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Vínculo
versión impresa ISSN 1806-2490
Vínculo vol.8 no.1 São Paulo 2011
ARTIGOS
A rima na escola, o verso na história
Rhyme at school, poetry in history
La rima en la escuela, la poesía en la historia
Maíra Soares Ferreira1
RESUMO
Este artigo aborda os estudos de uma pesquisa e intervenção realizada em uma sala de aula com alunos da 7ª série de uma escola pública de São Paulo. Estes jovens, amantes do ritmo e da poesia, são descendentes de famílias afro-brasileiras e indígenas Pankararu, oriundas do sertão de Pernambuco, que se alojaram em São Paulo, a partir da década de 50, período desenvolvimentista, servindo como mão-de-obra da construção civil paulistana. Apesar de conhecida, a história desta comunidade não se revelou integrada à cultura escolar - cuja tendência parecia ser a de negar a herança afro-indígena nordestina do corpo discente. Neste sentido, o objetivo do estudo foi investigar e propiciar, pela via poético-musical dos jovens, formas de interlocução com este passado recente.
Palabras chave: Adolescência; Culturas Juvenis; Criação Poética; Preconceito; Afirmação étnico-social.
ABSTRACT
This article is based in a research and intervention with seventh grade students in a classroom at a public school in Sao Paulo. These rhythm and poetry young lovers descend from Afro-Brazilian and Pankararu indian families who came from the countryside of Pernambuco and settled down in Sao Paulo after the 1950s (developmental phase) to work as civil construction workers. We observed that this history wasn't proven integrated to the school culture - the tendency of which seemed to deny the students are Northeastern Afro-Indian descendent. Therefore, the objective of this study was not only to investigate but also to provide the students with ways to dialogue with their recent past by means of their poetic-musical manners.
Keywords: Adolescence; Youth Cultures; Poetic Creation; Prejudice; Ethno-social affirmation.
RESUMEN
Este artículo aborda el estudio y la investigación de intervenciones realizadas en un aula con alumnos de séptimo grado en una escuela pública de São Paulo. Estos jóvenes amantes del ritmo y la poesía, son descendientes de familias afro-brasileñas y Pankararu indígenas, procedentes del interior de Pernambuco, que se quedó en São Paulo, a partir de los años 50, período de desarrollo, sirviendo como mano de obra São Paulo de obra civil de la construcción. Se observó que la historia no estaba integrados en la cultura escolar - la tendencia parecía ser a negar la herencia de los estudiantes del noreste de África y la India. En este sentido, el objetivo del estudio fue investigar y proporcionar, a través de poético-musical para los jóvenes, las formas de diálogo con el pasado reciente.
Palabras clave: Adolescencia; Culturas Juveniles; Creación Poética; Prejuicio; Afirmación étnico social.
Este artigo aborda os estudos de uma pesquisa e intervenção realizada em uma sala de aula com alunos da 7ª série de uma escola pública de São Paulo. Os jovens alunos, amantes do ritmo e da poesia, são descendentes de famílias afro-brasileiras e indígenas Pankararu, oriundas do sertão de Pernambuco, que se alojaram em São Paulo, a partir da década de 50, período desenvolvimentista, servindo como mão-de-obra da construção civil paulistana. Importante salientar que a escola onde se fez a investigação está situada no bairro Morumbi e atende os estudantes, moradores da favela Real Parque, cujas histórias estão vinculadas a esta experiência de migração do sertão pernambucano para a região sudeste. Assim, a primeira observação foi que, apesar de conhecida, a história desta comunidade não se revelou integrada à cultura escolar, cuja tendência parecia ser a de negar a herança afro-indígena nordestina do corpo discente.
Neste sentido, o objetivo do estudo foi investigar e propiciar, pela via poético-musical dos jovens, formas de interlocução com este passado recente. Para isso, tornou-se importante o conhecimento da história de migração, dos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, presentes na história da comunidade em questão - envolvendo desde o aldeamento forçado do Brejos dos Padres, em Pernambuco (área indígena Pankararu), até a formação da favela Real Parque em São Paulo - que, atualmente, enfrenta uma nova disputa socioespacial, agora com a especulação imobiliária da metrópole paulistana. A partir de uma pesquisa 'etnográfica" rumo ao sertão nordestino, na região do Brejo dos Padres (Pernambuco), de onde veio grande parte dessas famílias, deparamo-nos com as mais ricas produções de poesia popular, que nos forneceu o material para algumas intervenções em sala de aula.
Os estudos sobre a poesia popular, feitos ao longo da viagem que empreendemos ao sertão nordestino, possibilitaram-nos o contato com os hibridismos afro-indígenas sertanejos e, desse modo, observar como estas apropriações, recombinações e reinvenções culturais vêm atravessando as experiências de diáspora e aldeamentos impostos a estas populações ao longo da história brasileira. Encontramos um nordeste cujas 'fronteiras" culturais, religiosas e étnicas pareceram-nos fluidas e invariavelmente em conexão entre si. Observamos, tanto nas festas populares tradicionais do sertão pernambucano- com muita poesia, cordel e repentes - até nas manifestações juvenis do rap na metrópole recifense, fortes traços de hibridações entre culturas nativas e metropolitanas, envolvendo os povos indígenas, europeus, africanos e sertanejos nordestinos.
Consideramos que as hibridações e produções de sentidos que cada comunidade e indivíduo conferem às suas realidades sejam diferentes entre si, embora aconteçam simultaneamente e misturadas umas com as outras. Assim, ponderando sobre as confluências étnico-culturais que ocorreram no Brasil, observamos os hibridismos presentes em um campo poético de transformações e produções de sentidos bastante amplo, que remonta desde o século XVI, quando os sertanejos nordestinos se apropriaram da literatura de cordel portuguesa e das cantorias de improviso franco-árabe-ibéricas, criando as manifestações do folheto de versos nordestinos e dos repentes da cantoria de viola até a tradução do rap afro-americano feita pelos raps afro-brasileiros do século XX.
Além destas histórias de migração e segregação, apropriação e criação da comunidade, o contato inicial com a escola e com os jovens nos permitiu identificar o potencial crítico e afirmativo do rap a partir de algumas falas, desenhos, poesias e músicas de alunos. Embora acompanhado de certa resistência, muitas vezes por não quererem entrar em contato com a menção a realidades dolorosas, os rap's ouvidos e produzidos em sala ganharam importância por denunciarem suas experiências de preconceito e discriminação étnico-social. Em suma: para o trabalho em sala de aula, a importância desses encontros propiciados pela viagem 'etnográfica" ao sertão de Pernambuco possibilitou uma abertura às visões de mundo presentes nas culturas jovens contemporâneas e, assim, a construção de um método in locus.
O trabalho em classe, que contou com a participação de alunos e professores, foi em torno dos hibridismos culturais - com ênfase nos processos de apropriação, recombinação e reinvenção - presentes nas manifestações do 'Cordel, RAP e Repente". Entendemos que este processo de mistura de diferentes estilos de produção poética, convertendo-o em algo próprio, foi um modo de os grupos sociais discriminados pela sociedade brasileira responderem às exigências de subjetivação e de afirmação étnico-social. Ou seja, a leitura híbrida da história, da política e das manifestações culturais, tradicionais e juvenis, passou a ser a linha mestra que orientou a presente pesquisa realizada por meio de intervenções em sala de aula com uma classe da 7a série de uma escola pública de São Paulo. Convertemos a pesquisa histórica, política e cultural em uma espécie de 'bússola" de nosso método de trabalho com os alunos em torno dos hibridismos culturais do cordel, do rap e do repente.
Ao interpretarmos os processos de mistura de diferentes estilos de produção poética como um modo de os grupos sociais discriminados pela sociedade brasileira responderem às exigências de subjetivação e de afirmação étnico-social, definimos que nosso objetivo em classe seria: dilatar as vozes, ouvir as novas sintonias que recuperavam e reeditavam histórias de seus antepassados, atentarmo-nos para as sonoridades inquietas, criativas e ávidas por autonomia. Ou seja, ouvir os timbres não escutados e, até então, não ouvidos por nós, pesquisadores e professores da rede pública, que foram nos surpreendendo a cada encontro.
Um elemento significativo deste trabalho com os jovens teve início com a observação das encenações corporais dos alunos, as falas pelo gesto, constituindo verdadeiros atos de linguagem. 'As encenações rebeldes das culturas juvenis promovem uma integração que se dá no palco de um reconhecimento intersubjetivo em que as aparências estão mais arraigadas às experiências que às consciências" (PAIS, 2006, p. 18). Assim, talvez este tenha sido um dos motes de nossas intervenções em sala de aula: interpretar estas experiências colocando-as em palavras, possibilitando uma compreensão emocional das angústias e injustiças que os jovens denunciavam simbolicamente com seus atos, desenhos, poesias, músicas.
O indivíduo não consegue alcançar existência se não ocupar um lugar diante de um outro, se não pertencer a uma história. É preciso pertencer a um mundo compartilhado por outros homens. Ocupar um lugar no mundo é ocupar um lugar na vida de um outro. Somente a partir desta experiência é que o olhar poderá se voltar para o mundo com curiosidade e desejo. Contudo, o que se observa nas comunidades-favela é que este sentimento de pertencer ao mundo parece abalado em seus fundamentos; eles se referem a si mesmos como fazendo parte de uma categoria inferior de pessoas, como indivíduos que não podem ser vistos na sua humanidade e sim despersonalizados sob o rótulo de favelados.
Aos poucos, mas em passos crescentes, as manifestações polissensoriais destes jovens que, a nosso ver, inicialmente se manifestavam de modo fragmentado, barulhento e caótico, foram ganhando sentido diante de todos nós (tanto dos próprios jovens alunos, quanto dos pesquisadores e professores).
Quanto ao método, uma vez que os pilares de sustentação e preservação da cultura oral se devem à capacidade mnemônica, partimos da constatação de que a regularidade das métricas seria a peça fundamental para a construção dos versos. Deste modo, após apresentarmos aos alunos as regras da métrica, rima e oração de uma dada expressão artística, líamos os primeiros versos e eles respondiam recriando a rima final sem nenhuma consulta prévia. O importante não era adivinhar a palavra, mas dar a sua própria versão da história respeitando o tripé da poesia (rima, métrica e oração).
Os alunos passaram a denunciar por meio de rimas, mesclando os diferentes elementos em suas produções poético-musicais: além de misturar letras de pagode e samba com a batida do rap, musicaram seus cordéis, elaboraram poesias livres, brincaram com associações livres etc. Nesta linha, cf. Souza (2008), entendemos que a tarefa da escola pública, política e psicanaliticamente esclarecida é propiciar, a cada sujeito, a construção do próprio discurso.
Assim, ponderando sobre estes aspectos, seguem duas ou três considerações a respeito da pesquisa:
A primeira é que, frente à trajetória histórico-social destas populações - cujas vidas foram construídas em meio a uma estrutura social excludente e discriminatória - as recriações culturais, assim como as buscas por novos espaços parecem revelar uma dinâmica que vem re-significando a diáspora e o aldeamento afro-indígena brasileiro. Conforme os estudos de Vargas (2007) é possível afirmar que as manifestações de culturas populares tradicionais (como o cordel e o repente) e as populares internacionais (como o rap) aproximam-se no que se refere a uma busca constante de renovação e recriação cultural. Portanto, diante da permanência das condições de exclusão e de miserabilidade da população brasileira, sustentamos a ideia de que não há apenas submissão, mas criação poética como forma de resistência cultural frente ao esquecimento (induzido) e à amnésia de todo esse passado repleto de contradições e renovações das culturas populares. Ou seja, o outro lado da diáspora a ser observado é a produção e a criação expressas por meio dos hibridismos culturais entendidos como: fusão, transformação, tradução, apropriação, re-combinação, atualização, renovação de sentidos;
A segunda é que o cordel, os repentes e o hip hop que chegaram ao Brasil e, rapidamente, ganharam corpo como símbolo de combate à discriminação e ao preconceito étnico-social, deram continuidade a uma história de lutas por formas dignas de pertencimento das populações pobres deste país. Além disso, estas manifestações parecem constituir um modo de inserção social e cultural que põe em movimento alguns preconceitos étnico-sociais ainda não superados pela sociedade brasileira. Neste direção, entendemos que o rap não se resume a um fenômeno urbano dos jovens pobres e negros das grandes cidades mundiais, uma vez que se trata, tanto de um gênero de música pós-moderna- resultante de um processo de misturas sonoras de outros estilos musicais- quanto de uma estética comunitária, que dá continuidade às elaborações e experiências de diásporas e aldeamentos. Por culturas em diáspora estamos entendendo o enfrentamento e a resistência no sentido de extravasar as mazelas da dominação a que as minorias étnico-sociais eram, e ainda são submetidas, bem como uma forma de posicionamento político e de inserção social presentes desde as manifestações em cativeiros. 'Assim como em muitas formas culturais africanas e da diáspora africana, a prolífica autonomeação do hip hop é uma forma de reinvenção e autodefinição" (ROSE, 1997, p.52).
Assim, entendemos que o trabalho, desenvolvido com os jovens, permitiu a construção de um espaço lúdico e criativo de re-significação de suas histórias e experiências com o preconceito e a humilhação. Em outras palavras, por meio da elaboração de poesias segundo as métricas do cordel e nos ritmos do rap, trabalhou-se a recriação poética de si mesmos. Entendemos que a visibilidade e o espaço de expressão alcançado pelos jovens rappers, e pelos jovens alunos da escola, propiciaram um lugar de pertença (ou experiência coletiva) necessário à existência e formação subjetiva de sujeitos psíquicos e sócio-políticos.
Entende-se que uma outra discussão a ser enfrentada envolve, não apenas a importância do debate sobre o preconceito no âmbito escolar, mas principalmente de como fazê-lo. Afinal, é preciso reconhecer que enquanto o enfrentamento da discriminação solicita políticas públicas que garantam "ações afirmativas" (medidas compensatórias e de reparação), o preconceito- por se enraizar no campo subjetivo- requer esforços conjuntos da educação e da psicanálise.
Para finalizar, essas manifestações culturais juvenis- a despeito do fato de constituírem um campo, na maior parte das vezes, marginalizado da cultura escolar revelam a escassez de espaços escolares e não escolares em que os jovens possam se apropriar, expressar, desenvolver, cultivar diferentes formas de ver seu presente, depreender outros significados de seu passado e imaginar futuros possíveis. Importante observar que foi a partir das culturas juvenis encontradas na escola- em especial o rap e o hip hop- que nos deparamos com a necessidade e importância do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena e não o contrário. No entanto, como já mencionado, ficou evidente que a cultura popular tradicional, assim como a experiência social- seja dos indígenas, dos afro-brasileiros ou dos nordestinos- tem sido marginalizada e excluída da ordem hegemônica da cultura escolar a ponto de seus jovens alunos negarem-se, ao menos neste ambiente escolar, a entrar em contato com essa realidade. Daí a importância do estudo da história e cultura da comunidade atendida pela escola, constituindo-se como ferramenta fundamental para a melhoria do ensino público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PAIS, José Machado. Prefácio. Em: ALMEIDA, M.I. e EUGÊNIO, F. (orgs) Culturas Jovens - novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. [ Links ]
ROSE, Tricia. Um estilo que não segura: política, estilo e a cidade pós-industrial no hip hop. Em: HERSCHMANN, M. Abalando os anos 90: funk e hip hop: globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. [ Links ]
SOUZA, Maria Cecília C. C. A dignidade da palavra e a escola. Em: Lauand, Jean. (Org.). Filosofia e Educação - Estudos 6. São Paulo: Factash - CEMOrOc, 2008, v. , p. 87-98. [ Links ]
VARGAS, Herom. Hibridismos Musicais de Chico Science & Nação Zumbi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. [ Links ]
Endereço para correspondência
e-mail: mairasoaresferreira@gmail.com
Recebido: 07/11/10
Aceito: 11/06/11
1 Psicanalista e Pesquisadora. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Autora de artigos, capítulos e ensaios. Organizadora do livro 'Capital e Trabalho Vivo" (Ed. Expressão Popular, 2004).