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Psicologia USP
versión On-line ISSN 1678-5177
Psicol. USP v.16 n.1-2 São Paulo 2005
ABERTURA: A QUESTÃO AMBIENTAL
Refletindo sobre questões ambientais: ecologia, psicologia e outras ciências1
Reflecting on environmental issues: ecology, psychology and other sciences
Une réflexion sur des questions d'environnement: ecologie, psychologie et autres sciences
Aziz Ab'Saber2
Instituto de Estudos Avançados - USP
RESUMO
Solicitado a desenvolver uma reflexão sobre as questões ambientais contemporâneas, o eminente geógrafo Aziz Ab'Saber discorre sobre significados da expressão "relações harmônicas do homem com a natureza" à luz do pensamento científico, culminando por fortalecer a idéia da existência de aspectos universais no entendimento das questões ambientais e que quando essas são enfocadas sob referenciais humanísticos descritos com base na história dos diferentes grupos humanos, emerge a visão da vida como um bem-comum a ser preservado.
Descritores: Cultura. Fatores ecológicos. Ecologia. Ambiente.
ABSTRACT
Requested to develop a reflection on contemporary environmental issues, the eminent geographer Aziz Ab'Saber discusses the meanings of the expression "harmonious relations between man and nature" in light of scientific thought. He strengthens the idea of the existence of universal aspects in the understanding of environmental issues, suggesting that, when they are analyzed according to humanistic frameworks described through the history of different human groups, the view of life as the common good to be preserved emerges.
Index terms: Culture. Ecological factors. Ecology. Environment.
RÉSUMÉ
En vue de développer une réflexion sur les questions d'environnement contemporaines, le célèbre géographe Aziz Ab'Saber expose les significations de l'expression "relations harmonieuses de l'homme avec la nature" à la lumière de la pensée scientifique. L'exposé culmine par le renforcement de l'idée de l'existence d'aspects universels selon le concept des questions d'environnement suggérant que, lorsque celles-ci sont envisagées sous l'optique des référentiels humanistes décrits sur la base de l'histoire des différents groupes humains, émerge une vision de la vie en tant que bien commun à préserver.
Mots-clés: Culture. Aspects écologiques. Écologie. Environnement.
Para refletir sobre a questão ambiental, vamos tratar do ambiente total. O ambiente diversificado em que vive o homem, não apenas no presente, mas também no passado. Falemos um pouquinho daqueles que nos antecederam. Neste país imenso que é o Brasil, entre 23 e 13 mil anos atrás aconteceu um período de climas frios e secos. No frio, a grande dificuldade para a sobrevivência humana é o vestuário e, no clima seco, é a coleta. Nos climas secos, os rios nem sempre correm o ano inteiro e a dificuldade é imensa. Foi num período desse tipo que algumas populações passaram da Ásia para as Américas. Nesse tempo, as florestas se reduziram e as caatingas e os cerrados se ampliaram. Os homens caminharam pelos grandes espaços, um pouco menos quentes ou às vezes muito frios, fazendo coleta, caça e, eventualmente, pesca em lugares muito particulares, dos rios. Estes homens, vivendo face a uma natureza geralmente muito difícil, sobreviveram em pequenos grupos. Esse foi um tempo em que a demografia não tinha as dimensões de nossos dias, não era agigantada, de massas, não havia um descontrole total da natalidade como em nossos dias. Também por isso, aqueles grupos coletores e caçadores não deixaram traços muito marcantes de sua passagem. O fato é que sabemos pouco da história desses povos que antecederam os Tupis. Pouco sabemos da linguagem desses coletores e caçadores que atravessaram a América de norte a sul até chegarem ao Oceano e que foram se adaptando à vida nas proximidades do mar. Em cada pequeno setor deste enorme continente, esses grupos humanos tiveram seu ambiente e estabeleceram suas raízes culturais. O Brasil tem a felicidade de encontrar até na Amazônia remanescentes dessa pré-história: uma das riquezas fundamentais da Amazônia é ter refúgios desse homem que não foram dilacerados durante a colonização e que ficaram isolados no espaço, guardando com uma cultura extraordinária.
Aqui temos que abordar o conceito de cultura. A cultura é um conjunto de valores animológicos, sociológicos, ergológicos, e tecnológicos. As culturas dos grupos indígenas são muito ricas na parte animológica e sociológica. Enquanto estiverem em seus refúgios, longe da letalidade do contato com o "homem branco" e com a chamada cultura ocidental, os indígenas não necessitam das nossas tecnologias. Suas crianças vivem bem e o ambiente é bom, favorável.
A escola antropológica de Chicago nos ensina uma coisa muito simples e que foi esquecida, sobretudo pelos governantes e pelos políticos brasileiros e sul-americanos: qualquer contato entre uma cultura tecnologicamente avançada, porém belicosa, com grupos indígenas que estão vivendo na "pré-história" e que têm valores animológicos e sociológicos muito fortes, será sempre letal para o grupo menos tecnológico. Isto aconteceu ao longo dos séculos na Amazônia, nos Andes, na América Central e em outros lugares da nossa América.
Porém, esses ambientes podem ser restaurados pela arqueologia. No Piauí, por exemplo, na Serra da Capivara. Ali, em pleno domínio das caatingas - onde a secura permaneceu e os rios só correm durante alguns meses por ano e depois eles secam - num ponto em que os rios atravessam uma escarpa num boqueirão extraordinário, onde, por razões particulares das rochas saem aguadas dos calcários, no passado havia muita vegetação. E nas grutas e lapas dos bordos desse canionzinho ou boqueirão - como dizemos nós, os brasileiros - existem inscrições deixadas pelos homens da pré-história, falando sobre o seu mundo. Eu, que não sou especialista em arqueologia, tentei encontrar alguma coisa sobre o ambiente de vida destas populações pré-históricas que viveram na Serra da Capivara.
Curiosamente, três fatos apareceram. Em primeiro lugar, uma sexualidade que poderia ser interpretada como bárbara. Em segundo lugar, a existência de um conflito de grupos antagônicos, com sinais de aprisionamento, atormentação e morte dos rivais, através do uso dos poucos instrumentos de sua tecnologia. E, em terceiro lugar, uma cena muito singela, onde um grupo de pessoas se move, numa pequena procissão, em torno de uma árvore - provavelmente porque tudo era muito seco no planalto e nas suas vizinhanças, esses homens tiveram que seguir por espaços enormes até regiões distantes. Então, esse homem teve condições de acoplar a capacidade de seu tele-encéfalo com as habilidades de suas mãos. Ou seja, esse homem pôde desenvolver a arte de projetar objetos e de confeccioná-los, objetivando a própria sobrevivência, o que inclui aquelas cenas de aparente selvageria dos grupos deixadas nos registros das cavernas da Serra da Capivara.
Depois de tudo isso, houve a chegada até as proximidades do mar.
Para entender os ambientes é preciso lançar mão da interdisciplinaridade. Por exemplo: entre 23 mil e 13 mil anos atrás, o nível geral dos mares foi descendo até atingir 95 m abaixo do seu nível atual. Durante essa descida, alguns areais formaram rampas na direção das praias, cada vez mais aprofundadas. Esse processo tornou os litorais ambientes pouco favoráveis para a vida dos homens. Não existem documentos dentro da arqueologia brasileira comprovando que os homens estiveram realmente nessa faixa de até menos 95 metros.
Mas, o que causou essa "descida do mar"? Em certo período, houve uma grande estocagem de gelo nos pólos, nas altas montanhas. E, na medida em que as geleiras engordavam e que a estocagem de gelo era fantástica, o nível do mar, naturalmente, descia. Quando o nível do mar volta a subir é porque houve nova mudança no clima. De repente, entre 13 e 11 mil anos, os climas ficaram mais quentes, as geleiras se dissolveram, os mares subiram e ascenderam, entrando pelas rampas que haviam sido formadas. Nesse momento, começam a se produzir uma série de possibilidades para os grupos humanos que chegavam até a costa. Uma costa que não era muito favorável e que já anteriormente produzia grande atração. E é aí que começa a história dos homens em nosso país.
Os homens, então, puderam se assenhorar desse ambiente, sobretudo das lagunas, passando a viver no seu entorno, onde havia uma ictiofauna fantástica que facilitou a sua sobrevivência.
Hoje, nessas regiões, encontramos coisas fantásticas como os sambaquis: enormes montanhas fossilizadas constituídas de restos de alimentação - peixes, sobretudo - e de alguns artefatos - certamente os primeiros artefatos importantes da história da cultura do homem primitivo sobre terras brasileiras. Mas, o que eram esses artefatos? Eram artefatos imitando pássaros e peixes. Às vezes, sobre um montão de conchas e restos de comida, encontra-se uma vértebra de baleia escurecida pelo fogo, por exemplo. Do ponto de vista de sua simbologia, essa vértebra de baleia colocada sobre o sambaqui pode ser a marca daquele povo e de sua posição em relação a outros povos do sambaqui.
Havia boa alimentação, havia o mar e, sobretudo, havia água para o banho e para a brincadeira das crianças, havia água dos riachos para beber e cozinhar, havia muita água para ser preservada. Um outro mundo surgiu na era dos "homens do sambaqui".
Só depois chegaram os índios Tupis: originários do Noroeste da América, eles vieram pela depressão entre os Andes e os planaltos brasileiros, chegando até o Paraguai, no entorno do Pantanal. Nessa fase mais cálida, os rios tornaram-se perenes, exceto aqueles da região do Nordeste seco. Em sua viagem continental, esses povos tiveram condições de adaptação progressiva a diferentes ambientes. Primeiro, as regiões de onde eles partiram; depois, os planaltos do centro sul do Brasil. E, um dia, eles chegaram à costa atlântica. O confronto entre os índios Tupis e os "homens do sambaqui" deve ter sido árduo. Houve arrasamentos e várias expulsões comprovadas. Mas não é isso o que mais interessa agora.
A questão é que os Tupis encontraram outros ambientes: foram viver mais adiante do mar, ao lado da ponta da praia, entre a restinga e os morros, morros agora naturalmente reflorestados. Eles tinham peixes nos pequenos riachos de águas doces e o mar à sua disposição, tanto para a pesca como para iniciar o desenvolvimento de tecnologias de transporte por canoas. Era um ambiente extraordinário: as crianças participando de tudo, nas águas dos rios e nas ondas do mar. Além de tudo, os Tupis tinham a possibilidade de usufruir uma série de alimentos, seja por coleta na retroterra, seja através da pesca, nos riachos e no mar.
Os problemas ambientais sempre me levam a pensar nas crianças. Por que será que as crianças são tão felizes até seis, sete anos de idade em qualquer ambiente do mundo? Na beira do mar, na beira do riacho, nas vielas das favelas, nos interespaços dos bairros carentes? Elas brincam, aprendem a falar, aproveitam aquilo que podem como brinquedos e, acima de tudo, têm uma felicidade ambiental que nem sempre os filhos dos ricos e abastados são capazes de vivenciar.
Nesse sentido há uma coisa fundamental para ser dita: ninguém escolhe o ventre, a família, a condição sócio-econômica e a condição sócio-cultural onde nasceu. O nascimento ocorre por ordem do acaso. E, por isso mesmo, a democracia tem que ser dirigida para todos, qualquer que tenha sido a condição de seu nascimento. Os políticos precisam aprender um pouco com a Ciência, em termos da interdisciplinaridade, e passar a considerar todos os seres humanos igualitariamente. Mais ainda se pensarmos no crescimento demográfico, sobretudo com a grande acumulação de pessoas nas áreas urbanas e industriais. Nesse sentido, hoje em dia, a interdisciplinaridade torna-se um verdadeiro imperativo para a construção de uma sociedade que seja capaz de receber e absorver, em todos os seus segmentos, os benefícios e as facilidades dessa Ciência integrada.
No começo do século 21, São Paulo abriga cerca de sete milhões de carentes, sendo 700 mil favelados e 7 mil habitantes dos desvãos de seus viadutos e ruas. Observando as crianças que permanecem no convívio de seus pais, vivendo no meio de pequenos abrigos de plástico preto, verificamos que elas - as crianças - ficam sentadinhas na beira da calçada admirando a passagem dos carros. Aparentemente, elas não demonstram tristeza; ao contrário, brincam entre si, trocam olhares, fazem observações, tiram suas conclusões. Mas os adultos - seus pais - vivendo naquele mesmo ambiente, naquela mesma situação, encontram-se desesperadamente excluídos da sociedade e de tudo mais.
Todo esse preâmbulo é apenas para poder começar a pensar na questão da Amazônia brasileira. São quatro milhões e duzentos mil quilômetros quadrados de área que, até a metade do século 20, permaneceram florestadas de modo contínuo, sem fim, em tabuleiros e baixos platôs, subindo às vezes um pouco em serranias e por relevos mais complicados.
Mas toda essa área de gigantesca floresta, até meados do século passado, ainda não tinha sofrido sob a invasão capitalista. Ocorreram, sim, fatos históricos amendrontadores, como a penetração portuguesa nos séculos XVI e XVII, sobretudo, a partir do Golfão Marajoara para o interior do Vale do Amazonas, que é um rio muito pouco acidentado até as proximidades da Colômbia e do Peru. Nessa travessia rumo Oeste, os aguerridos colonizadores foram submetendo ou aniquilando as populações regionais que ficaram a seu comando, a comando de uma ocidentalidade incompleta. Os grupos que permaneceram distantes das guerras impostas pela colonização estabeleceram "refúgios humanos". A partir dessa idéia de "refúgios", comparativamente, pensei em escrever um trabalho com o nome de "Redutos de Vegetação, Refúgios de Fauna e Refúgios do Homem", que os relacionasse histórica e geograficamente.
Mas, o que aconteceu nesse tempo pré-histórico com a Amazônia? O nível do mar desceu, a corrente fria subiu, os ventos alíseos não entraram no território brasileiro e a secura se instalou. Para sobreviver nesse momento adverso, os grupos humanos começaram a percorrer os enormes espaços abertos, porém sem encontrarem grandes possibilidades, até que encontraram as primeiras cavernas, onde deixaram a marca da sua cultura. E isso pouca gente sabe!
Aliás, o mais grave, em relação à Amazônia, é a falta de informação dos nossos governantes e políticos, ou seja, daqueles que tomam as decisões. E a Universidade tem uma boa parcela de culpa pois, em relação às questões da Amazônia, a educação que se projeta sobre os nossos alunos não fixa, com clareza, nem a noção de escala, nem tampouco a de ambiente total, fundamentais para a sua compreensão.
Hoje de manhã uma pessoa muito querida me disse: "Professor, atualmente eu estou inclinado a pensar que devemos lutar para a plantação de florestas por toda parte no Brasil." E essa pessoa me disse ainda: "Eu vou propor a criação de um 'Selo Verde' para cada prefeito, de cada cidadezinha do Brasil que fizer isso!"
Apesar de encantadora, acho que, certamente, essa iniciativa não vai funcionar! Por que? Bem, eu sou autor de um projeto chamado Floram - Florestas para o Meio Ambiente (Social Forests) - do qual eu fui o Diretor Científico, que eu considero a coisa mais importante para um país em processo de desmatamento e com enormes áreas já desmatadas como o Brasil. E, apesar disso, eu nunca consegui - lá em Brasília, na Unesco e em várias partes - que se pensasse num projeto de florestamento e de reflorestamento adequado para cada tipo de região e de domínio morfológico, vegetacional e social do Brasil.
Para que isso ocorra, ao invés de "Selo Verde", o ideal para o Brasil seria pensar em um sistema de educação rural que trabalhasse com a "educação para o reflorestamento". É importante que, desde muito jovens, desde criancinhas, os brasileiros aprendam o valor das pequenas sementes que geram as grandes árvores, o valor das mudas que podem reconstituir áreas da cabeceira dos igarapés, dos riachos, das nascentes.
Além disso, é preciso ensinar também que, nos locais em que o solo não tem mais possibilidade de manter uma agricultura normal, cotidiana, deve-se tentar fazer a sua recuperação através, por exemplo, do plantio de ervas e outras coisas: fazer um tapete de relva e deixar que a água da chuva entre por baixo desse tapete para fazer renascer o solo, vai permitir que a vida comece a reaparecer. E, só depois, quando o solo degradado e desgastado se recuperar plenamente, deve-se iniciar com os plantios de interesse comercial para pequenas e médias propriedades - já que as grandes propriedades arrasam tudo o que existe para estabelecer, cada vez mais, grandes plantações e aumentar sua produtividade.
No caso da Amazônia, a primeira coisa que é preciso entender é que hoje, aquela imensidão de terras baixas, com suas planícies, áreas de inundação e imensas florestas que permaneceram contínuas até a metade do século 20, está realmente ameaçada pela devastação. O desmatamento está caminhando rapidamente por meio da agropecuária, da ação das madeireiras e do aproveitamento de uma mão-de-obra desqualificada que migrou para Amazônia em busca de trabalho e de condições de emprego e de sobrevivência. Porém, a realidade é a seguinte: paga-se valores de miséria para derrubar árvores que demoraram 400 anos ou mais para crescer, cujas toras, depois de cortadas, são vendidas aos intermediários estrangeiros a preços inimaginavelmente baratos. E essa mão-de-obra pobre, que é aliciada por toda parte - da mesma maneira que, um dia, os industriais fizeram para a região industrial de São Paulo - agora trabalha na destruição da floresta, em atividades de muito baixo rendimento social e familiar.
Para ilustrar essa questão, lembro-me que certa vez eu me encontrava no meio de um igarapé, longe do mundo, muito distante de Belém do Pará, quando me deparei com um casal bem jovem, mas já desgastado pelo tempo, com vários filhos. E eu perguntei ao rapaz o por quê de tantos filhos, se as condições de vida naquele lugar eram tão precárias. A resposta foi precisa e sociológica. Em outras palavras, ele argumentou: "Se não forem os meus filhos, com que humanos estarei no meio da mata?" Fato semelhante já havia me ocorrido no meio das caatingas, no alto de uma serra totalmente devastada e abandonada, onde encontrei dois sertanejos com sete filhos pequenos. Refletindo sobre o sentimento contido nesse pensamento, poderíamos concluir que o que está por trás dele é o seguinte: "Quanto mais filhos eu tiver perto de mim, mais pessoas humanas eu terei no meu redor para sobreviver à solidão!"
Voltando à Amazônia e à sua imensidão: como fazer projetos capazes de atingir completamente quatro milhões e 800 mil km2 de uma só vez? Mesmo considerando a sua homogeneidade em termos morfológicos e vegetacionais, em termos de área trata-se de um território muito maior do que toda a Europa ocidental! Sem falar de sua megabiodiversidade!
Pois bem, para poder pensar nesse assunto, eu propus a divisão da Amazônia em setores ou "células espaciais". E por que "células espaciais" e não regiões ou sub-regiões? É porque não há limites naturais nessa imensa área de terras baixas florestadas. O que existe são rios maiores regando terras, riosinhos participando da drenagem regional, igarapés e caminhos de canoa chegando até os riozinhos, riozinhos chegando até os afluentes, e afluentes chegando até o grande rio, o chamado Pará.
Pois bem, nessa imensa área, eu identifiquei 27 células espaciais (ver MAPA anexo), que vêm lá do Alto Rio Negro, do Alto Uaupés, até Bragantina, no Nordeste do Pará, descendo do Acre até o Amapá, e desde o Alto Solimões até o Golfão Marajoara.
Propositalmente, nesse mapa, as células não foram nomeadas para que as pessoas possam procurar descobrir seus nomes sozinhas e, assim, tomar consciência de sua existência e passar a considerá-las como tal em suas propostas de intervenção na área.
Então, começando pelo Vale do Amazonas, a grande planície constituída pelos lagos de barragem fluvial; temos o Alto Solimões, um nódulo espacial na região de Manaus, espécie de ponto nodal onde se encontram o Rio Negro que, por sinal, traz as águas do Rio Branco - com o Rio Solimões, formando o Rio Amazonas; o médio Amazonas; o baixo Amazonas; e o Golfão Marajoara - Marajó, o Golfão Norte, o estreito de Breves, a saída pelo Rio Pará, a Baía de Guajará e a Baía de Marajó.
Depois, eu identifiquei outras células espaciais, para além da planície. Primeiro no Uaupés, alto e médio relevos, e, depois, Roraima, com o setor dos lavrados e o da serra florestal - dois setores ecologicamente diferentes mas, do ponto de vista da economia global, funcionando como uma coisa só.
Então, para recapitular, apenas considerando a planície do Amazonas, já se encontram cinco setores diferentes, muito mais conhecidos pelos homens locais do que pelos cientistas!
Quando eu era aluno em Geografia Física, me perguntavam: "O que você sabe sobre a embocadura do Amazonas: é um delta ou é estuário?" Eu não podia responder nada e o professor também não! Então, ele dizia: "Na falta de conhecimentos mais precisos, vamos considerar que se trata de um delta estuarino?" Hoje em dia, podemos dizer, com certeza, que a boca norte do Amazonas é um estuário com uma saída fantástica de argila. Trata-se do rio mais sujo do mundo em relação à quantidade de sedimentos finos que lança mar afora. A saída do Amazonas emboca no mar, à frente de Marajó e do Amapá, chegando à costa do Pará e até às proximidades da costa noroeste do Maranhão.
É conhecido um fato ocorrido com um grupo de portugueses, ainda no início da colonização, que partiu de barco de Belém, seguindo para a Fortaleza de São José, no Amapá. Nesse percurso pelo mar, a um certo momento, os marinheiros já começavam a padecer de muita sede, sem energias para prosseguir, quando observaram um índio que os acompanhava na viagem caminhando e trabalhando pelo barco normalmente. Ele sabia algo que os demais não podiam sequer desconfiar: que aquela água, apesar de estarem navegando em pleno mar, não era totalmente salgada e que, apesar de conter bastante argila, ainda era água doce, potável.
A Amazônia guarda segredos que nós, cientistas, nem podemos supor. Uma vez, por exemplo, fiquei surpreso ao passar de barco por uma faixa aluvial muito importante, onde passa um canal que separa o oeste da Ilha de Marajó, que é uma área florestada de terra firme, de uma outra região, também de terra firme, perto dos lagos de Caxiuanã e de Portel. Olhando no mapa, eu calculava que esse canal teria algo entre 30 ou 40 metros de largura. Pois ele tem 800 metros! E mais: quando esse canal desemboca no Rio Pará - numa região chamada localmente de Baía das Bocas - eu pude verificar que, na verdade, tratava-se de um delta, com o caráter de estuário. O fato é que a população local sempre soube da existência de um delta entre Marajó ocidental e a terra firme oriental. E nós, cientistas, não sabíamos!
Recentemente, vindo de Manaus até Belém, entrando pelo estreito de Breves, eu pude notar que ali existem enormes serrarias, fábricas para fazer pranchas de madeiras nobres, que são vendidas no exterior como se tivessem um selo especial de procedência ambiental. Na realidade, apenas em uma rápida avaliação de seu círculo de crescimento, ali estavam sendo cortadas árvores com idades entre 270 e 500 anos de idade, sem nenhum controle ou fiscalização. Toras de árvores centenárias eram cortadas, colocadas na beira do estreito de Breves, para serem transformadas em pranchas e vendidas para o mercado europeu.
A ciência dos povos de cultura primária, entre os quais incluem-se os nossos indígenas, é qualquer coisa de extraordinária. Agora, desenvolveram-se novos sistemas para que esses conhecimentos milenares dos grupos humanos que estão ainda na pré-história ou que já estão aculturados possam ser conhecidos e estudados. Essa nova ciência que está sendo chamada de Etnociência é, de fato, admirável e vai permitir o conhecimento das forças da natureza, do espírito e da psicologia desses povos de modo muito mais integrado. A Etnociência trabalha com os procedimentos da Ciência ocidental do presente para absorver os conhecimentos tradicionais das culturas dos povos indígenas que nunca foram registrados.
No passado, os missionários souberam conter a grande belicosidade dos colonizadores para, com calma e paciência, perguntar aos índios: "Como que é 'pedra'; como que é 'água', como é 'céu' e 'terra'? Como é que é irmão, tio, pai, mãe, filha...?" Mas não perguntaram o que os índios sabiam sobre os lugares, sobre o seu habitat, sobre o barranco do rio, sobre a floresta, a várzea, os setores não florestados, a várzea florestada, a terra firme, etc. Também para os indígenas, todas essas "coisas da natureza" têm nome, função e explicação, adquiridos através de seus conhecimentos e sabedoria seculares.
Ao longo do século XX, um grande cientista chamado Darrel Posey, que era também um grande amigo do Brasil, iniciou seus estudos em Etnociência em Belém do Pará seguindo, depois, para São Luís do Maranhão. E ele fez descobertas maravilhosas, estudando os grupos humanos da região para extrair e sistematizar conhecimentos que estavam escondidos nas culturas dos povos indígenas brasileiros e que nunca tinham sido revelados em livros ou revistas científicas .
Nesse sentido, minha proposta é a seguinte. Deveria haver uma rápida convergência entre planos educacionais e científicos, procurando colocar equipes interdisciplinares para entender os problemas da terra e do homem, atendendo suas expectativas. É preciso considerar todas e cada uma daquelas 27 células espaciais e fazer um esforço para que as universidades, atuando em conjunto com o governo federal e os governos estaduais e municipais, desenvolvam e estudem métodos para compreendê-las. É preciso descobrir como se constituem essas células espaciais e sócio-ambientais, como estão as populações que ali vivem e quais as suas necessidades. É preciso saber como estão aqueles que vieram de longe procurando trabalho, devastando e retirando tudo o que a terra possa lhes dar.
Agora, voltando o nosso foco para as grandes cidades. Vejam bem, a arquitetura é uma função do conceito e do valor do espaço. Em São Paulo, por exemplo, já estão surgindo prédios muito, muito altos, atendendo ao crescimento demográfico e às necessidades do mundo urbano e industrial. Então, vamos imaginar como é que seria a psicologia das pessoas idosas e das crianças presas em apartamentos no 36º ou 40º andar, sem poder usar o elevador, sem poder descer? Os construtores especuladores usam todos os espaços possíveis a seu serviço e se apropriam dos conhecimentos etnopsicológicos extremamente refinados que a universidade produz para fazer seus edifícios. O resultado gera um raciocínio mais ou menos assim: "Eu tenho tantos metros quadrados de área, mas isso não é suficiente! Então eu também vou usar o céu como elemento para a produção do meu edifício, do meu arranha-céu, como forma de realizar o meu projeto, e ganhar muito dinheiro!" E as pessoas, os profissionais se vêm obrigados a fazer projetos grandiosos voltados para os especuladores. E essa é uma outra questão sobre a qual a universidade deveria se debruçar nesse milênio, porque todo o espaço é do homem e ninguém reage de modo inteligente para resolver esse impasse.
Quando eu era membro do Condephaat - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico do Estado de São Paulo - eu fiz de tudo para conseguir o tombamento de algumas áreas naturais. A Serra do Mar, por exemplo, uma escarpa florestada que, no passado, em sua base, foi muito mais seca e tinha florestas menos contínuas. Ali, de repente, houve um milagre da natureza e as rochas se decompuseram, os solos se formaram, a vegetação cresceu, a biodiversidade se desenvolveu à medida que os climas tropicais retornaram, depois de 12 mil anos. E, nessa Serra, não poderia nunca haver sítios urbanos, ali não deveria haver exploração de rochas, não deveria haver atividades agrícolas, mesmo porque os planaltos inteiros do interior de São Paulo já servem a esses usos do espaço.
Uma vez uma teatróloga muito importante do Brasil, uma pessoa a quem eu quero muito bem, queria fazer um hotel em cima da Pedra Grande, em Atibaia (SP). A Pedra Grande parece um pão-de-açúcar deitado - havia uma pedra desse mesmo tipo (pão-de-açúcar deitado) no Amapá, toda formada de rochas ricas em manganês, que foi completamente destruída, só sobrou uma cratera enorme. E a teatróloga queria construir, ali em Atibaia, um hotel de luxo e instalar um sistema qualquer de acesso ao local. Imediatamente eu interferi, e tombei a Pedra Grande de Atibaia. Mas, antes do tombamento, decidimos fazer uma democrática discussão na Câmara Municipal da cidade. E foi uma coisa extraordinária! O plenário da Câmara estava lotada de jovens, a mocidade inteira da cidade; os vereadores estavam numa ante-sala; aqueles que queriam dominar a Pedra Grande também estavam lá. Estes levavam consigo o projeto do hotel e do sistema que levaria os hóspedes lá em cima, que havia sido encomendado a um grande arquiteto paulista. A um certo momento, chamaram alguns cientistas, meus amigos e eu próprio. Depois, chamaram os vereadores da cidade que estavam favoráveis ao projeto e foi uma vaia fantástica, que aumentou ainda mais quando entraram os idealizadores do empreendimento. Então eu fui chamado e dei uma lição de páleo-clima e páleo-vegetação, explicando que lá no alto daquela pedra grande encontravam-se mandacarus e muitas outras relíquias dos climas secos do passado. Isto porque os mandacarus vieram primeiro, nos climas secos, e o Cerrado veio depois, no período da transição, e só depois vieram as matas. Mas lá na Câmara de Atibaia eu consegui dar uma idéia da importância que tinha aquele pão-de-açúcar deitado e a sua vegetação de relíquias. Todos os alunos presentes ficaram muito contentes e até a teatróloga, no final, concluiu: "Olha, eu acabo de ser dobrada, fui vencida! A Pedra Grande pertence a Atibaia e vai ficar para Atibaia! Eu desisto do hotel!" Foi realmente uma cena das mais bonitas de se ver numa sessão de Câmara Municipal!
Isso para dizer que é, justamente, com essa mocidade universitária do Brasil e das Américas que será possível ter um novo mundo, construído com mais interdisciplinaridade, mais dados e mais conhecimento.
A metrópole de São Paulo abarca incontáveis regiões paupérrimas, além das favelas propriamente ditas, são muitíssimos bairros carentes onde se vêem coisas inimagináveis. Certa ocasião, para tentar sanar parte dessas carências, eu pensei em criar uma espécie de Clube da Comunidade, onde as crianças, sempre com a presença das mães, fiquem protegidas e não possam ser abordadas pelos narcotraficantes. Porque são as mães que defendem as crianças, sozinhas, num mundo em que os homens têm que ir trabalhar e disputar empregos, às vezes, muito temporários em locais distantes.
E lá fui eu! Comecei a ensinar a população de uma dessas regiões carentes a comprar os produtos mais baratos no sacolão, compondo os ingredientes necessários para fazer um "sopão de rico" muito bem feito, que até as crianças gostam de comer. Assim, aos sábados, domingos e feriados passamos a fazer muitas coisas gostosas para aquela gente. Depois de aprender a fazer o sacolão e a cozinhar essa espécie de sopão, eles foram aprendendo a fazer muitas outras coisas: a feijoada, o arroz de carreteiro, o arroz ao tomate, etc. E a história começou a dar certo. Só que um dia uma daquelas pessoas protestou, dizendo o seguinte: "O senhor nos ensinou a fazer tanta coisa, será que o senhor não pode nos ensinar a arranjar emprego, também?" Quem sou eu, quem somos nós? Só combatendo em conjunto será possível criar empregos em maior quantidade para todos os brasileiros.
Apenas para terminar, vou lembrar uma cena fantástica que aconteceu num daqueles dias em que fizemos o sopão. Primeiro, servimos as crianças, que fizeram uma fila por ordem de tamanho. E eu observei que uma delas, muito bonitinha, entrou várias vezes na mesma fila: pegava o sopão, comia bem rápido e entrava no fim da fila novamente, sempre na fila das crianças pequenas. Enquanto isso, os adolescentes, que estavam jogando bola e também necessitavam de alimento, tinham de esperar. Na terceira vez, essa criança chegou perto de mim e me disse: "Professor, hoje não vai precisar fazer comida lá em casa porque eu vou comer aqui e também porque lá em casa não tem nada pra comer!" Eu penso que é justamente nessas ocasiões que a gente pode refinar e conhecer melhor as comunidades e sua psicologia, assim como suas expectativas, que são psicológicas - sem dúvida! - mas que são, principalmente, de sobrevivência.
Recebido em 5.04.2004
Aceito em 7.03.2005
1 Transcrição: Maria Eugênia Blanques de Gusmão. Redação: Helena Tassara. Revisão técnica: Reinaldo Corrêa Costa.
2 Professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da USP. Endereço para correspondência eletrônico: reicosta@usp.br