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Winnicott e-prints
versión On-line ISSN 1679-432X
Winnicott e-prints vol.1 no.2 São Paulo 2006
ARTIGOS
Heidegger e Winnicott1
Heidegger and Winnicott
Zeljko Loparic
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Universidade de Campinas
1. A abordagem da questão
Heidegger foi um crítico veemente da ciência moderna e da psicanálise. Winnicott, por sua vez, define a si mesmo como um psicanalista que faz ciência. Poderia, portanto, parecer que a única leitura heideggeriana possível de Winnicott teria de dizer que, como todo cientista, este último objetifica o não–objetificável, e que, por outro lado, a única atitude winnicottiana cabível em relação à analítica existencial de Heidegger seria a de declará–la cientificamente irrelevante.
Creio, porém, ser este um modo equivocado de pensar a relação entre Winnicott e Heidegger. Por um lado, Heidegger rejeita apenas o ";absolutismo das ciências da natureza" (Heidegger 1987, pp. 143 e 160), ou seja, a pretensão desta de exclusividade sobre o conhecimento factual relativo ao que quer que haja ou poderia haver. Sua crítica não vai ao ponto de propor a cessação da pesquisa científica ou do conhecimento científico já existente. Ele concorda com a concepção comum de que tal conhecimento é indispensável para a espécie humana. Ao criticar Freud, Heidegger rejeita principalmente sua metapsicologia, por considerar que a mesma consiste num construto teórico produzido no contexto das ciências da natureza, a seu ver inadequada para o desenvolvimento de pesquisas em ciências humanas, e para lidar com as dificuldades da vida humana. Não obstante essa crítica, Heidegger aceitou em grande parte as descobertas factuais de Freud sobre os aspectos patológicos do comportamento humano e procurou, até mesmo, traduzir tais descobertas para a sua própria ";linguagem de descrição de fenômenos" (1987, p. 345). Ele também apreciava muitíssimo os procedimentos freudianos de pesquisa e de tratamento. Assim, a despeito de suas acerbas críticas à ditadura do paradigma naturalista2 sobre as ciências do homem, Heidegger não rejeitou a busca por conhecimento científico enquanto tal, nem a psicanálise propriamente dita. Ao contrário, veremos como ele, na verdade, elaborou o projeto de uma ciência do homem (Wissenschaft vom Menschen)3 e, particularmente, de uma patologia e uma terapia científicas, a serem desenvolvidas no contexto de sua própria analítica existencial.
Reportando–nos agora a Winnicott, notamos que também ele abandonou a metapsicologia de Freud juntamente com seu enquadre kantiano naturalista. No entanto, continuou a aceitar a teoria freudiana das neuroses e o relacionamento inter–pessoal como parte essencial de qualquer procedimento voltado para o tratamento psicoterápico, ainda que sob uma dada condição: de que lhe fosse permitido reinterpretar ambas as coisas na linguagem que expressa a sua própria maneira de ver o ser humano. Esse modo próprio de ver centra–se na idéia do indivíduo humano como uma ";amostra, no tempo, da natureza humana", que vai sendo e se desenvolvendo num tempo circular não objetivo. Simultaneamente, Winnicott adiciona alguns elementos muito significativos à teoria4 e à prática psicanalíticas tradicionais. Se examinarmos essa mudança com cuidado, surgirá a idéia de que Winnicott modificou o próprio paradigma da psicanálise tradicional (essencialmente freudiana). Visto que as descobertas factuais freudianas não são abandonadas e sim redescritas, podemos dizer que Winnicott não criou uma nova ciência, mas provocou algo passível de ser chamado de ";revolução científica" na disciplina criada por Freud.5
Ao formular as suas idéias, ou o que nós propomos chamar de ";novo paradigma", Winnicott apoiou–se nos escritos de alguns poetas, teólogos e filósofos. Pouco antes de morrer, em seu Prefácio a O brincar e a realidade, sublinhou que sua concepção de uma ";região intermediária" entre o reino dos objetos subjetivos e dos objetos percebidos objetivamente, apesar de negligenciada pela literatura psicanalítica, ";encontrou reconhecimento nos trabalhos de certos filósofos" (Winnicott 1971a/1971, p. XI). Anteriormente, em aulas publicadas no livro Natureza humana, ele chamara a atenção de seus ouvintes para o fato de que várias disciplinas científicas que estudam as fases primitivas do desenvolvimento emocional humano deviam à filosofia a ";coragem de prosseguir passo a passo rumo a um melhor entendimento da natureza humana" (1988/1988, p. 151). Em 1963, Winnicott assinalou que ";todos os processos de um bebê vivo constituem um continuar sendo, um esboço de existencialismo" (1965b/1965, p. 86). Mais tarde, em 1966, ele concedeu que, em vez de usar o termo ";sendo", ao falar sobre o começo de tudo em relação ao bebê, ele também poderia usar ";o francesismo existindo e falar sobre a existência". ";Podemos inclusive transformar isto numa filosofia", diz ele, ";e chamá–la de existencialismo" (1987a/1987, p. 12). No entanto, acrescenta ele, de um modo ou de outro ";gostamos de começar com a palavra sendo, e depois ir adiante até a afirmação eu sou", quer dizer, empregando assim a língua materna dos bebês com os quais ele estava lidando.
Em outros momentos, Winnicott explicou alguns dos motivos de sua resistência a utilizar a linguagem dos filósofos para descrever fenômenos humanos, e sua preferência pela linguagem comum. Num texto de 1961, ele aponta para um ";erro do existencialismo", constituído pela tendência deste em deixar–se usar como ";uma espécie de religião" por aqueles que, ";por sua incapacidade de relacionar–se com o passado e com o futuro, escapam para o momento presente" (1996a/1996, pp. 233–4). O argumento de Winnicott é que o existencialismo esquece do tempo enquanto dimensão essencial do ser humano. Em ";Medo do colapso", ele critica os textos existencialistas por uma outra razão: por transformarem a existência num ";culto". Ele os interpreta como uma tentativa de ";evitar a tendência pessoal à não–existência". O existencialismo erra, portanto, ao agir como uma ";defesa organizada" contra um aspecto específico da condição humana, a saber, de que ";é somente a partir da não–existência que a existência pode começar" (1989a/1989, p. 95, grifo no original). Neste caso, o problema está não no esquecimento da temporalidade do ser humano, mas em negligenciar a relação entre ser e não ser, presente em cada um dos indivíduos humanos.
Visto que Winnicott jamais menciona o nome de qualquer filósofo, podemos apenas imaginar que ele esteja, a partir dessas observações, criticando os existencialistas franceses. Tal interpretação encontra apoio no fato de que R. D. Laing, que estava em estreito contato com Winnicott na época em que este escreveu essas observações sobre o existencialismo, era leitor e notório seguidor de Sartre (Laing 1960). Isso dito, deveríamos ter em mente que Winnicott reconheceu por diversas vezes o fato de seus estudos científicos da continuidade do ser humano estarem próximos das indagações filosóficas sobre a existência humana. Portanto, é bastante natural que, em nossa tentativa de compreender melhor Winnicott, procuremos identificar filósofos cujo pensamento se volta para a questão do ser humano, sem, contudo, estar exposto às objeções quanto ao esquecimento do horizonte temporal deste nem da sua íntima relação ao não–ser.
Por tudo o que me é dado saber, a ontologia fundamental de Heidegger satisfaz essas condições. Foi concebida como um estudo do sentido do ser em geral, no interior do horizonte do tempo ";original", e contra o pano de fundo do não–ser. Em Ser e tempo (publicado em 1927), o ser si mesmo humano é definido não pelo que fazemos ou pelo que somos socialmente, mas pela possibilidade da impossibilidade, ou seja, pela possibilidade de não mais ser no mundo. Essa dimensão não mundana de nossa natureza constitui, paradoxalmente, o cenário de todas as possibilidades de sermos no mundo. Visto que em Heidegger ";ser" significa ";presença", é a possibilidade da ausência que dá sentido à presença e a seus vários modos, e não o contrário. Além disso, Heidegger distancia–se explicitamente do existencialismo sartriano por este negligenciar o sentido temporal do ser. Desse modo, ele parece ser o filósofo a ser levado em conta quando discutimos as referências filosóficas intencionais ou não de Winnicott. Inversamente, há boas razões para dizermos que o novo paradigma psicanalítico de Winnicott satisfaz os requisitos básicos para a ciência do homem conforme esboçados em Ser e tempo, e especialmente nos Seminários de Zollikon. Se assim é, e creio ter a possibilidade de demonstrá–lo, a psicanálise de Winnicott pode ser percebida como uma realização parcial não intencional da terapia e da patologia daseinsanalíticas do projeto heideggeriano.
A idéia que assim emerge abre novas perspectivas sobre a relação entre Heidegger e Winnicott. Em primeiro lugar, podemos antecipar que a ontologia fundamental de Heidegger poderia nos ajudar a lançar luz sobre as suposições filosóficas da psicanálise winnicottiana. Segundo, somos encorajados a pensar que as idéias de Winnicott poderiam ser usadas como um estímulo para completar e articular o projeto original heideggeriano de uma ciência do homem em geral, e de uma psicopatologia em particular. O estudo de Winnicott pode, inclusive, estimular a pesquisa daseinsanalítica em níveis ônticos e ontológicos. De fato, Winnicott levanta alguns novos e muito importantes ";problemas concretos", que poderiam ajudar a elaborar a ontologia regional correspondente à antropologia normal e patológica, bem como a analítica existencial propriamente dita. Acresce–se a isto o fato de que os novos desenvolvimentos introduzidos por Winnicott na técnica psicanalítica poderiam revelar–se importantes para o progresso da terapia científica orientada nos termos da analítica existencial de Heidegger. Vamos agora desenvolver cada uma dessas três perspectivas.
2. A crítica6 de Heidegger à ciência natural moderna nos Seminários de Zollikon7
De acordo com Heidegger, a teoria científica nas ciências naturais modernas ";é um pressuposto construtivo (Annahme) com o objetivo de ordenar consistente e continuamente os fatos num contexto maior, a saber, no todo da natureza pré–existente" (1987, p. 198). Nem aqui nem em qualquer outro lugar dos Seminários de Zollikon mostra–se ele muito específico quanto à natureza desse ";ordenar consistente e continuamente os fatos". No entanto, ele tem algo mais a dizer sobre outros elementos de sua definição. Um deles é o aspecto construtivo das teorias científicas modernas. As construções teóricas apresentam–se em dois níveis, sendo o mais alto o dos ";pressupostos", e o mais baixo o das ";suposições". No nível das suposições, as construções têm o caráter de projetos ou modelos metafísicos da natureza. O modelo metafísico básico nas ciências da natureza é o conceito newtoniano de um ";sistema espaço–temporal de pontos de massa em movimento" (p. 198). Ao longo do desenvolvimento da moderna ciência da natureza, a metafísica da natureza de Newton esteve embutida num nível ainda mais alto de ";pressupostos". Entre estes, o ";pressuposto transcendental da objetividade dos objetos", proposto por Kant em Crítica da razão pura (p. 169), desempenha um papel decisivo.8 Especialmente importante é a tese kantiana de que as condições de possibilidade da experiência são, ao mesmo tempo, as condições de possibilidade dos objetos da experiência (p. 140).9 Outro construto de importância capital é o princípio (transcendental) da causalidade (p. 28), que, por sua vez, tem seu fundamento no princípio da razão suficiente, de Leibniz, em conjunto com o princípio transcendental da mensurabilidade dos objetos e de suas propriedades (p. 119). A mensurabilidade, diz Heidegger, pertence à coisa interpretada ontologicamente como um objeto (p. 128).10 Por sua vez, a mensurabilidade significa calculabilidade (p. 135). Ambos os pressupostos são condições necessárias para a produção de objetos (p. 128) e, neste sentido, também para o nosso controle e governo da natureza (p. 136). Eis por que a cibernética é a forma paradigmática da moderna ciência da natureza (p. 25).
O modelo mecânico e dinâmico da natureza, proposto por Newton, quando tomado em conjunto com a metafísica geral de Kant e Leibniz, funciona como a moldura construtiva geral a priori na qual as ciências específicas da natureza formulam suas próprias ";suposições" de nível mais baixo, ou seja, hipóteses, ficções e mitos (pp. 160, 165 e 218). Entre essas construções adicionais, uma importância especial é atribuída a certas, assim chamadas ";forças fundamentais" – que constituem tipos especiais de causas – e à idéia da máquina, ou seja, da organização mecânica das coisas, incluindo o homem, em conjunto com muitas hipóteses causais de baixo nível, menos gerais, as quais é preciso testar por meio de experimentos.
Todos esses construtos, se vistos em conjunto, funcionam como a base para a observação e a descrição dos fatos, e também para a realização de experimentos. Os fatos científicos são sempre dependentes da teoria e carregados de teoria (p. 328, cf. p. 168). Em especial, não existem fatos livres de metafísica.11 Esta forma de construir o domínio dos objetos e as teorias das ciências modernas implica também num modo específico de ver a linguagem empregada na descrição e o método de pesquisa. A linguagem utilizada é concebida como fornecedora de informações mensuráveis e calculáveis sobre os fatos objetivos, sendo ela própria um objeto calculável (p. 119). Quanto ao método, trata–se do método hipotético dedutivo e experimental (pp. 166–7).
De um ponto de vista epistemológico, diz Heidegger, os resultados obtidos por esses dois métodos não são menos ficcionais do que as construções teóricas que os tornaram possíveis (p. 167). Quanto à relevância de tais resultados, eles são em geral aclamados por sua utilidade. Heidegger insiste em que, ao contrário, o conhecimento produzido pelas ciências da natureza em nossa época não conduz a nenhum futuro melhor, e menos ainda à libertação do homem, mas sim à sua ilimitada autodestruição (pp. 123 e 160).
3. A crítica heideggeriana à psicanálise de Freud nos Seminários de Zollikon
A crítica de Heidegger à teoria psicanalítica freudiana se dá em dois passos. A metapsicologia é inaceitável porque transfere ao estudo do homem, primeiro, a teoria kantiana da objetividade e, segundo, o paradigma das ciências da natureza (1987, p. 260). Devido ao primeiro passo, Freud trabalha com uma inaceitável objetificação da historicidade do homem. Isto significa que ele vê o homem como algo meramente presente (vorhanden) no mundo, ou seja, como apenas um outro exemplo a mais de realidade efetiva (Wirklichkeit, p. 197).12 Em virtude do segundo passo, Freud naturaliza o homem como um processo causal. Tanto os fenômenos normais quanto os patológicos são vistos como resultados produzidos por impulsos e forças hipotéticas majoritariamente inconscientes. A ";história psicanalítica de uma vida humana", por exemplo, não é de modo algum uma história, mas uma ";cadeia causal natural, uma cadeia de causas e efeitos, e ainda por cima uma cadeia construída" (p. 202).
Ao mesmo tempo, Heidegger reconhece que Freud revelou um certo número de fenômenos ";ônticos" – tais como a projeção, a introjeção, a identificação, a regressão e a repressão – que são de grande importância para qualquer antropologia normal e patológica. No entanto, a fim de serem utilizadas adequadamente, tais descobertas devem ser reinterpretadas à luz da analítica existencial e da ontologia regional correspondente. Ainda que Heidegger não tenha prestado qualquer atenção ao complexo de édipo e ao seu papel central no paradigma freudiano, mostrou um profundo entendimento da descoberta de Freud segundo a qual os seres humanos podem adoecer em razão de relacionamentos traumáticos com outros seres humanos (p. 256). De novo, os eventos traumáticos devem ser tratados como casos de ";ser com os outros" interpretados existencialmente, no sentido heideggeriano explicado em Ser e tempo, e não como efeitos no sujeito de seu modo de relacionar–se com objetos, que constitui parte integrante da moderna metafísica da representação e de seu modelo do ser no mundo do homem. O mesmo pode ser dito quanto à descoberta freudiana de que as doenças psíquicas podem ser curadas através do relacionamento dos pacientes com outros seres humanos. Aqui também o conceito tão importante de Freud do valor terapêutico do relacionamento inter–pessoal deve ser compreendido como um modo particular de ser–junto, não como uma ";transferência" de afetos ou representações a um ";objeto" humano, a ser tratada pelo método da associação livre e da verbalização (p. 210).13
A crítica heideggeriana à psicanálise de Freud está longe de constituir uma pura e simples rejeição. Consiste muito mais em mostrar que, apesar de ter produzido contribuições importantíssimas à ciência do homem, a psicanálise freudiana incrustava–se indevidamente na tradição das modernas ciências da natureza e da moderna metafísica da representação, e que suas descobertas factuais deveriam ser reformuladas dentro do contexto ontológico da analítica existencial, completada pela ontologia regional da antropologia normal e patológica.
4. O projeto heideggeriano de uma ciência do homem nos Seminários de Zollikon14
Enquanto Heidegger tentava explicar a estrutura ontológica do ser humano e sua relevância para uma psiquiatria científica daseisanalítica, alguns participantes dos seminários o confrontaram com duas sérias objeções. Em primeiro lugar, a objeção da hostilidade, ou seja, a de que a analítica existencial de Heidegger seria hostil à ciência, aos objetos e aos conceitos (p. 147). Em segundo lugar, a objeção de uma inadequação metodológica, pela qual Heidegger tinha uma concepção ";ultrapassada do método das ciências da natureza" (p. 343).15
Em sua tentativa de responder a tais objeções, Heidegger apresentou o projeto filosófico de uma ciência geral do homem de acordo com sua analítica existencial. Uma antropologia daseinsanalítica científica, diz ele, pode ser vista como ";o todo de uma disciplina possível votada à tarefa de produzir uma apresentação concatenada dos fenômenos ônticos exibíveis relativos ao Dasein sócio–histórico e individual" (1987, pp. 163–4). Como qualquer ciência, a antropologia daseinsanalítica deveria consistir numa ";ordenação sistemática". Ordenação de quê? Não de fatos empíricos brutos, mas de ";interpretações de experiências" alcançadas por meio do método hermenêutico. A ordenação de interpretações implica na produção de classificações, e na consideração da existência humana no interior da sociedade industrial moderna (p. 164). Essa ";ciência inteiramente nova" da antropologia a ser ainda criada consistiria de uma ";antropologia normal" e incluiria também uma ";patologia daseinsanalítica".16
No intuito de apresentar um quadro coerente das observações esparsas de Heidegger relativas a seu projeto filosófico de uma ciência do homem, tentarei mostrar de que modo elas correspondem
ao conceito do paradigma científico de Thomas S. Kuhn.17 Meu segundo objetivo será avaliar até que ponto o projeto heideggeriano pode contribuir para o que poderíamos chamar de o paradigma de uma ciência daseinsanalítica do homem.18
Segundo Kuhn, uma ciência factual caracteriza–se por uma matriz disciplinar e por soluções compartilhadas de problemas paradigmáticos ('exemplares'). A matriz disciplinar de uma ciência empírica consiste nos itens seguintes: 1) generalizações–guia;19 2) modelo metafísico de entidades pertencentes ao domínio pesquisado; 3) regras heurísticas20 e 4) valores científicos compartilhados, incluindo uma concepção compartilhada de ciência e dos objetivos da ciência.
Heidegger jamais apresentou qualquer proposta concreta a respeito das generalizações–guia quer da antropologia normal quer da patológica. Esta, aliás, é uma das razões que me levam a falar de um ";projeto" de ciência do homem, e não de um ";paradigma" heideggeriano para essa ciência. No entanto, ele especificou duas condições metodológicas e epistemológicas fundamentais negativas, que deveriam ser satisfeitas por qualquer generalização científica proposta para a ciência do homem: ela não deveria ser nem objetificante nem determinística.
Com o item seguinte da matriz disciplinar da antropologia daseinsanalítica – o ";modelo metafísico" do homem –, Heidegger está muito mais à vontade. Ele está inteiramente de acordo com Kuhn ao dizer que as ciências factuais desenvolvem–se sempre dentro de molduras filosóficas mais gerais. Que tipo de moldura seria adequado no caso da antropologia? Já conhecemos a resposta de Heidegger: sua analítica existencial, apresentada em Ser e tempo que, no entanto, precisaria ser enriquecida por existenciais apropriados derivados, que descrevam traços ";regionais" dos fenômenos ônticos. A analítica existencial de Heidegger, porém, implica na ";destruição" ou ";desconstrução" da antropologia metafísica tradicional, que vê o homem como uma entidade natural e objetiva. No lugar dessa ontologia, Heidegger coloca a sua própria ";ontologia fundamental", uma descrição dos modos de ser do homem no horizonte de um tempo existencial original finito. O ";modelo" de homem assim alcançado não é mais – ao contrário do que diz Kuhn – um modelo ";metafísico", no sentido tradicional predominante do termo, mas um modelo ";pós–metafísico", no novo sentido daseinsanalítico. O cientista que segue a nova idéia heideggeriana de essência do homem é convidado a ver e a interpretar os modos de ser do homem concreto como manifestações da estrutura subjacente do Dasein, e a evitar ";pressupostos" e ";suposições" (sejam eles meta–físicos ou meta–psicológicos)21 sobre entidades ocultas pensadas como explicação causal desses mesmos fenômenos vistos como eventos naturais.22
Quanto aos ";modelos heurísticos", que constituem o terceiro elemento mais importante numa matriz disciplinar, o procedimento a ser empregado para produzir uma ciência daseinsanalítica do homem deveria ter as seguintes características. Primeiro, deve ser descritivo, não construtivo nem hipotético. A descrição daseinsanalítica, antropológica e científica de fenômenos factuais que surgem nas vidas de indivíduos humanos concretos deve basear–se numa interpretação desses fenômenos dentro do horizonte de contextos motivacionais concretos, sem jamais perder de vista os existenciais regionais e fundamentais pelos quais eles são ";determinados" e feitos visíveis (p. 256). Sendo a vida de um indivíduo essencialmente um fenômeno histórico, e já que o tempo existencial é circular, o movimento do entendimento deve ser ele próprio circular. Do ponto de vista metodológico, a ciência do homem é concebida por Heidegger como um tipo especial de conhecimento factual23 descritivo, hermenêutico e histórico do ser humano no mundo.
Com relação ao quarto item do paradigma, os ";valores compartilhados", as normas consideradas padrão das ciências da natureza, tais como a mensurabilidade, a calculabilidade ou mesmo a possibilidade da produção de modos de ser humanos específicos, e até do próprio homem, não são sequer consideradas no projeto de Heidegger. Tampouco recomenda ele que se trabalhe, acima de tudo, de maneira a alcançar a previsibilidade, a consistência interna ou externa, a simplicidade, a plausibilidade empírica ou qualquer outro dos valores ";lógicos" da ciência factual tradicional. Os valores mais importantes que deveriam caracterizar a ciência daseinsanalítica do homem são eminentemente práticos e mesmo éticos: a saúde e a capacidade de alguém de responsabilizar–se pelos seus próprios modos de ser.
Isto nos leva ao nosso último ponto, que se refere ao que Heidegger tem a dizer sobre os ";problemas paradigmáticos" característicos das ciências factuais, que norteiam a pesquisa normal. é verdade que, ao apresentar sua concepção geral da ciência do homem, Heidegger não tinha como definir seu campo apontando para problemas paradigmáticos concretos. No entanto, ao que tudo indica, ele não estava consciente de que as disciplinas científicas específicas permanecem indefinidas enquanto não é especificado aquilo que Kuhn chamou de ";exemplares". Como vimos, Heidegger não levou em conta o complexo de édipo e o seu papel central no desenvolvimento da pesquisa e da terapia psicanalíticas. Dito de outro modo, Heidegger não desenvolveu qualquer concepção específica dos modos permitidos ou recomendados de formular e resolver problemas na antropologia daseinsanalítica por oposição à antropologia naturalista. Esta é mais uma razão pela qual seu projeto permaneceu aquém de tornar–se um paradigma.
Ainda assim, Heidegger tinha algumas coisas importantes a dizer sobre os aspectos ontológicos fundamentais dos objetos sobre os quais versam os problemas de qualquer antropologia daseinsanalítica. Os dados básicos desses problemas deveriam ser as dificuldades do ";homem existente" (p. 259). O aspecto central dessas dificuldades é a limitação da capacidade de ser e de ser livre. Todas as ";perturbações" da existência humana, tanto sociológica quanto médica, são da mesma natureza, ou seja, constituem limitações à liberdade de ser. Portanto, a solicitude (Fürsorge) em relação aos outros – este é o modo básico das relações inter–pessoais – implica na responsabilidade de permitir que os outros sejam e que sejam independentes. ";Praticamos a psicologia, a sociologia ou a psicoterapia", diz Heidegger, ";a fim de ajudar as pessoas a alcançarem a meta da adaptação e da liberdade no mais amplo sentido" (p. 199). A ciência do homem não tem por objetivo transformar o homem em objeto de interesse teórico, mas em ajudar os homens a realizar a sua verdadeira natureza. Tornar–se eu mesmo parece ser, pois, o aspecto central da ";incógnita" dos problemas de qualquer disciplina antropológica daseinsanalítica.24
5. O projeto existencial de Heidegger de uma psicopatologia e uma terapia daseinsanalíticas científicas
Em Seminários de Zollikon Heidegger dedicou uma atenção especial à psicopatologia e à terapia daseinsanalíticas.25 Aqui, mais uma vez, usaremos o conceito de paradigma, formulado por Kuhn, na tentativa de organizar as idéias de Heidegger. Estas referem–se predominantemente ao modelo heurístico e aos problemas paradigmáticos das disciplinas acima mencionadas.
Os fenômenos patológicos relevantes aglutinam–se, diz Heidegger, ";no relacionamento entre o psiquiatra e o paciente" (p. 342). Tal relacionamento analítico concreto deve ser visto como uma forma de estar–junto. A psiquiatria daseinsanalítica tem, portanto, a incumbência de explorar e interpretar as experiências ";médicas" que emergem no interior desse modo existencial específico de relacionar–se com outras pessoas. A exploração do relacionamento e as experiências correspondentes devem basear–se nesse ";método inteiramente novo" de envolvimento (Sich–ein–lassen, pp. 141 e 144).
A tarefa da exploração é resolvida pela aplicação de uma versão especial da hermenêutica, que Heidegger chama de ";hermenêutica da exploração". Pressupõe ";o horizonte da experiência médica" (p. 337), que torna possível a coleta profissional – isto é, científica – de fatos clínicos (pp. 342, 343, 347 e 352). Uma instrução positiva importante quanto a este modo particular de ver e compreender os dados relativos ao homem é esta:
O ponto decisivo é que o conteúdo fenomênico dos fenômenos singulares que surgem no relacionamento entre o analista e o analisando seja trazido para a linguagem na medida em que pertencem ao paciente concreto em questão, e não simplesmente subsumidos num existencial de um modo genérico [pauchal]. (p. 162)
Da mesma forma, a hermenêutica da exploração não produz interpretações diretamente no horizonte do tempo original. Seu horizonte deve ser o círculo da história concreta do Dasein individual em tratamento, ou seja, sua biografia vista como existencial ";derivado" ou ";de nível inferior" pertencente à ontologia regional da psiquiatria. é este o cenário específico de sentido que o analista deve considerar como sendo o contexto de suas interpretações (em adição, obviamente, aos horizontes mais amplos do ser no mundo enquanto tal). Se isto não acontece, os fenômenos ônticos ou não serão vistos de modo algum, ou serão avaliados apenas enquanto contribuições à elucidação de questões ontológicas, mas não de questões médicas. E quando tal acontece, a existência individual concreta é perdida de vista e esvaziada de seu ";conteúdo factual" (p. 257).26
Isto, por sua vez, implica em que para avaliarmos adequadamente um dado conteúdo factual, o patologista daseinsanalítico deve ter à sua disposição um certo número de existenciais derivados que lhe permitam ver e interpretar problemas biográficos patológicos concretos. Entre estes encontram–se os existenciais de saúde e doença, dos vários tipos de doenças, da natureza das doenças, das defesas patológicas e das organizações defensivas. Todos eles devem ser esclarecidos em conjunto com muitos outros. Uma atenção especial deve ser prestada ao lado histórico desses existenciais. Além disso, a questão da etiologia deve ser trabalhada ao máximo. Conceitos tais como o de trauma devem ser explicados. é preciso, igualmente, elaborar plenamente as explicações genéticas. Para resumir, todos os fenômenos ônticos encontrados no relacionamento clínico devem ser compreendidos à luz dos modos particulares de ser no mundo que lhes deram origem. Esses existenciais tomados em conjunto formam a ontologia regional da psiquiatria. Até onde sei, Heidegger nunca desenvolveu uma antropologia desse tipo, e tampouco o fizeram seus seguidores (Binswanger e Boss).27 Isto permanece um desideratum mais do que devido para completar a matriz disciplinar da daseinsanálise.
Quanto aos problemas paradigmáticos da patologia daseinsanalítica, há suficiente evidência de que Heidegger esperava que os patologistas daseinsanalíticos encontrassem, formulassem e resolvessem os problemas ";ônticos", isto é, factuais, do tipo tratado por Freud, instando–os a deixar as questões ontológicas para os filósofos.28 Ele nunca especificou, contudo, quais problemas devem ser considerados paradigmáticos num determinado campo da patologia daseinsanalítica. Um exemplo das dificuldades de Heidegger para se decidir em relação aos problemas concretos é dado por uma conversa entre ele e Binswanger, ocorrida em 1955. Este último perguntou a Heidegger se ";os mentalmente enfermos estão abertos para o ser". O filósofo respondeu que sim, ";pois os mentalmente enfermos também têm linguagem". E acrescentou que ";ao ler relatos de casos clínicos psiquiátricos, ele muitas vezes teve a impressão de que nas pessoas mentalmente doentes também emerge a preocupação quanto ao ser [Besinnung auf das Sein]" (Binswanger 1994, p. 293). Esse comentário é interessante em si mesmo, mas obviamente não preciso o suficiente para permitir–nos relacionar a questão do ser aos problemas clínicos tratados na psiquiatria e na psicanálise. A ausência de qualquer conceitualização articulada de problemas psiquiátricos à luz da analítica existencial é mais uma das razões pelas quais o projeto de Heidegger de uma patologia daseinsanalítica não pode ser visto como um paradigma científico.
6. A revolução psicanalítica de Winnicott avaliada à luz dos requisitos heideggerianos para uma antropologia científica
Voltemos agora a Winnicott. Primeiramente, irei caracterizar a sua contribuição à psicanálise como a criação de um novo paradigma para essa ciência, argumentando, além disso, que esse paradigma satisfaz os requisitos de Heidegger para uma ciência daseinsanalítica do homem. Na seção seguinte, tentarei mostrar que a psicanálise de Winnicott poderia ter efeitos estimulantes no desenvolvimento de uma psicopatologia e de uma terapia daseinsanalíticas.
De início, examinarei as mudanças introduzidas por Winnicott no que poderíamos chamar de ";matriz disciplinar" da psicanálise desenvolvida por Freud. Em primeiro lugar, Winnicott substituiu a generalização–guia de Freud – sua teoria da sexualidade – por uma hipótese de trabalho inteiramente diferente e original, a saber, ";a idéia de um progresso que vai da dependência em direção à independência" no interior do processo de amadurecimento emocional. Winnicott não tenta mais produzir ";uma formulação do desenvolvimento infantil em termos de progresso das zonas erógenas" (1989a/1989, p. 194). Ele concebe o amadurecimento de um humano mais como um desenvolvimento que principia pelo que ele chama de ";gesto espontâneo", cuja fonte é o ";si–mesmo verdadeiro potencial".
Sejamos mais específicos quanto ao processo de amadurecimento. Após a primeira mamada desenvolve–se uma ";expectância", um estado de coisas ";no qual o bebê está preparado para encontrar alguma coisa em algum lugar, sem saber o quê". Nesse momento ele está pronto para criar: ";O mundo é criado de novo por cada ser humano, que dá início à tarefa pelo menos tão cedo quanto o momento do nascimento [...]" (1988/1988, p. 110). A criação do mundo e dos primeiros sentidos das coisas ajuda o bebê a resolver suas primeiras tarefas ";existenciais": integrar–se no tempo e no espaço, começar a alojar–se no corpo, e a relacionar–se com ";objetos". O primeiro objeto, a mãe, ainda não tem o significado de uma entidade externa. O bebê é a mãe, no sentido transitivo do verbo ";ser". Ele nem é realmente idêntico nem realmente distinto da mãe. Nesse estado de dependência quase absoluta, o princípio comum de identidade não se aplica ao que é dado na experiência do bebê. Mais tarde, o bebê separa–se da mãe, sendo esta a condição para assegurar seu senso de independência e de liberdade pessoal. Para que isto ocorra, o bebê deve tornar–se capaz de destruir objetos, de usá–los e de criar um novo senso de realidade, o de externalidade. Somente depois de ter conseguido tudo isto pode ele começar a sentir os impulsos biológicos, especialmente os sexuais, como sendo realmente seus. A partir daí pode acontecer o desenvolvimento pessoal posterior, até chegar à morte – ";o último fato da vida".
Há óbvias e profundas diferenças entre a teoria sexual de Freud e a teoria do amadurecimento de Winnicott. Elas são suficientes para que possamos dizer que Winnicott modificou a generalização–guia da psicanálise e, conseqüentemente, o primeiro dos elementos centrais do paradigma de Freud. Seria essa modificação aceitável do ponto de vista de Heidegger? A melhor maneira de responder essa pergunta é mostrar que a teoria do amadurecimento de Winnicott satisfaz ambos os requisitos gerais formulados por Heidegger para tais generalizações, a saber, os requisitos de não serem objetificantes nem determinísticas.
A fim de decidir se a teoria do amadurecimento é objetificante ou determinística, ou se não é nenhuma das duas coisas, podemos perguntar se ela trata o crescimento humano como um processo natural. A resposta óbvia é não. O processo de amadurecimento de Winnicott não é, como é o desenvolvimento sexual de Freud, o resultado da atuação de forças psíquicas (as pulsões de vida e de morte, e suas misturas) no interior do aparelho psíquico, mas a manifestação da natureza humana. ";Um ser humano", diz Winnicott, ";é uma amostra no tempo da natureza humana" (1988/1988, p. 11). Natureza humana que, volta e meia, é também chamada de ";essência do homem", dotada de um ";potencial de crescimento" ou de uma ";tendência à integração", que pode ";levar o indivíduo ao seu estado de unidade" (1989a/1989, p. 244). Enquanto cresce, o ser humano move–se para a frente impulsionado pela necessidade de continuar a ser, e por todas as outras necessidades que decorrem dessa necessidade fundamental, que também pertencem à essência do homem, principalmente a de ser um si–mesmo independente. Nenhuma dessas necessidades pode ser encontrada em outro lugar, exceto na natureza humana.
De fato, tais considerações baseiam–se todas na ontologia de Winnicott, a segunda parte do que chamo de seu ";novo paradigma". Por um lado, em sua imagem do homem, as pulsões de vida e morte freudianas, bem como o aparelho mental, são deixados de lado.29 Por outro, ele encara a vida humana como um intervalo contendo em seu interior seus dois pontos extremos: o estado inicial de não–estar–vivo ou de pré–dependência, e a ";segunda morte", ou o retorno ao estado inicial de não–estar–vivo. Esse intervalo não tem o formato de um segmento de linha; parece mais ser um círculo que começa a se mover quando o indivíduo experiencia a sua solidão absoluta, e que pára quando este retorna ao mesmo ponto, ao custo de perder ";não menos que tudo'.30 O desenvolvimento do homem começa, diz Winnicott, ";no estado do indivíduo em que o ser emerge do não–ser", e ao qual ";todo indivíduo humano, sejam quais forem a sua idade e a sua experiência, pode retornar para iniciar novamente" (1988/1988, p. 131). Este é um bom momento para lembrar a idéia de Winnicott acima mencionada, de que a existência pode iniciar somente a partir da não–existência, e suas considerações a respeito da espontaneidade e suas origens. Em outro lugar, Winnicott descreve a alvorada da vida humana como o momento no qual ";o viver surge e estabelece–se a partir do não–viver, e o ser torna–se um fato que toma o lugar do não–ser, assim como a comunicação emerge a partir do silêncio" (1965b/1965, p. 191). O ponto de origem de um indivíduo jamais poderia ser visto como um fato ou como meramente relacional. Não se trata apenas de sermos capazes de criar a capacidade de permanecer isolados dentro de nosso mundo subjetivo, sem comunicação com a realidade externa. A questão, para Winnicott, é que cada ser humano, mesmo o bebê, preocupa–se constantemente com o seu estado inicial de pré–dependência, anterior a qualquer relacionamento factual seja do tipo que for, e que, além do mais, esse estado inicial de silêncio e solidão absoluta é o ponto final de todo o processo de amadurecimento (1989a/1989, p. 194).
Visto à luz desse ";modelo", o homem, obviamente, não é uma entidade natural. Em lugar algum encontraremos na natureza uma criatura preocupada com algo como a ";solidão essencial". é igualmente claro que o conceito de causalidade tampouco se aplica à vida humana concebida desta maneira. Na verdade, não existe qualquer cadeia causal entre o ";não ser" e ";o fato de ser", quando usamos esses termos no sentido que lhes deu Winnicott. E há um argumento adicional bastante simples que comprova essas duas teses: visto que o processo de amadurecimento humano cria a própria realidade externa, ou seja, as condições de possibilidade dos próprios processos causais objetivos, não pode ele mesmo ser visto como um processo causal objetivo. Como disse Winnicott, o lugar onde vivemos nossa vida não é uma realidade objetiva pré–existente.
A conclusão inevitável é a de que Winnicott modifica, de um modo radical, tanto a generalização–guia quanto a ontologia básica da psicanálise. Em Freud, o desenvolvimento humano tem lugar na natureza e obedece às leis naturais gerais, em particular a lei da causalidade (que assume a forma do princípio do prazer com sua extensão, o princípio da realidade). Em Winnicott, tornar–se uma pessoa deve–se à necessidade não–causal de ser, que só pode vingar na presença devotada igualmente não–causal de outros seres humanos. O processo de amadurecimento é concebido como uma história humana, não como uma seqüência de eventos natural e determinística.
O ponto de vista de Winnicott sobre o processo pelo qual o homem torna–se pessoa difere não somente da concepção de Freud, como de todos os modelos metafísicos tradicionais. Em nenhuma metafísica tradicional tem sentido falar do homem como de um lugar onde o ser torna–se fato a partir do não–ser. Desde Platão, a metafísica ocidental aceita falar do não–ser apenas via negationis, isto é, considerando–o uma privação do ser, sem jamais reconhecer o não–ser como uma dimensão original e independente. Parece, portanto, que Winnicott pensa de um modo radicalmente não tradicional, convidando–nos a um estudo comparativo com filosofias, como a de Heidegger, que definitivamente recusam pensar o não–ser a partir do ser e vão na direção oposta, tomando o ser como uma emergência a partir do não–ser, ex nihilo. Digo ";emergência ex nihilo" e não ";criação ex nihilo", porque a idéia da criação continua preservando a proeminência do ser ou da presença do Criador sobre o não–ser ou a ausência. Se estou certo até aqui, a descrição feita por Winnicott da natureza humana pertence à paisagem conceitual do pensamento não–metafísico, ou talvez eu devesse dizer do pensamento pós–metafísico. Por razões às quais aludimos na primeira seção deste trabalho (a idéia de que a possibilidade da ausência constitui o sentido da presença), Heidegger é geralmente considerado o primeiro pensador em toda a tradição ocidental a tentar abrir e manter desocultada a dimensão da transcendência. Poderia, pois, parecer que os dois primeiros itens do paradigma de Winnicott – sua generalização–guia e seu modelo filosófico do homem – seriam capazes de passar pela avaliação crítica do ponto de vista de Heidegger. Acredito também, além do mais, que Heidegger pode ser utilizado para alcançarmos um entendimento mais preciso e uma articulação melhor da moldura conceitual da obra de Winnicott tomada como um todo, questão essa que ainda desafia muitos de seus leitores.
Além disso, as regras heurísticas adotadas por Winnicott não são idênticas às de Freud. Ele restringe severamente a importância e o campo de aplicação da associação livre. Rejeita igualmente a regra fundamental de Freud enquanto método universal: no tratamento da psicose não há lugar para nenhum desses procedimentos. Tampouco aceita ele as ";construções auxiliares" especulativas, tão alemãs em sua origem e tão freqüentemente utilizadas por Freud. Seu ponto de vista é construído dentro da mais pura tradição britânica, pela cuidadosa descrição e interpretação de fenômenos pertencentes à clínica e à vida normal, levando em conta o seu lugar no processo de amadurecimento ao longo do ciclo de vida. Assim fazendo, ele, na verdade, põe em prática uma versão particular da hermenêutica temporal da facticidade humana, que leva em conta a circularidade da existência humana. A linguagem empregada por Winnicott é sempre o inglês da vida cotidiana, dando uma atenção toda especial à escolha das palavras apropriadas às diversas etapas do processo maturacional. Isto porque a linguagem adequada para falar de uma etapa do crescimento humano torna–se errada se usada para tratar de uma outra fase (1988/1988, p. 34). A descrição completa dos fenômenos humanos exigiria o uso de várias linguagens. Resumindo, a psicanálise de Winnicott parece ser uma ciência do homem de um tipo especial, a saber, descritiva, interpretativa (hermenêutica) e histórica.31
Finalmente, Winnicott muda os valores e o conceito da ciência psicanalítica. Ele não apenas deixa de buscar os objetivos gerais das ciências naturais, tais como a mensurabilidade, a calculabilidade e a produtibilidade dos fenômenos. Não há dúvida de que a saúde ou a doença dos bebês atendidos por Winnicott não podem ser ";produzidas" de modo algum, sendo sempre uma questão a ser decidida no decorrer das relações não–causais entre o bebê e seu ambiente humano. Mas isto não é tudo. Em sua essência, a psicopatologia winnicottiana nada tem a ver com o princípio da realidade, e tampouco com o princípio do prazer. A questão básica para os seres humanos é se vale ou não a pena viver a vida, independente do que isto possa custar, e não se ela se ajusta ao mundo externo ou se é agradável. A busca da felicidade, em particular, não faz parte das preocupações das pessoas verdadeiramente normais, saudáveis ou maduras. Pois tais pessoas são justamente as que vivenciam ";as dificuldades inerentes à vida", e o sofrimento delas é ";provavelmente o mais intenso a ser encontrado no universo humano". Para avaliar os diversos graus do sofrimento humano, ";a observação da perplexidade, da miséria e da dor manifestas num hospital para doentes mentais" fornece um falso ponto de partida (1988/1988, p. 80). Da mesma forma, o objetivo central do tratamento psicanalítico não é ajudar os mentalmente doentes a se tornarem pessoas mais felizes, mas a ";terem experiências, a construírem um eu pessoal, a comandar os instintos e a enfrentar todas as dificuldades inerentes à vida". Quando tudo isto é sentido pelo paciente como sendo real, como acontece na vida de uma pessoa normal, então ele se torna ";capaz de ter um si–mesmo que pode, finalmente, dar–se ao luxo de sacrificar a espontaneidade, e mesmo de morrer" (1958a/1958, p. 304). O último ato de liberdade, se é que se pode falar de ato, é o de morrer na primeira pessoa do singular.
Consideremos agora os problemas paradigmáticos de Winnicott e suas soluções exemplares. Enquanto Freud considera paradigmáticos os ";problemas de três corpos", surgidos em crianças e adultos no interior da situação triangular do édipo, os exemplares de Winnicott são as agonias impensáveis, isto é, ";problemas de dois corpos", que emergem da relação dual entre os bebês e suas mães.32 Enquanto os pacientes de Freud sofriam de reminiscências libidinais, os bebês de Winnicott adoecem devido ao não–atendimento de necessidades que emergem no decorrer do processo de amadurecimento, levando à interrupções na continuidade de seu ser. A diferença na natureza das situações–problema é clara, e indica, talvez mais decisivamente do que qualquer outro dos itens mencionados, a ocorrência de uma mudança de paradigma.33 Seria esta mudança aceitável para Heidegger? A reposta parece ser sim, pois os problemas winnicottianos ";de dois corpos" não são mais percebidos como resultantes de conflitos entre forças instintivas, e sim de modos inadequados de ser com os outros, no interior do relacionamento de dependência constitutivo dos seres humanos.34
Há, portanto, boas razões para dizermos que Winnicott modificou a matriz disciplinar e os exemplos compartilhados da psicanálise. Visto que ele, ao mesmo tempo, preservou as principais descobertas empíricas de Freud, traduzindo–as para a sua própria linguagem, também pode ser dito que ele não produziu uma ciência inteiramente nova da psicopatologia, e sim um movimento progressivo substancial da própria psicanálise, ou seja, uma verdadeira revolução científica na disciplina fundada por Freud.
É preciso conceder, porém, que os argumentos apresentados até aqui são de fato excessivamente esquemáticos para serem vistos como uma prova decisiva de que existe uma revolução winnicottiana na psicanálise, ou de que o paradigma de Winnicott concorda com a analítica existencial de Heidegger e satisfaz as exigências básicas contidas no seu projeto de uma terapia e de uma psicopatologia daseinsanalíticas. Eles nos fornecem, ainda assim, apoio suficiente para que possamos submeter ambas as proposições a uma discussão suplementar, e sugerir que se proceda a uma investigação mais detalhada para se chegar a uma decisão final sobre se existe algo como uma psicanálise winnicottiana, e se a psicanálise, nessa nova chave, pode ser vista como uma realização parcial, não intencional, de uma antropologia científica medicamente orientada ao estilo daseinsanalítico de Heidegger.35
7. Uma leitura winnicottiana de Heidegger
Há mais, porém, a ser dito sobre a relação entre Heidegger e Winnicott. Do mesmo modo que Heidegger pode ser usado para avaliar e articular filosoficamente o paradigma de Winnicott, as idéias deste último podem, por sua vez, mostrar–se úteis para irmos além das imprecisões do projeto heideggeriano de uma psicopatologia e de uma terapia científica, e para desenvolvermos a pesquisa daseinsanalítica nos campos da psicopatologia empírica, ou, como prefere Heidegger, ";ôntica", da ontologia regional da psicopatologia e mesmo da analítica existencial propriamente dita. Em outras palavras, o que proponho aqui é uma leitura winnicottiana de Heidegger.
Winnicott fez contribuições extremamente importantes em relação a um grande número de problemas ônticos, isto é, factuais, em particular àqueles relativos à etiologia das psicoses, especialmente nos casos de esquizofrenia ou da síndrome denominada borderline. Todos esses problemas devem, com certeza, ser enfrentados em qualquer psicopatologia daseinsanalítica. Por tudo o que sei a respeito dos trabalhos de psicopatologistas influenciados por Heidegger, tal tarefa está longe de ver–se concluída, e em vários domínios ela sequer foi iniciada.
E mais: as contribuições de Winnicott para a ";ciência do homem" podem, inclusive, estimular o trabalho puramente filosófico sobre a natureza dos traumas, a essência das várias doenças psíquicas, os motivos para as virtudes terapêuticas do estar–junto–com etc. Nos termos de Heidegger, os resultados factuais alcançados por Winnicott impõem a busca pelos ainda obscuros existenciais derivados, que levarão necessariamente a novos desenvolvimentos na ontologia regional da psicopatologia.
Por fim, a psicanálise de Winnicott dá margem a questões filosoficamente legítimas que só podem ser resolvidas pela própria analítica existencial. Tomemos, por exemplo, a ";admissão" de Winnicott, mencionada anteriormente, de que existe um ";estado fundamental" do indivíduo humano, no qual o ser emerge do não–ser, e ao qual todo indivíduo humano, não importa a idade ou as experiências pessoais, teria que retornar se desejasse começar tudo de novo e tornar–se, mais uma vez, ele mesmo, ou seja, uma pessoa inteira. Esse modo de olhar a estrutura da vida humana suscita necessariamente novas questões filosóficas sobre a natureza do nascimento e sobre a circularidade peculiar que torna possível a unidade do ser humano. O mesmo pode ser dito quanto às descobertas de Winnicott sobre as primeiras tarefas humanas, a constituição do primeiro mundo subjetivo, os primeiros movimentos do ser aí, assim como sobre os muitos fenômenos que ocorrem em outras fases primitivas do crescimento. Não existindo explicações causais possíveis para tais fenômenos, o lugar adequado para discutirmos sua natureza ou essência parece ser a ontologia fundamental de Heidegger, e as respostas corretas parecem exigir a elaboração de novos existenciais fundamentais.
Os problemas relativos à clarificação da ";essência" de uma pessoa inteira e do nascimento são particularmente importantes. Winnicott forneceu suficiente evidência factual de que o indivíduo humano pode ser impedido de continuar sendo no mundo e de comportar–se de modo saudável em conseqüência de um mau começo devido a dificuldades ligadas ao seu nascimento e à sua ";integração" inicial com a mãe. Nos termos de Heidegger, a psicanálise de Winnicott lida com problemas ";ônticos" que devem ser reinterpretados à luz dos existenciais fundamentais de ser–para–o–início e de ser–um–inteiro. Há uma passagem numa das últimas seções de Ser e tempo em que Heidegger trata precisamente dessa situação–problema, reconhecendo que a analítica existencial por ele apresentada em seções anteriores não a esclareceu de modo algum. ";A morte", diz Heidegger, ";é apenas um dos pontos finais que fecham inteiramente a totalidade do Dasein. O outro 'ponto final', entretanto, é o início, o 'nascimento' do Dasein. Somente a entidade que se encontra 'entre' o nascimento e a morte apresenta o todo que nós estávamos buscando". Da mesma forma, concede ele, a analítica existencial que antes se orientava exclusivamente na direção do ser–para–a–morte ";permaneceu, até aqui, 'unilateral'". De fato, prossegue ele nas partes anteriores de Ser e tempo, o Dasein foi nosso tema apenas nos termos de sua existência ";para a frente", por assim dizer, deixando ";para trás" tudo aquilo que existiu. Não apenas o ser–voltado–para–o–início permaneceu ignorado; da mesma forma, e sobretudo, o foi o modo pelo qual o Dasein estende–se entre o nascimento e a morte. A ";conectividade da vida", na qual o Dasein de algum modo mantém–se constantemente, é precisamente o que deixamos de lado em nossa análise do ser–um–inteiro. (Heidegger 1927, p. 373)
A parte da analítica existencial (ontologia fundamental) apontada no texto citado jamais foi completada por Heidegger ou por outros.36 O tratamento desse assunto permanece, portanto, uma tarefa necessária em qualquer tentativa de prover a antropologia daseinsanalítica de um ";modelo" filosófico completo do homem, como parte de sua matriz disciplinar.
Gostaria de concluir acrescentando um outro exemplo de como a psicanálise de Winnicott pode estimular a pesquisa ontológica fundamental. Uma importante descoberta factual do psicanalista inglês é a de que ";o problema do sentido filosófico da palavra 'real'" também ";pesa sobre todo ser humano". De um modo ainda mais significativo, esse problema ";é uma descrição do relacionamento inicial com a realidade externa" do bebê humano por ocasião da primeira mamada (1988/1988, p. 111). No caso de um bebê saudável, o problema é resolvido por meio de uma ";ilusão de contato". Bebês com experiências menos afortunadas, diz Winnicott, ";sentem–se realmente perturbados pela idéia de que não existe um contato direto com a realidade externa" (p. 115). Vivem sob a ";ameaça de perder a capacidade de relacionar–se" com a mãe, e para eles o problema filosófico de saber se as coisas continuam a existir ou não ";torna–se, e permanece sendo [...] uma questão de vida ou morte, de comer ou sentir fome, de amor ou morte" (p. 115). Bebês ainda menos afortunados são aqueles ";cujas experiências de introdução ao mundo foram confusas" e que crescem ";sem nenhuma capacidade para a ilusão de contato". Sua capacidade de encontrar qualquer coisa é tão diminuta que rui por terra ao ocorrer uma falha ambiental. Esses bebês não tendem a construir filosofias sobre o significado do real, mas uma doença esquizóide. Aparentemente, portanto, tais descrições de Winnicott convidam a algo muito semelhante ao que se poderia chamar de uma interpretação heideggeriana fundamental ontológica de bebês com problemas psicóticos, compreendendo–os como indivíduos que apresentam problemas ônticos quanto à compreensão do ser.37 Já apontamos anteriormente que, em sua conversa com Binswanger, Heidegger expressou a convicção de que mesmo pessoas mentalmente doentes são concernidas pelo ser. Por outro lado, vimos também que, em 1955, ele tinha pouco a dizer sobre o que isto realmente significava. Nos anos 60, Heidegger tinha esperanças de que a ";rica experiência médica" de Boss poderia mostrar a necessidade de usar a ontologia fundamental nas discussões sobre o significado dos fenômenos psicopatológicos.38 Na verdade, os escritos de Boss, produzidos sob a influência de Heidegger, apesar de densamente recheados de conceitos da ontologia fundamental, falharam lamentavelmente ao não apresentar relatos de casos verdadeiramente esclarecedores, que poderiam proporcionar uma comparação com a hermenêutica winnicottiana de fenômenos clínicos.
Assim sendo, creio haver evidência suficiente para dizermos que a teoria winnicottiana constitui um desenvolvimento paradigmático progressivo da psicanálise concebida por Freud. Além disso, a sua concepção do ser humano como uma amostra temporal da natureza humana merece a consideração de todos aqueles interessados em desenvolver uma ciência do homem, e da doença do homem, que esteja de acordo com a ontologia fundamental de Heidegger, e que seja livre das óbvias imperfeições que tolhiam as tentativas anteriores de alcançar tal objetivo.
Referências
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*Tradução de Davy Bogomoletz, revista por Elsa Oliveira Dias
1Esta é uma versão revista e ampliada de um trabalho apresentado no IV Fórum de Daseinsanálise, em Zurique, 6–8 de Maio de 1999. Primeira publicação em Natureza Humana, v. 1, n. 1, 1999, pp. 103–35.
2Utilizo aqui o termo ";paradigma" num sentido similar ao proposto por Th. S. Kuhn (1970).
3Cf. Heidegger 1987, p. 178. Nos Seminários de Zollikon, Heidegger não falou mais das Geisteswissenschaften. Considerou também, ainda que apenas acidentalmente, a história do ser (especialmente os aspectos da moderna sociedade tecnológica) como importantes para a conformação de uma ciência do homem (pp. 96, 133, 153, 163 e 353).
4 Estou usando o termo ";teoria" num sentido neutro, designativo de uma disciplina científica em geral.
5Novamente, utilizo o termo ";revolução científica" com base no uso que lhe dá Thomas S. Kuhn. Grosso modo, a revolução científica tende a ocorrer numa época em que problemas não resolvidos ou anomalias deflagram um sentimento de crise entre os praticantes da ";pesquisa normal" guiada pelo paradigma existente de uma disciplina científica. Em tais situações, os membros mais jovens do grupo lançam–se à ";pesquisa revolucionária", que cedo ou tarde acaba convertendo toda a comunidade científica para o novo paradigma. De um modo geral, essa mudança coletiva de Gestalt preserva as descobertas empíricas principais alcançadas através do paradigma antigo.
6Digo ";crítica" e não ";desconstrução" porque, em Seminários de Zollikon, Heidegger não busca explicitamente as origens da ciência moderna na relação do homem com o ser.
7Esta seção está baseada na seção 2 de Loparic 1999.
8Kant não teria concordado com o termo ";pressuposto" aplicado à sua teoria da objetividade (a analítica transcendental do entendimento), e menos ainda com o termo ";suposição". O próprio Heidegger, particularmente em sua segunda fase, olhou para a questão de um outro modo: a teoria da objetividade de Kant não é, de modo algum, um projeto humano, mas um destinamento do ser. Aqui, e em outros momentos de seu debate com Medard Boss, Heidegger atém–se à posição por ele descrita em Ser e tempo. O motivo pode ter sido o fato de que este era o único trabalho de Heidegger conhecido em certa medida por Boss e pelos outros membros dos Seminários em Zollikon.
9Este ponto consta também em Heidegger 1957, pp. 125, 134 e 183.
10Em outros textos, Heidegger cita Max Planck, para o qual, na ciência, ser real (wirklich) significa ser mensurável (cf. Heidegger 1954, p. 58).
11A fim de enfatizar que não existem ";fatos puros", Heidegger cita várias vezes o dito de Goethe, segundo o qual ";a coisa mais importante a ser compreendida é que tudo o que é factual já é teoria" (Heidegger 1987, p. 328). Ao descrevermos algo, temos sempre em mente uma teoria ou outra e, no presente caso, a analítica existencial das estruturas fundamentais do ser humano.
12Alguns outros temas kantianos também são relevantes para o presente contexto: a teoria freudiana das três instâncias do si–mesmo – ego, id e superego –, por exemplo, nada mais seria que a atribuição de outros nomes aos três conceitos centrais da teoria da subjetividade de Kant, a saber, sensibilidade, entendimento e razão (ou lei moral).
13Apesar de haver mostrado respeito pela atividade terapêutica de Freud, Heidegger não entra na discussão sobre os episódios que, segundo Freud, determinam o destino humano, especialmente a situação do édipo. Ele tem igualmente muito pouco a dizer sobre outras situações decisivas, tais como a do bebê sendo sustentado por sua mãe.
14Esta seção baseia–se na seção 2 de Loparic 1999.
15Os participantes sentiram–se perturbados também pelo fato de Heidegger não apreciar os benefícios práticos da pesquisa científica (1987, p. 329).
16De um modo mais genérico, Heidegger está procurando um novo modo de pensar, do tipo que já era conhecido pelos antigos gregos, mas que com o tempo acabou esquecido (1987, p. 10).
17A idéia de o pensamento de Heidegger sobre a ciência poder ser correlacionado ao de Kuhn já foi defendida por outros autores, por exemplo, Vietta 1989, p. 26.
18Esta mesma estratégia será utilizada mais adiante, ao discutirmos a contribuição de Winnicott para a psicanálise.
19Pelo fato de Kuhn trabalhar prioritariamente com a física, ele fala de ";generalizações simbólicas". Refere–se, deste modo, aos enunciados que determinam os traços mais gerais do objeto de estudo empírico, geralmente chamados de leis naturais ou definições. Meu termo ";generalização–guia" busca preservar a idéia kuhniana de simplicidade e o caráter nomológico dos enunciados em questão, sem implicar necessariamente na formalização dos mesmos.
20Divido em duas partes o segundo item da descrição proposta por Kuhn para o conceito de matriz disciplinar, distinguindo com mais precisão entre ontologia e heurística.
21Como sabemos, Freud cunhou o termo ";metapsicologia" em analogia ao termo ";metafísica" (cf. Freud 1914[1901]/1975, p. 309). Este ponto foi muito bem exposto em Fairbairn 1956/1994, p. 130.
22Essa postura anti–metafísica é uma constante no pensamento de Heidegger. é um dos motivos da irritação de Heidegger para com Binswanger, que trabalha com a idéia da diferença entre o mundo terreno do cuidado e o mundo superior do amor.
23Seguindo os passos de Heidegger, evito o termo ";empírico" e falo de ";factual" e, por vezes, de ";ôntico", em relação aos fenômenos, problemas, conhecimentos etc., de modo a evitar as implicações filosóficas do primeiro termo, que nos levariam de volta ao modelo metafísico tradicional do homem e de sua experiência cognitiva.
24Esta idéia de uma antropologia pode ser comparada ao conceito kantiano da antropologia moral por oposição à antropologia física.
25Ele fala também de uma ";patologia daseinsanalítica" geral (1987, p. 164).
26O conceito de horizonte formulado por Heidegger implica que um único ato de observação jamais verá todos os fenômenos capazes de manifestar–se nos vários níveis ônticos e ontológicos.
27Boss tentou fazer algo nesse sentido em sua obra Grundzüge der Medizin und Psychologie (2ª edição, 1975). Mas não se pode dizer que ele foi muito além das raras observações do próprio Heidegger relativas a problemas ontológicos regionais da psicopatologia, espalhados ao longo dos Seminários de Zollikon
28Por exemplo, ver Heidegger 1987, p. 257.
29Numa carta ao kleiniano R. Money–Kyrle, de janeiro de 1953, Winnicott diz que a teoria das ";pulsões [instincts] de vida e de morte" é um erro grasso de Freud. Queixa–se também de que o termo ";pulsão de morte" sofre ";abusos" na Sociedade Britânica de Psicanálise, e é empregado de modo impróprio, ";no lugar das palavras agressão ou impulsos destrutivos ou ódio" (cf. Winnicott 1987b/1987, p. 42).
30Estou citando parte de um verso de T. S. Eliot, que Winnicott usou como título de sua autobiografia inacabada (cf. Winnicott 1989a/1989, p. 4).
31A psicanálise de Freud também apresenta um componente hermenêutico. No entanto, a hermenêutica de Freud difere da de Winnicott em pelo menos dois aspectos. Primeiro, seu horizonte de interpretação é a história do desenvolvimento sexual, não a história do desenvolvimento pessoal. Segundo, admite–se, ali, que a descrição seja completada por construções teóricas em termos de forças pulsionais, o que Winnicott explicitamente proíbe.
32Seguindo os passos de J. Rickman, Winnicott faz uma distinção fundamental entre ";problemas de três corpos", por exemplo, o complexo de castração, que têm origem em ";relacionamentos de três corpos", ou seja, em relações entre três ou mais pessoas inteiras, externas umas às outras, e ";problemas de dois corpos", exemplificados pelas angústias impensáveis, cujo lugar de origem é o ";relacionamento de dois corpos" entre o bebê e a mãe, quer dizer, em estágios muito primitivos da história do indivíduo, aos quais as idéias de pessoa inteira e de exterioridade ainda não se aplicam (cf. Winnicott 1965b/1965, p. 29).
33é preciso relembrar que a mudança revolucionária dos exemplares de uma disciplina científica não significa que os antigos problemas paradigmáticos deixam de ser levados em conta, mas apenas que estes não mais definem a disciplina em questão. Em Winnicott, por exemplo, o complexo de édipo continua sendo um problema relevante, mas não pode mais ser usado para o ensino dos elementos básicos da psicanálise nem serve mais de guia principal para a terapia e para a pesquisa.
34Para sermos mais precisos, no início da vida, um bebê ainda não é nem mesmo um ser com outros no sentido de Heidegger. O desenvolvimento desse tema excederia os objetivos do presente trabalho.
35Tendo sido desenvolvida independentemente de Heidegger, a psicanálise de Winnicott não foi contaminada pelas interpretações equivocadas de suas idéias, que perturbam o leitor de Binswanger e mesmo o de Boss, o que constitui, sem dúvida, uma vantagem adicional.
36Num texto posterior (1928-1929/1996, GA 27, pp. 123–6) Heidegger tocou mais uma vez nesta questão, de novo muito rapidamente, acrescentando–lhe algumas observações muito interessantes.
37Devemos ter em mente, aqui, que a ";distinção ôntica" do Dasein é a de ";ser ontológico" (Heidegger 1927, p. 12).
38Cf. a carta de Heidegger a Boss de 29 de dezembro de 1967 (Heidegger 1987, p. 352).