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Winnicott e-prints

versión On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.5 no.2 São Paulo  2010

 

Artigos

 

Tendência antissocial e novos diagnósticos: a medicalização como alternativa às falhas do ambiente

 

Antisocial tendency and new diagnosis: the medicalization as alternative to environment flaws

 

 

Conceição Aparecida Serralha

Universidade federal do Triângulo Mineiro – UFTM
e–mail: serralhac@psicologia.uftm.edu.br

 


Resumo

A proposta deste trabalho é discutir a tendência atual da psiquiatria e da neurologia de estipular novos diagnósticos para abarcar expressões de tendência antissocial, desde a infância mais primitiva, levando à medicalização e ao tratamento medicamentoso como a conduta de "cuidado" mais adequada. Outros recursos demandam tempo, paciência, envolvimento, empenho, modificação de projetos pessoais, institucionais e discussões teóricas. Ao se eliminar o incômodo medicando os sintomas, elimina–se também a possibilidade de uma compreensão da situação diagnosticada como uma tendência antissocial, sua origem, seu tratamento e possibilidades de prevenção, bem como a compreensão da psicopatologia subjacente, quando houver. Ao se referir à tendência antissocial de um indivíduo, não como um diagnóstico, mas sendo encontrada junto a uma psicose, ou a uma neurose, ou mesmo junto à normalidade, Winnicott reconhece, na origem dessa tendência, certo grau de deprivação que poderia ser tratada por cuidados oferecidos pelo ambiente. Destaca ainda o "valor de incômodo" dos sintomas como um indicativo dessa tendência, que tem em si a esperança de que enfim a necessidade desse indivíduo possa ser compreendida e atendida.

Palavras–chave: Tendência antissocial; TDAH; Medicalização; Cuidado; Valor de incômodo.


Abstract

The proposal of this work is to discuss the present tendency of psychiatry and neurology of stipulating new diagnoses to embrace expressions of antisocial tendency, since the most primitive childhood, leading to the medicalization and the medicamental treatment as the most adequate conduct of "care". Other resources demand time, patience, involvement, effort, personal projects and institutional modification, and theoretical discussion. When the discomfort is eradicated by medicines, the possibility of comprehending the situation diagnosed as an antisocial tendency is also eliminated as well as its origin, its treatment and possibilities of prevention, and the comprehension of the psychopathology implied, when it exists. As he refers to the antisocial tendency of an individual, not as diagnoses, but being present with a psychosis, or a neurosis, or even with normality, Winnicott recognizes, in this tendency's origin, a certain degree of deprivation that could be treated with some care provided by the environment. He also highlights "the value of discomfort" of the symptoms as an indicative of this tendency, which has in itself the hope that the needs of this individual can be finally understood and taken care.

Keywords: Antisocial tendency; ADHD; Medicalization; Care; Discomfort value.


 

 

O tratamento medicamentoso do sofrimento humano tem sido objeto de discussão de vários estudiosos dentro da psicanálise e fora dela, preocupados com a velocidade e o vulto desse movimento. Constata–se que a prescrição de drogas já não faz parte apenas da conduta médica em relação às doenças, incidindo também sobre a chamada promoção da saúde. No que tange às doenças, Quinet (2002) questiona se a evolução da ciência psiquiátrica não estaria produzindo novos males para serem tratados por novos medicamentos fabricados por essa ciência, em um sentido oposto ao que seria tradicionalmente esperado. Nesse questionamento, Quinet cita Marilena Chauí, que aponta a pressão que a universidade vem sofrendo em sua produção científica por uma "política de resultados [...] direcionada para o mercado" (Quinet, 2002, p. 37). De acordo com Chauí (2003), a universidade "está privatizada e a maior parte de suas pesquisas é determinada pelas exigências de mercado, impostas pelos financiadores. Isso significa que a universidade pública produz um conhecimento destinado à apropriação privada" (p. 8). Assim, Quinet entende que "os objetos produzidos pelo saber da neurociência [os medicamentos] podem facilmente virar objetos de consumo quando a psiquiatria entra no discurso capitalista" (2002, p. 37).

Independente da ideologia que sustenta a crítica desses autores, é fato que não se pode negar a presença de interesses econômicos em todas as atividades humanas, sejam estas na área da saúde, da educação, da habitação, ou outras. A discussão pode tomar, desse modo, um teor ético. Jonas (1999), ao discutir os fundamentos de seu pensamento sobre a relação entre a técnica e a ética, evidencia entre esses fundamentos a "ambivalência dos efeitos". Assim, mostra que mesmo a técnica empregada autêntica e legitimamente para beneficiar a humanidade tem também um lado ameaçador que somente em longo prazo mostra a sua maldição. Os efeitos colaterais dos medicamentos podem ser um exemplo daquilo que, muitas vezes, só pode ser constatado com o tempo de uso desses.

Segundo Jonas, "o perigo reside mais no sucesso que no fracasso – e o sucesso é decerto necessário, sob a pressão das carências humanas" (1982/1999, p. 410). A evolução tecnológica da ciência psiquiátrica pode ser pensada sob essa fundamentação, uma vez que essas carências tornam o ser humano menos tolerante à dor, ao sofrimento, enfim, ao incômodo.

De acordo com Winnicott (1963c/1990), o ser humano necessita de ser cuidado e atendido em suas necessidades para que se torne uma pessoa integrada em um si–mesmo, capaz de contribuir socialmente e de viver as dificuldades próprias à vida. Às falhas nesse atendimento, que ocorrem no período de absoluta dependência do indivíduo de seu ambiente, Winnnicott chamou privação. Àquelas falhas que ocorrem após uma provisão suficientemente boa, Winnicott chamou deprivação. Em relação a esta, ele escreveu: "A continuidade da existência que fazia parte do que era tido como certo, o ambiente suficientemente bom, ficou substituída por uma reação à falha ambiental, e essa reação interrompeu o sentimento de continuidade da existência" (p. 203). Assim, conforme o momento na linha do amadurecimento em que as falhas ocorrem, diferentes doenças psíquicas poderão se desenvolver como consequência da impossibilidade de continuar amadurecendo. E é em razão de uma deprivação que a tendência antissocial pode se evidenciar.

O sofrimento ou o incômodo gerado nessas situações podem compelir o indivíduo a utilizar uma descoberta científica – que pode desaparecer com o incômodo de forma imediata –, de maneira que essa utilização torna–se uma necessidade da qual a sua vida passa a depender a partir de então. Assim, a "compulsoriedade da utilização" de um novo jeito de fazer – e, nesse caso, de tratar –, propiciado pelo desenvolvimento tecnológico, é outro fundamento da discussão ética empreendida por Jonas (1982/1999).

Entendendo a importância de se refletir cada vez mais sobre o tema, este estudo pretende contribuir inicialmente com o relato do caso de uma criança de cinco anos de idade, encaminhada para atendimento em razão de seus intensos comportamentos agressivos, e os desdobramentos ocorridos a partir desse encaminhamento. Em seguida, o estudo traz também o pensamento de outros autores sobre o tema e a importante contribuição da teoria do amadurecimento emocional de D. W. Winnicott para fomentar novas discussões.

 

1. A criança "difícil"

A criança de cinco anos de idade iniciou atendimento1 em meados de 2009 – esse atendimento não era psicoterapia, mas consultas terapêuticas familiares, realizadas pela equipe de um projeto de extensão – e, em determinado período após o início do tratamento, intensificou seus comportamentos agressivos tanto em casa quanto na escola. Passou a bater nos colegas e na prima, a empurrá–los, bem como a derrubar objetos propositalmente em ambos ambientes, além de brigar e teimar muito com a mãe. Esta nos relatou que iria levá–la a uma consulta com o neurologista em razão de não aguentar mais seus parentes e professores insistindo para que ela assim o fizesse. Ficou evidente que havia também, nessa decisão, algo que vinha se realçando nas conversas empreendidas com a mãe: uma desistência de sua parte e da parte do pai de tentar mudanças importantes em suas atitudes e na relação com a criança. O pai, desde o início do tratamento, não se fez presente. Somente em um dos encontros com a mãe, diante do comentário desta de que o marido a esperava na caminhonete do lado de fora da instituição, nossa equipe lhe pediu permissão para ir até ele e convidá–lo a entrar. Dada a permissão, duas extensionistas fizeram o convite, e ele, não encontrando argumento para recusá–lo, entrou e participou da conversa.

No encontro em que a mãe relatou sua intenção de levar a criança ao neurologista, a equipe tentou entender o que estaria acontecendo naqueles dias e que poderia ter intensificado o comportamento agressivo da criança. Vimos que muitas coisas não estavam atendendo às necessidades da criança. Uma delas era o fato de a criança estar praticamente aprisionada dentro de casa em razão de uma construção que estava sendo realizada no quintal. O motivo de ela não poder brincar no local parecia não ser tanto os perigos ligados à construção, mas o fato de ela sujar a casa ao voltar para dentro. Chegamos a essa suspeita após uma ligação telefônica que fizemos à sua casa. A ligação foi atendida pela criança e, ao pedirmos para falar com a mãe, disse que não poderíamos falar com ela, porque ela estava "lá" no quintal com o pai e os pedreiros. Perguntamos à criança se não poderia chamá–la. Ansiosa e um tanto enfaticamente, disse–nos que não poderia fazer isso, porque se fosse até lá a mãe iria bater nela por sujar a casa com os seus pés que ficariam sujos de terra.

Ao tentar mostrar à mãe essa condição de "aprisionamento" da criança, pedimos que ela pensasse o que poderia ser feito para modificar a situação. Perguntamos se ela teria disponibilidade de tempo e financeira, por exemplo, de levar seu filho para brincar em outro lugar ou mesmo colocá–lo em uma aula de natação. A mãe disse ser possível, mas não demonstrou que iria realizar algo nesse sentido. Conversamos ainda sobre outras possibilidades como uma maior participação do pai junto à criança. Não interferimos, contudo, em sua decisão de levá–la ao neurologista. Combinamos também de fazer observações da criança na escola.

Após a ida ao neurologista, a mãe nos telefonou e disse que este havia receitado Ritalina e que ela iria ministrar a medicação à criança. Embora nossa equipe não tivesse um posicionamento radical contrário à medicação, entendemos, naquele momento, ser uma decisão precipitada, porque sabíamos que muita coisa poderia ser feita para ajudar a criança antes disso.

A ida à escola para a observação, realizada por nossa equipe, ocorreu cerca de 15 dias após a consulta ao neurologista. As extensionistas, que fizeram a observação, puderam confirmar os vários relatos da mãe sobre a criança. Entre esses, o fato de ela querer tudo do seu próprio jeito, querer ser a primeira da fila, a primeira a falar, a primeira a ir ao banheiro, mesmo sem qualquer necessidade fisiológica, mas em razão de um colega pedir para ir. Foi possível ver a transferência da relação com a mãe para a professora, que era de afeto e de insegurança. Chamava a professora constantemente para mostrar sua lição e, mesmo que houvesse entendido o que era para fazer, a cada exercício chamava a professora, demonstrando a necessidade que tinha de ser percebida e o medo de ser esquecida. A coordenadora pedagógica relatou que quando a criança estava com a professora, ficava muito calma; mas quando estava longe, ficava muito agitada. Contudo, em conversa com a professora e a coordenadora pedagógica, elas disseram que naquele momento a criança estava bem melhor e que nós deveríamos ter ido lá antes de ela começar a tomar a medicação.

Ao encontrarmos a mãe novamente, após a observação, estávamos esperando ouvir o mesmo relato de melhora da criança a partir do uso da medicação. De fato, o relato de um período bom foi feito pela mãe. O que não esperávamos ouvir, é que ela não estava dando a medicação. Disse–nos que até ministrou o remédio por dois dias, mas a criança ficou apática e sem vida, e assim, ela decidiu não continuar lhe dando o medicamento. Disse–nos ainda que "não reconhecia mais o seu filho". Quando lhe dissemos que as educadoras haviam relatado que ela estava dando a medicação, a mãe disse que mentiu às professoras para que elas parassem de pressioná–la nesse sentido. Contou também que a criança estava fazendo natação e que estava adorando.

Aproximadamente durante dois meses, tanto em casa quanto na escola, os relatos foram de que a criança havia melhorado muito, voltando a se desenvolver bem. Até que as queixas recomeçaram. Esse reinício das reclamações sobre o comportamento da criança coincidiu também com a sua retirada da natação, em razão de uma infecção de ouvido.

 

2. Alterações que não se sustentam

Gostaria de chamar a atenção para esse período aproximado de dois meses em que uma criança passa a ser vista de outra maneira, pensada e cuidada de outra maneira, o que certamente a tornou menos necessitada de reagir agressivamente, embora continuasse a ter os mesmos comportamentos ansiosos.

No site2 do Instituto Paulista de Déficit de Atenção (IPDA), encontramos informações sobre o tratamento medicamentoso do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) por meio de prescrição de Ritalina aliada a outras terapias. Sobre essa medicação, somos informados de que ela tem um efeito provisório. A substância permanece atuante pelo tempo em que estiver no organismo da pessoa que a ingeriu. Se a dose for de 10 mg, por exemplo, o efeito deverá durar em torno de 4 horas. Assim que o efeito da medicação se esvai, os sintomas reaparecem em sua totalidade, "tudo volta ao estado inicial".

Dessa maneira, não se pode dizer, no caso aqui relatado, que a criança permaneceu bem, por dois meses, devido a um efeito residual da medicação tomada durante dois dias. O que poderia então ter sustentado essas novas maneiras de ver, pensar, cuidar e se relacionar com a criança nesse período de dois meses? Do lado da mãe e do pai, parece que sentimentos de culpa e medo dos efeitos colaterais da medicação os moveram a tentar o ainda não tentado, ou seja, modificar o seu modo de se relacionar com a criança. Do lado da escola, a crença na propagandeada medicação parece ter injetado ânimo nas educadoras, que se sentiram "auxiliadas" por esta.

Não se pode negar a dificuldade que os professores encontram por se verem muitas vezes sozinhos em uma sala superlotada, tendo que atender a todas as crianças em suas necessidades individuais e com vários – no caso da professora da criança em questão eram três – planos de ensino diferentes para desenvolver em uma mesma sala. Além disso, no contato com crianças de difícil manejo, o professor pode ter sua capacidade de cuidar diminuída ou bloqueada por suas próprias dificuldades, que podem ter se originado a partir de relações insatisfatórias em sua história de vida. O tratamento medicamentoso da criança é sentido, assim, como um auxílio que ameniza essas dificuldades ao tornar a criança mais fácil de ser conduzida em suas atividades. Pelo lado da criança, pode se desenvolver, inclusive, o sentimento de ser mais bem aceita no ambiente escolar.

Nos casos em que alternativas à medicação são empreendidas, como mudança no ambiente e no modo de se relacionar com a criança, evidencia–se, contudo, uma dificuldade de esse novo modo de relacionamento se manter em razão das situações imprevistas, que podem provocar reações da criança e do ambiente. Diante disso, seria necessário, da parte dos cuidadores, muito esforço, persistência e a compreensão tanto dessas reações da criança como de que, na vida, as coisas são difíceis e precisam ser manejadas constantemente. Observa–se, entretanto, que o menor comportamento inadequado da criança, muitas vezes, é suficiente para que a recém–empreendida forma de se relacionar e a crença nesta desabem, recomeçando a circularidade patogênica. No caso apresentado não foi diferente. A sensação de que a "criança é assim" e de que nenhum esforço no sentido de mudanças por parte do ambiente vai adiantar tendem a se impor.

Para Winnicott, contudo, a mãe, o pai e toda a família devem se envolver, em um momento como esse, na delicada tarefa de "satisfazer as reclamações da criança e de ceder à voracidade compulsiva desta", realizando "uma terapia a respeito de uma omissão de amor materno" (Winnicott, 1958c[1956]/1999, p. 144). Winnicott entende, assim, que houve falhas ambientais importantes, pré–sintomas, e que essas deverão ser reparadas. A professora, por sua vez, deve compreender e favorecer o desenvolvimento da capacidade da criança de se relacionar com outras pessoas que não sejam a mãe. Nesse caso, a professora, por constituir esse objeto muitas vezes de uma primeira

relação pessoal não–materna, [...] deve reconhecer que, para a criança, ela não é uma pessoa "vulgar" e não pode conduzir–se de um modo "vulgar". Ela deve, por exemplo, aceitar a ideia de que a criança só gradualmente chegará a ponto de cedê–la a outras crianças sem ficar perturbada (Winnicott, 1953d[1951]/1982, p. 222)

Esse modo conjunto de cuidar permite à criança ser capaz de se relacionar com diversas pessoas ao mesmo tempo, sem sentir ameaça de perder o relacionamento com qualquer dessas pessoas em particular.

 

3. Medicalização ou cuidado?

O caso aqui relatado ilustra bem o que estamos vivendo nos dias atuais: a medicalização como processo amplamente disseminado, conduzindo a indicações medicamentosas formais e/ou informais de profissionais das áreas da saúde, da educação e das organizações, bem como entre os leigos – familiares, amigos e vizinhos –, fazendo distanciar a compreensão e o tratamento psicológico e psicossocial das dificuldades inerentes à vida e dos distúrbios psíquicos. Afora a medicação, outros recursos que caracterizam cuidados e envolvimento com as necessidades da criança demandam tempo, paciência, empenho, modificação de projetos pessoais, institucionais e discussões teóricas.

A busca dos estudiosos da área psiquiátrica tem sido no sentido de uma unificação do entendimento sobre os problemas, sobre o distúrbio ou o transtorno, que elimine as divergências teóricas. De acordo com Martins, "o ateoricismo é, de fato, a adoção da teoria biológica e/ou fisiológica das perturbações mentais" (Martins, 2008, p. 332). Ainda segundo este autor,

a psiquiatria biológica tem produzido uma des–implicação do sujeito em relação ao seu sofrimento. Isto é, se o gene é responsável por tudo e se a dor é um produto comercial, uma mercadoria que a medicina mental e seus remédios universais vão eliminar, o sofrimento deixa de ser pensado como uma narrativa ligada a uma história singular (Martins, 2008, p. 333)

No caso das crianças, isso se torna especialmente grave, pois todo o sofrimento vivido por estas acaba sendo entendido como uma questão da criança, eximindo–se a responsabilidade da educação que ela recebe pela falta de cuidados e pela falta de respeito para com ela sobre esse sofrimento (Serralha, 2011). Para Lima (2005), o corpo e a biologia passam a ser buscados para dar um sentido às experiências ditas "pessoais". Desse modo, o TDAH, um dos diagnósticos mais presentes na clínica médica de crianças atualmente, é construído como um modelo bioidentitário, que passa a eliminar "qualquer possibilidade de que os comportamentos aí incluídos sejam derivados do campo moral, da dinâmica familiar ou possam ser descritos com o tradicional vocabulário do internalismo psicológico" (Lima, 2005, p. 96). Segundo Coser (2010), o mais importante é a evidência de que há uma

prática de medicamentação indiscriminada da infância [...] calcada não em categorias diagnósticas rigorosas, mas na intolerância diante da turbulência infantojuvenil e dos padecimentos típicos da infância (que são normais e esperados, como urinar na cama, ter medo do escuro, de animais selvagens e de estranhos) (Coser, 2010, p. 107)

Moysés (2001), professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (Unicamp), evidencia o crescimento das consultas de neurologia especificamente de crianças em idade escolar. Essa autora critica veementemente o costume cada vez mais comum entre os neurologistas de pedir eletroencefalograma, mesmo que a indicação deva ser feita apenas à criança que tiver suspeita de convulsão. Os dados encontrados em sua pesquisa na rede pública da cidade de Campinas, em 1995, mostraram que 79% dos exames eletroencefalográficos foram realizados na população até 14 anos, contrariando "qualquer conhecimento médico sobre a prevalência de crises convulsivas" (Moysés, 2001, p. 95).

Segundo Gastaut e seus colaboradores (19663 como citado em Moysés, 2001), exames realizados sob fotoestimulação intermitente (FSI) podem desencadear descarga irritativa e crise clínica em pacientes não epilépticos. Sendo assim, "deve–se tratar o paciente e não o eletroencefalograma", uma vez que os dados mostram que 10 a 20 % da população apresentam alterações nesse exame e que essas alterações não podem ser consideradas anormais, mas apenas desviantes do normal (Moysés, 2001, pp. 89–90). Contudo,

com a medicalização crescente da aprendizagem e do comportamento, este preceito tem sido desrespeitado cada vez mais, inclusive resultando na criação de entidades como a disritmia e justificando o uso de medicamentos com ação em sistema nervoso central em pessoas que simplesmente não se enquadram nas normas socialmente estabelecidas. Cite–se, por exemplo, o uso de carbamazepina e outros psicofármacos em crianças com enurese e/ou com queixa de nervosismo, agressividade (Moysés, 2001, p. 90)

Winnicott acredita que "uma criança normal pode empregar qualquer dos recursos (ou todos) que a natureza forneceu para defesa contra a angústia e o conflito intolerável. Os recursos empregados (em saúde) estão relacionados com o tipo de auxílio que estiver ao alcance" (Winnicott, 1953d[1951]/1982, p. 143). Temos de considerar que, em razão da dependência que a criança tem de seu ambiente, esse auxílio geralmente vem da mãe. Porém, se a mãe não o viabiliza por alguma mpossibilidade, resta à criança, então, apenas o seu próprio âmbito de onipotência. Nos momentos de maior dificuldade, as crianças poderão apresentar sintomas. Em alguns casos, eles poderão estar relacionados a doenças, mas não em todos. Como bem lembra Winnicott (1953d[1951]/1982, p. 142), "a vida é inerentemente difícil" e, para os bebês e crianças, pode ser mais difícil ainda, mesmo que eles possam ter várias coisas boas e possam viver vários momentos bons. O que estamos presenciando, todavia, é a transformação de todas as reações da criança à natureza do viver ou a inadequações dos cuidados oferecidos a ela em sintomas de doenças.

Em um recente estudo sobre a incidência do TDAH, Lima (2005) comenta a relação desse diagnóstico com o gênero da criança. Segundo ele, alguns estudos, diante da constatação de o transtorno se apresentar com maior frequência entre os meninos, têm acreditado na possibilidade de as meninas estarem "subdiagnosticadas", exatamente pelo fato de elas "incomodarem menos" os pais ou a escola por apresentarem menos comportamentos perturbadores da ordem e dos costumes. Isso nos remete novamente à teoria winnicottiana. Em seus estudos sobre o desenvolvimento do indivíduo, Winnicott (1984a/1999) afirmou que os primeiros sinais de tendência antissocial podem ser expressos por avidez, sujeira (incontinência urinária e fecal), anseio por afeição, comportamento impulsivo e destrutividade. Além disso, Winnicott não considerava a tendência antissocial como sendo um diagnóstico, pois podia ser encontrada tanto em uma criança psiquicamente doente como em uma criança normal. A característica dessa tendência é a de compelir "o meio ambiente a ser importante" (Winnicott, 1958C[1956]/1999, p. 139), ou seja, compelir o ambiente a exercer o seu papel, uma vez que o fator comum entre todas essas formas de expressão, ou sintomas, é o "valor de incômodo" destes (Winnicott, 1958C[1956]/1999, p. 139; 142). O valor de incômodo dos sintomas tem em si a esperança de que enfim a necessidade da criança possa ser compreendida e atendida, e qualquer exagero nesse valor indica "a existência de um certo grau de privação e tendência antissocial" (Winnicott, 1958c[1956]/1999, p. 142).

Caso o incômodo seja eliminado pela medicação, elimina–se também a possibilidade de uma compreensão das necessidades de algum cuidado específico que a criança possa estar apresentando e que, por ausência ou insuficiência deste, ela reage. No caso de crianças doentes, a precisão diagnóstica e o tratamento da doença subjacente também ficam dificultados. Para que esse diagnóstico seja adequadamente realizado, será necessário um "levantamento cuidadoso da história da criança ou talvez [...] um período de observação" (Winnicott, 1984a/1999, p. 202), o que geralmente não é feito. Após uma única consulta, é iniciado um teste de medicamentos e de suas dosagens, e muitas vezes, se a criança deixa de apresentar os sintomas, entende–se ter encontrado o diagnóstico.

Ao observarmos mais criteriosamente, muitos casos do que é comumente entendido por TDAH apresentam um "complexo de privação", ou seja, passam a faltar à criança certas características essenciais da vida familiar − como presença confiável de um cuidador, segurança e estabilidade. Isso leva a criança a reagir, manifestando tendência antissocial. As sensações de insegurança, desconfiança e imprevisibilidade geram um aumento da ansiedade, que está na base dos primeiros sinais de tendência antissocial descritos por Winnicott, como também na origem da esmagadora maioria dos sintomas utilizados como critérios diagnósticos pelo DSM–IV (2002) para o TDAH, por exemplo.

Mas, como poderíamos desenvolver isso melhor, com base na teoria winnicottiana? Suponhamos uma situação em que o ambiente consegue prover à criança o que ela necessita e tudo corre bem para a criança. De repente, alguma coisa perturba esse estado de coisas e a criança passa a ser "exigida além de sua capacidade", o que faz com que suas defesas, até então organizadas para aquele estado de coisas, desmoronem. Isso pode fazer com que a criança, em um primeiro momento, retroceda para a inibição ou perca a espontaneidade, além de fazer surgir ideias e impulsos que afetam o seu comportamento (Winnicott, 1984c[1966]/1999, p. 124). A criança acaba reorganizando defesas mais primitivas do que aquelas que ela tinha no momento anterior à perturbação, o que pode fazer a criança apresentar os sintomas relacionados ao TDAH, segundo o DSM–IV (2002): falta de atenção a detalhes, a tarefas, a atividades lúdicas e a chamados; falta de organização e de esforço para a realização de atividades; perda de objetos e coisas; alheamento e esquecimento; agitação; atividade excessiva e imprópria; dificuldade de brincar; fala em demasia; respostas precipitadas; dificuldade de esperar e intromissões.

Para Winnicott (1984c[1966]/1999), se a criança começa a ter esperanças novamente de encontrar o que perdeu, "ela organiza atos antissociais na esperança de compelir [o ambiente] a retroceder com ela para a posição em que as coisas deram errado, e a reconhecer esse fato" (p. 124). Se isso se efetiva, "o ambiente deve ser testado repetidamente em sua capacidade para suportar a agressão, para impedir ou reparar a destruição, para tolerar o incômodo, para reconhecer o elemento positivo da tendência antissocial, para fornecer e preservar o objeto que é procurado e encontrado" (1958c[1956]/1999, p. 146).

Ainda de acordo com Winnicott,

uma criança normal é capaz de ter qualquer espécie de sintomas, em circunstâncias apropriadas. Mas com uma criança doente, não são os sintomas que constituem a dificuldade; é o fato de que os sintomas não estão cumprindo sua tarefa e constituem tanto um incômodo para a criança como para a mãe (Winnicott, 1946c/1982, p. 144)

Desse modo, a dificuldade de o ambiente compreender o sintoma como a expressão de uma necessidade da criança que não está sendo atendida geralmente é o que a impede de receber o auxílio que precisa e espera. Winnicott, em seu texto "Que entendemos por uma criança normal?", comentou um sintoma bastante comum em crianças e que considerava uma manifestação de tendência antissocial: a enurese. Ele disse:

Se urinando na cama a criança formula um efetivo protesto contra orientação severa, mantendo–se firme na defesa dos direitos do indivíduo, por assim dizer, então o sintoma não é uma doença; pelo contrário, é um sinal de que a criança ainda espera conservar a individualidade que, de algum modo, foi ameaçada. Na grande maioria dos casos, ao urinar na cama a criança está cumprindo o seu papel e, com o decorrer do tempo e uma boa orientação corrente, ela acabará abandonando o sintoma e adotando outros métodos de afirmar a sua personalidade (Winnicott, 1946c/1982, pp. 143–144)

Contudo, segundo a nova compreensão diagnóstica proposta pelo DSM, os sintomas do TDAH ou de qualquer outra entidade psicopatológica perdem sua característica de "reação" à forma de ser cuidado, de se relacionar e ser relacionado, e de estar no mundo. Daqui para frente, a proposta é entender a sintomatologia como geneticamente determinada, cujas reações biológicas ou fisiológicas devem ser simplesmente medicadas e não compreendidas dentro de um contexto e de uma história. Assim, ao tratar os sintomas da criança como transtornos sem história, situados no corpo, independentes de relações e não passíveis de interpretação, as únicas possibilidades passam a ser os medicamentos e, quando muito além disso, as instruções padronizadas de procedimentos e estratégias a serem adotadas e treinadas.

A questão ética se reapresenta. Segundo Coser (2010),

os medicamentos prescritos, principalmente antipsicóticos atípicos, estão sendo usados para crianças a partir dos 2 anos sob a alegação de que elas apresentariam distúrbios de comportamento, distúrbios afetivos e hiperatividade, [...] e a muitos parece perigoso uma vez que não se sabe o que podem produzir a longo prazo (Vitiello, 2005; Zito & Safer, 2005; Lilienfeld, 2005; Hearly, 2006; Patel et al., 2006), fato que introduz questões éticas e sociais de importância primordial (Coser, 2010, p. 127)

Loparic, ao discutir a saúde dos indivíduos e da sociedade, entende que uma solução ética que pode ser adotada é a substituição de regras por atitudes pessoais baseadas na "capacidade de reconhecer e suportar problemas, mesmo quando insolúveis" (Loparic, 2001). E, ainda, poder reconhecer os problemas sem patologizá–los. Mas, se em vez de cuidar de uma criança que tem uma história dentro de determinado contexto, o profissional trata o "transtorno", por mais empenhado que seja esse profissional terá dificuldade de apreender tudo o que envolve o problema apresentado pela criança. Esta não é pensada para além do "transtorno". De acordo com Quinet,

fundar uma prática de diagnóstico baseada no consenso estatístico de termos relativos a transtornos, que por conseguinte devem ser eliminados com medicamentos, é abandonar a clínica feita propriamente de sinais e sintomas que remetem a uma estrutura clínica, que no caso, é a estrutura do próprio sujeito (Quinet, 2002, p. 39)

E, para Winnicott (1988/1990), que remetem a dificuldades na continuidade de ser do indivíduo. Para este autor, a vida do ser humano inicia–se a partir da solidão essencial vivida em um estado de dupla dependência, ou seja, dependência absoluta do ambiente, dependência que irá se relativizando conforme a efetivação de seu amadurecimento. Desde o momento em que começa a ser, o indivíduo continuará a ser até a morte e, essa continuidade de ser – a vida – precisa ser favorecida pelo ambiente cuidador. Desse modo, caso ocorra insuficiência de facilitação do desenvolvimento de suas tendências hereditárias inatas pelo ambiente, o indivíduo pode adoecer, e, se medicado precipitadamente, a compreensão do que está dificultando sua continuidade de ser pode ser obstaculizada pelo medicamento que elimina os indícios dessa situação.

Para Tort,

um dos efeitos considerados como iatrogênicos, produzidos pelos avanços da psiquiatria, é a produção de uma nova subjetividade no espaço da clínica médica. Esse processo ocorre, segundo o autor, quando no espaço de uma vida, suas palavras, seus símbolos e seus mitos parecem ter sido deixados junto com as roupas fora da sala de exame; quando o espaço do sentido da vida deve ser ocultado, não só pela biomedicina mas pelo próprio doente, que não se reconhece mais como o mesmo sujeito (Tort4, 2001 citado em Martins, 2008, p. 333)

E isso não ocorre somente na medicina psiquiátrica. Em certa ocasião, uma residente de psicologia foi chamada para realizar um atendimento a uma criança de 12 anos que fora vítima de um grave acidente automobilístico, no qual morreu seu irmão e sua mãe ficou também gravemente ferida. Por conseguinte, ela se encontrava sem acompanhante em sua internação. A médica, responsável pelo caso, disse que a criança parecia estar "trancada", ou seja, consciente, mas incapaz de se comunicar. A residente, em sua avaliação, verificou que a criança estava dando muito trabalho durante a noite, pois ficava muito agitada. O que ficou claro, na supervisão do caso, é que, para os profissionais que cuidavam da paciente, não havia ali uma criança com uma história particular, que poderia, por exemplo, ter vivido uma infância com muito medo de escuro e de ficar sozinha, principalmente à noite. Diante do trauma que estava vivendo solitariamente, sem conseguir se comunicar ou sem alguém que pudesse ajudá–la a compreender a situação e tranquilizar–se, o seu medo ficava intensificado. A luz do quarto, onde ficou internada sozinha, era apagada à noite, em um procedimento padrão, e as reações da criança não eram compreendidas dentro de uma história de vida, apenas como consequência do traumatismo sofrido no acidente.

Nessas situações de precariedade na avaliação do que está ocorrendo a uma pessoa, geralmente os profissionais culpam a falta de tempo, de recursos, de pessoal e o acúmulo de serviço. Assim, além de desvestir o outro, os avaliadores desvestem–se a si mesmos de sua história e de sua subjetividade, "des–implicando–se" dos resultados de sua atuação profissional.

 

4. Considerações finais

Como bem disse Jonas (1982/1999), existem vários sinais indicando que estamos em uma "zona de perigo" no que concerne ao avanço da tecnologia e, na presente discussão, ao avanço do tratamento medicamentoso do sofrimento humano. Caso se inicie um movimento de julgar como é irresponsável o ato de uma criança não ser medicada quando existe medicamento para silenciar os seus sintomas, podemos julgar como irresponsabilidade o ato de eliminar os incomodativos sintomas de nossas crianças e jovens, e, junto com esses, todas as vias de expressão dos incômodos que as próprias crianças possam sentir diante de não adaptações do ambiente aos seus modos de ser pessoais, subjugando–as e favorecendo a construção de falsos "si–mesmos" (selves).

Segundo Jonas, a responsabilidade de longo prazo sobre a continuidade da vida humana, como se entende que ela deva ser, deve evitar o desenfrear do "crescendo" inerente ao progresso, uma vez que este crescendo pode "devorar as vantagens" que poderiam advir em favor dessa vida. Caso isso não seja evitado, "as pretensões da posteridade, que estão confiadas àquela responsabilidade, encontrarão uma situação difícil", pois, "o lado glamouroso das aquisições técnicas ofusca a vista, [...] o lucro próximo suborna o juízo e as carências muito reais do presente (para não falar de suas manias) clamam por prioridade" (Jonas, 1982/1999, p. 416).

Alternativas ao tratamento medicamentoso existem, basta que haja uma disponibilidade de lançar mão destas, sabendo que irão exigir mais de cada pessoa envolvida nos cuidados a um indivíduo. Não se trata de nunca fazer uso dos medicamentos de "última geração", mas de utilizá–los de forma criteriosa e com rigor, uma vez que não se podem desconsiderar os seus efeitos colaterais indesejáveis, a sua intrusão em nosso "si–mesmo" (self). Fazendo isso, será possível compartilhar com Winnicott o pensamento de que em um "contexto profissional, dado o comportamento profissional apropriado, pode ser que o doente encontre uma solução pessoal para problemas complexos da vida emocional e das relações interpessoais; o que fizemos não foi aplicar um tratamento, mas facilitar o crescimento" (Winnicott, 1986f[1970]/1996, p. 93).

 

 

Referências

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1 Atendimento realizado pela autora em uma atividade de extensão, com participação das discentes Roberta Espote e Marília de Souza Silva, do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
2
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3 Gastaut, H., Roger, J., Soulayrol, R., Tassinari, C., Regis, H., Dravet, C., Bernard, R., Pinsard, N. & Saint–Jean, M. (1966). Childhood epileptic encephalopathy with diffuse slow spike–waves (otherwise know as "petit mal variant") or Lennox syndrome. Epilepsia, Volume 7, Issue 2, pp. 139–179, June 1966.
4 Tort, M. (2001). O desejo frio: procriação artificial e crise dos referenciais simbólicos (C. Marques, Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.