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Winnicott e-prints

versión On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.10 no.1 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

A vida de Marilyn Monroe a partir da teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott1

 

The life of Marilyn Monroe since the theory of personal maturational of Winnicott

 

 

Renata Lisbôa Machado2, I; Kátia Hoffmann de Abreu3, II; Ivanosca Inês Martini4, II

IPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Instituto de Terapias
II
Integradas de Porto Alegre (ITIPOA)

 

 


RESUMO

Este trabalho propõe pensar a vida de Marilyn Monroe a partir da teoria do amadurecimento pessoal proposta por D. W. Winnicott. Com base em uma pesquisa teórica de cunho bibliográfico, percorreu-se um eixo de leituras no grupo de estudos do Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre (ITIPOA). Escolheu-se conhecer a história da atriz, tendo como sustentação teórica e clínica as ideias que o psicanalista inglês teceu acerca do desenvolvimento inicial e do manejo no setting. Direcionamos nosso pensar para o ambiente e as primeiras relações, com o objetivo de alargar a compreensão sobre como se resgata o fio perdido de continuar a ser. Concluímos que, assim como Marilyn Monroe, lidamos na clínica contemporânea com pessoas muito fragilizadas e que necessitam de um olhar e de uma escuta que lhes propiciem descobrir que é possível viver criativamente. Acrescenta-se a isso a relevância de se desenvolver estudos como este, que contribuem para a transmissão da clínica e do pensamento de Winnicott.

Palavras-chave: psicanálise; amadurecimento pessoal; ambiente; Winnicott; Marilyn Monroe.


ABSTRACT

This work reflects the life of Marilyn Monroe, from the theory of personal maturation proposed by D. W. Winnicott. Based on a theoretical research sustained on bibliographical method, ran up an axis readings in ITIPOA study group. We have chosen to know the history of this actress, supported with the theoretical and clinical ideas that the English psychoanalyst wove about the early development and management of the setting. We have directed our thinking for the environment and for the first relationships, in order to broaden understanding on how to redeem the lost wire to remain. We have conclude that, like Marilyn Monroe, we deal in contemporary clinic with vulnerable people in need of a look and a listen that provide them the discovery that it is possible to live creatively. It adds the relevance of developing studies like this that contribute to the transmission of the clinical and the thought of Winnicott.

Keywords: psychoanalysis; personal maturation; the facilitating environment; Winnicott; Marilyn Monroe.


 

 

1. Introdução

Este trabalho propõe pensar a vida de Marilyn Monroe a partir da teoria do amadurecimento pessoal proposta por D. W. Winnicott. Partindo de um eixo de leituras e reflexões do grupo de estudos do Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre (ITIPOA), escolhemos conhecer a história dessa mulher tendo como sustentação teórica e clínica as ideias que Winnicott teceu acerca do desenvolvimento inicial e do manejo no setting. Em 2012, quando se completaram 50 anos da morte da atriz, qualquer detalhe de sua vida foi sendo materializado em livros, documentários, bibliografias, cartas, poemas, entre outros. Cada um desses tantos olhares traz fragmentos de sua história vistos e descritos de diversas maneiras. Dentre elas, apresentaremos a nossa.

Há algum tempo, um grupo formado por psicólogas e psicanalistas interessadas em aprofundar o estudo da obra de Winnicott se reuniu no ITIPOA. Ao longo desse período, estudamos aspectos de sua obra que dão suporte para problematizar nosso fazer clínico à luz da técnica do manejo (Dias, 2011).

Entendemos que a teoria winnicottiana propõe caminhos aos profissionais que se dispõem a acompanhar pacientes que chegam fragilizados psiquicamente, com um funcionamento predominantemente marcado por falhas nos estágios iniciais do desenvolvimento. Incluímos, aqui, as manifestações da cultura como parte dos registros que nos enlaçam e enraízam na história da humanidade e na qual se dá a formação de um indivíduo.

Nesse contexto, foi proposto o estudo da vida e da obra de Marilyn Monroe, figura emblemática da cultura e que vem tendo uma intrigante e expressiva visibilidade no cenário mundial, remetendo-nos aos pacientes que nos procuram e chegam a nós "aos pedaços".

Conforme a experiente analista e expoente pesquisadora winnicottiana Elsa Dias (2008), a clínica de Winnicott está baseada em uma teoria dos distúrbios psíquicos, que, por sua vez, tem como fundamento a teoria do processo de amadurecimento pessoal do indivíduo. Assim, parece interessante situar nosso ponto de partida a fim de tecer uma dada compreensão acerca das bases para o si-mesmo no corpo (Winnicott, 1971d[1970]/1994) e as situações em que essa conquista fica interrompida. Logo, o objetivo de nosso estudo é conhecer a vida e a história de Marilyn Monroe e, com base nisso e no referencial de Winnicott, problematizar em grupo questões que podem se transformar em material clínico por fornecer elementos que alarguem a compreensão e a capacidade de escuta do terapeuta na clínica com pacientes que apresentam falhas no desenvolvimento inicial.

Com base em uma pesquisa teórica de cunho bibliográfico, somada à busca por fontes da filmografia da atriz, percorreu-se um eixo de leituras no grupo de estudos. Escolheu-se conhecer a história de Marilyn Monroe voltando-nos para seu ambiente e suas primeiras relações, com o intuito de ampliar a compreensão sobre como se resgata o fio perdido de continuar a ser. Através dos livros A vida secreta de Marilyn Monroe, de J. Randy Taraborrelli (2010); Marilyn: últimas sessões, de Michel Schneider (2008); e Fragmentos, organizado por Stanley Buchthal e Bernard Comment (2011), examinamos os fatos que marcaram a vida da atriz.

 

2. A história de Marilyn Monroe e a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott

A teoria winnicottiana permitiu que direcionássemos nosso olhar para as primeiras relações, que são fundantes e, portanto, ligadas ao ambiente (Dias, 2011). Por retratar esse início, tal teoria propõe que se tenha um entendimento e uma escuta pautados pela delicadeza, sensibilidade e disponibilidade de mergulhar em águas que se mostram, muitas vezes, turvas e geladas. Portanto, esse entendimento e essa escuta requerem uma predisposição para receber o que é da ordem do primitivo.

Marilyn Monroe nasceu Norma Jeane Mortensen, na manhã de 1º de junho de 1926, na ala de caridade do Los Angeles General Hospital. A impressão de não ter um lugar já a acompanhara desde o ventre materno, fazendo parte de uma história de mulheres solitárias e desamparadas que tinham em comum, além da beleza, a doença mental e uma moralidade duvidosa (Taraborrelli, 2010).

Sua avó materna, Della Monroe, é descrita como uma mulher cheia de vida, exuberante e de espírito livre. Apresentou depressão pós-parto e um comprometimento mental que a família atribuiu às duas gestações, de Gladys e de Marion. Viveu uma vida nômade, marcada por constantes mudanças. Aliás, elas mudaram-se em torno de doze vezes de 1903 a 1909, entre casas e apartamentos alugados na Califórnia. Quando a neta Norma nasceu, a avó materna havia ido para a Índia atrás de um antigo companheiro, deixando a filha Gladys Baker absolutamente só. Otis, o avô materno de Norma, não se mantinha em nenhum emprego, era alcóolatra e tinha lapsos de memória e desmaios. Era temperamental e imprevisível. Morreu de sífilis aos 43 anos. Os filhos foram informados de que o pai havia enlouquecido e que a sífilis havia sido a causa de sua morte.

Embora não tenhamos encontrado nenhum registro que comprove essa hipótese, especulamos que Della Monroe possa ter contraído sífilis de Otis, e a loucura que a acometeu se devesse às manifestações neurológicas da doença. É surpreendente que a filha Gladys não tenha sido contaminada ainda no útero da mãe, já que o Treponema pallidum atravessa a barreira placentária.

Gladys Pearl Monroe, mãe de Marilyn, era uma bela mulher. Casou-se cedo, aos 16 anos, com John Newton Baker, 12 anos mais velho, passando a se chamar Gladys Baker. Teve dois filhos com ele, Robert Kermit e Berniece. Como a mãe Della, Gladys também passou a exibir um comportamento promíscuo, com alterações de humor e crises de choro. Por essa época, trabalhava como editora de filmes em Hollywood. A gestação de Norma Jeane Mortensen foi sua terceira, mas Gladys não sabia ao certo quem era o pai da menina. Na ficha de admissão do hospital, no espaço reservado ao nome do pai, ela escreveu "Edward Morterson", seu ex-marido, que certamente não era o pai do bebê (Taraborrelli, 2010; Schneider, 2008).

Foi assim que Marilyn Monroe veio ao mundo, sem a presença do pai e sem a companhia dos avós ou de qualquer outra pessoa para recebê-la. Tampouco havia um quarto ou roupas macias esperando por ela. A seu lado, apenas uma mãe desorientada e perturbada, que permaneceu nessa condição por muitos dias após dar à luz, configurando um ambiente precário que não pôde se adaptar às necessidades iniciais do bebê.

Taraborrelli escreve a esse respeito, contando o que Della Monroe disse quando sua neta nasceu: "Quando a enfermeira levou a criança para a sala de recuperação, o bebê foi posto sobre o peito da mãe. Ela o segurou de olhos fechados" (Taraborrelli, 2010, p. 37). Assim, ninguém nunca a viu em suas necessidades, e esse parece ter sido seu destino.

Segundo Winnicott (1953a[1952]/2000), as bases da saúde mental são lançadas na primeira infância, pelo manuseio utilizado com naturalidade por uma mãe preocupada em cuidar do filho. Certamente, não foi com naturalidade e devoção que Marilyn Monroe foi recebida por seus anfitriões quando aportou no mundo, visto que o ambiente não era acolhedor nem apto a propiciar que se ocultasse ou solucionasse as distorções próprias do desenvolvimento emocional primitivo. Esse estágio, por sinal, é vitalmente importante, pois se caracteriza como o período em que são encontradas as chaves para se compreender a etiologia da psicose (Winnicott, 1945d/2000).

Com efeito, a maternidade era um fardo para Gladys Baker, uma carga que precisava ser descarregada. Após duas semanas do nascimento, conforme acordado anteriormente por Della Monroe, a menina foi entregue à mãe adotiva, Ida Bollender. Enquanto residiu com os Bollender, Norma Jeane Mortensen foi criada pelos preceitos da Igreja Pentecostal Unificada (Taraborrelli, 2010).

Quando tinha um ano, sua avó, em um surto psicótico, invade a casa de Ida, onde a pequena Norma está, e tenta sufocá-la com um travesseiro. Quando a menina faz três anos, Gladys Baker, a mãe, em pleno surto paranoide, irrompe na casa da mãe adotiva e rapta a filha, colocando-a em uma mochila do exército. Na época, a garotinha era descrita como extraordinariamente bela, com cabelos loiros e encaracolados e olhos azuis claros. Com seis anos, "havia nela uma tristeza profunda e compreensível" (Taraborrelli, 2010). Era tímida, retraída, mas tornava-se mais bela com o passar dos anos.

Como dizia Winnicott (1971d[1970]/1994, p. 205), é no início que a criança precisa ser aceita como tal e beneficia-se de uma aceitação desse tipo. Uma consequência disso seria que quase toda criança foi aceita nos últimos estágios antes do nascimento, isto é, quando se está pronto para o nascimento, mas o amor é demonstrado em termos do cuidado físico que é usualmente satisfatório quando se trata do feto no útero. O psicanalista salientava bem essa questão ao colocar acento no fato de que o começo daquela parte do desenvolvimento do bebê, que ele chamou de personalização – ou que poderia ser descrita como uma habitação da psique no soma –, tem de ser encontrado na capacidade que a mãe ou quem desempenha esse papel tenha de juntar seu envolvimento emocional, que originalmente é físico e fisiológico.

Conforme as palavras de Marilyn, colhidas pelo biógrafo Taraborrelli:

Eu acordava, e às vezes pensava estar morta, como se houvesse morrido dormindo e não mais fosse parte de meu corpo. Não conseguia sentir meu corpo, e pensava que o mundo havia acabado. Tudo parecia muito distante, como se nada mais pudesse me afetar. (Taraborrelli, 2010, p. 71)

Trata-se de uma verbalização que causa impacto, pois expressa o sentimento de padecimento da jovem por não encontrar as referências que trazem sentido à sua vida. Segundo Winnicott:

Em alguns pacientes, o vazio precisa ser experienciado, e este vazio pertence ao passado, ao tempo que precedeu o grau de maturidade que tornaria possível ao vazio ser experienciado. Para entender isto, é necessário pensar não em traumas, mas em nada acontecendo quando algo poderia proveitosamente ter acontecido. (Winnicott, 1974/1994, p. 75)

Aos 11 anos, Norma deixa o orfanato Los Angeles Orphan’s para viver, novamente, com Grace e seu marido alcoólatra e "abusado" Doc. Foram apenas seis meses e, sem terem lhe dito nada, foi levada, outra vez, para o orfanato. Ela teria falado a Grace: "Mas eu queria muito ficar aqui", e Grace teria respondido: "Eu sei, mas é hora de ir embora". De fato, sempre era hora de Norma ir. Meses depois, ficou combinado que ela iria morar com uma tia, irmã de seu pai, com a qual nunca havia tido qualquer relação.

Nesse período, descobre-se que Norma tem uma meia-irmã, Berniece. Esta lhe explica anos mais tarde: "Crescemos nos sentindo abandonados [ela e o irmão] e, embora ouvíssemos alguém dizer que éramos bonitas e talentosas, ainda precisávamos de coragem e força. E isso obtivemos uma com a outra" (Taraborrelli, 2010, p. 77).

Como escreveu Winnicott:

O indivíduo humano que não começa a vida com a experiência de ser onipotente não tem a chance de ser uma peça na engrenagem, mas precisa exacerbar a onipotência, a criatividade e o controle; algo assim como tentar vender ações indesejáveis de uma companhia inexistente. (Winnicott, 1986h[1970]/1989, p. 35)

Norma Jeane Mortensen tinha 12 anos quando, novamente, foi mandada para outra casa. Agora, quem a recebe é a tia paterna, Edith Ane Lower, que se revelou a cuidadora mais adequada. Aos 13 anos, percebe o valor de sua beleza. A aparência fascinante se tornou, para ela, uma entidade, distinta de sexualidade, que funcionava como um imã que atraía as pessoas. Começou, então, a compor uma personagem que levasse as pessoas a gostarem ainda mais dela, a se sentirem atraídas por ela, processo esse que durou até a sua morte.

 

3. Um olhar sobre o desenvolvimento emocional de Marilyn Monroe

Com 20 anos, a garotinha de cabelos ruivos transforma-se em Marilyn Monroe, pouco antes de assinar o contrato com a 20th Century Fox, por sugestão de Ben Lyon, recrutador de talentos e diretor da Fox. A escolha por "Marilyn" veio do nome de uma atriz com quem Norma se achava parecida, e "Monroe" era o sobrenome da família de sua mãe. Conta-se, ainda, que as iniciais de seu novo nome, "MM", teriam sido inspiradas pelas linhas de suas mãos, nas quais aparece claramente um "M" (Taraborrelli, 2010).

Entretanto, a mudança do nome não modificou nem apagou sua trajetória inicial. Marilyn Monroe passaria os dezesseis anos seguintes à procura de um lar, de uma família, de se sentir viva. Em todos os seus relacionamentos – que evoluíram ou não para casamentos –, o que buscava no outro era esse contorno que a fizesse sentir-se minimamente contida para poder existir.

Acentuando a importância da sustentação materna, afirma Winnicott:

No início, porém, é o ato físico de segurar a estrutura física do bebê que vai resultar em circunstâncias satisfatórias ou desfavoráveis em termos psicológicos. Segurar e manipular bem uma criança facilita os processos de maturação, e segurá-la mal significa uma incessante interrupção destes processos, devido às reações do bebê às quebras de adaptação. (Winnicott, 1968f[1967]/1990, p. 54)

Foi justamente nesse ambiente de incessantes interrupções e incontáveis quebras de adaptação que a garota foi se constituindo, sem uma adaptação viva da mãe às suas necessidades. Na esteira dessa reflexão, citamos outro excerto do pensamento winnicottiano, que abre caminho para verticalizarmos nosso estudo, buscando suplantar nossos questionamentos:

O importante, no meu ponto de vista, é que a mãe através de sua identificação com o lactente sabe como o lactente se sente, de modo que é capaz de prover quase exatamente o que o latente necessita em termos de holding e provisão do ambiente em geral. Sem tal identificação acho que ela não seria capaz de prover o que o lactente necessita no começo, que é uma adaptação viva às necessidades do lactente. (Winnicott, 1960c/1983, p. 52)

Tal referência parece explicitar com clareza que as falhas significativas e sucessivas do manejo de Gladys Baker em relação à filha repercutiram na sensação de falta de continência que seguiu com Norma até o final de seus dias. Em uma entrevista, descreve-se a um jornalista: "Uma superestrutura sem fundações" (Schneider, 2008, p. 203).

Schneider relata que Marilyn Monroe "tinha vivido nem sabia mais em quantas casas, quartos de hotel ou apartamentos". "Ela não tinha feito a conta, mas foram 57 casas em 35 anos" (Schneider, 2008, p. 205). Segundo o autor, ela decidiu ter a própria casa quando, depois de uma sessão com seu analista, Ralph Greenson, este lhe dissera, ao levá-la ao portão: "Cuide-se bem. Você quer que alguém a acompanhe até em casa?" Aquilo, segundo o escritor, soara engraçado a ela: "até em casa?", pensara Marilyn. Ela enfim se dava conta de que não tinha uma casa, de que jamais tinha tido. Então, ela respondeu ao analista: "Recentemente, numa recepção, me pediram para assinar o livro de ouro. Ao lado de meu nome, que eu nunca escrevo sem hesitação, na coluna ‘endereço’, escrevi: ‘De parte alguma’" (Schneider, 2008, p. 204).

À medida que estabelecemos as relações entre a vida e a história de Marilyn Monroe, aprofundamos o diálogo, reportando-nos à clínica de Winnicott e associando casos clínicos que trazíamos ao grupo com a vida da atriz. Uma das nossas primeiras conclusões foi a de que a pequena Norma não pôde desfrutar da experiência do holding materno devido à herança trágica de gerações de mulheres que também não puderam desfrutar disso.

O holding tem muita relação com a capacidade da mãe de identificar-se com o seu bebê. Um holding satisfatório é uma porção básica de cuidado, só experimentada nas reações a um holding deficiente. O holding deficiente produz extrema aflição na criança sendo fonte da sensação de despedaçamento, da sensação de estar caindo num poço sem fundo, de um sentimento de que a realidade exterior não pode ser usada para o reconforto interno. (Winnicott, 1965vf[1960]/1993, pp. 26-27)

Para a jovem atriz, casa não era sinônimo de lar, hospitalidade, segurança e aconchego, mas de solidão, perigo e tristeza. Era algo assustador. No caso de Marilyn Monroe, isso não pôde ser vivido de forma exitosa e contínua. Ela conheceu um universo não confiável e, portanto, muito inseguro, e as marcas daí resultantes constituíram seu corpo frágil, desintegrado e sem contornos. A descontinuidade dos cuidados lhe trouxe a sensação de não existência.

Certa feita, comentou: "Algumas vezes me sinto como que se, por dentro, fosse de gelatina". É como se, em sua casa interior, o chão fosse movediço e as paredes, rachadas, sempre na eminência de despencarem. Enfim, tratava-se de um corpo desabrigado e desprotegido que só conseguia se manter pela instantânea continência de lentes de câmeras fotográficas e de cliques instantâneos que faziam, falsamente, a função que deveria ser a do aconchego e contorno dos braços da mãe. Temporariamente, a aliviavam e a continham, em uma tentativa de que não caísse no abismo.

Na história de Marilyn Monroe, as bases para sua saúde mental e para o si-mesmo no corpo não foram construídas em alicerces firmes, com continuidade e intimidade. Ao contrário, ela foi "passando de mãe em mãe", não podendo desfrutar dos cuidados básicos e bem-sucedidos do início, tão necessários aos processos que levam à integração.

Conforme Winnicott:

A base para a saúde mental é instaurada pela mãe desde a concepção e ao longo dos cuidados comuns por ela dispensados ao seu bebê, em razão de sua motivação especial nesse sentido. A doença mental de tipo psicótico surge a partir de adiamentos e distorções, regressões e confusões nos estágios iniciais do crescimento conjunto ambiente-indivíduo. A doença mental emerge sem ser percebida das dificuldades normais inerentes à natureza humana, e que dão o colorido próprio à tarefa de ajudar as crianças a crescer, seja pelos pais, por enfermeiras ou por professores. (Winnicott, 1953a[1952]/2000, p. 315)

Como se vê nos registros apontados pelos biógrafos de Norma Jeane Mortensen, desde muito cedo sua mãe não teve condições de lhe oferecer um ambiente facilitador que permitisse à menina viver e desfrutar dos estágios iniciais de dependência, tão decisivos aos processos de integração e personalização. Em vez disso, a mãe foi contribuindo para que, antes do previsto, Norma experimentasse os adiamentos e as distorções próprias de um desenvolvimento precário e descontínuo, criando um ambiente inseguro e reativo que lhe causava a sensação de levar uma vida falsa.

A paciente do dr. Greenson já tinha vivido uma série de acontecimentos que culminaram em uma sensação de abandono, vazio e enfrentamento de vários perigos, como os fantasmas que assombram aqueles que não têm uma casa interior sólida e enraizada que possa ser abrigo para a solidão e que contenha os medos e perigos oriundos do exterior e do interior.

Em um diálogo com o fotógrafo André de Dienes sobre sua nova casa, Marilyn Monroe lhe disse:

– É. Não é grande coisa; nada, na verdade. Mas um nada com piscina, e esse nada me agrada. Você sabe, no fundo, o que eu gosto nesta cidade é de sua ausência, de seu nada. Um amontoado de cabanas perdidas numa selva de sentimentos confusos, completamente morta. Mas Los Angeles não finge ser uma cidade, não finge ser bonita. Ela é como eu me sinto quando não represento: desligada, sem memória, puro corpo estendido. Ela não acaba de ser. Não acaba de desaparecer. É! Segundo o conselho do doutor, comprei uma casa. É um início: ela representa uma possível segurança. Nela, sinto-me em um lar. No entanto, o que isso quer dizer? É em casa que os fantasmas nos esperam sempre. (Schneider, 2008, p. 205)

O próprio Winnicott não tinha dúvidas sobre o sofrimento desses pacientes:

Poderíamos dizer sobre todos os seres humanos que nos momentos em que uma frustração instintiva provoca um sentimento de desesperança ou futilidade, a fixação da psique no corpo enfraquece, sendo então necessário tolerar um período de não-relação entre a psique e o soma. Esse fenômeno pode ser exacerbado em todos os graus possíveis de doença. A ideia de um fantasma, um espírito desencarnado, deriva desta não vinculação essencial entre psique e soma. O valor das histórias de fantasmas se deve ao fato de elas chamarem a atenção para a precariedade dessa coexistência. (Winnicott, 1988/1990, p. 143)

A filha de Gladys Baker tentava construir algo que a fixasse, imitando, possivelmente, a vida que o analista levava e decorando sua casa como a dele, em uma tentativa mimética de construir algo que fosse minimamente seu. Certamente, não desfrutou do olhar de uma mãe que a visse em suas necessidades e que permitisse que ela se sentisse criadora do mundo. Foi lançada muito cedo em uma vida de figurante, quando, na verdade, precisava ser a protagonista.

 

4. A tendência ao amadurecimento, o ambiente de facilitação e as reações à intrusão

Com uma beleza que também nos impactou, vimo-nos imersas em um universo permeado de imagens, lugares e não-lugares, palavras e silêncios. Aos poucos, fomos descobrindo as prováveis razões que nos convocavam a conhecer e a nos aproximar de um ícone que recebia do mundo o que este via nela e queria ter. Frequentemente, perguntávamo-nos: "o que vemos em Marilyn Monroe?"

Ao longo desse percurso, dialogando sobre sua vida, percebemo-nos construindo alguns pontos que foram se entrelaçando a partir de uma determinada costura que se configura por reunir um tipo de olhar que valoriza o que acontece no interior do ser e vai se evidenciando através da pele, da expressão facial, do tom de voz e assim por diante. No caso de Marilyn Monroe, através principalmente de seu corpo e de sua beleza. Eles chegam a ser vistos com um impacto quase aprisionante, visto que remetem ao absoluto, ao ideal. Ela teve sua vida marcada por situações limites. Para ela, isso era estar viva. Infelizmente, o ambiente não traduziu nem atendeu suas necessidades, deixando-a continuamente exposta às invasões, em um estado de contínua excitação.

Conforme escreveu Winnicott (1954a[1949]/2000), no bebê e na criança está presente uma elaboração imaginativa de todas as funções corporais que, para ele, dependem da existência de um cérebro em funcionamento. A partir da elaboração imaginativa das funções corporais, progressivamente os aspectos psíquicos e somáticos se tornam envolvidos em um processo mútuo de inter-relacionamento.

De acordo com Naffah Neto (2012), a fim de que os movimentos instintivos – os quais, no início da vida, só possuem existência biológica – venham a adquirir existência psíquica, é preciso que passem pela elaboração imaginativa das funções corporais. O autor ressalta que Winnicott compreende que é necessária, primeiramente, a existência mínima de um self (si mesmo) infantil que seja capaz de se apropriar desse "algo a mais" (satisfação) que acompanha a satisfação fisiológica, imprimindo-lhe um sentido erótico, para que a sexualidade então venha a tomar forma.

É também essa função que criará, paulatinamente, a sexualidade infantil, primeiramente dando sentido humano a movimentos puramente fisiológicos e transformando-os em busca de prazer ou de descarga agressiva, posteriormente, ligando esses impulsos a objetos discriminados e fundindo o erótico e o agressivo/destrutivo em sentimentos ambivalentes (de atração/repulsão/amor/ódio) constitutivos de todo desejo humano. (Naffah Neto, 2012, p. 44)

Nesse sentido, podemos pensar no que um bebê necessita em seu início:

Gostaria de dizer que, nestas primeiras e importantíssimas semanas da vida do bebê, o estágio inicial do processo de amadurecimento tem sua primeira oportunidade de se tornarem experiências do bebê. Onde o ambiente de facilitação – que deve ser humano e pessoal – possuir características suficientemente boas, as tendências hereditárias de crescimento que o bebê tem podem, então, alcançar seus primeiros resultados favoráveis. (Winnicott, 1987e[1966]/1990, p. 8)

Tudo o que um bebê precisa para atingir os primeiros resultados favoráveis em sua tendência ao amadurecimento é muito bem explicitado por Elsa Dias (2003), ao abordar a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott:

Uma das teses básicas da teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal é a de que, para o indivíduo chegar a sentir-se vivo e poder apropriar-se de suas potencialidades herdadas ou congênitas, todos os estados do ser precisam ser experienciados; caso contrário, esses estados permanecem não-integrados na pessoalidade. Isto se refere tanto a conformações físicas e tendências da personalidade quanto a estados e fatos da vida: o nascimento, a continuidade de ser, os estados de quietude ou de excitação, os encontros e desencontros, a solidão da pré-dependência, o estado de amorfia do início, as agonias impensáveis etc. Winnicott recusa a ideia de que se possa considerar elementos que pertenceriam ao indivíduo independentemente da sua própria experiência dele. (Dias, 2003, p. 122)

Para Marilyn Monroe, suas experiências possuíam um caráter não-integrado em sua pessoalidade. Um exemplo disso era como lidava com o corpo. Ela tinha o hábito de fazer lavagens intestinais e vomitar. Não conseguia digerir os alimentos nem lidar com suas vivências, só conseguia expulsá-los. Ela permanecia sem um processamento típico da boa digestão provavelmente por não ter podido contar com o auxílio de bons cuidados ambientais – tais como a sustentação e o manuseio – e com a possibilidade de elaborar imaginativamente as funções corpóreas do trato digestivo.

Isso nos faz recordar um trecho de um artigo winnicottiano sobre a alimentação dos bebês. Ele destaca que a alimentação da criança é uma questão que envolve a relação mãe-bebê e se situa em um "ato de pôr em prática a relação de amor entre dois seres humanos" (Winnicott, 1945c[1944]/1977, p. 31).

Para iluminar os pontos escuros do não-saber, Winnicott afirma:

Você sabe, perfeitamente, que o estômago é um pequeno órgão cujo formato se parece com a clássica mamadeira do bebê e está atravessado horizontalmente, da esquerda para a direita, sob as costelas; é um músculo bastante complicado, com uma capacidade maravilhosa para fazer, justamente, o que as mães fazem aos seus bebês, isto é, adaptar-se às novas condições. Fá-lo automaticamente se não for perturbado por excitação, medo ou angústia, tal como as mães são naturalmente boas mães se não estiverem tensas e angustiadas. O estômago é, pois, como uma miniatura interna de boa mãe. (Winnicott, 1949l/1977, p. 39)

Como vimos, a pequena Norma Jeane Mortensen não pôde contar com uma mãe tranquila e previsível. Em meio a surtos e delírios, Gladys Baker vivia tensa e angustiada, não podendo oferecer à menina a capacidade de se adaptar a suas condições. Desse modo, ao nascer, Norma foi jogada ao mundo. Desde sempre, o ambiente lhe foi invasivo. Habituou-se a existir em condições de maus-tratos. Sua constituição foi traumática e, por isso, foi exposta a um constante viver por reação. Isso nos faz pensar que:

Existe um terceiro modo de desenvolvimento pelo qual a integração aparece cedo, e o acento recai sobre uma excessiva reação à intrusão de fatores externos. Isto é a consequência da falha no cuidado da criança [...]. Aqui a integração é adquirida mediante um alto preço, visto que a intrusão passa a ser esperada, tornando-se até mesmo necessária, e é possível encontrar nesta estrutura o fundamento muito precoce para uma disposição paranoide (não-herdada). (Winnicott, 1988/1990, p. 140)

Em 1960, a jovem atriz escreveu em um pedaço de papel: "Do que tenho medo? De não poder representar? Medo do meu medo de representar? Sei que posso representar, mas tenho medo. Sei que não deveria ficar assustada. Mas não ficar assustada seria não ser absolutamente nada" (Schneider, 2008, p. 85). Em Marilyn Monroe, a mente se desenvolveu como uma defesa, visto que, no dizer de Winnicott (1954a[1949]/2000), sua psique não estava enraizada em seu corpo, e este, por sua vez, exibia as feridas e as distorções que se refletiram em sérios problemas que teve ao longo da vida. Como explicita Naffah Neto: "É extremamente importante, mais uma vez, ressaltar que o desenvolvimento normal da elaboração imaginativa das funções corporais depende, nos assim chamados períodos de dependência absoluta e de dependência relativa, inteiramente do suporte recebido da mãe ou figura substituta" (Naffah Neto, 2012, p. 52).

Conforme a teorização de Winnicott:

Certos aspectos da falha materna, principalmente o comportamento errático, levam a uma hiperatividade do funcionamento mental. Aqui, no crescimento excessivo da função mental em reação a uma maternagem errática, percebemos que surge uma oposição entre a mente e o psicossoma, pois em reação a esse ambiente anormal o pensamento do indivíduo assume o poder e passa a cuidar do psicossoma, enquanto na saúde é o ambiente que se encarrega de fazê-lo. Na saúde a mente não usurpa as funções do ambiente. Ela permite que ocorra a compreensão e por vezes até mesmo a utilização de suas falhas relativas. (Winnicott, 1954a[1949]/2000, p. 336)

Durante um longo período, Marilyn fora capaz de usar seu ofício para perpetuar uma existência que foi vivida de uma maneira falsa. A estrela que todos viam já perto do final da vida era um exemplo do que o psicanalista inglês explicitava sobre os quadros de falso si-mesmo.

Em uma das categorizações de Winnicott sobre o falso si-mesmo, vislumbramos uma fértil relação com a história da atriz, que contribui para a reflexão sobre sua vida e sua constituição psicossomática no que tange à compreensão de seu desenvolvimento emocional:

[...] o falso self defende o self verdadeiro; o self verdadeiro, contudo, é percebido como potencial e é permitido a ele ter uma vida secreta. Aqui se tem o mais claro exemplo de doença clínica como uma organização com uma finalidade positiva, a preservação do indivíduo a despeito de condições ambientais anormais. Esta é uma extensão do conceito psicanalítico do valor dos sintomas para a pessoa doente. (Winnicott, 1965m[1960]/1983, p. 131)

Em 1962, Marilyn Monroe foi encontrada morta. O relatório do legista que realizou a autópsia no corpo da atriz atestou: "Suicídio provável".

Segundo Winnicott (1974/1994), em alguns pacientes, a busca da morte responde à necessidade de retornar à ruptura do sentimento de continuidade da linha da vida para enfim experimentá-lo, para tentar recuperar, pelo suicídio, o controle de um aniquilamento que já ocorreu.

O falso self tem como interesse principal a procura de condições que tornem possível ao self verdadeiro emergir. Se essas condições não podem ser encontradas, então novas defesas têm de ser reorganizadas contra a espoliação do self verdadeiro, e se houver dúvida, o resultado clínico pode ser o suicídio. Suicídio neste contexto é a destruição total do self total para evitar o aniquilamento do self verdadeiro. Quando o suicídio é a única defesa que resta contra a traição do self verdadeiro, então se torna tarefa do falso self organizar o suicídio. Isto, naturalmente, envolve sua própria destruição, mas ao mesmo tempo elimina a necessidade de sua existência ser prorrogada, já que sua função é a proteção do self verdadeiro contra insultos. (Winnicott, 1965m[1960]/1983, p. 131)

 

5. Considerações finais

Provavelmente, a morte para Marilyn Monroe representou um alívio. Assim como ela, lidamos na clínica contemporânea com pacientes que vivem de modo falso, com uma vida sem sentido, mas que, entregues à confiabilidade ambiental, buscam reencontrar o ponto em que a esperança se perdeu (Dias, 2011). Como terapeutas, cabe-nos acompanhar a história do paciente, demonstrando-lhe nosso interesse genuíno e disponibilidade emocional para recebê-lo e, principalmente, para se identificar com ele. Nesse sentido, é válido mencionar um excerto de Naffah Neto, a fim de prosseguir escutando nossos pacientes e enfrentando os desafios próprios à clínica:

Mas, além de criar acesso para o invisível, o contexto psicanalítico necessita, também, abrir caminho para o indizível que o discurso verbal comporta. Isso se processa pela forma de escuta, que procura captar os interditos do discurso, aquilo que se diz nos poros expressivos da fala, nos vazios silenciosos que a sustentam e articulam enquanto tal. Pois é esse ato de acessar o invisível/indizível da experiência humana que dá acesso ao grande estrangeiro, a alteridade maior que nos atravessa e constitui. (Naffah Neto, 2014, p. 152)

O propósito de verticalizar o estudo sobre a vida e a obra de Marilyn Monroe por meio do pensamento e da clínica de Winnicott propiciou, antes de tudo, que escutássemos nós mesmas enquanto um grupo de terapeutas dispostas a compartilhar os questionamentos e as inquietações que decantam de nosso fazer clínico. Acolher pacientes que apresentam padecimentos da ordem do psique-soma, situados nesse tempo das falhas iniciais do desenvolvimento, requer dos analistas e terapeutas uma escuta acurada, paciência redobrada e capacidade de vastidão interior (Bachelard, 1957/2008) para receber pessoas que precisam de espaço para se expressar e seguir adiante, retomando o ritmo que faz andar a tendência inata ao amadurecimento.

Para tanto, faz-se necessário um longo tempo, a fim de que todas essas questões destacadas na história da Marilyn Monroe possam surgir e ter lugar e voz no setting. Todavia, isso só será possível se a dinâmica própria ao jogo da relação transferencial-contratransferencial fizer parte de um ambiente de facilitação que, por ser confiável e previsível, pode acolher o gesto espontâneo dos pacientes que buscam tratamento. Apenas assim será viável que essas pessoas conquistem um senso de si-mesmo que se baseie na experiência de viver como uma pessoa aceita (Winnicott, 1971d[1970]/1994).

A experiente analista winnicottiana Edna Vilete lembra que: "O corpo da mãe é, pois, a morada inicial do bebê, onde ele, começando uma existência psicossomática, em condição de confiança, encontra seu primeiro espaço de intimidade. Ali se abriga, vivendo momentos de relaxamento e paz" (Vilete, 2013, p. 267).

Esse parece ser quase um "mantra" para ser evocado, cotidianamente, frente à desafiante tarefa de lidar com pacientes que nos procuram na tentativa de acionar as pontes que tornem possível o restabelecimento do caminho em direção à continuidade de ser na vida.

Continua Edna:

Podemos, depois disso, pensar, em toda a sua extensão, sobre a tarefa do psicanalista. Do depositário das vivências que o paciente sofre, transforma-se no artífice de seus sentimentos quando, ao interpretar, consegue transmitir toda a atmosfera emocional que cerca as suas ideias. Pois, assim como o músico, através de bemóis e sustenidos transmite, sem equívocos, a essência íntima da tristeza e da alegria, o analista por ser não somente observador, mas também participante na relação, através das inflexões da sua voz, pela forma como interpreta, as palavras que emprega, sua atitude, enfim, pode levar ao paciente a veracidade do que diz e a convicção de sua empatia. Como se, nas entrelinhas, de uma forma implícita, sem a sugestão ou asseguramento, o analista estivesse dizendo: "eu entendo o que você sente, também já passei por isso, é difícil, mas é o caminho". (Vilete, 2013, p. 23)

Sabemos que o caminho não foi fácil para Marilyn Monroe. Apesar disso, somos gratas a ela por tudo o que deixou como herança nesse grande caldo cultural em que vivemos. Ela nos ensinou muito. Não sabemos qual teria sido seu destino caso tivesse nascido em tempos posteriores ao seu, quando a técnica do manejo winnicottiano já estivesse ao seu alcance.

No entanto, estamos certas de que o olhar que dedicamos à menina escondida em Marilyn Monroe, desde um ponto de vista ficcional, propiciou que ela fosse aceita e cuidada por nós. Nessa inter-relação engendrada no seio deste estudo, pudemos abrir novas janelas que tornarão mais qualificado o manejo com nossos pacientes. Encontramos em Winnicott uma passagem que sintetiza o que observamos: "De começo, contudo, a normalidade para a criança deve ser a sua própria forma e função somática. Tal como começa, assim tem de ser aceito, e assim tem de ser amado. É uma questão de ser amado sem sanções" (Winnicott, 1971d[1970]/1994, p. 205).

Depois de todo esse percurso, vale a pena dizer que nossas investigações desaguaram nessa escrita a partir de reflexões profundas que ganharam viço e cor pela vitalidade do coletivo, em meio às tramas de uma clínica que vem sendo construída à luz de um entendimento que se sustenta desde os postulados winnicottianos. Nossos encontros permitiram que, com coragem, alegria e fôlego, adentrássemos um universo novo e estrangeiro, com o intuito de enfrentar a extensa e minuciosa jornada de percorrer estradas muitas vezes inóspitas ao lado de pacientes que foram expostos à dor e aos insultos intrusivos antes do deleite de se sentirem aceitos, amados e, então, criadores do mundo. Cabe a nós, pois, a aposta na capacidade de construírem pontes que retomem o gesto espontâneo (Winnicott, 1987b/2005) e, principalmente, a paciência da espera pelos passos que alcançarão a verdadeira esperança, a que trata de se sentir vivo e continuar a ser.

 

Referências

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1 Trabalho apresentado em reunião científica em agosto de 2012 no ITIPOA, na X Jornada Científica "Mudança Psíquica: Construções no Percurso Analítico", da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, e em 2014 no III Colóquio Winnicott, no Rio de Janeiro. Este trabalho se realizou pela experiência de termos compartilhado as indagações oriundas da clínica. Portanto, expressamos nossa gratidão às valiosas contribuições das colegas Aline Silva, Ana Cláudia Moraes, Charmaine Cabral, Eliane Scricco, Elisa Cardoso, Giovanna Miron, Lizelda Cassales e Milene Wolff.
2 Mestre em psicologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), psicoterapeuta de orientação psicanalítica e doutoranda em teoria da literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). E-mails: relisboa7@hotmail.com e renata.lisboa@acad.pucrs.br
3 Psicóloga, especialista em psicoterapia de orientação psicanalítica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e docente e integrante do grupo de estudos winnicottianos no Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre (ITIPOA).
E-mail: katia.ha@uol.com.br
4 Psiquiatra, psicanalista pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), presidente do Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre (ITIPOA) e coordenadora do grupo de estudos Winnicott na Cultura, na mesma instituição.
E-mail: ivanoscamartini@hotmail.com

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