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Ciências & Cognição
versión On-line ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.8 Rio de Janeiro ago. 2006
Revisão
A ciência como forma de conhecimento
Science as a kind of knowledge
Carlos Alberto Ávila Araújo
Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Resumo
Analisa-se as particularidades da ciência enquanto forma de conhecimento, a partir da distinção em relação a outras formas como o senso comum, a religião, a arte, a filosofia e a ideologia. A seguir, define-se o conhecimento científico e são vistos os autores que promovem sua fundamentação: Descartes, Bacon e Galileu. Discute-se ainda as particularidades da ciência no contexto contemporâneo da pós-modernidade, com destaque para os estudos que têm a ciência por objeto de problematização. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 08: 127-142.
Palavras-chave: ciência; formas de conhecimento; pós-modernidade.
Abstract
In this study, the particularitities of science while a knowledge form will be analyzed from the distinction in relation to other forms as common sense, religion, art, philosophy and ideology. Next, the scientific knowledge will be defined and will be seen the authors who promote its foundations: Descartes, Bacon and Galileu. Finnaly, the particularitities of science in the context of post-modernity will be studied, with special attemption for the studies that have science as research object. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 08: 127-142.
Keywords: science; kinds of knowledge; post-modernity.
A ciência e o conhecimento científico são definidos de maneiras diferentes pelos diversos autores que se lançam à tarefa de refletir sobre eles. Algumas definições são bastante semelhantes, outras levantam algumas diferenças. Contudo, a maior parte dos que buscam definir a ciência concorda que "ao se falar em conhecimento científico, o primeiro passo consiste em diferenciá-lo de outros tipos de conhecimento existentes" (Lakatos e Marconi, 1986: 17).
Antes de se apresentar cada uma das formas de conhecimento, convém explicitar o que se entende por conhecimento e por processo de conhecer:
"Conhecer é atividade especificamente humana. Ultrapassa o mero 'dar-se conta de', e significa a apreensão, a interpretação. Conhecer supõe a presença de sujeitos; um objeto que suscita sua atenção compreensiva; o uso de instrumentos de apreensão; um trabalho de debruçar-se sobre. Como fruto desse trabalho, ao conhecer, cria-se uma representação do conhecido - que já não é mais o objeto, mas uma construção do sujeito. O conhecimento produz, assim, modelos de apreensão - que por sua vez vão instruir conhecimentos futuros." (França, 1994: 140)
A autora destaca, assim, os principais elementos envolvidos no processo de conhecer: o sujeito que conhece, a "coisa" conhecida (que, uma vez conhecida, torna-se "objeto", isto é, a "coisa", elemento da realidade, da perspectiva de quem a conhece, para quem se torna "objeto"), o movimento do sujeito em direção ao objeto (que é o próprio processo de conhecer) e os instrumentos utilizados neste processo. Um último elemento é apresentado pela autora, o fato de que todo processo de conhecimento se dá no cruzamento de duas dinâmicas opostas, duas atitudes básicas:
"(...) a abertura para o mundo, a cristalização (ou enquadramento) do mundo. Conhecer significa voltar-se para a realidade, e 'deixar falar' o nosso objeto; mas conhecer significa também apreender o mundo através de esquemas já conhecidos, identificar no novo a permanência de algo já existente ou reconhecível. O predomínio de uma ou outra dessas tendências tem efeitos negativos, e é através de seu equilíbrio que se pode alcançar o conhecimento ao mesmo tempo atento ao novo e enriquecido pelas experiências cognitivas anteriores." (França, 2001: 43)
É a partir destes aspectos (os elementos que compõem o processo de conhecer e as duas dinâmicas envolvidas nesse processo) que podem ser distinguidos diferentes tipos ou formas de conhecimento. A primeira forma de conhecimento normalmente identificada pelos autores que se dedicam à conceituação de ciência é o "senso comum". Trata-se de uma forma de conhecimento adquirido no cotidiano, empírico por excelência, normalmente adquirido por meio da experiência.
É um conhecimento produzido e aprendido por intuição, acidente ou uma observação causal, mas pode ser também resultado de um esforço deliberado para a solução de um problema. É um conhecimento limitado pois "não é sistemático, nem eficiente e não permite identificar conhecimentos complexos ou relações abstratas" (Gressler, 2003: 27).
Para Lakatos e Marconi (1986: 18), o senso comum, também denominado conhecimento vulgar ou popular, é um modo corrente e espontâneo de conhecer que "não se distingue do conhecimento científico nem pela veracidade nem pela natureza do objeto conhecido: o que os diferencia é a forma, o modo ou o método e os instrumentos do 'conhecer'".
As autoras destacam as seguintes características do senso comum: ele é superficial, sensitivo, subjetivo, assistemático e acrítico (Ibidem: 19). E, mais adiante, levantam outro conjunto de características dessa forma de conhecimento: valorativo, reflexivo, assistemático, verificável, falível e inexato.
A caracterização do senso comum como uma forma de conhecimento acrítica, que não reflete sobre si mesmo, e assistemática, pois não tem a preocupação de uma sistematização e organização de idéias num conjunto coerente, consistindo antes uma série de conhecimentos dispersos e desconexos, também é destacada por Demo, para quem o senso comum:
"não possui sofisticação. Não problematiza a relação sujeito/objeto. Acredita no que vê. Não distingue entre fenômeno e essência, entre o que aparece na superfície e o que existe por baixo. Ao mesmo tempo, assume informações de terceiros sem as criticar." (Demo, 1985: 30)
Ainda sobre o senso comum, deve-se destacar seu caráter imediatista, colado às necessidades imediatas, a "dose comum de conhecimentos, da qual dispomos para nossas atividades rotineiras" (Demo, 1985: 31) e o fato de ele ser "transmitido de geração para geração por meio da educação informal e baseado em imitação e experiência pessoal" (Lakatos e Marconi, 1986: 17).
Embora sem métodos críticos e sem sistematização, mas sendo colado às necessidades imediatas e fruto da intuição e da experiência, o conhecimento derivado do senso comum existe numa constante tensão entre os pré-conceitos, os modelos consagrados que se transmitem ao longo das gerações sem o devido questionamento de sua validade ou de suas reais relações de causa e efeito, e o dinamismo e a espontaneidade que formulam a todo momento novas teorias e novos modelos explicativos. Enfim, apresenta as duas dinâmicas de conhecimento: a abertura e a cristalização.
Uma outra forma de conhecimento destacada por diversos autores é o pensamento religioso, que inclusive acompanha a humanidade desde os seus primórdios:
"Um dos processos mais antigos e, ao longo dos séculos, mais comumente adotado pelo homem, na busca de conhecimento e verdade, é o do apelo à autoridade ou à tradição e aos costumes. A autoridade estava nas mãos de chefes de tribo, dignatários religiosos, de políticos ou sábios; a verdade seria o que afirmavam os que detinham o poder." (Gressler, 2003: 26).
O conhecimento religioso ou teológico se caracteriza por ser valorativo, inspiracional, sistemático, não verificável, infalível e exato (Lakatos e Marconi, 1986: 21). O princípio da autoridade é fundamental para seu funcionamento, pois ele se apóia em doutrinas com proposições sagradas, reveladas pelo sobrenatural, que consistem em verdades indiscutíveis já que, na experiência religiosa, "está sempre implícita uma atitude de fé perante um conhecimento revelado" (Ibidem: 21).
O conhecimento religioso pressupõe um sujeito que a tudo conhece e tudo sabe e, portanto, o desafio do conhecimento colocado para os sujeitos não é o de conhecer e produzir verdades sobre o mundo, mas sim compreender uma verdade que já está pronta, revelada, concedida. O homem é menos sujeito do conhecimento, na medida em que não pratica experimentações ou busca novas formulações, mas apenas busca compreender cada vez mais um corpo de conhecimentos que se lhe apresenta já organizado, sistematizado, com regras, hierarquias e leis.
Ao mesmo tempo, trata-se de um tipo de conhecimento não falseável, isto é, que não permite a verificação porque vem da transcendência. E, exatamente por essa característica, representa uma forma de conhecimento que evolui muito lentamente, tende a ser estacionário.
Uma boa demonstração dessa concepção é a frase de Santo Agostinho que diz que "aquilo que a verdade descobrir não pode contrariar aos livros sagrados, quer do Antigo quer do Novo Testamento" (Aranha e Martins, 1993: 101). Assim, o conhecimento é entendido, por Santo Agostinho, como ato da iluminação divina (Andery et al., 2004: 145). Ou seja, na experiência religiosa, o sujeito se relaciona não com "coisas" da realidade que ele vai tentar conhecer, mas com "objetos" que surgem a ele já interpretados e explicados pela doutrina religiosa.
Uma outra forma de conhecimento levantada por alguns autores (França, 1994: 141; Santaella, 2001: 103) é a experiência artística. Diferentemente do senso comum e do conhecimento religioso, a arte consiste numa forma de conhecimento subjetiva e não objetiva, isto é, não se propõe a ser "a verdade", não propõe explicações universais e generalizáveis. Antes, é a forma de conhecimento mais ciente de que constrói representações da realidade, afirmações inexatas, propositalmente imprecisas e indiretas. Ela possui métodos e técnicas, mas é, por definição (embora tal característica seja ideal e não ocorra necessariamente na maioria das situações) espontânea, dinâmica e aberta. A arte não apresenta discursos fechados e definitivos sobre a realidade, mas, antes, formula enunciados abertos às diferentes interpretações, convoca os sujeitos para, com o uso da imaginação, produzirem diferentes representações daquilo que lhes é apresentado. A arte, assim, está muito mais voltada para a primeira dinâmica do processo de conhecer, para o "descobrimento" do mundo.
Barilli (1994: 49-50) argumenta que a experiência estética proporcionada pela arte pode se dar também em outros campos. O autor dá, como exemplo, o ato de comer, que em princípio é um ato da ordem biológico-fisiológica, pertencente à esfera da natureza e não da cultura. Entretanto, esse ato pode converte-se em experiência estética desde que se faça intervir as três características da experiência estética: a novidade, a totalização e a ritmicidade. Assim, o ato de comer não como aquela refeição normal e vulgar de todo dia, marcado pela pressa e pela economia, mas como uma prática em que os pratos surpreendem, em que há um empenho em recolher daquela experiência um grande número de elementos, pode se transformar numa experiência estética.
Assim, no processo de conhecimento instaurado pela arte as manifestações artísticas são apresentadas aos sujeitos enquanto "coisas"; na relação com os objetos e produtos artísticos cada sujeito vai elaborar sua interpretação, construindo então "objetos".
Outros autores costumam destacar ainda uma outra forma de conhecimento, que é o conhecimento filosófico. Lakatos e Marconi o apresentam como um dos quatro tipos de conhecimento, caracterizado por ser valorativo, racional, sistemático, não verificável, infalível e exato. Contudo, é mais comum encontrar a filosofia não exatamente como uma forma de conhecimento da realidade, como as outras, mas como uma forma de conhecimento que avalia as demais formas de conhecimento, que estuda a natureza e os limites das diferentes manifestações do conhecimento humano: "A filosofia trata das idéias - idéias sobre o mundo, sobre as pessoas, idéias sobre o viver (...) A filosofia se preocupa de modo geral com o modo como sabemos as coisas e com o que podemos saber" (Raeper e Smith, 2001: 13).
Alguns autores ainda identificam, como uma outra forma de conhecimento distinta das demais, a ideologia. É o caso de Demo (1985: 31), que distingue a ideologia como forma de conhecimento composta de enunciados que justificam relações de poder. Essa é uma concepção de ideologia oriunda do pensamento marxista, que define a ideologia como "a transposição involuntária para o plano das idéias de relações sociais muito determinadas" (Chauí, 1981a: 10). Essa definição de ideologia não destaca tanto as características do conhecimento ideológico (que pode ser mais ou menos sistematizado, sofisticado, coerente) mas sim seu "efeito" sobre a realidade e a sociedade, ou seja, a forma como se dá a inserção desse conhecimento nas relações sociais:
"Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos 'ensinam' a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica de identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante." (Chauí, 1981b: 3)
Concebida dessa forma, mostra-se mais coerente pensar na ideologia não como uma forma de conhecimento distinta das demais, mas como uma dimensão do conhecimento que pode estar presente em todas as formas de conhecimento. Tanto o senso comum quanto a religião ou a arte podem funcionar como discursos ideológicos em determinados contextos. Assim também a ciência pode se revestir de uma dimensão ideológica, como aliás salientam vários autores. Alves (1987: 11) alerta para o fato da ciência ter virado um mito e, como tal, induzir o comportamento e inibir o pensamento. Gressler (2003: 32) também identifica a possibilidade da ciência se tornar um "produto ideológico". E ainda Lacey (1998: 14) critica a idéia de neutralidade e imparcialidade do conhecimento científico, constatando que a ciência não é "livre de valores" e que ela assume uma postura ideológica quando busca se legitimar e negar a legitimidade de conhecimentos alternativos, pelo modo como transforma a natureza e a sociedade, e quando ocorre desigualdades e dominação pelo modo como o conhecimento é gerado e estruturado.
A construção da ciência na era moderna
Torna-se mais fácil compreender a ciência após a delimitação das outras formas de conhecimento. Afinal, o conhecimento científico nasce da proposta de um conhecimento diferente dos demais, porque busca compensar as limitações do conhecimento religioso, artístico e do senso comum. A busca de um conhecimento mais confiável da realidade está presente desde a pré-história:
"Mas, o que é ciência? Quando o homem do paleolítico encontrou um mamute, percebeu imediatamente que não podia enfrentá-lo. Fugiu correndo e, na incoerência aterrorizada da corrida, caiu e feriu o joelho num sílex. Compreendeu que o sílex era mais duro que o joelho. Ora, o homem é o único animal que reuniu essas diversas experiências para formular uma hipótese de trabalho (...) [após construir uma arma para enfrentar o mamute, o homem] concebera uma hipótese de trabalho e verificara experimentalmente o seu valor. Era sem dúvida uma atividade científica." (Laborit, 1988: 23).
Contudo, a maior parte dos autores que definem ciência a identificam com um momento específico da história da humanidade:
"Um novo tipo de abordagem do problema do conhecimento desenvolveu-se a partir do século XV (...) Já o método de investigação difundido por Galileu é mais do que simples indução ou dedução. Compreende uma série de procedimentos para testar criticamente e selecionar as melhores hipóteses e teorias para explicar a realidade." (Gressler, 2003: 27).
A necessidade do homem de uma compreensão mais aprofundada do mundo, bem como a necessidade de precisão para a troca de informações, acaba levando à elaboração de sistemas mais estruturados de organização do conhecimento. Gérard Fourez destaca que, no início, os homens se comunicavam a partir de uma linguagem que utilizava um código restrito, em que os objetos do mundo são descritos sem uma preocupação com o alcance das descrições - não havendo, pois, uma reflexão elaborada. É a linguagem do dia-a-dia, "útil na prática e que não leva adiante todas as distinções que se poderia fazer para aprofundar o meu pensamento" (Fourez, 1995: 18). Mas, com o tempo, passaram a desenvolver um código "elaborado", com o objetivo de tornar as noções mais precisas e sistematizar os campos de conhecimento. Aqui se tem a origem dos "conceitos", noção fundamental para a formação dos campos disciplinares.
De acordo com outro autor, "a ciência tem as suas origens nas necessidades de conhecer e compreender (ou explicar), isto é, nas necessidades cognitivas" (Maslow, 1979: 206). De um conhecimento difuso, espalhado, assistemático e desorganizado, passa-se a um trabalho de arranjo segundo certas relações, de disposição metódica. Esse processo é fundamental para a composição de campos específicos do conhecimento.
Michel Serres (1989), no tratado que organiza sobre a história da ciência, apresenta as principais eras científicas ou do conhecimento, isto é, eras marcadas por uma grande sistematização dos conhecimentos: a Matemática no Egito Antigo e Mesopotâmia, a Grécia Clássica, a Intermediação Árabe, a Teologia da Idade Média e a Ciência Moderna (que, em sentido estrito, é a única forma de conhecimento que realmente pode ser classificada como "científica").
Embora se possa dizer que "não existe um 'lugar de nascimento' daquela realidade histórica complicada que hoje chamamos de ciência moderna" (Rossi, 2001: 09), uma vez que a nova forma de conhecimento é fruto do trabalho de autores de diversas nacionalidades e contextos, existe uma força de agregação do projeto científico que é sua orientação marcada pelo racionalismo de Descartes e pelo empirismo de Bacon e Galilei (Lara, 1986).
O projeto racional proporciona um acúmulo de conhecimentos, teorias e métodos, que vão exigindo separações, tratamentos diferenciados, posturas específicas: "Não se 'observa' do mesmo modo um neutrino, um micróbio, uma cratera sobre a Lua, uma nota de música, um gosto de açúcar ou um pôr-do-sol" (Fourez, 1995: 41). Sob a justificativa de que objetos diferentes reclamam conceitos de naturezas diferentes, produziram-se cisões e compartimentalizações no conhecimento científico. Tratam-se das disciplinas científicas. A maior dessas cisões é a que separa as ciências em inorgânicas (que estudam o mundo físico), orgânicas (que estudam o mundo biológico, isto é, tudo aquilo que tem vida) e superorgânicas (que estudam o mundo social). Depois, com a distinção entre objeto material (o fenômeno propriamente dito, o que está no mundo, o "ens reale") e objeto formal (o objeto construído, recortado por uma ciência), abre-se caminho para a construção de várias ciências, já que uma definição científica "é a releitura de um certo número de elementos do mundo por meio de uma teoria" (Fourez, 1995: 46).
Contudo, uma análise do processo de fortalecimento das disciplinas que queira ir além da visão da ciência "como um processo absoluto e de modo algum histórico" (Fourez, 1995: 59) vai incorporar toda a dimensão política, sociológica e histórica que levou à consolidação do conhecimento científico como forma de conhecimento. O ponto de partida para essa visão é a análise de Rossi, que aponta para o fato de que as universidades não estiveram no centro da pesquisa científica:
"A ciência moderna nasceu fora das universidades, muitas vezes em polêmica com elas e, no decorrer do século XVII e mais ainda nos dois séculos sucessivos, transformou-se em uma atividade social organizada capaz de criar as suas próprias instituições." (Rossi, 2001: 10)
A criação das academias e posteriormente dos institutos de pesquisa (p. 337-386) representa não apenas o movimento de "renúncia ao trabalho solitário" (p. 371) como, principalmente, o fortalecimento do saber científico, com a reunião daqueles que partilhavam interesses, conceitos e métodos, e sua distinção em relação a outros.
Essa análise é confirmada pela historiografia de Deus (1979, p.12), que analisa a importância da ciência para o desenvolvimento do capitalismo, desde a astronomia de Copérnico, que "mina o aparelho espiritual feudal controlado pela Igreja", passando pelas orientações marítimas para os comerciantes à procura de novos mercados, chegando à industrialização, quando a ciência torna-se força produtiva, e passa a ser apropriada pelo Estado. Esse processo acontece com o concurso fundamental do agrupamento dos cientistas engajados no processo de construção de uma nova forma de apreender o mundo:
"Os primeiros cientistas eram indivíduos mais ou menos isolados, profissionais das universidades ou simples amadores (...). Graças às boas ligações e à maleabilidade política, conseguem pouco a pouco agrupar-se em sociedades científicas e ir ocupando os lugares de controle das velhas universidades medievais. (...) A consolidação da ciência, particularmente marcada do século XVII, significou antes de mais nada a consolidação das instituições científicas, a criação de comunidades científicas cada vez mais estáveis, auto-reprodutivas, auto-suficientes." (Deus, 1979: 15)
De acordo com Chalmers (1994), a organização de cientistas em comunidades científicas vai ser discutida e analisada por diversos autores, como Imre Lakatos, Karl Popper e Paul Feyerabend, nas décadas de 1960 e 1970, no âmbito da filosofia da ciência, a partir de discussões que vêem o conhecimento científico como questão política e destacam seu papel ideológico. Deus (1979: 17) destaca também a contribuição de autores da sociologia da ciência, tais como Robert Mertoon (1979) com sua análise dos imperativos institucionais da ciência (entre os quais se destaca o "cepticismo organizado") e de Thomas Kuhn (1975), que analisa as comunidades científicas como o suporte material e real do saber institucionalizado.
A fundamentação da ciência
Ao apontar o surgimento do método científico no século XV, Gressler não descarta que, desde a idade antiga, já houvesse habilidades e preocupações com uma linguagem técnica e uma argumentação lógica fundamentada na razão - como bem demonstra, por exemplo, a geometria desenvolvida pelos gregos. Contudo, a autora particulariza o projeto científico como uma forma específica de conhecer a realidade desenvolvida com a contribuição de uma série de personagens, destacando-se sobretudo três:
"A necessidade de se ter fundamentos sobre o processo de investigação e sobre a certeza dos resultados despertou o interesse de pensadores, já no início do século XVI, em três povos distintos do Ocidente. Na França, René Descartes pautou sua defesa no método dedutivo; na Inglaterra, o grande teorizador da experimentação, Francis Bacon, deu uma configuração doutrinária à indução experimental, procurando ensinar alguns métodos rudimentares de observação e apontamentos e na Itália, Galileu Galilei, preocupado em instituir um pensamento baseado na experimentação, resolveu pôr à prova alguns ensinamentos de Aristóteles." (Gressler, 2003: 28).
A fundamentação do projeto de construção do conhecimento científico se deu então a partir do trabalho destes três pensadores. Descartes (1596-1650), em obras como "O discurso do método" e "Meditações", propôs como ponto de partida de todo conhecimento a busca da verdade primeira que não pudesse ser posta em dúvida. Por isso, converte a dúvida em método: "Se duvido, penso; se penso, existo" (Cogito, ergo sum). Com isso, Descartes promove um "questionamento radical do princípio de autoridade como forma de conhecimento", pois sua atitude coloca em suspenso as verdades adquiridas por via da tradição e da revelação, isto é, do senso comum e da religião (Quintaneiro et al., 1996: 09). Ao mesmo tempo, o pensador francês promove a razão, informada pelas regras do método, à condição de guia supremo do processo de conhecer. Ao teorizar sobre a racionalidade, ele promove uma separação entre mente e corpo, entre matéria e pensamento, e entre a razão e as demais formas de conhecimento, nascendo daí a ruptura da ciência com o sensível, a natureza, a imaginação e o sagrado:
"Para Descartes, o conhecimento sensível (isto é, sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem) é a causa do erro e deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual, parte das idéias inatas e controla (por meio de regras) as investigações filosóficas, científicas e técnicas." (Chauí, 1996: 116)
Descartes opera uma redução da subjetividade humana a seus aspectos racionais, o que resultou numa imagem do cientista como alguém que não pertence a uma coletividade, que não estabelece relações, como se fosse apenas uma mente pensante, um cérebro - é a idéia do cientista isolado do mundo (Alves, 1987: 10-11). Também é de Descartes o mérito de propor, como método científico, a redução da complexidade, isto é, separar para estudar, dividir o objeto de conhecimento em suas menores unidades e estudar cada uma dessas unidades separadamente.
Já Francis Bacon (1561-1626) tem no "Novum organum" uma obra fundamental em que compreende a ciência como um novo órgão, um novo sentido do pensamento. Com ele tem início o caráter "prometéico" da ciência: não um saber contemplativo e desinteressado, mas um saber instrumental, que possibilite a dominação da natureza:
"Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas, as mudanças sociais e políticas e o desenvolvimento das ciências e da Filosofia propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano, que seria também uma grande reforma na vida humana. Tanto assim que, ao lado de suas obras filosóficas, escreveu uma obra filosófico-política, a Nova Atlântida, na qual descreve e narra uma sociedade ideal e perfeita, nascida do conhecimento verdadeiro e do desenvolvimento das técnicas." (Chauí, 1996: 116).
Bacon propôs uma separação entre a ciência e as humanidades (estas preocupadas com a justiça, com as pessoas, com a natureza, com o sagrado) e foi forte propulsor do empiricismo, difundindo a crença de que o ponto de partida de todo conhecimento deveria ser a observação, a descrição fiel da realidade, isenta de julgamentos e interpretações.
Por fim, Galileu Galilei (1564-1642) é reconhecido por muitos como o pai do método científico. Seu trabalho é menos filosófico do que o dos dois pensadores citados anteriormente, mas foi sobretudo ele quem enfatizou a atitude empírica na pesquisa científica e, rompendo com as indicações de Aristóteles que eram tomadas sem questionamentos por outros pesquisadores, buscou medir os fenômenos e fazer observações quantitativas. Dentre suas diversas contribuições (como a lei da inércia) destaca-se a teoria heliocêntrica, por meio da qual pôde comprovar as idéias de Copérnico, e pela qual foi submetido a julgamento durante a Inquisição em Roma, em 1633. Foi obrigado a se retratar publicamente do conceito de rotação da Terra em torno do Sol. Nessa ocasião, contudo, após se retratar, teria dito, em voz baixa e olhando para o solo, a frase "eppur si move" ("mas ela se move"), o que se tornou um dos lemas do pensamento científico. Deve-se a Galileu ainda o início do projeto da Mathesis universalis, isto é, a busca de um ideal matemático. Outra frase sua, "O livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos" (Alves, 1987: 80), demonstra sua intenção de construir um conhecimento em que as relações entre os objetos conhecidos se expressem em linguagem matemática - o que resultaria na produção de um conhecimento exato e preciso.
A ciência, pois, é uma forma de conhecimento que, compreendida num sentido mais específico, surge historicamente no século XVI, dentro do processo da Modernidade de ruptura com o mundo feudal e eclesiástico, embasada filosoficamente pelo Iluminismo e originada com o Renascimento. "O discurso científico tem a intenção confessada de produzir conhecimento, numa busca sem fim da verdade" (Alves, 1987: 170). Para conseguir alcançar esse conhecimento mais adequado, mais fiel à realidade, a ciência busca o desejado equilíbrio entre as duas dinâmicas do conhecimento, isto é, a constante renovação e a consolidação dos conhecimentos já construídos.
Lakatos e Marconi (1986: 20) identificam como características do conhecimento científico: ser factual (lidar com ocorrências e fatos reais), contingente (a veracidade ou falsidade do conhecimento produzido pode ser conhecida através da experiência), sistemático (ordenado logicamente num sistema de idéias), verificável (o que não pode ser comprovado não é do âmbito da ciência), falível (não é definitivo, absoluto) e aproximadamente exato (novas descobertas podem reformular o acervo de idéias existentes).
Essas características são também levantadas por Alves. Para o autor, contudo, não se deve falar em ruptura do conhecimento científico com o senso comum. Embora eles sejam "muito diferentes" um do outro (Alves, 1987: 37), "existe uma continuidade entre o pensamento científico e o senso comum" (Ibidem: 17). Com isso, o autor argumenta que a ciência não deve ser vista como uma forma de conhecimento completamente distante do fazer humano, dotada de autoridade inquestionável. Entre as características da ciência, ainda conforme o autor, destacam-se a busca de ordem, a formulação de modelos e leis que explicam o funcionamento dos fenômenos e da natureza, o abandono dos valores e a busca de um saber objetivo, o uso de hipóteses e de experimentação que permite medir os eventos com precisão e o rigor do pensamento com a utilização do raciocínio lógico. Alves identifica ainda duas características essenciais. A primeira é a busca por um conhecimento geral, universal, aplicável a todos os casos: "Sempre que passamos do passado para o futuro, ou do particular para o geral, nós ampliamos aquilo que sabemos" (Alves, 1987: 116). Busca-se tanto as regularidades e uniformidades quanto, também, a possibilidade da previsão. A segunda é a falseabilidade, isto é, os enunciados científicos podem ser testados para se confirmar se são verdadeiros ou falsos. Uma proposição verificável "é aquela sobre a qual, a partir de testes, podemos tomar uma decisão sobre sua verdade ou falsidade" (Ibidem: 176).
Entre os objetivos da ciência estão a busca do controle prático da natureza, a descrição e compreensão do mundo e a possibilidade de predição (Gressler, 2003: 37). Posteriormente, ela se alia à técnica - é quando ela realmente "se destaca" (Ibidem: 24) e passa a resultar numa série de avanços nos modos de produção da sociedade, tendo seu ápice na Revolução Industrial do século XVIII com grandes inventos como a lançadeira (1733), o tear mecânico (1738), a máquina a vapor (1768), a locomotiva (1813), o barco a vapor (1821) e muitas outras que alteraram de forma significativa as formas de produção e de vida das sociedades. Ao mesmo tempo, o conhecimento científico se desenvolve e busca sua legitimidade a partir de sua institucionalização nas universidades, conselhos, associações, congressos; institutos, publicações e eventos.
A ciência na pós-modernidade
No século XX a ciência vai ser questionada em vários de seus princípios e suas propostas. De acordo com Santos (1996), o "paradigma dominante", que é o modelo de ciência surgido no século XVI, caracterizado pela luta apaixonada contra todas as formas de dogmatismo e autoridade, pela busca de leis e da objetividade e pelo uso da matemática como instrumento privilegiado de análise (apenas o que é quantificável é cientificamente relevante) passa a sofrer um processo de perda de confiança. Para o autor, isso acontece a partir de dois tipos de condições.
O primeiro tipo são as condições teóricas, isto é, descobertas científicas que colocam em evidências limitações do modelo tradicional. Entre essas descobertas o autor destaca as contribuições de Einstein, Heisenberg e Bohr, Gödel, Prigogine e outros que derrubam, entre outros pilares do "paradigma dominante", o mito da objetividade, da possibilidade de se estudar um objeto sem perturbá-lo, e a idéia de tempo e espaço absolutos.
O segundo tipo são as condições sociais. Diversas experiências do século XX, como as duas grandes guerras, as experiências totalitárias, os desastres ecológicos, a submissão da ciência aos interesses militares e econômicos, levaram a uma perda do interesse no conhecimento científico tal como vinha sendo produzido.
Essa foi uma questão amplamente discutida por Adorno e Horkheimer (1947/1985) logo após a II Guerra. Os autores realizam uma extensa análise sobre os processos de dominação na sociedade ocidental contemporânea e percebem como a ciência, a partir da razão instrumental, converteu-se em elemento de "mistificação das massas". Habermas (1989) deu continuidade ao debate buscando determinar a maneira como a ciência deixou de ser um elemento libertador e passou a inserir-se na lógica industrial da sociedade capitalista.
Conforme Santos, essas duas condições estariam levando a uma crise do paradigma dominante e à emergência de um novo paradigma. Outros autores têm discutido a questão. Wersig (1993: 229) percebe a emergência, no século XX, de um novo tipo de ciência, denominada por ele "ciência pós-moderna", voltada não para a compreensão do modo de funcionamento da natureza, como a ciência clássica, mas para a resolução de alguns problemas causados pela ciência moderna e suas tecnologias; Morin e LeMoigne apresentam a proposta do pensamento complexo como a forma mais adequada de produção do conhecimento, compreendendo-o como uma evolução da ciência clássica em vários aspectos como, por exemplo, a superação da compartimentalização dos saberes (Morin e LeMoigne, 2000: 199-213); também Capra (1987) percebe uma grande revolução em todas as ciências com a crise do modelo cartesiano. Para outros autores, contudo, não se estaria vivendo um momento de crise da ciência. É o caso de Gomes que alerta para um certo modismo atual de se identificar uma "crise dos paradigmas da ciência moderna":
"(...) poder-se-ia detectar tal crise apenas se estivéssemos vivendo uma ruptura revolucionária generalizada. Não me parece haver qualquer coisa desse tipo no ar. A ciência contemporânea dedica-se ao labor cotidiano da investigação, discute suas descobertas a partir de categorias comuns, submete-se a discussões com pressupostos comuns, publica em periódicos com compreensões comuns de cientificidade... Pode ser que pessoas mais atentas notem algum furor revolucionário varrendo convicções anteriores; eu consigo ver um tempo de ciência normal, normal até demais, com costumes preguiçosos e arraigados, com distribuição em formas tradicionais de prestígio e reconhecimento." (Gomes, 2003: 319)
De toda forma, percebendo-se um momento de crise ou apenas um processo de continuidade, o que se pode verificar é que a idéia, nascida com a Modernidade, de ciência como um conhecimento completamente objetivo (capaz de conhecer um objeto sem qualquer perturbação por parte do sujeito que o conhece), em busca de leis definitivas e absolutas, deu lugar a uma compreensão da atividade científica como um "produto social" (Gressler, 2003: 32), dotado de uma "matriz coletiva" (Alves, 1987: 206), que lida com "objetos construídos" (Demo, 1985: 45). Essa evolução da forma de se encarar a ciência foi possível sobretudo a partir do momento em que a ciência tornou-se, também ela, objeto de estudo, a partir da intervenção de diferentes disciplinas.
Estudos sobre a ciência e o fazer científico
A realização de estudos sobre a produção de conhecimento científico e a necessidade de avaliação do trabalho dos pesquisadores, dos produtos e dos processos de divulgação científica foi um fator condicionante, ao longo do século XX, da evolução de toda uma área do conhecimento. Essa área não se desenvolveu de maneira uniforme, mas, antes, consistiu na realização de diferentes pesquisas com várias naturezas, métodos e filiações teóricas. Nela se encontram tradições tão diversas como a história da ciência, a sociologia da ciência, a teoria do conhecimento e as preocupações epistemológicas e filosóficas dentro de cada área específica, entre outras.
Entre os vários campos de estudos dedicados às investigações sobre a produção científica, merecem destaque as contribuições de dois autores que têm tido um impacto fundamental no direcionamento dos estudos contemporâneos. O primeiro deles é Bourdieu, cuja importância é salientada a seguir:
"Em artigo bastante conhecido, Pierre Bourdieu introduz a noção de campo científico, em clara oposição ao conceito de comunidade científica de Kuhn, apesar de incorporar muitos dos seus termos. Para Bourdieu, a noção de comunidade científica autônoma, insulada e auto-reprodutora, com cientistas neutros e interessados somente no progresso da sua disciplina, esconde, mais que elucida, a dinâmica das práticas científicas na sociedade moderna." (Hochman, 1994: 208)
O autor está se referindo à aplicação, por Bourdieu, de sua teoria dos campos sociais à ciência, definindo esta como um "campo científico". Bourdieu (1983) define o campo social como um espaço configurado pelas relações que ocorrem entre os atores sociais. Nessas relações podem ser identificadas as posições que os atores ocupam uns em relação aos outros. Trata-se, na verdade, da retomada dos princípios marxistas relativos ao conflito e à determinação das condições sociais de produção, o que abre caminho para uma abordagem sociológica da ciência que entende que "o conhecimento científico, enquanto produto, é afetado pelas condições de um contexto específico" (Silva, 2002: 109) ou, em outros termos, que a verdade científica "reside numa espécie particular de condições sociais de produção" (Bourdieu, 1983: 122).
Essa compreensão permite entender a ciência como resultado não propriamente de progressos e questões "científicas", mas como resultado dos processos de luta, de utilização e busca por recursos e "capital simbólico", pela lógica de "distinção". Essa distinção pode ser compreendida como instâncias de consagração e de prestígio que se relacionam com o grau de aceitação no campo, o que implica, entre outras práticas, a aceitação das regras da prática científica:
"O campo científico exige dos seus participantes um saber prático das leis de funcionamento desse universo, isto é, um habitus adquirido pela socialização prévia e/ou por aquela praticada no próprio campo." (Silva, 2002: 119)
O habitus, uma das categorias de Bourdieu, diz respeito àquilo que está introjetado em cada indivíduo, que foi construído por suas experiências e história de vida, mas também é possível identificar um habitus coletivo ou de grupo.
Cientistas estão constantemente em luta por autoridade e reconhecimento, traçando variadas estratégias e efetuando ações em uma ou outra direção para atingir seus objetivos. As lutas se dão em torno da apropriação de um capital específico do campo e/ou pela redefinição daquele capital. Nesse esforço, criar ou fortalecer novas áreas ou campos de pesquisa (disciplinas) pode ser, em determinados momentos, a atitude mais interessante ou "lucrativa" dentro do "jogo científico". São contextos específicos de reações e contra-reações à estrutura de posições dentro de um campo que motivam a criação de novos campos e a migração de alguns cientistas para estes novos campos, dando assim origem a novas disciplinas que, com o tempo, vão buscar se legitimar enquanto campos do conhecimento. Nesse processo, é fundamental a formação de uma "infra-estrutura" de discursos e de uma dinâmica de institucionalização que garanta a legitimidade dos novos campos científicos criados.
Do ponto de vista da filosofia da ciência, um dos autores mais importantes voltados para a problemática dos discursos científicos e de sua legitimidade é Michel Foucault. Sobre esse autor é importante destacar que:
"ao considerar a questão da história e da filosofia do ponto de vista de Foucault, é preciso primeiramente levar em consideração que seu interesse não diz respeito à ciência propriamente, mas ao saber; não à sua racionalidade imanente, mas às condições externas de possibilidade de sua existência." (Portocarrero, 1994: 45)
Ao utilizar a expressão "saber", Foucault salienta o fato de que o discurso científico não é formado apenas por ciência propriamente dita (pelas teorias e conceitos científicos), mas por uma quantidade imensa de saberes políticos, administrativos, institucionais, culturais, literários, artísticos, etc. Com isso se abre a possibilidade de análise da ciência para além dos seus próprios critérios de cientificidade, pois são exatamente essas condições de "cientificidade" ou de "verdade" que vão ser analisadas pelo autor. Compondo esse conjunto de saberes que o autor identifica como estando presentes na prática científica, Foucault vai então trabalhar com o discurso científico enquanto "formação discursiva":
"A caracterização de um conjunto de discurso pertinente a uma vertente específica do saber, vista por Foucault como uma 'formação discursiva', é reconhecida e amplamente aceita por estudiosos da área da análise do discurso e acha-se extensamente trabalhada no livro do referido autor." (Alvarenga, 1996: 255)
O livro ao qual a autora se refere é "Arqueologia do saber", cuja primeira edição data de 1969, em que o autor empreende seu grande projeto de buscar as regras de formação de discursos dentro de um campo específico de conhecimento: "a arqueologia pode assim - e eis um de seus temas principais - constituir a árvore de derivação de um discurso" (Foucault, 1972: 181). O método da arqueologia do saber busca uma abordagem dialógica entre o "dado" e o "não-dado", fazendo emergir o que fica oculto, os componentes históricos e contextuais (Alvarenga, 1996: 254). Busca-se, com isso, a superação do positivismo, compreendendo a ciência dentro dos limites do que é possível dizer. Em alternativa às categorias de "objetividade" e "verdade", Foucault busca compreender a ciência como locus de luta entre sistemas competitivos, isto é, como um conhecimento que possui um suporte institucional, reforçado por práticas sociais, preciso e definido (controlado).
Ainda para Foucault, "um campo discursivo não se caracterizaria pelos objetos que estuda, pelas modalidades de enunciação, pelos conceitos ou pelas temáticas privilegiados, mas sim pela maneira pela qual se formam os seus objetos" (Alvarenga, 1994: 256). A formação de objetos de um campo discursivo se dá pela demarcação das superfícies primeiras de emergência (que limita o domínio desse campo), pelas instâncias de delimitação (campos institucionais e disciplinas), pelas grades de especificação (relações entre instituições e processos sociais) e pela análise das relações entre esses planos. Tudo isso nos dá o contexto no qual se origina o conhecimento. Os critérios de cientificidade seriam apenas uma das formas, entre outras existentes, e que, como ela, são histórica e contextualmente dependentes, de legitimação de saberes e discursos.
Dentro dessa formulação teórica, cumpre destacar que:
"A arqueologia não descreveria disciplinas, tomando-se aqui 'disciplina' como 'conjunto de enunciado que empresta sua organização a modelos científicos que tendem à coerência e à demonstratividade e que são recebidos, institucionalizados, transmitidos e ensinados como 'ciência' '. As disciplinas, segundo o autor, 'podem servir de iscas para a descrição de positividades'." (Alvarenga, 1996: 256)
Ou seja, também em Foucault, a ciência pode ser vista como produto do desenvolvimento histórico e social dos processos de produção de conhecimento, sendo mais um elemento da realidade a ser estudado e descrito do que uma categoria "científica". Ao colocar em suspensão a categoria de "cientificidade", o autor passa a compreender a ciência dentro de um espectro teórico mais amplo e mais crítico.
Outros estudos relevantes são aqueles que se debruçam sobre a comunicação científica, isto é, sobre as formas como os cientistas se comunicam entre si, trocam informações e referenciam uns aos outros na produção do conhecimento científico. Afinal, entre o início da pesquisa e sua publicação (normalmente em artigo de periódico) há várias instâncias de comunicação e divulgação, em diferentes níveis de abrangência e formalidade. O objetivo dos estudos nessa área é conhecer essas atividades de comunicação e divulgação que precedem a publicação do artigo - para estudar os periódicos deve-se conhecer a intensa atividade de comunicação que o precede.
Os estudos "clássicos" em comunicação científica compreendem os estudos sobre os colégios invisíveis e sobre o fluxo de informação. Os colégios invisíveis foram estudados por Price, Crane, Crawford, Zaltman, Kohler, Gaston e muitos outros (Mueller, 1994: 310-311), e podem ser definidos como grupos não formais de cientistas que estão, num dado momento, trabalhando em torno de um mesmo problema ou área de pesquisa e que se comunicam entre si sobre o andamento de seus trabalhos. Já os estudos sobre o fluxo da comunicação científica representam esforços para identificar e representar o fluxo total da informação científica e foram desenvolvidos por autores como Garvey, Griffith, Menzel, Paisley e Lipetz (Mueller, 1994: 312-313). A referência comum a toda essa corrente de estudos é a tradição de pesquisa conhecida como Sociologia da ciência, cujo precursor, ainda em 1957, é Robert K. Merton e que, na década de 60, se desenvolveu com pesquisadores como Crane, David, Encel e Storer, e que se preocupa:
"com fatores como: motivação, reconhecimento, comportamento, visibilidade, criatividade, que afetam a produtividade dos cientistas, quer no referente às propriedades psicológicas individuais, quer num contexto institucional e organizacional na pesquisa." (Mueller, 1994: 8)
Atualmente estão em destaque os "estudos de laboratório" de cunho etnográfico iniciados por Latour e Woolgar (análise do cotidiano da atividade científica, das práticas cotidianas, dos ritos, dos "ciclos de credibilidade" e motivações). No âmbito dos estudos sociológicos sobre a ciência, a proposta de Latour e Woolgar, "da macro para a microanálise da ciência" (Hochman 1994: 214) marca o início de uma linha de estudos influenciada principalmente pelo interacionismo simbólico e pela etnometodologia. Nessa linha se desenvolve uma nova postura:
"É preciso rever essas atitudes epistemológicas em relação à ciência. Então,"vá ao laboratório e veja", sugerem Latour, Woolgar e Knorr-Cetina, à produção do conhecimento científico. Isto implica uma recusa a qualquer privilégio epistemológico em face da descrição etnográfica das práticas científicas. Em vez de impor categorias e conceitos estranhos ao mundo dos observados, os autores defendem que o fenômeno deve ser analisado contextualmente, tendo em vista o que os participantes/observados consideram como relevante." (Hochman, 1994: 214)
Outros campos atuais de estudo são o "Programa Forte da Sociologia do Conhecimento", que estuda a relação entre o conhecimento científico e o contexto social, tendo em Bloor e Barnes, da Escola de Edimburgo, seus principais representantes, e a perspectiva construtivista de autores como Knorr-Cetina, que estuda a ciência a partir da noção de "arena transepistêmica".
Outras temáticas incorporadas ao campo de pesquisa são as relativas aos condicionamentos das pesquisas por interesses privados políticos e comerciais (Crossen, 1996), à divulgação científica como atividade de difusão do conhecimento, partilha social do saber e atividade de reformulação discursiva (Zamboni, 2001), à importância do periódico científico (Stumpf, 1996; Targino, 1998), bem como os estudos sobre divulgação científica centrados nos papéis educacional, cívico e de mobilização popular que a ciência tem, ou deveria ter (Albagli, 1996: 397), sobre a inserção da ciência na problemática da "sociedade da informação" (Takahashi, 2000; Mattelart, 2002) e mesmo sobre os limites epistemológicos do conhecimento científico (Morin, 1987).
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Notas
C.A.Á. Araújo
E-mail para correspondência: casalavila@yahoo.com.br.