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Winnicott e-prints
versión On-line ISSN 1679-432X
Winnicott e-prints vol.6 no.1 São Paulo 2011
Artigos
A importância da concepção de sujeito implícita na Ética do Cuidado
The importance of the implicit concept of self in the Ethics of Care
Rafael Rodrigues Pereira
Bolsista de pós-doutorado pelo CNPq. Realiza na UFMG uma pesquisa sobre as relações entre ética e identidade
e-mail: rafaelrod@ig.com.br
Resumo
O objetivo deste trabalho consiste em analisar a concepção de sujeito implícita na chamada Ética do Cuidado (Ethics of Care). Este movimento pressuporia um determinado tipo de self, que chamaremos de "sujeito relacional", em que o indivíduo é compreendido em função das relações que estabelece com outros indivíduos. A partir de dois artigos de autoras ligadas ao movimento – Carol Gilligan e Nona Lyons −, procuraremos explicitar dois pontos: a) a diferença entre a Ética do Cuidado e outras teorias morais – notadamente as "éticas da Justiça" – pode ser compreendida a partir de determinadas concepções de sujeito inerentes a essas propostas; b) a Ética do Cuidado pode contribuir de forma relevante para as discussões contemporâneas acerca da relação entre ética e identidade pessoal.
Palavras-chave: Ética do Cuidado, Identidade Pessoal, Éticas da Justiça.
Abstract
The aim of this work is to analyse the conception of self implied in the Ethics of Care. This ethical theory would presuppose a specific type of self-identity, that can be called a "relational self", by which the individual is understood from his relationships with others. Basing on two articles written by authors related to the Ethics of Care - Carol Gilligan e Nona Lyons -, we shall discuss two main points: a- the difference between the Ethics of Care and others ethical theories – specially the "ethics of justice" − can be understood from specific conceptions of self-identity, implied in those theories; b- the Ethics of Care can contribute in a relevant way to contemporary discussions about the relation between ethics and personal identity.
Key-words: Ethics of Care, self-Identity, Ethics of Justice
1. Introdução
O objetivo deste trabalho consiste em tentar explicitar a concepção de sujeito inerente às Éticas do Cuidado (Ethics of Care). Procuraremos mostrar que a especificidade desta abordagem – em contraponto, sobretudo, às chamadas "éticas da Justiça" − pode ser mais bem compreendida a partir dessa concepção. No final de nossa exposição, também procuraremos tirar algumas conclusões acerca das possíveis relações, em nível geral, entre ética e identidade pessoal.
É sabido que a obra inaugural das Éticas do Cuidado foi In a Different Voice, de Carol Gilligan. Nesse livro, a autora já estabelece o contraponto entre essa abordagem e as "éticas da Justiça", cujos principais representantes seriam Kant e o Utilitarismo. Estas últimas se concentrariam, sobretudo, em questões de igualdade, imparcialidade, direitos individuais e escolhas racionais orientadas por princípios abstratos. Segundo Gilligan, esse tipo de concepção seria o reflexo de determinadas predisposições psicológicas masculinas. A autora, de fato, aceita a tese de que homens e mulheres tendem a entender a moralidade de forma diferente,1 e considera que uma ética "feminina" se concentraria, sobretudo, nos vínculos pessoais entendidos a partir do cuidado (care). O conceito de "cuidado" é definido em função de compromissos emocionais baseados na simpatia, na compaixão, no amor, na resposta contextual à necessidade, na sensibilidade e discernimento em relação a situações particulares (Gilligan, 1997, pp. 15-43).
Como dissemos, um dos objetivos de nosso trabalho é mostrar que o contraponto entre estes dois tipos de concepção – a Ética do Cuidado e as "éticas da Justiça" – pode ser mais bem compreendido a partir de determinadas concepções de sujeito que seriam inerentes a cada uma destas propostas. Para realizar esta análise, nos basearemos em dois artigos publicados na revista Harvard Educational Review, um da própria Gilligan e outra de uma ex-aluna sua, Nona Lyons.
2. A crítica de Gilligan a Kohlberg: a importância da identidade pessoal para o desenvolvimento moral
No artigo "In a Different Voice: Womens's Conceptions of self and of Morality" (1977)2, Gilligan critica a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg3, considerando que esta reflete determinadas predisposições masculinas, e, portanto, não expressaria adequadamente as preocupações e experiências das mulheres em relação à moralidade (Gilligan, 1977, p. 481). O resultado é que nessa teoria – assim como em visões equivalentes de outros autores, como Piaget e Freud4−, o desenvolvimento moral das mulheres é considerado deficiente: o adulto moralmente desenvolvido seria um agente de pensamento autônomo, capaz de tomar decisões claras e responsáveis, e que entende a moral em termos de justiça, de forma imparcial e baseada em princípios universais5. As mulheres, devido à sua maior predisposição à sensibilidade e à preocupação com as necessidades alheias, teriam uma maior dificuldade em atingir os últimos estágios desse desenvolvimento6. Como dissemos, Gilligan aceita a tese de que o gênero afeta a maneira pela qual a moralidade é entendida, mas rejeitou a visão pela qual essas diferenças acarretariam em alguma "deficiência" da parte das mulheres. Esta seria uma falsa impressão, provocada pelo fato de que as teorias que levam a esse resultado sempre se basearam na perspectiva dos homens.
Gilligan propõe então uma teoria alternativa do desenvolvimento moral, que se aplicaria melhor à perspectiva feminina. Os detalhes dessa exposição não nos interessam aqui, mas sim a maneira pela qual Gilligan relaciona essa perspectiva a uma determinada concepção de self. A autora mantém a divisão do desenvolvimento moral em três níveis – pré-convencional (baseado nas necessidades do sujeito), convencional (baseado nos julgamentos sociais), e pós-convencional (princípios universais) −, mas os descreve de forma diferente de Kohlberg. O primeiro nível seria caracterizado pelo foco no próprio sujeito, o segundo por um conceito "maternal" de moralidade que visa à proteção dos dependentes e desiguais, e o terceiro nível por um princípio universal de não-violência e condenação à exploração e ao dano (Gilligan, 1977, p. 492). A relação com a identidade pessoal aparece, segundo Gilligan, nas transições entre os três níveis, que sempre envolvem algum tipo de reformulação da maneira pela qual a pessoa vê a si mesma, seu "self-concept": assim, a passagem do primeiro para o segundo nível – que podemos descrever, grosso modo, como a passagem do "egoísmo" para o "social" − implica em uma valorização que o indivíduo faz de si mesmo (enhancement in self-worth), na medida em que o sujeito passa a se enxergar como alguém capaz de assumir responsabilidades e fazer a "coisa certa", tendo, dessa forma, potencial para a aceitação social (Gilligan, 1977, p. 494). A "autoimagem" da mulher (reflected image) consiste então em uma pessoa que é boa e generosa (Gilligan, 1977, p. 503). Essa imagem, no entanto, geraria um conflito baseado na falta de reciprocidade do cuidado (ou seja, nos sacrifícios pessoais que essa postura exige), e no consequente sentimento de perda de conexão com os outros. Esse conflito é resolvido, nas palavras da própria Gilligan, "através de uma compreensão transformada do self e uma redefinição correspondente da moralidade" (Gilligan,1977, p. 504). Essa solução corresponde à passagem do segundo para o terceiro nível – grosseiramente, do "social" para o "universal" –, e consiste na elevação da não-violência a um princípio que governa todo julgamento e ação morais, implicando, assim, na igualdade moral entre "eu" e os "outros" (Gilligan, 1977, p. 504). A mudança na autoimagem, mais uma vez, relaciona-se ao amor-próprio: o conceito de uma "boa pessoa" é expandido de forma a incluir o poder e valor do próprio indivíduo. A responsabilidade, então, passa a se aplicar tanto a si quanto aos "outros".
No final de seu artigo, Gilligan enfatiza como as mudanças de autoimagem decorrentes desste processo sempre giram em torno da conexão entre o self e os outros, e conclui que "para as mulheres, identidade tem a ver tanto com conexão quanto com separação" (Gilligan, 1977, p. 509). Esse tipo de concepção de identidade pessoal, fortemente baseado em vínculos entre as pessoas, diferiria do "sujeito separado" (separate self) encontrado nas éticas da Justiça, em que "a separação em si mesma se torna o modelo e a medida do crescimento" (Gilligan, 1977, p. 509).7
3. Ética do Cuidado e éticas da Justiça: Nona Lyons e a evidência empírica da relevância da identidade pessoal
Nona Lyons, em seu artigo Two Perspectives: On self, Relationships, and Morality (1983), procura fundamentar empiricamente a tese de Gilligan. Citando o artigo abordado acima, a autora afirma:
Gilligan sugeriu que concepções de self e de moralidade podem estar intrinsecamente ligadas. Resumindo, Gilligan levantou a hipótese de que (1) há dois modos distintos de julgamento moral – justiça e cuidado – no pensamento de homens e mulheres. (2) estes estão relacionados ao gênero. (3) modos de julgamento moral podem estar ligados a modos de autodefinição do sujeito. A pesquisa aqui exposta inclui o primeiro teste sistemático e empírico destas hipóteses. (Lyons, 1983, p. 127)8
Para atingir esse objetivo, Lyons realiza uma série de entrevistas9 que giram em torno de duas questões: A) "o que a moral significa para você" e B) "como você se descreveria". Não temos espaço, aqui, para transcrever as entrevistas, apenas os resultados, que apontam para duas conclusões: primeiro, o gênero afeta o tipo de resposta, e, segundo, existe uma conexão visível entre as respostas às duas perguntas.
Em relação à indagação "o que a moral significa para você", Lyons observa que os homens tendem a enxergar a moralidade em termos de "a coisa certa a fazer", em função de escolhas racionais, enquanto as mulheres a enxergariam a partir da sensibilidade e responsabilidade sobre o dano causado a outros (Lyons, 1983, pp. 125-126). A autora conclui que "duas formas de considerar questões morais são distinguidas: uma moralidade de direitos e justiça e uma moralidade de resposta e cuidado" (Lyons, 1983, p. 127). Em relação à pergunta "como você se descreveria", a autora observa que os homens tendem a se descrever como um sujeito "separado e objetivo", enquanto as mulheres o fazem de acordo com um self "conectado e interdependente em sua relação com os outros" (Lyons, 1983, p. 127).
As mulheres, assim, se definiriam, em geral, a partir das conexões com as pessoas à sua volta: em uma das entrevistas, uma adolescente de 14 anos, chamada Beth, responde à pergunta "como você se descreveria a si mesmo" dizendo coisas como "gosto muito das pessoas, como meus avós, tenho muitos amigos na vizinhança" (Lyons, 1983, p. 128). Jack, um adolescente de também 14 anos, se define a partir de suas habilidades naquilo que faz, e fala de suas relações com os outros em termos de reciprocidade, o que, para Lyons, reflete a perspectiva de um self abstrato, objetivo e independente ("tratar os outros como você seria tratado requer distância e objetividade") (Lyons,1983, pp. 128-129; p. 133), enquanto a preocupação feminina em não ferir os outros remeteria a um self concreto e relacional (Lyons, 1983, p. 131). Em outra entrevista, Sarah, advogada de 26 anos, se considera "perceptiva" e "receptiva" em relação aos outros, e lida com o dilema moral que lhe é apresentado buscando uma solução na qual "ninguém é ferido" (Lyons, 1983, p. 133).
No final de seu antigo, Lyons resume os resultados de sua pesquisa em diversos quadros. O que mais nos interessa, obviamente, é aquele que trata da conexão entre ética e identidade – como diz a autora, "neste estudo empírico, sujeitos masculinos e femininos foram entrevistados de forma a verificar seus modos de autodefinição [ self-definition] e de escolha moral, e explorar a conexão entre autodefinição e modos de escolha moral" (Lyons, 1983, p. 137).
Na tabela 3, assim, vemos que 75% das mulheres respondem a perguntas sobre moralidade em termos de "resposta e cuidado", contra 14% dos homens, enquanto 79% dos homens o fazem em termos de "justiça", contra 25% das mulheres. Essas tendências são reforçadas pela tabela 4, onde vemos que nenhuma das mulheres entrevistadas responde a perguntas sobre a moralidade de maneira que não inclua de alguma forma o cuidado, enquanto nenhum dos homens responde sem fazer referência à linguagem dos direitos.
As tabelas seguintes dizem respeito à autodescrição: na tabela 5, vemos, assim, que 63% das mulheres se descrevem de forma "predominantemente conectada", e 12% de forma "separada e objetiva", enquanto nenhum dos homens se descreve de forma relacional, e 79% de forma separada e objetiva.
A última tabela é a que mais nos interessa, pois relaciona os resultados anteriores: vemos, assim, que entre os entrevistados que entendem a moralidade predominantemente em termos de resposta e cuidado, aproximadamente 77% se descrevem de forma relacional, e nenhum de forma separada e objetiva. Por outro lado, entre os que entendem a moralidade em termos de direitos e justiça, cerca de 81% se definem de forma separada e objetiva, e nenhum de forma relacional.
Os resultados parecem confirmar, assim, a tese de Gilligan, defendida no artigo anterior, apontando para uma clara conexão entre identidade pessoal (se a entendermos no sentido de "autoimagem") e compreensão da moralidade. Podemos nos perguntar, agora, que conexão seria essa. Nenhuma das duas autoras responde a isso. Lyons chega a comentar que "estes resultados não nos permitem afirmar que há uma relação causal entre modos de autodefinição e modos de escolha moral", embora possamos dizer que "uma importante relação existe" (Lyons, 1983, p. 141).
4. Conclusão: a importância da Ética do Cuidado para a relação entre ética e identidade pessoal
Como dissemos anteriormente, nosso objetivo neste trabalho é duplo: por um lado, mostrar a relevância da noção de identidade pessoal para a proposta das Éticas do Cuidado, particularmente na sua oposição às éticas da Justiça, como Kant e o Utilitarismo. Por outro lado, analisar as possíveis contribuições dessa proposta para as discussões, de maneira mais geral, da relação entre ética e identidade pessoal.
Podemos considerar que a noção de "identidade pessoal" tem três possíveis significados: em primeiro lugar, podemos entendê-la como resposta à pergunta "o que é um indivíduo". Em segundo lugar, como resposta à pergunta "o que faz com que um indivíduo permaneça o mesmo no decorrer do tempo", e, em terceiro lugar, enquanto autoimagem que um indivíduo concreto tem de si mesmo. Os dois primeiros significados podem ser entendidos, sobretudo, de um ponto de vista filosófico, embora sejam relevantes em diversas outras áreas, como a sociologia e a psicologia. O terceiro significado é, de certa forma, mais complexo do que os anteriores, na medida em que possui uma forte dimensão empírica: a imagem que temos de nós mesmos, de fato, é bem mais fluida e opaca do que um conceito filosófico, além de envolver fenômenos sofisticados, como o autoengano (a maneira pela qual nos enxergamos pode ser – e com frequência é – equivocada em diversos aspectos).
Recentemente, tem havido um interesse cada vez maior na análise da relação entre identidade pessoal e reflexões morais. Em um certo nível, essa relação sempre foi reconhecida: o segundo significado descrito acima, por exemplo – "o que faz com que um determinado indivíduo permaneça o mesmo no decorrer do tempo" – tem claras implicações éticas, sobretudo acerca da responsabilidade moral.11 Podemos considerar, no entanto, que diversos autores contemporâneos tendem a aproximar ainda mais esses conceitos, ponderando, assim, que existe uma relação intrínseca entre ética e identidade pessoal. Se pensarmos na primeira definição vista acima – "o que é um indivíduo" −, então podemos afirmar que toda concepção moral sempre trás consigo, implicitamente, uma determinada concepção de sujeito, e, inversamente – o que é menos óbvio – toda concepção de sujeito tende a favorecer certas visões acerca da moral. Ora, se esta relação intrínseca existe de fato, então toda discussão moral precisa necessariamente envolver discussões sobre concepções de sujeito, e vice-versa. Esse ponto é perfeitamente ilustrado, como vimos, pelos artigos de Gilligan e Lyons.
Podemos citar, entre autores contemporâneos que aproximam as duas noções, nomes como Alasdair MacIntyre, Bernard Williams, Christine Korsgaard e Derek Parfit: MacIntyre, em seu conhecido livro Depois da Virtude, considera que o conceito de "virtude" só se torna inteligível quando inserido dentro de uma concepção de identidade pessoal compreendida como narrativa.12 Christine Korsgaard elabora, a partir de Kant, uma noção de identidade pessoal enquanto "unidade prática" do sujeito, fruto da necessidade de ação, e que seria a fonte das obrigações morais. 13 Bernard Williams critica a maneira pela qual a maximização imparcial da felicidade, no Utilitarismo, compromete a integridade do agente, baseada em seus "projetos" pessoais (Williams, 1981). 14 Já Parfit mostra como o Utilitarismo está estreitamente ligado a uma concepção reducionista de identidade pessoal. 15
Esses exemplos mostram como a análise da relação entre ética e identidade pessoal pode ser relevante. Como dissemos, se considerarmos que essas duas noções estão intrinsecamente ligadas, então não podemos compreender uma sem a outra. Essa ligação pode ser de caráter explanatório – a identidade pessoal contribui para tornar inteligíveis conceitos morais, como ocorre em MacIntyre e Parfit −, mas também justificatório – a noção de sujeito é relevante para sabermos o que devemos fazer, como ocorre em Korsgaard, e, em certa medida, em Bernard Williams. Podemos afirmar que o mesmo se dá no sentido oposto: a ética pode, de fato, contribuir para a compreensão e elaboração da noção de identidade pessoal, se considerarmos que a primeira é constitutiva da segunda − como ocorre, por exemplo, em MacIntyre. Essa relação também pode ser importante para diversos outros temas relativos à ética, como a responsabilidade por nossas ações, à qual já nos referimos, mas também para o problema da motivação moral.
Após esta rápida exposição, podemos nos perguntar em que medida a Ética do Cuidado pode contribuir para esse tipo análise, a partir do que vimos nos artigos de Gilligan e Lyons. Em primeiro lugar, os textos abordados mostram que a relação entre ética e identidade pessoal é particularmente explícita nas ethics of care. Podemos supor que isso se deve à ênfase no gênero, o que obviamente afeta considerações sobre a natureza do self. A análise das duas autoras deixa claro que identidade pessoal e compreensão moral são duas coisas que caminham juntas, por assim dizer, o que reforça a tese de que essas noções estão intrinsecamente ligadas. Como já dissemos, essa forte ligação sugere a importância de se levar em conta concepções de sujeito quando realizamos discussões morais, e esse ponto também é confirmado pelos dois artigos. De fato, as análises das duas autoras parecem sugerir que os dois conceitos são reciprocamente explanatórios: compreendemos melhor a especificidade da proposta da Ética do Cuidado em relação a outras correntes – sobretudo as éticas da Justiça – se levarmos em conta a concepção de self que lhes é inerente. O mesmo ocorre no sentido contrário: a maneira pela qual os indivíduos entrevistados compreendem a moral claramente exerce um papel constitutivo em sua "autoimagem".
A nosso ver, não é tão claro se os textos abordados sustentam que essa relação também é justificatória: faria sentido dizer que um determinado indivíduo deve agir de determinada maneira porque sua autoimagem expressa um self "conectado" e não "separado"? Não nos parece que os artigos de Gilligan e Lyons permitam essa interpretação, nem, diga-se de passagem, a Ética do Cuidado em geral. Podemos considerar que os autores pertencentes a esse movimento tendem a enfatizar as vantagens de sua proposta, e a apontar as limitações do modelo jurídico-legalista das éticas da Justiça (em geral reconhecendo, no entanto, que esse modelo não pode ser completamente abandonado), 16 mas essas "vantagens" – que exercem o papel de justificação – baseiam-se, em geral, na maneira pela qual a ênfase na imparcialidade e na autonomia tende a afastar as pessoas umas das outras, ou em como o modelo legalista é muito abstrato e só se aplica a determinados tipos de situação, e, consequentemente, em como a valorização das conexões entre as pessoas, da emoção e da sensibilidade contextual são importantes para uma melhor compreensão da riqueza e profundidade de nossa experiência moral (e da vida em geral) (Held, 2006, pp. 24, 43, 88 e 95). 17
A nosso ver, existe ainda outra importante contribuição que a Ética do Cuidado pode dar para estas discussões, também evidenciada nos artigos abordados: como dissemos, a terceira definição de self − enquanto autoimagem – é bem mais fluida e opaca do que as outras duas, por ter uma forte dimensão empírica. Neste sentido, a proximidade entre as ethics of care e a área da psicologia permite que esse aspecto possa ser analisado experimentalmente, em sujeitos concretos, através do trabalho de campo de psicólogas como Gilligan e Lyons. Isso reforça a tese de que existe uma relação intrínseca entre ética e concepções de self: primeiro, porque mostra que essa ligação existe em todos os níveis possíveis de identidade pessoal. Segundo, por deixar claro que não se trata apenas de um postulado ou uma ferramenta teórica, mas de algo empiricamente observável.
Concluindo, podemos afirmar que neste trabalho explicitamos uma via de mão dupla, que pode se revelar profícua em futuras investigações: por um lado, a análise das relações entre ética e identidade pessoal permite compreender melhor a especificidade da proposta da Ética do Cuidado, e, por outro lado, as discussões pertencentes às ethics of care também podem contribuir para uma melhor compreensão da conexão, de forma geral, entre a noção de sujeito e a moralidade. Se considerarmos, como dissemos, que a aproximação entre esses dois conceitos é uma forte tendência da ética contemporânea, então a Ética do Cuidado certamente tem um importante papel a desempenhar nesse processo.
Referências
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1 É preciso considerar que essa tese é contestada por diversos autores, inclusive do movimento feminista. Joan Scott, por exemplo − que enfatiza o caráter histórico e político da formação da identidade de gênero −, questiona a polarização que resulta da visão de Gilligan, que flertaria com o essencialismo: "é precisamente esta oposição, em todo o seu tédio e monotonia, que (para voltar ao lado anglo-saxão) é posta em evidência no trabalho de Carol Gilligan. Gilligan explica as trajetórias divergentes de desenvolvimento moral seguidas por meninos e meninas, em termos de diferença de 'experiência' (de realidade vivida). Não é surpreendente que os/as historiadores/as tenham recuperado suas ideias e as tenham utilizado para explicar as 'vozes diferentes' que os trabalhos desses/as historiadores/as lhes haviam possibilitado ouvir. Os problemas com este empréstimo são múltiplos e eles estão logicamente conectados. O primeiro problema é um deslizamento que frequentemente ocorre na atribuição da causalidade: a argumentação começa com uma afirmação do tipo 'a experiência das mulheres leva -as a fazer escolhas morais que dependem de contextos e de relações' para se transformar em 'as mulheres pensam e escolhem este caminho porque elas são mulheres'. Está implícita nesta linha de raciocínio uma ideia a-histórica, senão essencialista, da mulher. Gilligan e outros/as extrapolaram sua descrição, baseada numa pequena amostra de alunas americanas do fim do século XX, a todas as mulheres" (Scott, 1995, pp. 83-84).
2 Esse artigo é, portanto, anterior à publicação do livro In a Different Voice.
3 Segundo Kohlberg, esse desenvolvimento consistiria em 3 níveis e 6 estágios: o nível 1 é chamado de pré-convencional (estágio 1 caracterizado como punição-recompensa, estágio 2 como egoísmo), o nível 2 é convencional (estágio 3 entendido a partir da dimensão interpessoal e normas sociais, estágio 4 consiste na moral legalista), e o nível 3 é pós-convencional (estágio 5 consiste no contrato social, estágio 6 se baseia em princípios universais) (Kohlberg, 1981).
4Cf. Freud, 1925/1976, pp. 319-320: "Não posso fugir à noção (embora hesite em lhe dar expressão) de que, para as mulheres, o nível daquilo que é eticamente normal, é diferente do que ele é nos homens. Seu superego nunca é tão inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens emocionais como exigimos que o seja nos homens. Os traços de caráter que críticos de todas as épocas erigiram contra as mulheres – estão menos aptas a submeter-se às grandes exigências da vida, que são mais amiúde influenciadas em seus julgamentos por sentimentos de afeição ou hostilidade – todos eles seriam amplamente explicados pela modificação na formação de seu superego que acima inferimos". O trecho é citado pela própria Gilligan em seu artigo. A autora também menciona "O juízo moral da criança", de Jean Piaget, onde são analisadas brincadeiras realizadas entre crianças, e é observado que as meninas tendem a se interessar menos pela "elaboração legal" dos jogos: "a observação mais superficial foi suficiente para mostrar que, em linhas gerais, as meninas têm o espírito jurídico muito menos desenvolvido que os meninos" (Piaget, 1994, p. 69).
5 Não é muito difícil reconhecer nessa descrição o tipo de self exposto nas chamadas "éticas da Justiça" (também conhecidas como éticas "deônticas" ou "do dever"), cujos principais representantes seriam Kant e o Utilitarismo. Apesar das diferenças que existem entre estas últimas – há um conhecido debate entre concepções deontológicas, como a de Kant, e consequencialistas, como o Utilitarismo −, ambas se baseiam em um caráter procedimental pelo qual as ações "corretas" podem ser deduzidas de regras, por sua vez derivadas de princípios claros e bem estabelecidos (a Lei Moral em Kant, o princípio utilitarista no Utilitarismo). Ambas concebem os indivíduos de forma abstrata e separada, como vemos na ênfase no conceito de autonomia (considerada por Kant o princípio supremo da moralidade) (2007, pp. 85-86; edição da Academia: 4: 440-1), ou na igualdade e na imparcialidade (Mill, 2005, p. 126). Na visão moral e política contemporânea, podemos encontrar tais elementos nas teorias contratualistas, como a de Rawls: a ideia de "contrato" parece pressupor, de fato, que os indivíduos são primordialmente separados, e então "decidem", de forma autônoma e racional, tornarem-se de alguma forma ligados (Rawls, 2002, pp. 127-131). A Ética do Cuidado, ao contrário, considera que os indivíduos são primordialmente conectados, e somente por abstração podem ser vistos dessa forma separada e objetiva (Held, 2006, pp. 46-49).
6 "Kohberg também identifica uma forte tendência interpessoal no julgamento moral das mulheres, o que as leva a serem consideradas como tipicamente no terceiro estágio de sua sequência de seis estágios de desenvolvimento. Neste estágio, o bem é identificado com 'o que agrada ou ajuda os outros e é aprovado por eles'. (...) Os mesmos traços que foram tradicionalmente definidos como a 'virtude' das mulheres, seu cuidado por e sensibilidade às necessidades dos outros, são os que as marcam como deficientes no desenvolvimento moral. A infusão de sentimento nos seus julgamentos as impediria de desenvolver uma concepção ética mais independente e abstrata, onde a preocupação com os outros deriva mais de princípios de justiça do que de compaixão e cuidado" (Gilligan, 1977, p. 484, tradução nossa). "A concepção de desenvolvimento delineada no início, que considerou tão consistentemente o desenvolvimento das mulheres aberrante ou incompleto, se limitou até agora a uma concepção predominantemente masculina" (Gilligan, 1977, p. 509, tradução nossa).
7 É preciso considerar, obviamente, que mesmo pessoas capazes de se vincularem umas às outras se sabem separadas, e, da mesma, forma, o sujeito "separado" é capaz de se relacionar com as pessoas. A questão é qual desses dois aspectos é mais primordial – e, consequentemente, mais central − na estruturação da identidade pessoal, o que terá, como estamos vendo neste artigo, implicações para o comprometimento destes sujeitos com um determinado tipo de moralidade. Virginia Held comenta, nesse sentido, que "a pessoa que cuida" (the caring person) ainda busca a autonomia, mas "será um tipo diferente de autonomia da daquele self autossuficiente, atomístico que pode ser destilado, sem caridade, da teoria liberal tradicional" (Held, 2006, p. 48, tradução nossa). Segundo a autora, se partirmos da premissa de que a identidade dos agentes se forma a partir dos relacionamentos sociais, ainda assim podemos ver a autonomia como uma série de competências buscadas dentro deste contexto, como a autodescoberta, a autodefinição e a autodireção (Held, 2006, p. 48).
8 Gilligan suggested that conceptions of self and morality might be intricately linked. In sum, Gilligan hypothesized (1) that there are two distinct modes of moral judgment – justice and care – in the thinking of men and women; (2) that these are gender-related; and (3) that modes of moral judgment might be related to modes of self-definition. The research described here includes the first systematic test of these hypotheses.
9 Lyons entrevistou 36 pessoas, homens e mulheres, em diferentes faixas etárias (Lyons, 1983, p. 127).
10 S/C indica indivíduos com um mesmo número de caracterizações separadas/objetivas e conectadas, e none indica indivíduos como nenhuma caracterização relacional. Os resultados parecem confirmar, assim, a tese de Gilligan, defendida no artigo anterior, apontando para uma clara conexão entre identidade pessoal (se a entendermos no sentido de "autoimagem") e compreensão da moralidade. Podemos nos perguntar, agora, que conexão seria essa. Nenhuma das duas autoras responde a isso. Lyons chega a comentar que "estes resultados não nos permitem afirmar que há uma relação causal entre modos de autodefinição e modos de escolha moral", embora possamos dizer que "uma importante relação existe" (Lyons, 1983, p. 141). 4. Conclusão: a importância da Ética do Cuidado para a relação entre ética e identidade pessoal Como dissemos anteriormente, nosso objetivo neste trabalho é duplo: por um lado, mostrar a relevância da noção de identidade pessoal para a proposta das Éticas do Cuidado, particularmente na sua oposição às éticas da Justiça, como Kant e o Utilitarismo. Por outro lado, analisar as possíveis contribuições dessa proposta para as discussões, de maneira mais geral, da relação entre ética e identidade pessoal. Podemos considerar que a noção de "identidade pessoal" tem três possíveis significados: em primeiro lugar, podemos entendê-la como resposta à pergunta "o que é um indivíduo". Em segundo lugar, como resposta à pergunta "o que faz com que um indivíduo permaneça o mesmo no decorrer do tempo", e, em terceiro lugar, enquanto autoimagem que um indivíduo concreto tem de si mesmo. Os dois primeiros significados podem ser entendidos, sobretudo, de um ponto de vista filosófico, embora sejam relevantes em diversas outras áreas, como a sociologia e a psicologia. O terceiro significado é, de certa forma, mais complexo do que os anteriores, na medida em que possui uma forte dimensão empírica: a imagem que temos de nós mesmos, de fato, é bem mais fluida e opaca do que um conceito filosófico, além de envolver fenômenos sofisticados, como o autoengano (a maneira pela qual nos enxergamos pode ser – e com frequência é – equivocada em diversos aspectos). Recentemente, tem havido um interesse cada vez maior na análise da relação entre identidade pessoal e reflexões morais. Em um certo nível, essa relação sempre foi reconhecida: o segundo significado descrito acima, por exemplo – "o que faz com que um determinado indivíduo permaneça o mesmo no decorrer do tempo" – tem claras implicações éticas, sobretudo acerca da responsabilidade moral.
11 Podemos considerar, no entanto, que diversos autores contemporâneos tendem a aproximar ainda mais esses conceitos, ponderando, assim, que existe uma relação intrínseca entre ética e identidade pessoal. Se pensarmos na primeira definição vista acima – "o que é um indivíduo" −, então podemos afirmar que toda concepção moral sempre trás consigo, implicitamente, uma determinada concepção de sujeito, e, inversamente – o que é menos óbvio – toda concepção de sujeito tende a favorecer certas visões acerca da moral. Ora, se esta relação intrínseca existe de fato, então toda discussão moral precisa necessariamente envolver discussões sobre concepções de sujeito, e vice-versa. Esse ponto é perfeitamente ilustrado, como vimos, pelos artigos de Gilligan e Lyons. Podemos citar, entre autores contemporâneos que aproximam as duas noções, nomes como Alasdair MacIntyre, Bernard Williams, Christine Korsgaard e Derek Parfit: MacIntyre, em seu conhecido livro Depois da Virtude, considera que o conceito de "virtude" só se torna inteligível quando inserido dentro de uma concepção de identidade pessoal compreendida como narrativa. 12 Christine Korsgaard elabora, a partir 11 Além da responsabilidade moral, esta concepção também tem implicações para as deliberações prudenciais: no primeiro caso, o problema surge do fato de que só podemos ser moralmente responsabilizados por nossas próprias ações. Para determinar, por exemplo, se alguém de 40 anos é moralmente responsável pelo que fez aos 15, é preciso argumentar em que medida este alguém pode ser considerado a mesma pessoa que era naquela época (Shoemaker, 2009, p. 7). No caso das deliberações prudenciais − também chamadas de self-concern, "preocupações consigo" −, a relação se deve à necessidade de enxergar certos interesses ou experiências como sendo "minhas" –, alguém que poupa dinheiro para a aposentadoria poderia se questionar, por exemplo, se não faria mais sentido aproveitar o dinheiro agora, já que aos 80 anos ela não será mais, no fundo, a mesma pessoa (outra relação possível com as deliberações prudenciais é a questão da extensão da noção de identidade: se eu me considero como parte de um todo maior, como a "sociedade", então os interesses dessa sociedade também são, em um certo sentido, "meus" interesses. A proposta dos utilitaristas, por exemplo, pode ser compreendida dessa forma). Há, ainda, outros exemplos dessa conexão, como a imortalidade (a possibilidade de nosso self ser preservado após a morte biológica depende de reflexões sobre critérios de identidade pessoal, com claras implicações éticas (Shoemaker, 2009, cap. I) e a "compensação": assim como ocorreu com a responsabilidade moral, podemos considerar que eu só posso ser compensado por sacrifícios que fiz no passado na medida em que sou a mesma pessoa que os fez (Shoemaker, 2009, pp. 7-8). Essa questão poderia ser aplicada, por exemplo, na discussão atual sobre as cotas para negros nas universidades, vista, em parte, como uma "compensação" pelos sofrimentos causados pela escravidão. Essa lógica pressupõe, assim, a identidade entre os afro-brasileiros de hoje e os do passado. A relação entre ética e identidade também é central em algumas áreas específicas, como a bioética: temas controversos como aborto, eutanásia e clonagem remetem diretamente a problemas sobre identidade pessoal (cf. Shoemaker, 2009, introdução).
12 Segundo MacIntyre, em um primeiro nível, as virtudes são as qualidades necessárias para a realização dos bens internos das diversas atividades. Esses bens, no entanto, só terão uma dimensão ética se as atividades forem inseridas dentro de uma unidade maior, que é a da vida. Es sa unidade é compreendida como uma narrativa, em que cada parte só possui significado em relação ao que vem antes e depois. A identidade pessoal é então entendida a partir dessa construção, ou seja, o indivíduo é o protagonista da história que é a sua própria vida. Essa sequência de ações é estruturada em função da pergunta "o que é bom para mim", possuindo, assim, a forma de uma busca. As virtudes morais são, justamente, aquelas qualidades requeridas para essa busca. Em um terceiro nível, essa narrativa se insere dentro de outra maior, a da comunidade, em que o conceito unificado de bem é determinado pela tradição (MacIntyre, 2001, pp. 314-315; pp. 367-369).
13 "Um ser humano é um animal cuja natureza consiste em construir uma identidade prática que é normativa para ele. Quando um certo curso de ação é uma ameaça para sua identidade pessoal e a reflexão revela esse fato, a pessoa descobre que precisa rejeitar este curso de ação, e agir de outro modo. Neste caso, ela tem uma obrigação. (...) Obrigação é uma rejeição reflexiva de uma ameaça à sua identidade" (Korsgaard, 1996, p. 150, tradução nossa).
14 Podemos considerar, assim, que Bernard Williams confere uma dimensão normativa à identidade pessoal do agente, na medida em que podemos recorrer a essa noção para decidir como devemos agir. É interessante observar que essa concepção de identidade pessoal, baseada na "integridade", corresponde, de certa forma, à terceira definição que expusemos anteriormente, ligada à "autoimagem" do agente.
15 Parfit defende uma concepção de identidade pessoal que podemos chamar de "reducionista" – herdeira, até certo ponto, de Hume −, pela qual não existe um substra to anterior a nossas experiências e relações, e, portanto, a 16 Held concorda que o modelo legalista não pode ser completamente abandonado, mas considera que o modelo da Ética do Cuidado é anterior e mais amplo do que ele, na medida em que as pessoas são primordialmente conectadas: "direitos, eu tenho argumentado, pressupõem um fundo de conectividade. A
base mais apropriada para esta conectividade ou solidariedade é o cuidado que tem valor. No mínimo, seres humanos podem e devem ter cuidado o suficiente com outros seres humanos para sustentar as relações entre si dentro das quais os direitos podem ser respeitados" (Held, 2006, p. 137, tradução nossa).
17 É interessante observar que, mesmo que não haja uma relação justificatória entre os conceitos de ética e identidade pessoal na Ética do Cuidado, a relação intrínseca que estamos discutindo levaria este caráter justificatório a se aplicar, necessariamente, a ambos: assim, se dizemos que as pessoas "deveriam" seesforçar em promover e sustentar conexões positivas e significativas com os outros, isso significa que também "devemos" desenvolver uma identidade pessoal mais "conectada" do que "separada". Claro que não temos total controle sobre nossa autoimagem, mas há, ainda assim, uma margem de manobra para que este tipo de trabalho seja feito, não só em nível individual mas também cultural e pedagógico. É importante salientar, neste sentido, que o "self conectado", embora seja uma tendência feminina, não precisa se restringir às mulheres. Como diz Lyons, "Esta preocupação pela conexão com os outros não deve ser considerada presente somente em estágios particulares ou como questões relativas somente às mulheres. Embora homens e mulheres tendam a compreender e definir relacionamentos de formas diferentes, a definição de self-em-relação-com-outros é encontrada em ambos os sexos" (Lyons, 1983, pp. 141-142, tradução nossa).