma imagem, senti-la em sua repercussão como no estilo da fenomenologia de Minkovski. Dizer que a imagem poética escapa à causalidade é, sem dúvida, uma declaração que tem gravidade. Mas as causas alegadas pelo psicólogo e pelo psicanalista não podem jamais explicar bem o caráter realmente inesperado da imagem nova, como também não explicam a adesão que ela suscita numa alma estranha ao processo de sua criação. O poeta não me confia o passado de sua imagem e, no entanto, sua imagem se enraiza, de imediato, em mim. A comunicabilidade de uma imagem singular é um fato de grande significação ontológica (p.5-6).

Ou seja, a imagem jamais é em si, a imagem jamais permanece jazendo numa situação fechada e determinada, por isso mesmo ela não pode ser absorvida por nenhum processo redutivista de análise causal, mas existe sempre num intercâmbio, num circuito, que, ignorando as condições de espaço e de tempo, tem nessa própria condição de comunicabilidade, nessa própria natureza da repercussão o seu espaço próprio, o seu lugar próprio. Mais adiante, Bachelard vai dizer o seguinte: "Pareceu-nos então que essa transubjetividade da imagem não podia ser compreendida em sua essência só pelos hábitos das referências objetivas"(p.7). E são esses hábitos das referências objetivas que determinam todo o trabalho reducionista que freqüentemente impera na apreciação da obra de arte, tornando-a mera expressão de uma psicologia, de um momento, de uma época, de uma classe, de uma sociedade etc, e fazendo com que o ser da imagem e toda a realidade da arte, afinal de contas, seja considerada apenas um epifenômeno, uma super-estrutura de alguma coisa muito mais fundamental que estaria embaixo, a lhe dar determinação. Continua ele:

Só a fenomenologia, isto é, o levar em conta a partida da imagem numa consciência individual, pode ajudar-nos a restituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem. Todas essas subjetividades, transubjetividades, não podem ser determinadas definitivamente (p.7).

É claro, porque é um circuito, um circuito variacional e um circuito aberto das várias repercussões, evidentemente jamais existe o circuito legítimo, jamais existe a repercussão definitiva. A imagem é na verdade um feixe de possibilidades que vão se definindo através das efetivações dessas várias repercussões. "Todas essas subjetividades, transubjetividades, não podem ser determinadas definitivamente. A imagem poética é essencialmente variacional" (p.7).

Mais adiante, esclarecendo melhor, Bachelard vai dizer o seguinte: "é nesse ponto que deve ser observada com sensibilidade a duplicidade fenomenológica das ressonâncias e da repercussão" (p.9). E aqui Bachelard faz uma distinção muito interessante, uma grande distinção entre o que ele chama de "repercussão" e o que chama de "ressonância". A ressonância será colocada muito mais no nível superficial do "espírito", ao passo que a repercussão vai muito mais dentro, vai muito mais fundo naquilo que Bachelard chama de "alma". Embora francês, Bachelard está profundamente marcado pelo Romantismo Alemão e essa passagem é um dos momentos em que ele resgata a tradição romântica alemã, resgata uma duplicidade de categorias que o pensamento francês clássico negligenciou bastante: a duplicidade entre espírito (der Geist) e alma (die Seele). Ele acha fundamental, sobretudo no caso da compreensão do problema artístico, que essas duas categorias lembradas e diferenciadas. O espírito leva para o conceito, o espírito leva para a elaboração intelectual, a alma é exatamente, segundo ele, o agente produtor e receptor do circuito artístico e, de certa maneira, Bachelard mostrará também, do circuito filosófico. Ora, por isso ele vai colocar a ressonância ao nível do espírito das representações, daquilo que lembro quando vejo uma certa imagem, de tudo aquilo que, de uma certa maneira, penso a respeito de uma imagem, ao passo que a repercussão, aquele retentissement, é algo mais fundo, é aquele abalo que faz com que aquela imagem não seja mais, para quem recebe, uma imagem do outro, mas uma imagem do próprio receptor, onde a categoria mesmo e outro, autor e receptor, autor e público começa a se dissolver. Então, leiamos:

É nesse ponto que deve ser observado com sensibilidade a duplicidade fenomenológica das ressonâncias e da repercussão. As ressonâncias se dispersam em diferentes planos de nossa vida, no mundo, a repercussão nos chama a um aprofundamento da nossa própria existência. Na ressonância, ouvimos o poema, na repercussão nós o falamos, pois é nosso. A repercussão opera uma revirada do ser. Parece que o ser do poeta é nosso ser. A multiplicidade das ressonâncias sai então, da unidade do ser da repercussão. Dito de maneira mais simples, trata-se de uma impressão bem conhecida por todo o leitor apaixonado por poemas: o poema nos prende por completo (p.9).

Há uma outra passagem, que eu não posso deixar de lembrar — não esquecendo que Bachelard vai falar também da imagem visual, da pintura; num certo momento, ele que é sobretudo um leitor, que é sobretudo alguém que trabalha a imaginação no nível da linguagem literária e da linguagem poética, irá mostrar que esse mesmo enfoque pode ser utilizado na questão das artes plásticas — passagem na qual ele ainda está falando da imagem literária:

a imagem que a leitura do poema nos oferece faz-se verdadeiramente nossa. Enraíza-se em nós mesmos. Recebêmo-la, mas nascemos para a impressão de que poderíamos criá-la, de que deveríamos criá-la. A imagem se transforma num ser novo de nossa linguagem, exprime-nos fazendo-nos o que ela exprime, ou seja, ela é, ao mesmo tempo, um devir de expressão e um devir de nosso ser (p. 10).

E aqui surge um tema que não é o nosso tema... ou é, mas não poderá ser abordado: tema da leitura enquanto instituinte, do leitor enquanto co-autor, do leitor e/ou do receptor, ou do consumidor etc., como participante da instituição mesma da obra. Lá adiante ele irá, enfim, dizer o seguinte, e com isso encerramos essas leituras:

Daí parecer-nos que a simples referência a virtualidades fenomenológicas da leitura, que fazem do leitor um poeta ao nível da imagem lida, já é um matiz de orgulho. Haveria para nós imodéstia em assumir pessoalmente uma potência de leitura que encontrasse e revivesse a potência da criação organizada e completa no tocante ao conjunto de um poema. Podemos esperar menos ainda atingir uma fenomenologia sintética que daria, como certos psicanalistas acreditam que podem fazer, o conjunto da obra. É pois ao nível das imagens separadas que podemos "repercutir" fenomenologicamente (p.11).

Há muitas idéias aqui, mas é necessário ressaltar apenas uma. Bachelard está insistindo e mostrando que podemos resistir a nos aceitarmos como co-autores da obra na medida em que a lemos ou a apreendemos visualmente; evidentemente, não é esse o tipo de postura que nos foi colocada, o tipo de postura que culturalmente assumimos e, no entanto, é essa a posição que ele vai defender. E ele continua, chamando a atenção para essa pontinha de orgulho, o orgulho de ser co-autor, daquela imagem ser nossa também:

essa pontinha de orgulho, esse orgulho menor, esse orgulho de simples leitura, esse orgulho que se cria na solidão da leitura, traz a marca fenomenológica inegável, se mantiver tal simplicidade. O fenomenólogo nada tem em comum com o crítico literário que, como observamos freqüentemente, julga uma obra que não poderia fazer, e mesmo no testemunho de fáceis condenações, uma obra que ele não desejaria fazer. O crítico literário é um leitor necessariamente severo. Apresentando às avessas um complexo que o uso excessivo depreciou a ponto de entrar para o vocabulário dos homens de Estado, poder-se-ia dizer que o crítico literário, que e o professor de Retórica, sempre sabendo, sempre julgando, fazem muito bem um complexo de superioridade. Quanto a nós, afeitos à leitura feliz, não lemos, não relemos senão o que nos agrada, com um pequeno orgulho de leitura mesclado de muito entusiasmo. Enquanto que o orgulho se revela habitualmente num sentimento maciço que pesa sobre todo o psiquismo, a pontinha de orgulho que nasce da adesão a uma imagem feliz permanece discreta, secreta. Está em nós, simples leitores, para nós, e só para nós. Ninguém sabe que, lendo, revivemos nossas tentações de ser poeta. Todo leitor um pouco apaixonado pela leitura alimenta e recalca, pela leitura, um desejo de ser escritor. Quando a página lida é bela demais, a modéstia recalca esse desejo. Mas o desejo renasce. De qualquer maneira, todo leitor que relê uma obra que ama, sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito (p. 11).

Ou seja, generalizando essa postura bachelardiana, não é apenas o ato de leitura que é instituinte, é muito mais do que um ato de apreensão, é um ato de alimentação do circuito eu-outro, em que o outro sou eu, mas com ele — autor — constituímos, instituímos o ser daquela imagem que só é, enquanto imagem, enquanto apreendida, enquanto existindo nesse circuito. E se o circuito é instituinte, na verdade seria nesse nível da transubjetividade, das múltiplas transubjetividades possíveis que o ontos da imagem se revela no seu caráter plural, multifacetado e sempre re-aberto.

Ou seja, é uma noção de obra aberta, parece-me, muito mais radical do que a noção que foi vulgarizada. É a noção de obra aberta que provém da natureza mesma, do ontos mesmo da imagem poética, literária ou visual, da imagem artística, desde que ela se sustente nesse circuito, não apenas de comunicação, mas muito mais, nesse circuito de sustentação e de instituição.

Freqüentemente, pensamos a questão da obra de arte como uma relação com o outro que não pode passar muito além do nível da transferência de alguma coisa para o outro. No entanto, essa suposta transferência é muito mais do que uma transferência, é a criação do espaço em que a própria natureza da imagem poética, da imagem artística, tem o seu sentido, a sua significação, que embora uma significação, é sempre múltipla, aberta, diferenciada.

Seria necessário apontar para uma outra direção, apenas para mostrar o caráter extremamente vertiginoso desse tema que nos foi proposto à reflexão. Podemos pensar a questão do outro na obra de arte numa outra linha, não na linha da "produção-obra-recepção" ou "produção-obra-mercado-público" ou "alma do autor-obra-alma de quem apreende"... enfim, em todos esses níveis, mas numa outra direção. E é exatamente nessa direção que essa questão foi inicialmente colocada na filosofia antiga, particularmente por Platão. Nessa outra forma de abordagem, o outro não é mais entendido como aquele que recebe, apreende, devora, consome. Ou seja, o outro é o outro sob a forma não do consumidor, mas do pseudo, não daquele que produz, mas daquele que parece que produz, embora não produzindo aquilo que parece que produz. Ou seja, o outro aqui é o outro que produz o simulacro, o que não produz a obra enquanto obra de arte. Daquele que é alteridade do mesmo no sentido de não ser o mesmo, mas de ser um disfarce do mesmo e, o que é terrível, um sósia do mesmo.

Essa questão é colocada por Platão dentro de toda a sua obra para discutir a questão do que é o filósofo em oposição ao que é o sofista. Mas essa questão vai se ampliando na obra de Platão, mostrando que só podemos diferenciar o filósofo do sofista, por exemplo, só podemos dizer que Sócrates, embora condenado por esse motivo pela Assembléia dos Atenienses, não é mais um sofista porque, na verdade, embora parecendo-se muito com um sofista, e sendo confundido freqüentemente com um sofista, não é um sofista, ele é um filósofo mesmo. O sofista é um simulador de conhecimentos que ele mercadeja, e, por isso mesmo, se parece com Sócrates, que fala com os outros, que troca palavras com os outros. Mas o sofista, que se parece muitíssimo com o filósofo, apesar de se parecer muito com o filósofo, não é filósofo, é um outro, é um simulador, é um falsário, um vendedor de falsidades.

Assim, essa questão surge na filosofia como tentativa de Platão de traçar a defesa de seu mestre, assassinado pela democracia ateniense, como intenção de mostrar que houve uma confusão, que todos estavam confundindo Sócrates com aquilo que ele não era, com outro que parecia com ele, mas não era ele. É sabido que Sócrates, ele próprio, segundo Platão, se defendeu diante da Assembléia, mostrando todas essas caricaturas, todas essas máscaras e essas falsificações que foram feitas dele. Muitos pensavam que ele era mais um sofista. O próprio Aristófones (mencionado por Platão e posto na boca de Sócrates, em suas comédias e, principalmente, nas Nuvens) mostraria um Sócrates parecido com os sofistas, mas apenas parecido, pois ele não era um sofista. Por outro lado, o sofista parece um filósofo, mas não é filósofo. E dizer que o que parece não é o mesmo, e dizer que o outro, embora parecendo, não é o mesmo, é uma delicadíssima questão que Platão vai ampliando a ponto de sair da pura questão do perfil histórico de Sócrates e da defesa de seu mestre para a questão da relação entre o mesmo e o outro, da relação entre o verdadeiro e o falso, da relação entre o original, a cópia e o simulacro. E com isso a questão vai-se ampliando e Platão vai retirando as suas categorias filosóficas da experiência artística no campo da pintura, e o tempo todo vai pensando a questão da falsidade e da veracidade do mesmo e do outro, tendo como paradigmas a questão do modelo, a questão dos vários níveis de cópia e a questão da diferença entre a possível cópia legítima e a cópia que é apenas um simulacro, uma falsificação.

Ou seja, essa questão da presença do Outro na Arte é uma questão delicada. É uma questão que nos remete para o Outro numa outra direção, que nos puxa para o Outro, para além do nível psicológico, do nível da percepção e do nível sociológico, do nível da comunicação através do mercado, e coloca a questão do Outro na Arte no cerne mesmo da definição da relação entre arte e verdade, entre arte e a sua verdade — não a arte e a verdade dos outros, não a arte e a verdade dos cientistas e dos filósofos, mas o que seria a verdade da arte, uma veracidade da arte capaz de fundamentar algum tipo de julgamento de valor que diga "essa arte é verdadeiramente arte", "essa arte não é verdadeiramente arte", é "um fazer-não artístico, é um falso fazer artístico". Ou seja, essa questão do mesmo, do outro, do sofista e do filósofo, na verdade remete-nos — levados desde Platão, pelas metáforas platônicas, pelos instrumentos que ele usa como referencial — a essa questão delicadíssima que o Ocidente abre e reabre permanentemente ao desafio, isto é, saber qual é o estatuto da arte em função da sua essencialidade. E mais, saber se há uma essência do factício, se há uma essência do factício que no campo da criação, ainda muito mais agudamente, é a possibilidade da essência do fictício. O fictício tem alguma essencialidade que o prende, que o governa, que o normatiza, que lhe dá uma diretriz, uma norma? Ou o fictício é um fazer tão livre, libérrimo, tão sem lei, tão completamente solto que tudo que se faça é legítimo, porque se faz, que tudo o que se faz é arte, desde que se diga que é arte, e tudo o que se faz pode ser legitimado pelo simples fato de ter sido um empreendimento, algo que se fez, que se mostrou ser a sua arte? O fato de operar, de obrar em nome da arte é fazer arte? Essa questão que os críticos todos têm no subtexto das suas apreciações, que nós todos temos no subtexto de nossas apreciações, essa é uma questão que, no fundo, remete a um agudo problema: o da possibilidade de uma veracidade artística, de uma essencialidade do factício, de uma essencialidade que legitime um certo fazer artístico. Essa é uma questão delicada, uma questão que a filosofia e a estética desenvolveram ao longo dos tempos, que vai estar colocada para Kant e que vai encontrar em Kant uma tentativa de solução dentro da qual freqüentemente ainda pensamos e trabalhamos. É um desafio que permanece colocado pelo outro, pela alteridade não do outro que recebe, mas do outro que produz, mas que produziria ilegitimamente porque produziria enquanto falsário. Aqui, a questão é a da falsificação da obra de arte, sobretudo no nível das artes plásticas. Essa é uma questão muito conhecida e debatida, que toca no problema do ontos da arte de uma outra maneira — pelo circuito da transubjetividade; segundo Bachelard, nós tocamos, pelo retentissement, o ontos da imagem. Pela tensão entre o mesmo e o outro, entre o verdadeiro e o falso, entre o legítimo e o falsário, entre o charlatão e o verdadeiro artista, nós outra vez apontamos na direção do ontos da arte. E é esse nó, esse coração, esse cerne, que a questão do outro sempre revela. Jamais poderemos pensar que é no nível da comunicação, da apreensão, que é no nível da discussão da essencialidade ou não do objeto artefeito, nós jamais podemos pensar a questão da arte sem a presença do outro no nível psicológico, sociológico, político ou ontológico. O outro é uma categoria constitutiva do ser mesmo da imagem, da significação mesma do objeto artístico.

Esse mapeamento assustador é o que foi possível traçar rapidamente aqui. É vertiginoso pensar sobre isso porque a questão, na verdade, puxa tudo e remete a tudo. É uma das encruzilhadas que podemos estabelecer na nossa consciência e na nossa sensibilidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. A poética do espaço. Rio de Janeiro, Eldorado Tijuca, s.d.        [ Links ]

BACHELARD, G. La poètique de l'espace. Paris, PUF, 1957.        [ Links ]

 

 

1 As citações a seguir foram extraídas de Gaston Bachelard, A poética do espaço. Rio de Janeiro, Eldorado Tijuca, s.d.