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Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A voz do outro na literatura: Proust

 

The "other's" voice in literature: Proust

 

 

Leda Tenório da Motta

Departamento de Letras Modernas - IBILCE UNESP - São José do Rio Preto

 

 


RESUMO

No universo do romance de Marcel Proust, "Em Busca do Tempo Perdido", universo inteiramente subssumido numa voz narrativa, o sentido insiste em correr por fora do discurso, paradoxalmente. No romance, todos os personagens mentem, porque na linguagem estamos, sempre, todos deslocados. O sentido surge de desvios intrínsecos ao discurso: lapsos. Será que por essa via se forja uma abertura da escuta ao Outro? Ou será que essa via denuncia a recusa obstinada da orelha em perceber novas formas, uma resistência à voz do Outro, na exata medida em que esse outro conta? Será que uma poética da mentira se institui porque o outro existe? A modernidade literária, aqui representada por Proust, faz desse ardil da linguagem um modo de tornar a obra um problema.

Descritores: Literatura. Linguagem Crítica literária. Mentira. Proust, Marcel, 1871-1922.


ABSTRACT

In Proust's A La Recherche du Temps Perdu there is only one voice: the narrator's. All the characters in the romance lie because language displaces us. Meaning arises from detours of the discourse: lapses. This problem is the main theme of the paper.

Index terms: Literature. Language. Literary criticism. Lie. Proust, Marcel, 1871-1922.


 

 

Há um conto do escritor Rubem Fonseca — um texto de 1979 intitulado Mandrake, que integra o volume O Cobrador, recentemente reeditado pela Companhia das Letras — em que o personagem principal, um detetive, como são sempre os personagens centrais do Rubem, acaba desistindo de tomar o seu próprio cliente — que está aqui em posição de confidente — pela palavra, tão pouco fiáveis lhe parecem não só o cliente como a palavra, e acaba perguntando, como uma piscada de olho cúmplice na direção do leitor: "quem era mesmo o escritor que dizia que as palavras foram feitas para esconder o pensamento?"

O escritor que dizia que as palavras foram feitas para esconder o pensamento é Proust, essa é uma máxima proustiana bem conhecida. Há outras em Proust que vão no mesmo sentido. "As vezes na vida, sob o golpe de uma emoção excepcional", escreve ele com a mesma desconfiança, "a gente diz o que pensa" (Proust, 1954, v.2, p. 506)1 ou ainda: "a verdade não precisa ser dita para ser manifestada" (v.2, p.66).

No universo do romance chamado Em Busca do Tempo Perdido, universo essencialmente verbal como notaram críticos importantes, universo todo ele subssumido numa voz narrativa, onde boa parte dos personagens são verdadeiros exemplares estilísticos, ou até mesmo, por vezes, coleção de acidente de linguagem, o que faz sentido insiste em correr por fora do discurso, sinaliza-se como que exteriormente. Por exemplo: uma crispação dos lábios de Odette, ao negar, balançando energicamente a cabeça, que pudesse ter tido uma ligação com outra mulher, que a sua relação com a Senhora Verdurin tivesse sido mais que amistosa. Mímica que é um repelir do conteúdo incriminador e, nessa exata medida, para o Narrador, que sabe escutar, a quase prova da sua possibilidade. "Vendo Odette lhe fazer assim o sinal de que era falso", lemos no romance, "Swann compreendeu que era talvez verdade" (v.1, p.361-2).

Outro exemplo: um eriçamento de todo o corpo do barão de Charlus, ao ouvir, numa recepção, o que lhe parece ser uma alusão pérfida à sua homossexualidade. Uma sombra escura no canto do olho deste, uma tristeza súbita no rosto daquele... estes são reveladores que interferem nas intenções dos enunciados proustianos, parasitam a sua transmissão e vêm por vezes desmenti-los por completo, pondo em pauta uma outra afirmação. Justamente, a que mais se gostaria de evitar. Proust não negligencia nenhuma das circunstâncias que favorecem a intromissão de um indício de contra-verdade no diálogo e é preciso dizer que tais indícios concernem muitas vezes o corpo.

Não que o que faz sentido — que a lógica do Verdadeiro — resulte em Proust numa simples psicofisiologia dos motivos. Há ressinalizações que são ao mesmo tempo — ou tão somente — internas ao discurso. A verdade pode explodir na própria superfície das palavras, quando a enunciação, num deslize, vem comprometer a sinceridade do que está sendo enunciado.

Estes são acidentes sutilíssimos — e os exemplos proustianos inúmeros. Em conversa de salão com uma princesa, um médico famoso do romance, o Dr. Cottard, faz uma observação ferina, que visa sem querer a inversão sexual tão resguardada do Narrador: "esse rapaz"— diz o médico — "deveria fazer tricô" (v.2, p.898). E uma duquesa igualmente famosa do romance, Oriane de Guermantes, cai na mesma esparrela. Ela diz, querendo defender um parente de qualquer ataque à virilidade: "Ele tem um coração de moça" (v.2, p.508). A frase pega mal e o marido da duquesa, que percebe as suas implicações cegas, trata de corrigir: "O que você está dizendo é um absurdo". Aqui, os indícios são plenamente linguageiros.

Sob os mais variados aspectos, a precariedade, a falácia dos diálogos ressurge, recolhida pelo Narrador proustiano, que está longe de ficar de fora, nas mais diferentes situações. Mente-se em Proust a propósito de tudo, e com todo tipo de recurso. Há no romance do tempo perdido, nesse sentido, uma permanente perplexidade diante do conflito entre a linguagem e a verdade.

Esse conflito verifica-se sobretudo a partir das grandes fraquezas proustianas — dos grandes males morais — que são o esnobismo e o vício sodomita, a homossexualidade, que o Narrador atribui a todo mundo, mas descarta no que lhe diz respeito, como se o seu fosse o sexo dos anjos. A narrativa proustiana — alguém notou — repousa toda ela nessa ocultação.

Ele está na sofreguidão mundana denegada dos falsos solitários proustianos, na falsa modéstia dos que, sem trânsito livre nos hotéis requintados do bairro inacessível de Saint Germain, disfarçam, como é o caso do personagem Legrandin: "Os Guermantes, não, eu não os conheço. Eu nunca quis, sempre quis salvaguardar a minha plena independência, nó fundo eu sou um velho jacobino." Propósitos que o Narrador, a quem se endereçam tais palavras, traduz:

Era um segundo Legrandin, que assim respondia, pois um outro Legrandin, o primeiro, cuidadosamente escondido, já havia respondido, pela ferida do olhar, pela gravidade excessiva do tom da resposta, pelas mil flechas com as quais se viu num instante transpassado, como um São Sebastião do esnobismo: não, eu não conheço os Guermantes, não despeitem a grande dor da minha vida (v. 1, p. 128-9)

Ele está também na duvidosa sem-cerimônia do barão de Charlus, o mais desgovernado dos invertidos proustianos, ao entrar numa festa supostamente à vontade. "Você recebeu o meu bilhete? Você pode vir?", pergunta ele abertamente a um dos criados da casa. Na esperança de fazer passar tais preparativos de encontros culposos por marcas de um fundo bondoso, que levaria o barão a entrar em contacto com a ralé. Mas a generosidade encenada volta rápido contra ele. "Toda gente estranhava"- lê-se na seqüência — "aquelas amabilidades tão íntimas e aqueles bilhetes escritos a criados. Os criados, aliás, ficavam menos lisonjeados do que vexados, por causa dos colegas." (v.3, p.259)

Mas se esnobismo e homossexualismo entram — com o judaísmo ajudando, o judaísmo que é à época de Proust uma pecha das mais inconfessáveis — na fabricação do falso, o ar de blefe é respirável sem se encerrar necessariamente nestes fulcros temáticos.

Em amor, tal atmosfera é igualmente característica. A melhor maneira de se reter o objeto desejado, em Proust, é fingir escapar. Por um motivo muito simples, que surge no romance como uma disposição inaugural: o objeto só é do desejo porque escapa. Postular a indiferença é, assim, um corolário simétrico e uma estratégia de base. Estratégia responsável por um progresso irreprimível de mal-entendidos.

O volume intitulado A Prisioneira termina com uma insinuação inverdadeira, de conseqüências não previstas pelo mentiroso. O Narrador encena com Albertine uma comédia de rompimento. A intenção é unicamente pegar Albertine de surpresa, para demovê-la de sua indiferença. O diálogo que se estabelece neste ponto tem todos os sinais trocados: "Minha querida Albertine", diz o Narrador, apostando no efeito contrário ao insinuado por sua retórica, "a vida que você leva aqui é muito enfadonha, mais vale nos separarmos, e como as melhores separações são as que se efetuam o mais rapidamente possível, peço-lhe que me abrevie o grande desgosto que vou ter, que me diga adeus esta noite e parta amanhã de manhã". "Como amanhã?", responde Albertine estupefata, mas, como nota o texto, já convencida. Tão convencida que, na manhã seguinte, o golpe se revelando infeliz, ela vai embora de verdade (v.2, páginas finais). O desespero que abre A Fugitiva começa aqui, com essa, por assim dizer, brincadeira.

Ora, Proust, contrariamente ao que pensavam — e talvez ainda pensem — os seus críticos mais apressados, é perfeitamente democrático. Não são só os barões, as duquesas e a grande burguesia que lhes imita os ritos, tão deslocados em plena Terceira República, os que tergiversam. Em outras palavras, não se mente em Proust porque se está fora de lugar. Muito embora o não-lugar seja a verdade, à época do Caso Dreyfus, do judeu que traz na pele Marcel Proust. Estas são circunstâncias agravantes porém epifenomenais. Mente-se no romance, sem distinção de classe, raça ou preferência sexual, porque na linguagem estamos sempre, todos, deslocados.

De fato, os salões chiques proustianos comunicam-se com bastidores povoados de gente trabalhadora. Todo esse subterrâneo social é chamado a comparecer. Mordomos, camareiras, pagens e outros serviçais fazem funcionar a dinâmica das recepções, um cenário particularmente insidioso de representação, mas não só isso. Eles entram também em conversação — entram em paixão — e mentem tanto quanto podem nas suas cozinhas.

A empregada Françoise — em cuja língua o Narrador localiza pontos de contacto com o francês castiço da duquesa de Guermantes, o que é em si perturbador — excita a veia interpretativa do seu patrão. Ela o interpela na cena doméstica, até mesmo pelos seus desvios de linguagem, que são atropelos nada inocentes da comunicação.

Ela diz, por exemplo: "presunto de Nova York" em vez de "presunto de York", e chama os íntimos da casa de parenthèse (parênteses) em vez de parenté (parentes) (v.1, p.445). Embaraçada com os hábitos dos patrões, aos quais se acostumou, mas sem perder o seu próprio referencial, o que ela faz é registrar na voz esse desencontro, condensando os dois modos pelos quais é tangida, numa solução de compromisso que só parcialmente reverencia um deles: o imposto.

Na mesma linha de desvio, o ascensorista do Grande Hotel de Balbec, onde o Narrador passa férias, insiste em chamar o ascenseur (elevador) de accenseur, numa faceta preciosista. E insiste em chamar os membros da ilustre família "Cambremer" pelo nome do queijo igualmente ilustre, o "Camembert" (v.2, p.798).

Não é só a facilidade de ficar no conhecido — no já ouvido, no menos dispendioso — o que impera nestes casos de lapsos, cujos protagonistas são gente simples. A perseverança no já dado é também, e principalmente, a recusa obstinada da orelha em perceber a forma nova — trata-se de uma resistência surda, mas não muda, à voz do outro. Resistência ao outro na medida exata em que esse outro conta. "Curioso", nota justamente o Narrador, "que alguém que ouvia 50 vezes por dia um cliente chamar o ascenseur não dissesse jamais outra coisa que não accenseur" (v.2, p.791).

Todas essas prerrogativas de erro são momentos críticos da inter-locução proustiana — são outras tantas crises. A máxima "as palavras foram feitas para esconder o pensamento" indica essa crise, antes que uma lição de sabedoria. Ela afirma menos do que problematiza — faz da linguagem um problema. O que é por sua vez, e entre parênteses, uma injunção da modernidade literária, que Proust representa. Posto esse problema, decifrar torna-se em Proust uma ocupação constante. Se comecei com o Rubem Fonseca, que entra aqui a título de epígrafe, foi porque ele aponta no Mandrake para o duplo movimento que nasce dessa perplexidade face aos signos: o movimento de descrer e interpretar.

O movimento detetivesco por excelência: o processo da enquete. A idéia de enquete está inscrita no título do romance de Proust, num dos seus significantes fortes: recherche, busca de. O outro significante que assume no título o peso da obra é tempo. Mas o que está ali proposto não é exatamente uma rememoração, um esforço da memória voltado para a captação da duração, como apressadamente também se costuma interpretar, inclusive via Bergson, porém, pelo mosaico de cronologias que se misturam, sem se resolverem, uma procura no sentido forte: de procura da verdade (recherche).

Sabe-se por uma carta de Proust que ele chegou a pensar, ao término da redação dos três primeiros volumes do seu romance, por volta de 1913, em chamar as três partes de que dispunha então de Idade dos Nomes, Idade das Palavras, Idade das Coisas (André Maurois, À la recherche de Marcel Proust). O romance fixaria, assim, nessa progressão, um ponto de chegada, realista, rumo ao qual se atravessariam etapas, semiológicas. Processo mediante o qual se decantariam os nomes sobretudo, que o jovem Narrador proustiano tem a ingenuidade de confundir com as pessoas, até perceber que eles são um envelope postiço, o que não o impedirá de continuar caindo em novas encantações onomásticas. Mistificações semelhantes à que fez pôr na princesa de Parma, no fundo "uma mulherzinha morena ocupada com obras de caridade" nada mais que "o perfume de mil violetas" e "uma essência sthendaliana" que nada tinha a ver com ela, que era uma injunção da pura sonoridade do Parma. Mentira semelhante a que fez enxergar um "dourado amarantino" na duquesa de Guermantes, quando era o Guermantes que brilhava, e não a duquesa que, vista sob certo ângulo; confundia-se com "qualquer mulher de médico ou de comerciante" (v.1, p.175). Há no romance do tempo perdido uma desordem neste sentido — um Crátilo às avessas: cada ser, cada coisa recebeu uma denominação injusta, que lhe toca independente de qualquer conveniência.

Vale dizer que a paixão da linguagem não se corrige em Proust. A obra projetada cresce desse primeiro esboço para as mais de três mil páginas que se conhecem, páginas que contêm os transbordamentos da frase proustiana, uma impressionante grafomania. O trabalho de toda uma vida não basta para dar conta da proliferação, dos excessos que vão se acomodar por fim num subterfúgio de Proust, que consiste em postergar o romance, cujo fecho é uma abertura, ou a promessa de um livro por vir.

Na engrenagem circular da narrativa proustiana — o começo no fim, o fim no começo — é a própria obra enquanto verdade que falha. Dito em outras palavras: é a obra que se concebe como problema. Essa história de um livro que é o romance proustiano fica posta em suspenso, solapado fantasticamente o passado, que se tratava de trazer de volta, num sentido, restando, na extensão dos seus percalços, o presente da narração.

Todo o valor da obra, notaram os críticos mais interessantes de Proust — aqueles que souberam justamente tomá-lo no seu inacabamento, na sua recusa da totalização — está nesse malogro, nesse domínio do não-domínio. Nesse "meta-romance", poderíamos dizer, se quiséssemos usar um termo técnico indicativo de um procedimento que se tornou corriqueiro, mas que Proust soube inaugurar.

Ora, manifesto assim no plano mesmo do projeto da obra como problemático, o discurso proustiano não é razão. À razão se chega em Proust — quando se chega — passando por cima das palavras. No diálogo proustiano, os interlocutores só fazem se embrulhar. A verdade se alcança — quando se alcança — sozinho, em silêncio, em solilóquio: o regime proustiano dominante. Em solilóquio significa: longe do poder mistificador do outro.

Sem dúvida, os helenistas irão concordar: esse não é o logos grego, nem o diálogo socrático, nem tampouco o embate platônico, a bela conversa presidida pela inteligência. Inteligência fundadora, por força da qual a verdade já está dada de antemão, cabendo ao passa-passa dialético unicamente reencontrá-la. Diálogo que é uma cadeia unificadora, de que cada um dos interlocutores é um dos elos, a colaborar entre si. A tecer as ligações da parte com o todo — e com felicidade porque conduzidos por um Retor como Sócrates. A falar sobretudo a mesma língua, presentes todos ao mesmo sentido das palavras. Numa palavra: amantes todos da sabedoria.

São inúmeras as maneiras pelas quais o romance do tempo perdido quebra essa corrente dialética. São incontáveis as panes de linguagem que vêm manifestar — como nota o filósofo Gilles Deleuze num ensaio sobre Proust justamente intitulado Antilogos (1979) — uma total oposição a Atenas, e uma passagem a Jerusalém.

Jerusalém freudiana, ali onde a verdade, extraindo-se também da desconfiança e da interpretação, vem sempre depois. Repousa num a posteriori. Em Os Chistes e suas Relações com o Inconsciente há uma anedota, representativa do que Freud denomina "espírito do pensamento", que encena um diálogo perfeitamente proustiano.

Uma bacia foi emprestada e devolvida furada. O culpado explica-se em três tempos. Primeiro: eu nunca pedi emprestada uma bacia. Segundo: a bacia já estava furada quando eu pedi. Terceiro: eu devolvi a bacia intacta (Freud, s.d., p.99).

Nos mesmos três tempos, Albertine trata de dissuadir o Narrador ciumento de continuar suspeitando de um envolvimento seu com a amiga lésbica daquela que mais representa o lado de Gomorra no romance: a filha do músico Vinteuil. Apertada pelo Narrador, ela vai no mesmo crescendo insensato. Primeiro: "De forma nenhuma, ela não é uma mulher dessas, é uma boa mulher". Segundo: "Eu não a conheço". Terceiro: "Mas todo mundo sabe que é uma viciada" (v.3, p.144-5).

Insinuações, denegações, afetações, contradições — contrasensos. Há todo um leque de figuras — toda uma poética da mentira — que é convocada aqui, nesta outra geografia, para reverenciar a única coisa que se dá por certo: a dúvida.

Lição no negativo, como todas as lições proustianas. Negativo cujo lugar é o discurso. "É nos meandros e nos anéis de um estilo antilogos," escreve Deleuze,

que o romance proustiano faz tantas voltas que é preciso, para recolher as partes últimas, pôr em velocidades diferentes todos os fragmentos, que remetem cada qual a um conjunto diferente, ou não remetem a conjunto nenhum, ou não remetem a nenhum outro conjunto que não o estilo (1979, p. 139).

Pôr em velocidades diferentes é, como dizíamos, embaralhar. Razão pela qual, note-se, um dos instrumentos de observação mais caros a Proust é o caleidoscópio. A verdade proustiana é o estilo. A verdadeira vida — como afirma o Narrador aqui e ali — é a literatura. O universo proustiano só conhece uma luz: a criação. O romance do tempo perdido, fiel à procura dos fragmentos de cristal que se entrechocam no olho do caleidoscópio, formando diferentes figuras possíveis, é o re-censeamento exaustivo de todas as faces da verdade. Vale dizer que ele engloba verdades unicamente poéticas. Justamente aquelas que estão excluídas da república platônica, onde não cabem os poetas: porque eles não sabem o que dizem.

Os sujeitos dessas guinadas todas que em Proust se enunciam — sujeitos que põem em figuras o seu mal-estar, o seu mal-ser — são sujeitos tocados, alterados, perseguidos por um outro. Mente-se porque o outro existe. A palavra é solicitação veemente do sujeito ao outro para que o constate, a ele sujeito, tal como se quer ver. É recurso do sujeito, no mais das vezes mentiroso, para ser aos olhos do outro. Ou aos seus próprios enquanto olhos de um outro.

Dois sujeitos: o mesmo e o seu outro.

No simples fato da alocução, aquele que fala por si mesmo instala o outro em si, e assim fazendo a si mesmo se capta, consigo mesmo se confronta, instaura-se tal como aspira a ser, e finalmente historiza-se nessa história incompleta ou falsificada.

Assim o linguista Benveniste (1976, p.84) analisa a função da linguagem na descoberta freudiana.

Dito em outras palavras: o outro está tão perto que não pode ser senão interior. Pois esse outro que legisla a minha palavra a ponto de precipitá-la no absurdo, no paradoxo, no riso, na gafe — na loucura — só tem esse poder por força de uma coincidência: esse outro sou eu mesmo, sujeito, subvertido pela dupla estratégia que é a minha.

O outro está no ponto de partida: o sujeito é um conflito. A palavra sujeito, de resto, banha nessa clivagem: o sujeito é o submetido, o que sofre. E ao mesmo tempo o que soberanamente diz "eu".

Num livro chamado Mentira Romântica e Verdade Romanesca, René Girard nota, a propósito, que quanto mais de perto, quanto mais de dentro o outro ameaça, mais moderna é a situação romanesca. Exemplo: o mais subversivo dos romances, aquele que revolve a história das narrativas européias e que permanece um modelo de vertigem literária: o Dom Quixote.

O duplo de Dom Quixote, nota Girard, não é o escudeiro balofo chamado Sancho, mas o Amadis de Gaule, o cavaleiro que Quixote queria ser. Aquele cuja voz o comanda — por isso mesmo aquele que ele está fadado a repetir ridiculamente.

É nessa mediação interna que está a verdade profunda do moderno, segundo Girard. Que nos propõe ainda um outro exemplo: Madame Bovary. Bovary — sublinha — é habitada por personagens dos romances com os quais se intoxicou, quer igualar-se às heroínas que viveram histórias de amor.

É a sensibilidade moderna, desde Rimbauld, ao anunciar que "eu é um outro" (Lettres du Voyant), que mais faz falar esse outro do mesmo, mostrando que a literatura já não nos dá a realidade exterior — o burguês em Balzac ou toda Versalhes em Saint Simon, escritor em que Proust tanto vai se inspirar — mas, antes, a intromissão de vozes estranhas na realidade do sujeito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral. São Paulo, Nacional, 1976.         [ Links ]

DELEUZE, G. Proust et les signes. Paris, PUF, 1979.        [ Links ]

FREUD, S. Les mots d'esprit et ses rapports avec l 'inconscient. Paris, Gallimard, s.d.         [ Links ]

PROUST, M. Oeuvres complètes. Paris, Gallimard, 1954. (Bibliothèque de la Pléiade)        [ Links ]

 

 

1 Todas as citações serão feitas a partir de Marcel Proust, Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 1954.