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Winnicott e-prints
versión On-line ISSN 1679-432X
Winnicott e-prints vol.6 no.1 São Paulo 2011
Artigos
Em busca de uma ética do cuidado à luz de Heidegger, Nishitani e Winnicott
In search of ethics of care in the light of Heidegger, Nishitani and Winnicott
Eder Soares Santos
Universidade Estadual de Londrina, PR
e-mail: edersan@hotmail.com
Resumo
O artigo procura mostrar como Heidegger, filósofo alemão, compreende que somos cuidado no sentido de já sermos seres-no-mundo nos antecipando junto ao ente que nos vem ao encontro (Sich-vorweg-schon-sein-in-[der Welt] als Sein-bei [innerweltlich begegnendem Seiendem]). Em seguida, trabalha com a noção de ética do filósofo japonês Nishitani a partir da relação de confiabilidade que se estabelece entre seres humanos a fim de oferecer bases fáticas à definição ontológica de cuidado de Heidegger. E, por fim, investiga como Winnicott, psicanalista inglês, consegue fazer uma espécie de ligação entre as noções de cuidado de Heidegger e de ética em Nishitani, mostrando como uma ética do cuidado é possível de ser estabelecida a partir das relações iniciais entre mãe-bebê.
Palavras–chave: Heidegger, Winnicott, Nishitani, ética, cuidado.
Abstract
This paper aims to demonstrate how Heidegger, the German philosopher, understands that we are being taken care of in the sense that we already are "beings -in-the world" by to-be-ahead-of-oneself-already-in-[the world] as being-with [beings encountered in the world] (Sich-vorweg-schon-sein-in-[der Welt] als Sein-bei [innerweltlich begegnendem Seiendem]). After that, the article examines the notion of ethics by the Japanese philosopher Nishitani based on the relationship of trust established between human beings to provide Heidegger's ontological definition of care with factual bases. Finally, the article investigates how Winnicott, the British psychoanalyst, establishes a kind of connection between Heidegger's notion of care and Nishitani's notion of ethics, showing how ethics of care can be established from the initial mother-child relationship.
Keywords: Heidegger, Winnicott, Nishitani, ethics, care.
1. Traçados sobre o "cuidado" em Heidegger
Em um conjunto de ensaios de Heidegger intitulado Unterwegs zur Sprache [a caminho da linguagem1 ] encontra-se uma conversa entre um japonês e um pensador. No início dessa conversação o pensador aponta para um perigo que rondava o pensar sobre os conceitos. Apresento um pequeno extrato do diálogo que indica a dificuldade de discutir um conceito como "cuidado":
P – A que perigo o senhor se refere?
J – Ao perigo da riqueza dos conceitos proporcionada pelo espírito das línguas europeias. Trata-se do perigo de reduzir o que ocupa nosso lugar e modo de ser a algo indeterminado e escorregadio.
P – Só que existe um perigo muito maior nos ameaçando. É um perigo que nos atinge a ambos e que se torna tanto mais perigoso quanto menos puder ser percebido.
J – Como assim?
P – O perigo que nos ameaça provém de uma região em que não se pode presumir onde haverá de se fazer a experiência do perigo. ...
J – Ainda não entendo o que o senhor quer dizer.
P – O perigo das conversas se escondia na própria língua, não naquilo que conversávamos, mas no modo em que tentávamos fazê-lo. ...
J – Agora entendo melhor onde o senhor fareja o perigo. A língua da conversa destruía continuamente a possibilidade de se dizer o que se discutia (Heidegger, 2003, pp. 88-89).
Tal perigo também ronda este artigo ao procurar as bases de uma ética do cuidado. A filosofia moderna acostumou-se a tratar os conceitos com base na possibilidade de sua representação (cf. Heidegger, 1987, p. 129). Todavia, "cuidado" é um conceito vazio de representação. Podemos compreender o que se quer dizer por cuidado, porém não podemos re-presentá-lo, isto é, não podemos "colocá-lo a nossa frente" para que se torne objeto de nossa mensuração e cálculo. Desse modo, um primeiro perigo se instala na seguinte questão: a partir do modo como costumamos pensar no ocidente, como pensar o cuidado? Um segundo perigo se avizinha: como podemos de um conceito tão pouco "representável" derivar uma ética?
A expressão "ética do cuidado" surge por meio das pesquisas de Carol Gilligan na década de 80. E refere-se ao fato de que os modelos de ética propostos até muito recentemente foram estabelecidos por homens que pensaram fundamentos éticos para o melhor viver entre outros homens com referência aos direitos dos outros, isto é, uma ética baseada na lei. Para a autora isto é uma evidência histórica e não estão em jogo nesta discussão questões de gênero. No entanto, segundo Gilligan, há outra ética possível que em geral não se encontra divulgada em tratados de ética e que é praticada consciente e constantemente tanto por mulheres – segundo a autora, este tipo de "ética" se sobressai nos discursos das mulheres – como por homens. Trata-se de uma ética do cuidado que tem a ver com a "preocupação" e a responsabilidade que temos um em relação ao cuidado com o outro (cf. Guilligan, 1985). Afirma a autora que "o imperativo moral que emerge repetidamente nas entrevistas com mulheres é uma injunção de cuidado e responsabilidade para discernir e aliviar os ‘problemas reais e reconhecíveis' deste mundo" (Gilligan, 1985, p. 30).
O trabalho de Gilligan chama a atenção para uma situação que já acontece cotidianamente na relação que temos com os outros, porém, com efeito, a cotidianidade do fato não nos afasta do nosso temerário dever de filósofo ocidental, que é o de procurar fundamentar e compreender essa situação cotidiana. Correndo todos os riscos de o que vem a seguir não alcançar em profundidade as sutilezas do tema, creio que as contribuições de Heidegger, Nishitani e Winnicott podem nos ajudar a lançar alguma luz sobre como se pode estabelecer uma ética do cuidado em termos não representacionais.
A compreensão que Heidegger tem de cuidado não é nada evidente fora do contexto e estrutura de sua obra Ser e tempo. Para o filósofo, "cuidado" quer dizer: "o ser do Dasein antecipando a si mesmo por já ser (no mundo) como ser junto a (os entes que vem ao encontro dentro do mundo)" [Sich-vorweg-schon-sein-in-(der-Welt-) als Sein-bei (innerweltlich begegnendem Seiendem] (Heidegger, 2001, p. 192).
Embora a definição possa ser hermética, ela nos anuncia que, ontologicamente, quando pensamos sobre o sentido de nosso ser, nós nos colocamos diante do caminho que devemos trilhar enquanto um ser que, na medida em que está sendo, põe em jogo sua própria existência. Ao trilharmos este caminho também nos encaramos a nós mesmos, e, assim, diante de um relacionamento intrínseco conosco mesmo. Para Heidegger, só podemos nos antecipar porque já sempre e a cada vez estamos em um mundo, ou seja, estamos referenciados a um contexto de significância em que o que acontece nos faz sentido (Cf. Heidegger, 2001, p. 54). Todavia, não estamos sós no mundo, também estamos sempre junto às coisas e às pessoas que vêm ao nosso encontro enquanto existimos. Junto às coisas e às pessoas o cuidado pode ser compreendido como ocupação ou preocupação. A todo este contexto ontológico-existencial Heidegger denomina cuidado. Para o filósofo, o cuidado é o nosso a priori fundamental:
Enquanto totalidade originária de sua estrutura, o cuidado se acha, do ponto de vista existencial a priori, "antes" de toda "atitude" e "situação" do Dasein, o que sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de fato. (Heidegger, 2001, p. 193)
Cuidado em seu fundamento não deriva de uma situação ôntica de cuidado ou descuidado. O filósofo da floresta negra exige para o conceito uma compreensão existencial hermenêutica, pensada em seus fundamentos ontológicos originários.
A expressão cuidado significa um fenômeno ontológico-existencial básico que também em sua estrutura não é simples. A totalidade ontologicamente elementar da estrutura do cuidado não pode ser reconduzida a um "elemento primário" ôntico, assim como o ser não pode ser "esclarecido" pelo ente. (Heidegger, 2001, p. 196)
Nesse sentido, Heidegger estabelece as bases originárias para se refletir sobre o conceito de cuidado, mostrando que qualquer investigação sobre o tema tem que levar a sério que qualquer resultado que se possa obter em uma discussão sobre uma ética do cuidado passa pela questão essencial de como somos no mundo; enfim, trata-se sempre e a cada vez da questão de ser enquanto ser-no-mundo.
A exigência da investigação ontológica sobre o "cuidado" que nos é imposta por Heidegger não nos desobriga à necessidade de buscarmos um fundamento para uma ética do cuidado que tenha bases existenciais ontológicas e que possa ser possível na vida cotidiana. Parece-me que neste ponto Nishitani – filósofo da escola de Kioto do Japão2 pode nos trazer alguns elementos ontológicos para nossa perigosa reflexão, os quais permitiriam uma aproximação sobre o tema do cuidado em Winnicott.
2. Ética e confiabilidade em Nishitani
Em um livro intitulado Sobre o budismo, Nishitani (2006) se propõe, por meio de vários ensaios sobre o tema do budismo, a pensar a formação da ética no Japão. A totalidade das conclusões do filósofo japonês e a constituição de tal ética fogem ao meu intento aqui. O que me interessa de seus ensaios é captar alguns elementos que são as bases ontológicas para se pensar em uma ética do cuidado em nível ôntico.
"Ética" em japonês traduz-se pela palavra rinri. Quando desmembrada, rin quer dizer amizade, isto é, relações humanas que descrevem o relacionamento entre um ser humano e outro, pois um ser humano não é concebido de uma negatividade, um não, como alguém sozinho, mas estando em relacionamento com outrem (cf. Nishitani, 2006, p. 114).
Por sua vez, ri diz respeito a como uma relação humana deveria ser, ou como um relacionamento humano se estabeleceria como algo sagrado. Ri tem, por isso, algo a ver com uma forma sagrada ou um traço de conexão que torna a relação humana capaz de ser genuína. Ao mesmo tempo, em ri torna-se necessário haver esta mútua relação sagrada a fim de nós nos tornarmos seres humanos genuínos, e isto nos ensina quais atitudes deveríamos tomar em relação aos outros, ou que ações deveríamos realizar na medida em que estamos em um relacionamento sagrado com outra pessoa. Nishitani reafirma esta concepção na citação abaixo:
Rinri diz respeito à tarefa de indicar que forma deveria assumir um relacionamento humano genuíno, ou basicamente, tem a ver com a questão de encorajar cada ser humano a tornar-se aquilo que ele ou ela deveria ser. (Nishitani, 2006, p. 114)
Assim, ética, rinri, está inegavelmente ligada ao fato de que o ser humano exista como um ser humano. Como se chega a isto? Tornar-se um ser humano não é um problema apenas de cada indivíduo. Para este acontecimento é necessário criar ou construir/formar para além de nós mesmos um ser humano genuíno por meio de nossas próprias capacidades e por meio de nossas atividades diárias (cf. Nishitani, 2006, p. 115). Isto implica a noção de "realização". Diz Nishitani:
Que nos "realizemos" ser um ser humano no sentido acima implica, parece-me, que cada um de nós deveríamos ser assim. Porém, nós não podemos dispor desta questão apenas dizendo isto. Quando se diz que nós realizamos ser um ser humano, não é apenas o caso de nós mesmos nos tornarmos assim, mas que também nós possibilitamos outras pessoas de se tornarem verdadeiramente humanas. Para avançar um passo à frente, nós realizamos ser humano quando outras pessoas também podem tornar-se seres humanos. (Nishitani, 2006, p. 115)
Qual é base para que nos tornemos – nos realizemos – enquanto seres humanos? Sendo confiáveis. A resposta encontra-se na noção de confiabilidade.
Quando podemos confiar uns nos outros, isto significa que não podemos ser decepcionados em nossas relações humanas, não importa que tipo de acidente possa ocorrer. Segundo Nishitani, pode-se dizer que uma relação humana não pode ser verdadeiramente uma relação entre um ser humano e outro a menos que envolva nela mesma o fato de ser confiável (cf. Nishitani, 2006, p. 77). Isto significa que cada ser humano deve possuir essa confiabilidade em si mesmo e nos outros seres humanos. Esta confiabilidade mútua, uma vez estabelecida, envolve um engagement. Engajamento implica confiança nos outros e em mim mesmo, autoconfiança: "A confiabilidade de um ser humano consiste em manter a confiança no lugar onde se obtém um não-ensimesmamento (no-selfhood)" (Nishitani, 2006, p. 79).
Portanto, confiabilidade consiste em alguém manter confiança nos outros e em si mesmo por meio de um relacionamento entre si mesmo e os outros (cf. Nishitani, 2006, p. 80).
Nishitani nos trouxe aqui mais um elemento para se pensar uma ética do cuidado. A confiabilidade também é um conceito que não é passivo de representação, porém atende ao requisito heideggeriano que caracteriza o cuidado como existencialidade, facticidade e decadência. Pois é preciso existir faticamente no mundo cotidiano junto às coisas e aos outros para que a confiabilidade se estabeleça, e é preciso que neste estar junto se estabeleçam relações com outros seres humanos.
Uma ética do cuidado, com efeito, só é possível de ser fundamentada a partir de uma investigação da relação de confiabilidade que se estabelece entre seres humanos. Entretanto, como ela se daria? Aqui creio que Winnicott tem uma contribuição essencial para oferecer sobre esse assunto.
3. "Cuidado" em Winnicott: bases para uma ética
Em uma palestra datada de outubro de 1970, Winnicott indica o quanto a questão do cuidado é fundamental para o trabalho que se faz em psicanálise e também em outras áreas médicas. Ele diz: "eu acredito que cura em sua raiz significa cuidado" (Winnicott, 1986f/1970, p. 112). E dado que em sua época, e parece-me que hoje também, cura dizia respeito ao ótimo sucesso na erradicação da doença, então, ele chama atenção para o fato de que o "cuidado também pertence à prática médica" (cf. Winnicott, 1986f/1970, p. 113).
Winnicott em seu texto também contribui com alguns elementos que nos auxiliam na fundamentação do conceito de cuidado. "Cuidado" aponta para o fato da dependência. Desde bebê, quando a dependência é máxima, até quando nos tornamos adultos e a dependência surge em menor grau, sempre mantemos alguma relação de dependência, em especial, quando doentes e/ou envelhecidos. Isto nos remete a um dos momentos de constituição do Dasein em Heidegger, o Mitdasein, o fato de sermos-com-os-outros. Embora o filósofo ocidental não leve em consideração a dependência como fator ontológico, parece-me que, pelo fato de sempre haver algum grau de dependência, também temos de ser um ser-com.3 Assim, o conceito que melhor traduz a necessidade da dependência é o de dependenciabilidade (dependability). Neste conceito está implicado que temos de ser humanamente confiáveis, isto é, a confiabilidade deve estar embutida em nós e em nossas atitudes com relação aos outros (cf. Winnicott, 1986f/1970, p. 113). O que é significante, afirma Winnicott, é o relacionamento interpessoal no seu todo, em todo o seu rico e complexo colorido humano (cf. Winnicott, 1986f/1970, p. 115).
Cuidado como algo essencialmente humano está fundamentado na confiabilidade e na difícil tarefa que temos em continuar-a-ser sem interrupções nesta continuidade. O cuidado desta forma assegura que o imprevisível não se apresente. Winnicott esclarece:
O ponto é que sendo pessoas confiáveis nós protegemos nossos pacientes [e as outras pessoas em geral] do imprevisível. [...] Por trás da imprevisibilidade encontra-se confusão mental, e por trás disto pode ser encontrado caos em termos de funcionamento somático, isto é, angústia impensável que é física. (Winnicott, 1986f/1970, p. 116)
Como evitar a imprevisibilidade? Onde encontrar essa tal confiabilidade que a filosofia japonesa toma como requisito para o estabelecimento das relações humanas e que serviria de base para a constituição de uma ética do cuidado?
Antes de buscarmos uma resposta, é necessária uma melhor compreensão sobre a imprevisibilidade. A imprevisibilidade atinge a temporalização do bebê e está relacionada às falhas no lidar materno de proporcionar um sentimento de segurança (holding) e confiabilidade ao bebê. A importância desses tipos de falhas, descobertas por Winnicott, foi sintetizada por Dias (1998, 2003) como o caráter temporal do trauma, que é analisado em termos de previsibilidade e imprevisibilidade do ambiente. Não só o trauma tem um caráter temporal, mas é justamente o fato de podermos nos temporalizar e, por isso, sermos temporais em todas as nossas relações pessoais, em que esteja implicada saúde emocional ou mesmo a falta dela, que faz com que possamos acontecer e amadurecer no mundo (cf. Santos, 2010, pp. 130-131). O trauma revela a quebra, justamente nessa nossa característica de sermos temporais, que é mantida pela nossa continuidade de ser, e que não é algo percebido pelo ser humano na vida cotidiana – isso ica mais claro se pensarmos, por exemplo, no martelar; se pensamos ou percebemos o que estamos fazendo, isto é, martelando, ou não conseguimos realizar essa operação ou martelamos um dedo. A continuidade torna-se motivo de preocupação e cuidado justamente quando há algum tipo de interrupção nesse ir sendo temporal. Dias parece seguir nessa direção quando aponta que:
Uma situação é traumática se contiver elementos extemporâneos. O que o trauma atinge, portanto, é sobretudo a temporalização do bebê, o aspecto principal da natureza humana e da sua tendência à integração na direção da unidade. (Dias, 1998, p. 247)
O trauma é constituído por uma reação automática do bebê à intrusão ambiental, que é traumática porque o obriga a reagir em vez de continuar-a-ser, e esse continuar-a-ser é ameaçado pelas agonias impensáveis. Elas "remetem ao perigo extremo de o indivíduo cair fora da existência, de que a existência enquanto tal não se dê ou se perca" (Dias, 1998, p. 255). Isso remete o bebê a ter que lidar com a questão da imprevisibilidade do ambiente, que se constitui em trauma para o lactente, pois "o bebê não se torna capaz de prever e, sendo assim, ele não pode se temporalizar [...] quando o ambiente não é capaz de prover o bebê do sentido de previsibilidade, estabelece-se um padrão de reagir ao imprevisível e sempre ter de começar tudo de novo" (Dias, 1998, p. 249).
Portanto, a melhor maneira de se prevenir contra a imprevisibilidade é por meio do cuidado. Winnicott compreende "cuidado" a partir da noção de preocupação materna primária; uma condição que, gradualmente, desenvolve-se e torna-se um estado de sensibilidade aumentada durante e, especialmente, no final da gravidez, e continua por algumas semanas depois do nascimento da criança (cf. Winnicott, 1958n[1956]/1978, p. 493).
É a partir desse estado que a mãe pode criar um ambiente no qual o bebê que acabou de nascer consegue manter o seu continuar a ser, que não deve ser interrompido por intrusões do ambiente que o fazem reagir, em vez de possibilitar o seu seguir sendo. Esse continuar a ser só pode ser provido por uma adaptação suficientemente boa das necessidades iniciais do bebê e essa adaptação igualmente só pode ser realizada por alguém que desempenhe a função de uma mãe comum devotada, ou seja, que experiencie o seu momento de preocupação materna primária. Partindo dessa noção de cuidado, duas são as condições necessárias para que o bebê se saia bem no seu começar a ser: que exista uma preocupação materna primária e que o cuidado provido seja suficientemente bom (cf. Winnicott, 1960c/1996, p. 48 [p. 48]).
Com esse cuidado suficientemente bom, o bebê está capaz de ter uma existência pessoal, de construir gradativamente seu si-mesmo e de criar um mundo pessoal a partir de onde ele pode iniciar o seu contato com um mundo compartilhado (cf. Winnicott, 1965n[1962]/1996, p. 57 [p. 56]).
Esse cuidado provido pela mãe é a base para que o bebê possa gradativamente iniciar sua existência no mundo, como uma pessoa. É a base para que ele possa se tornar um ser humano, para que possa se relacionar com outros seres humanos e assumir as responsabilidades desta relação.
Com "o cuidado que ele recebe de sua mãe" cada lactente é capaz de ter uma existência pessoal, e assim começa a construir o que pode ser chamado continuidade de ser (continuity of being). Na base dessa continuidade do ser, o potencial herdado se desenvolve gradualmente no indivíduo lactente. (Winnicott, 1960c/1996, p. 54 [p. 53])
Desse modo, partindo da dependência absoluta do lactente em relação àquele que dele cuida, mesmo com toda a precariedade que envolve o ter de chegar a ser de cada um, uma relação de confiabilidade se estabelece, e gradualmente este ser humano que está surgindo pode, por ser cuidado, chegar gradativamente a assumir as responsabilidades por suas ações e poder cair em um mundo em que já faz sentido em se falar de uma ética.
4. Considerações finais
Em conclusão, receio que nossa conversa aqui tenha se tornado mais perigosa do que no seu momento inicial. Apresentou-se para nossa conversa um filósofo ocidental que compreende que somos cuidado no sentido de já sermos seres-no-mundo nos antecipando junto ao ente que nos vem ao encontro. Depois surgiu um filósofo japonês que procura basear uma noção de ética a partir da relação de confiabilidade que se estabelece entre os seres humanos. E, por fim, temos um psicanalista revolucionário que nos aponta que o cuidado, além de ter efeito profilático, apresenta, em especial, como base as relações iniciais estabelecidas entre mãe-bebê. Todos eles parecem, em suas diferentes línguas e linguagens, querer dizer o mesmo: o cuidado é o que nos torna essencialmente humanos e é o que torna possível que outros seres humanos aconteçam essencialmente enquanto seres humanos. E que uma ética que faça sentido para o ser humano precisa tomar a sério a noção de cuidado.
Não quero dizer com isto que haja uma plena sintonia entre as teorias desses três diferentes autores. Suas teorias, por vezes, se tocam em alguns pontos e, em outros momentos, se distanciam enormemente.4 Contudo, se assim podem-se apresentar as propostas de busca de fundamentos para uma ética do cuidado nos três autores, em que consiste o perigo da conversa que se estabeleceu aqui entre eu e vocês? O perigo está em que estes teóricos estejam realmente de acordo sobre o como existimos e que o resultado da união de suas teorias possibilite fundamentar um novo sentido tanto para o conceito de cuidado como para o de ética. O perigo reside em que tenhamos que rever nossas posições, nossas aceitações teóricas, nossos fundamentos.
Referências
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Nishitani, K. (2006). On Buddhism. New York: State University of New York Press. [ Links ]
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Winnicott, D. W. (1978). Psicoses e cuidados maternos. In D. W. Winnicott (1978/1958a). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1953 [1952] ; respeitando-se a classificação de Huljmand temos 1953a [1952] [ Links ])
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1 Tradução para o português, Heidegger (2008).
2 Uma boa apresentação sobre os filósofos da Escola de Kioto pode ser encontrada em Loparic (2009).
3 Outros temas de aproximação e distanciamento entre o pensamento de Winnicott e Heidegger podem sem encontrados em Santos (2010).
4 Para conferir o quão Heidegger e Winnicott se aproximam e se distanciam ver também Loparic (1999).