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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.18 no.2 Rio de Janeiro mayo/ago. 2018

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Funk ousadia, adolescência, contemporaneidade: uma leitura lacaniana

 

"Funk ousadia", adolescence, contemporaneity: a Lacanian reading

 

"Funk ousadia", adolescencia, contemporaneidad: una lectura lacaniana

 

Vinícius Moreira Lima*

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O funk ousadia é um recente subgênero do funk cujas letras apresentam temas recorrentes: conteúdo radicalmente pornográfico, envolvendo a figura da "novinha" e recorrendo a várias gírias para os órgãos genitais, em meio a polêmicas judiciais, boa recepção de seu público-alvo e má recepção de setores sociais conservadores. A presença de uma quantidade considerável de MCs adolescentes no funk ousadia nos leva a propor que, no tempo lógico de encontro com a não relação sexual, em uma época de declínio da função paterna e estimuladora de uma perversão ordinária, esses MCs fazem um semblante de saber sobre o sexo — ou depositam-no na "novinha" — como forma de tratamento do gozo e da não relação sexual, criando um nome próprio para si por meio do funk, constituindo, para tanto, uma rede de identificações horizontais com sujeitos especulares em busca de consistência, contornando o Real pulsional em jogo na puberdade.

Palavras-chave: perversão, semblante, fantasia, gozo, castração.


ABSTRACT

"Funk ousadia" is a recent subgenre of funk whose lyrics present recurrent themes: radically pornographic content, involving the image of the "novinha" and recurring to many slangs for referring to the genital organs, amid judicial polemics, good reception from its audience and bad reception from conservative sectors of society. The presence of a considerable quantity of adolescent "MCs" in "funk ousadia" takes us to affirm that, in the logical time of encounter with the no sexual relation, in an epoch of decline of the paternal function and of cultural stimulation for a ordinary perversion, these "MCs" make a semblant of knowledge about sex — or deposit it into the "novinha" — as a way of treating jouissance and the absence of sexual relation, creating themselves a proper name through funk, constituting, thus, a web of horizontal identifications with specular subjects in search of consistency, bypassing the pulsional Real in question in puberty.

Keywords: perversion, semblant, fantasy, jouissance, castration.


RESUMEN

El "funk ousadia" es un reciente subgénero del funk cuyas canciones presentan temáticas recurrentes: contenido radicalmente pornográfico, envolviendo la figura de la "novinha" y recurriendo a varias jergas para los órganos genitales, en medio de controversias judiciales, buena recepción de su público-objetivo y mala recepción de sectores sociales conservadores. La presencia de una cantidad considerable de "MCs" adolescentes en el funk nos lleva a proponer que, en el tiempo lógico de encuentro con la no relación sexual, en una época de declino de la función paterna y estimuladora de una perversión ordinaria, esos "MCs" hacen un semblante de saber sobre el sexo — o lo depositan en la "novinha" — como forma de tratamiento del goce y de la no relación sexual, creándose un nombre propio por medio del funk, constituyendo, para tanto, una red de identificaciones horizontales con sujetos especulares en búsqueda de consistencia, contornando al Real pulsional en cuestión en la pubertad.

Palabras clave: perversión, semblante, fantasía, goce, castración.


 

 

1 A Emergência do Funk Ousadia

"Tava no fluxo, avistei a novinha no grau / Sabe o que ela quer? / Pau, pau, pau, ela quer pau". Essa é a estrofe inicial de "Tava no fluxo", música de MC Pikachu.  Ela é representativa do chamado "funk ousadia", surgido em São Paulo no começo de 2014 (Blumen, 2015b). Na maioria das canções, os temas são recorrentes: trata-se de uma erotização explícita, com referências diretas à atividade sexual genital; em alguns casos, há recurso ao humor, via trocadilhos com conotações sexuais. Entre os elementos que se repetem estão a figura da "novinha", as gírias e os apelidos espirituosos para os órgãos genitais, tais como "pica", "piroca", "xota" e "perereca". Essa nova tendência do funk foi muito bem recebida (Blumen, 2015b) por seu público-alvo, composto, em geral, por adolescentes e adultos jovens: os vídeos no YouTube acumulam milhões de exibições. Além disso, cantores como MC Pedrinho já chegam a cobrar mais de dez mil reais por apresentação (Maldonado, 2015), o que demonstra o sucesso dessa empreitada.

Mas o que mais chama a atenção é a presença de vários MCs adolescentes1, como MC Brinquedo, que nasceu em 2001 e entrou no funk com 13 anos. O conteúdo das canções desses menores de idade não poderia passar em branco: em janeiro de 2015, por exemplo, o Ministério Público do Ceará conseguiu uma liminar para proibir uma apresentação de MC Pedrinho — à época, com 12 anos. A alegação era de que seu repertório musical seria dotado de "nítida conotação sexual, alto teor de erotismo, pornografia, baixo calão e todo tipo de vulgaridade, incompatíveis com a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento" (G1, 2015a). O promotor responsável também alertou para danos que podem ser causados se Pedrinho "servir de modelo aos demais".

Ou seja, se, por um lado, boa parte do público-alvo mostrou-se favorável à "ousadia", por outro, houve quem não fosse tão acolhedor assim: o jornalista Gaudêncio Torquato (2014) apontou que Pedrinho, aos 12 anos, marcava um "declínio moral" da sociedade, deixando para trás "valores tradicionais que formam a argamassa da cidadania", como respeito, culto à família, verdade, senso do dever etc. Por sua vez, Mr. Catra, "funkeiro" mais experiente, com 47 anos, defende os jovens MCs, ameaçados pela Justiça de serem proibidos de cantar, com o argumento de que "eles já são artistas, ganham o seu dinheiro, ajudam as mães, já são a fonte de renda da família. Acabar com isso pode causar um trauma grande na vida deles" (Blumen, 2015a). MC Pedrinho, em entrevista, parece confirmar o ponto de vista de Catra: "Eu gosto de funk pra caramba. Funk é minha vida". Comenta também que sua mãe "não apoia" a profissão; ela "deixa, mas deixa como se fosse um sonho pra mim. E é um sonho pra mim" (Correa, 2014).

Em meio a esse contexto de opiniões divididas e polêmicas judiciais, investigaremos relações possíveis entre a adolescência, o funk ousadia e a contemporaneidade: há uma importância psíquica do funk para esses MCs? Por que o sucesso da "ousadia" especialmente entre jovens? Há ligação entre o contemporâneo e o apelo explícito e constante ao sexual nas letras desses cantores? Tentaremos trazer luz a essas questões com uma exploração psicanalítica de orientação lacaniana; para tanto, teremos de compreender as transformações da puberdade, suas implicações psíquicas, sua articulação com o contemporâneo e suas respostas sintomáticas na adolescência.

 

2 Do Encontro com um Impossível...

A adolescência é o momento lógico de encontro com um impossível (Stevens, 2004). Ao chegar à puberdade, a criança passa por uma série de transformações em seus registros psíquicos: no Real, irrompe o biológico do sexo, a libido, exigindo uma genitalização da sexualidade; no Imaginário, a imagem infantil de corpo se estilhaça, com as mudanças corporais geradas pelos hormônios; no Simbólico, as referências parentais infantis já não mais servem à criança, e esta tem de se desligar da autoridade de seus pais, buscando novos ideais orientados pela cultura. Isso se dá em meio a um confronto com a ausência de saber, no Real, sobre o sexo, o que produz um enorme conflito para o sujeito, sendo necessário, como consequência, que ele dê a isso uma resposta sintomática. É nesse sentido que Stevens (2004, p. 30) diz da adolescência como sintoma da puberdade, ou seja, como "enumeração de uma série de escolhas sintomáticas em relação a esse impossível": qual seja, a ausência do saber a priori sobre o sexo e a exigência de uma resposta do sujeito frente à inexistência da relação sexual.

Freud, em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996a), dedica todo um capítulo às "transformações da puberdade", o que denota a importância desse período para a constituição psíquica do sujeito. Porque, com a chegada dessa fase, "introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil a sua configuração definitiva" (Freud, 1905/1996a, p. 196). As pulsões, que eram predominantemente autoeróticas, perdem espaço em função do "primado das zonas genitais". Agora, a pulsão encontra o objeto sexual fora do corpo. Depois do período de latência, torna-se necessário refazer a escolha objetal: "A escolha de objeto da época da puberdade tem de renunciar aos objetos infantis e recomeçar como uma corrente sensual" (Freud, 1905/1996a, p. 189). Isso porque essa escolha é feita em duas ondas, a primeira começando entre dois e cinco anos de idade e sendo detida pelo período de latência. Ela é caracterizada pela "natureza infantil" dos alvos sexuais. A segunda onda "sobrevém com a puberdade e determina a configuração definitiva da vida sexual" (p. 189)

Para refazer essa escolha, o sujeito precisa libertar-se da autoridade dos pais, em decorrência da interdição do incesto, atualizada na puberdade. Como proposto por Freud (1909/1996c, p. 219), as crianças têm a aspiração inicial de crescerem e se igualarem aos pais, que encarnavam ideais de perfeição para o infante. Entretanto, em certo ponto, precisam desligar-se de seu primeiro e mais importante ideal — a figura paterna. Para tanto, devaneiam, criam romances familiares, para superar uma decepção com os pais: a decepção de quando a criança, com o tempo, descobre que seu pai não é

o mais poderoso, sábio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a criticá-lo, a avaliar o seu lugar na sociedade; e então, em regra, faz com que ele pague pesadamente pelo desapontamento que lhe causou. Tudo que há de admirável e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai (Freud, 1914/1996d, p. 249).

Os devaneios ajudam a criança na tarefa de "libertar-se dos pais que desceram em sua estima, e de substituí-los por outros, em geral de uma posição social mais elevada" (Freud, 1909/1996c, p. 220). Criam-se, portanto, fantasias visando à realização de desejo e à retificação de aspectos insatisfatórios da vida real, com objetivos eróticos e ambiciosos. Em "Escritores criativos e devaneio", Freud (1908/1996b) afirma que "a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória" (p. 137). Mas é só na esfera fantasmática da representação "que se consuma inicialmente a escolha do objeto, e a vida sexual do jovem em processo de amadurecimento não dispõe de outro espaço que não o das fantasias, ou seja, o das representações não destinadas a concretizar-se" (Freud, 1905/1996a, p. 213).

Em vez de brincar, a criança passa a fantasiar, a fim de libertar-se da autoridade parental e constituir sua sexualidade adulta, por meio dos caminhos da puberdade, em oposição à geração anterior. Dessa maneira, se a fantasia infantil vacila, é preciso construir uma nova fantasia, a qual se torna "o lugar tenente do gozo sexual, fixando as pulsões parciais" (Monteiro, 1997, p. 5). Ela tem, portanto, dupla função: "fixar as condições de gozo de um sujeito" e "assegurar o desejo", que não é garantido pelo Outro. Como resultado, a fantasia ajuda a velar a castração e a inexistência da relação sexual. Se o desejo aponta para a falta, a fantasia, trazendo para o sujeito uma "ilusão de ser", sustenta um objeto passível de ser desejado, na medida em que completaria a falta — respondendo ao enigma do desejo do Outro, por meio de uma suposição do sujeito em relação ao que ele crê que o Outro deseja dele, fixando para si uma posição subjetiva de gozo. Como resume Lacan (1962-1963/2005), "a função angustiante do desejo do Outro" se liga a "eu não saber que objeto a sou eu para esse desejo" (p. 353). E adiante: "Só há superação da angústia quando o Outro é nomeado" (p. 366), ou seja, quando é possível fixar uma posição de gozo perante o olhar do Outro.

Nesta esteira, podemos esboçar uma primeira compreensão sobre a maneira como essas fantasias se imiscuem nas letras dos MCs. Da música "Fodendo ela com tudo", por exemplo, de MC Pedrinho, extraímos o seguinte excerto: "A novinha toda meiga / Foi sentando na piroca / Começou a ver estrela. / Vou levar ela pro céu / Vou foder ela com tudo". Fica evidente, aqui, a montagem de um cenário fantasmático, em que "a ficção antecipa o real" (Santiago, 2011, p. 4). Isto é, trata-se do "retardo tomado pelo biológico em relação à fantasia sexual" (Cottet, 1988, p. 102). Parece mesmo que, à semelhança do que ocorre no estádio do espelho durante a infância, o adolescente desenvolve um drama psíquico que se precipita "da insuficiência para a antecipação" (Lacan, 1949/1998a, p. 100), evitando — ou tentando contornar — o encontro traumático com a não existência da relação sexual. Nesse desencontro do sujeito, "surge a angústia, quando se produz um abalo na significação fálica" (Lima, 2014, p. 86), a qual fora construída na infância com as insígnias paternas. O adolescente depara "com uma falha de saber. Diante dessa falha, resta a cada um inventar sua própria resposta" (pp. 88-89), uma vez que o Pai é convocado a um ponto além de onde ele legisla, e as respostas infantis não são suficientes para lidar com a irrupção desse Real.

Assim, no caso dos MCs, para velar a angústia frente à castração e ao desejo do Outro, que é sempre enigmático, a fantasia é elaborada, na criação artística, num movimento em que o adolescente se antecipa em relação ao encontro com a falta no Outro, mascarando tanto a castração quanto a inexistência de saber no Real sobre o sexo. Ao fazê-lo, no entanto, e enquanto resposta sintomática, o adolescente atualiza precisamente as fantasias da primeira infância, que são recolocadas em jogo. A sexualidade infantil é "o arsenal no qual vem se alimentar a fantasia adolescente para o ajustamento da relação sexual e ela só pode fazê-lo ao preço de uma reativação do antigo protótipo" (Cottet, 1988, p. 104). Foi o que Freud (1905/1996a) quis enfatizar em sua clássica afirmação contida nos Três ensaios: "O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro" (p. 210). Essa é a lógica que — aos 13 anos de idade, passando pelo processo pubertário que descrevemos — MC Pedrinho exprime na canção "Menina eu te avistei", em uma coincidência de inquietante estranheza: "Quando no baile encostei / Menina, eu te avistei / Então, vem, me satisfaz / . . . / Adorei te reencontrar / Tu gostosa demais". É evidente com qual objeto ele pretensamente se reencontra: o Outro materno, agora fora de seu corpo e orientado pelos ideais fálicos da cultura.

Freud (1908/1996b) nota o caráter de tratamento e o estatuto sublimatório que a criação artística pode exercer para o sujeito. Se toda composição pessoal está marcada pelos romances familiares de seu autor, parece-nos plausível propor que há uma função psíquica do funk para esses MCs adolescentes, na medida em que constroem, nas músicas, um sentido, uma saída fálica, para encobrir o traumático do encontro com o Real do sexo. Mas essa vertente de um pretenso "sentido" sexual que aparece nessas composições esconde a ex-sistência de sua vertente traumática, seu sem sentido. Isso porque "a sexualidade, mais do que fazer sentido, ‘faz buraco no real'" (Cottet, 1988, p. 102). O adolescente pode, portanto, utilizar o funk também como meio de evitação desse encontro com a não relação sexual. Se "o saber construído na infância para lidar com o real não mais se sustenta" (Lima, 2014, p. 294), a inserção no ethos2 do funk ousadia se oferece ao sujeito prometendo tamponar essa falta, por meio de uma ilusória plenitude de satisfação, em que um saber sobre o sexo é possível.

Dessa maneira, o sujeito tem a possibilidade de encobrir a castração, fixando-se numa construção imaginária ideal que resgata a onipotência infantil perdida, fantasia do gozo sem limites. Da insuficiência para a antecipação, os MCs adolescentes assumem imagos que lhes garantem uma consistência imaginária, arrogando sobre si, sobre a "novinha" ou sobre a "puta", um suposto saber sobre o sexo. Como se, a exemplo do estádio do espelho, o psicológico se precipitasse em relação ao biológico, ainda não todo preparado para a sexualidade genital, promovendo um curto-circuito no compasso de esperas da adolescência. Essas formações contemporâneas são herdeiras de uma transição histórica que analisaremos mais detidamente para prosseguir nossa discussão.

 

3 Em um Mundo sem Outro...

Adentramos, em meados do século XX, o período nomeado por Lyotard (1979/2013) como pós-moderno; este se caracteriza pelo "declínio do poder unificador e legitimador dos grandes relatos de especulação e de emancipação" (p. 69). Esses relatos são estruturas narrativas que explicariam a natureza da realidade, traduziriam a linguagem do real, ao mesmo tempo em que indicariam o sentido da História, direcionando a humanidade em relação a um telos, um fim, uma finalidade. Na pós-modernidade, houve um esgotamento dessas (meta)narrativas; Dufour (2005) ilustra essa derrocada com as figuras da Physis, de Deus, do Rei, do Povo e da Raça. Esses elementos eram definições referenciais que serviam para fundamentar a coletividade, cada uma em certo momento histórico. A fim de fundar o eu em meio ao social, recorríamos a essas figuras do Outro. No contemporâneo, entretanto, não há mais um grande Outro unificador como os anteriores, um Outro que conserve "sua função de motor na marcha do mundo" (Dufour, 2002, p. 32, tradução nossa).

Se esse Outro garantia o lugar de exceção a partir do qual se engendrava uma transmissão, hoje, só pode haver uma crise de legitimidade (Lebrun, 2008), não só da figura de exceção, mas do lugar mesmo de onde essa exceção poderia se enunciar. Essa posição, até então amplamente aceita, era ocupada pelo rei, pelo chefe, pelo pai, pelo mestre, pelo professor, entre outros. A partir desse lugar, havia toda a legitimidade para impor interditos. O que se deu foi uma deslegitimação do lugar mesmo "daqueles que têm de fazer entender a outros que uma subtração de gozo é necessária para que advenha o desejo humano" (Lebrun, 2008, p. 107). Uma vez recusada a existência do lugar de exceção, a transmissão das normas veiculadas pela tradição fica comprometida, revelando seu caráter de ficção.

Sendo as normas transmitidas de geração em geração, elas pareciam nos orientar de fora, dadas por um Outro, sendo que, em verdade, sempre fomos nós mesmos que as criamos; desse modo, a coletividade sempre se sustentou sobre um vazio, uma ficção. Na pós-modernidade, está posto em evidência esse vazio que organiza o coletivo e que até então fora "cuidadosamente mascarado" (Lebrun, 2008, p. 28), algo que Lacan (1960/1998c, p. 827) também percebeu: "Qualquer enunciado de autoridade não tem nele outra garantia senão sua própria enunciação, pois lhe é inútil procurar por esta num outro significante, que de modo algum pode aparecer fora desse lugar". É o que ele quis traduzir pelo aforismo segundo o qual "não há Outro do Outro" (Lacan, 1960/1998c, p. 827): o Outro, a ordem simbólica, a Lei, a linguagem, — tudo isso se sustenta sobre um vazio.

Lacan (1971/2009) esclarece: "Tudo que é discurso só pode dar-se como semblante, e nele não se edifica nada que não esteja na base do que é chamado de significante" (p. 15). E acrescenta, na mesma esteira, que o significante "é o fundamento da dimensão simbólica" (Lacan, 1972-1973/2008, p. 27). O que culmina na afirmação de que "o significante é idêntico ao status como tal do semblante" (Lacan, 1971/2009, p. 15). Donde extraímos que o próprio simbólico só pode advir como semblante. E é esse caráter de semblante do próprio significante — ou seja, de mera aparência (Lacan, 1972-1973/2008, p. 99) fundada sobre o vazio — que os discursos sempre tentaram escamotear: ao longo da modernidade, por exemplo, em sua vertente dita "triunfante" (Lacadée, 2006), houve a aspiração a "um discurso que não seria semblante", "que diria, enfim, toda a verdade sobre o que deve ser a vida e o ser humano” (Lacadée, 2006, p. 35), seja por meio da ciência, da filosofia ou da religião. A chegada da pós-modernidade, com o declínio da crença nessas metanarrativas, tornou claro que "não existe metalinguagem que possa ser falada" (Lacan, 1960/1998c, p. 827).

No ambiente pós-moderno, está demitido o lugar de exceção, o lugar fundante a ser transmitido pela tradição. Como consequência, abriu-se espaço para uma "definição autorreferencial do ‘eu'" (Dufour, 2002, p. 29, tradução nossa), em paralelo à ascensão do mercado neoliberal (Lebrun, 2008, p. 23). Se esse lugar de exceção não tem mais legitimidade para instaurar "qualquer subtração de gozo em proveito do coletivo" (Lebrun, 2008, p. 39), é porque se deu, segundo Safatle (2008, p. 21), o "esgotamento de um processo de socialização do desejo e de constituição de sexualidades com base na repressão e no recalcamento". A passagem da "modernidade triunfante" para a "modernidade irônica" (Lacadée, 2006) — a "pós-modernidade" — ocorreu em paralelo a uma mudança de paradigma no capitalismo: "da sociedade industrial da produção para a sociedade pós-industrial do consumo" (Safatle, 2008, p. 126). O mundo da produção se vinculava à ética do ascetismo, da acumulação e da fixidez identitária. Já o mundo do consumo, com identidades cambiantes, pede uma "ética do direito ao gozo", visto que o atual discurso do capitalismo depende de uma "procura do gozo" para que este se regule "no interior de um universo mercantil estruturado" (p. 126).

Assim, com o escancaramento de que "não existe Outro do Outro, não existe verdade sobre a verdade" (Lacan, 1971/2009, p. 14), o que se passa é a "mudança de uma economia neurótica para uma economia perversa, da qual a castração está excluída" (Lebrun, 2008, p. 39). Na época das sociedades de produção, o coletivo, neuroticamente modelado, unia-se em torno de uma negatividade: a falta, a castração. Nas sociedades de consumo, por sua vez, essa negatividade não mais funda o laço social; pelo contrário, a falta, a castração, é o que os sujeitos, juntos, renegam. Por isso, dizemos de uma economia perversa, na medida em que o mercado se oferece ao sujeito como capaz de obturar a falta, escamotear o Real da castração, como faz o perverso por meio da Verleugnung, a renegação, sua defesa frente à diferença sexual. O laço social, submetido ao mercado, pretende ser "sem falta, sem falha, sem limite", de modo que o que liga os sujeitos é a "busca do objeto positivado" (Lebrun, 2008, p. 46).

É nesse sentido que Safatle (2008) diz das transformações da figura social do supereu na contemporaneidade, que não mais está vinculado à "repressão das moções pulsionais, mas à obrigação da assunção dos fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo" (Safatle, 2008, p. 128). O imperativo de gozo, o gozo mesmo como obrigação, claramente se presentifica nas produções desses MCs adolescentes; ali, é preciso repetir, compulsivamente... para tentar dar conta desse gozo mortífero. É preciso repetitivamente dizê-lo... para tentar assegurá-lo e gozar... mais... ainda. Como em "Ela é doida", em que MC Pedrinho, de 13 anos, canta: "Oi, vem foder, vai, vai. / Como é bom transar / com a puta profissional. / Vem foder num clima quente / num calor de trinta graus. / . . . É piroca encaixando na xota / E o saco batendo na bunda". Como também em "Ela me mamou", de MC Tavinho: "Ela me mamou / E foi maravilhoso. / Então, não para, novinha / Prepara a boquinha e mama de novo". Freud, em seu ensaio "Além do princípio do prazer" (1920/1996e, p. 27), associava essa "compulsão à repetição" a uma tentativa de encontrar uma vinculação, uma domesticação de um excesso, de um gozo excessivo. Existe aqui uma articulação direta com o imperativo de gozo superegoico, pois a prescrição do supereu

se origina precisamente nesse Pai original mais do que mítico, nesse apelo como tal ao gozo puro, isto é, à não castração. Com efeito, o que diz esse pai no declínio do Édipo? Ele diz o que o supereu diz. . . . O que o supereu diz é: Goza! (Lacan, 1971/2009, p. 166).

Importante frisarmos um ponto dessa citação: trata-se do declínio do Édipo. Nesse momento, a criança tem de abandonar seu "eu ideal", imaginário, e pautar-se pelo "ideal do eu", simbólico, orientado falicamente pela cultura. Essa é uma escolha que é refeita na adolescência; como assegura Stevens (2013, p. 5): "É fundamentalmente uma escolha articulada ao significante, é a escolha de um nome, de uma profissão, de um ideal, de uma mulher, de um homem. É a escolha de um sintoma com sua envoltura significante. A escolha de uma profissão é um sintoma". E um sintoma tem uma dimensão estabilizante. Nesse caso, podemos compreender positivamente a defesa de Mr. Catra a MC Pedrinho, citada na primeira seção deste trabalho (Blumen, 2015a): o funk é uma profissão para esses jovens; tirá-los dela pode arruinar-lhes a vida. Como confirmou Pedrinho: "Funk é minha vida. Não só pelo dinheiro, mas também pensei em ajudar minha família e aqueles que me ajudaram" (Correa, 2014), tal como de fato tem feito (cf. Ortega, 2014). Assim, Pedrinho compõe seu romance familiar, buscando realizar, mesmo de modo distorcido, o que fantasiou na infância: a substituição dos pais por outros de posição social mais elevada (Freud, 1909/1996c, p. 219).

Não obstante, a posição de Catra também diz de outra questão contemporânea: a queda da legitimidade do lugar de exceção. A função paterna partia tradicionalmente desse lugar de exceção, interditando à criança o lugar imaginário de falo da mãe; inseria o sujeito na linguagem, efetuadora da castração, e fazia-o aceitar a perda necessária de gozo (Lebrun, 2008, p. 251). Se o lugar de exceção não mais comporta legitimidade, a função paterna tradicional torna-se comprometida; passa a ser difícil realizar interdições, e a posição de Catra é testemunha disso: "Se eles estão felizes cantando, o caminho tem que ser esse. Não pode é castrar, fazer a sacanagem que é proibir de cantar e pronto" (Blumen, 2015a). "Ora, sem ficções que sustentem esta ou aquela figura do grande Sujeito [ou grande Outro], não pode haver função paterna" (Dufour, 2013, p. 352, comentário nosso), ou seja, "não [se] pode castrar". Esse processo era suportado pelo laço social; hoje, ele fica em "suspensão". Não se aceita mais a negatividade do desejo; é necessário positivá-lo a todo o tempo em objetos-fetiche. Ao haver essa renegação generalizada da castração e da falta, o paradigma que se nos apresenta é o de uma "perversão comum", de modo que a "Verleugnung persiste na vida do sujeito" (Lebrun, 2008, p. 258). Entretanto, a neurose não desapareceu. Mas, hoje, se permanece, é "articulando-se com essa nova perversão" (Dufour, 2013, p. 354).

Dufour (2013, p. 357) insiste ser "perfeitamente possível que esses perversos ordinários sejam, na verdade, neuróticos de um novo tipo, no sentido de que fazem tudo para esquecer que são neuróticos. Esses perversos ordinários seriam, de certa maneira, neuróticos que tentam vulgarizar-se". Isso porque, se o neurótico recupera o gozo apenas pela fantasia que ele rejeita, "o perverso considera-se como um sujeito que ‘sabe' a verdade do gozo. O neurótico recusa a fantasia e ele ‘não sabe' do seu desejo. Para o perverso, ele já sabe o que deseja" (Lima, 2014, p. 307); por isso, põe a descoberto as fantasias que o neurótico quer esconder. É isso que se evidencia no conflito geracional levantado por Torquato (2014), visto que, numa economia neurótica tradicional, o adulto "envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas" por serem tidas como "infantis e proibidas" (Freud, 1908/1996b, p. 137), de modo tal que "desejos reprimidos e seus derivados" só poderiam "ser expressos de forma muito distorcida" (Freud, 1908/1996b, p. 139). Na época em que Freud escreveu o ensaio sobre "Escritores criativos e devaneio" (1908/1996b), a economia neurótica ainda era a dominante. Isso fica claro em sua descrição do mecanismo sublimatório da arte:

A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa [às fantasias], sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais. . . . O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias (Freud, 1908/1996b, p. 142, comentário nosso).

Para Freud (1908/1996b), se um artista comunicasse diretamente suas fantasias, isso só causaria repulsa ou indiferença em seu público. Gaudêncio, representante da economia neurótica tradicional, não teve recursos além de sentir repulsa e tentar colocar-se na hoje deslegitimada posição de exceção para criticar Pedrinho. Todavia, com o sucesso do funk ousadia em relação a seu público-alvo, "não podemos deixar de constatar que entramos num mundo sem vergonha, um mundo obsceno" (Dufour, 2013, p. 18). Mais do que isso: num mundo pornográfico. A "porno-grafia" é o "escrever, ou pôr adiante, ou encenar o que geralmente não é exposto em público" (Dufour, 2013, p. 28). A pós-modernidade é marcada por ser esse "terreno do excesso, do sempre-mais, sem limites", que é justamente o que confere às sociedades ocidentais pós-modernas "esse lado obsceno, e mesmo pornográfico, que cada vez mais as caracteriza" (Dufour, 2013, p. 32). A condição pós-moderna é o paraíso da perversão.

A queda das ditas "grandes narrativas" foi contrabalançada pela multiplicação de "pequenas narrativas egolátricas" (Dufour, 2013, p. 36), que vêm exibir seus pequenos gozos, "exaltando constantemente a mercadoria e propondo este ou aquele objeto". Ou seja, em vez da tradicional fala proibitiva, trata-se de estimular os sujeitos "a ceder constantemente a tudo que prometa a satisfação pulsional apresentada como realização do indivíduo" (Dufour, 2013, p. 319). Ainda assim, essa é uma estimulação cínica, pautada na internalização de "estruturas normativas duais": trata-se de "uma cultura que dá ênfase à exortação a gozar, acompanhando-a de uma autêntica proibição" (Dufour, 2013, p. 324). De um lado, a "lei simbólica", que visa, explicitamente, normatizar "os modos de interação social e de constituição de ideais de autorregulação" (Safatle, 2008, p. 15). De outro, a "lei do supereu", que visa impor, implicitamente, "imperativos de conduta atualmente pautados por exigências de satisfação irrestrita" (Safatle, 2008, p. 15).

Eis o paradoxo do cinismo: a lei e sua transgressão, ou o código e sua negação, ambos enunciados, a um só tempo, como imperativos. Isso leva o sujeito a "sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações nas quais, a todo momento, os sujeitos afirmam sua distância em relação àquilo que estão representando ou, ainda, em relação a suas próprias ações" (Safatle, 2008, p. 104). É curioso que MC Pedrinho, um dos maiores expoentes do funk ousadia, em entrevista, disse ainda não ter "a idade certa para namorar" (Correa, 2014) e assegurou que, à época, com 12 anos, só houvera dado "selinho". Já MC Pikachu, inquirido em uma reportagem (Jornal do SBT, 2015) sobre o conteúdo de suas letras, alega ser virgem e não saber do que trata nas músicas que canta. Mas canta porque "o que lançando no mundo agora é só isso" (Jornal do SBT, 2015). Esse distanciamento em relação ao que os MCs mesmos enunciam em suas letras pode "estabilizar-se a partir do momento em que os sujeitos tratam suas identidades sociais como simples semblantes", "como aparências postas enquanto tal. Assim, eles se aferram a identidades sociais que não têm realidade substancial, em virtude exatamente do fato de que  elas não  tenham realidade substancial alguma" (Safatle, 2008, p. 106). É o que engendra uma "contradição performativa, ou seja, uma contradição entre aquilo que faço e aquilo que digo" (Safatle, 2008, p. 59). Vitória da "modernidade irônica", que sabe cinicamente que "tudo não passa de semblante" (Lacadée, 2006, p. 35).

Enfim, cinismo é uma posição subjetiva que sustenta "identificações socialmente disponibilizadas, ao mesmo tempo em que ironiza toda e qualquer determinidade (por reconhecer seu caráter descartável)" (Safatle, 2008, p. 138). É isso que faz com que a perversão seja favorecida, uma vez que ela se funda "na consciência da ausência de fundamentos substanciais para as expectativas normativas no campo da sexualidade e na estruturação do núcleo familiar" (Safatle, 2008, p. 22), ou seja, sabe-se que "não existe Outro do Outro". Seguindo nessa esteira, no momento de constituição do ideal do eu, se o sujeito escolhe o semblante fálico e faz uma imaginarização de si, retomando a onipotência infantil ilusória e a fantasia de completude de gozo (como em "Ela me mamou", de MC Tavinho: "Ela me mamou / Como eu sou demais"), compõe-se uma escolha de aspectos perversos, na medida em que procura suprir a falha do Outro, encobrindo a castração, insistindo em procurar um gozo sem limites.

Como consequência, uma vez que a perversão busca renegar a diferença sexual, "é precisamente no lugar dessa contestação que ressurge a questão pornográfica, se entendemos por isso a apresentação crua, direta, . . . do órgão sexual, especialmente em ação" (Dufour, 2013, p. 354). Ao contrário do erotismo, que é marcado por representações alusivas e sugestivas, a pornografia se caracteriza pela ação e pela apresentação, chegando mesmo "à monstruosa mostração" (Dufour, 2013, p. 213). Na pornografia, vê-se tudo. Assim, "o erotismo está para a pornografia assim como o desejo está para o gozo" (p. 213). E o que se mostra monstruosamente nas letras desses MCs é o ato sexual em toda a sua crueza. Como em "Pula no pau", de MC Pedrinho: "É só você abrir ‘as perna' / Pula no pau com a tua buceta". Ou em "Aiai uiui", de MC Tavinho: "Ai ai, ui ui / Ela mama o meu piru / . . . Ela baba com a bola na boca . . .". Um neurótico tradicional — a exemplo de Torquato — não tem muito que fazer frente a isso além de se horrorizar; afinal, o "texto de gozo é sempre incômodo, inquietante, inanalisável pela crítica hermenêutica tradicional" (Lima, 2014, p. 328).

Essa é, efetivamente, uma escrita de gozo, sem véus, de (des)encontro com um objeto "cinicamente desvelado", sem enigma (Lima, 2014, p. 325). Aqui, não há falta nem castração; todo o saber parece possível; crê-se escrever o indizível, o impossível, o Real. É uma composição de "linguagem explícita", mas que "pode cair no excesso de significação e, paradoxalmente, desembocar no silêncio ou no vazio" (Lima, 2014, p. 326-327). A repetição compulsiva da positividade do objeto pode revelar seu caráter de semblante. E é com esse paradoxo que nos aproximamos do desenlace de nossa análise.

 

4 Trombei uma Novinha Maior de Idade...

Apesar de haver, na contemporaneidade, uma "lei do supereu" colocada como imperativo de gozo, essa lei é "vazia", "insensata", desprovida de um conteúdo normativo privilegiado. Isso significa que o supereu "nada diz sobre como gozar ou qual é o objeto adequado ao gozo. Diz apenas um ‘Goze!' sem predicações" (Safatle, 2008, p. 131). Entra aí a função da fantasia, fixando/ficcionando uma posição para o sujeito, ao indicar tanto qual é o objeto adequado ao gozo quanto como gozar com ele. Assim, na adolescência de hoje, assombrada por esse imperativo de gozo no tempo de constituição do ideal do eu, os ideais oferecidos pela cultura não são como os tradicionais (e.g.: encontrar um professor como "figura paterna substituta"). Antes, ao sujeito é oferecido entrar "no mundo do consumo", "dos objetos consumíveis" (Stevens, 2013, p. 11). Mas, ao fazer uso desses objetos, "o adolescente ‘curto-circuita' o trabalho de escolha, numa incansável repetição, evitando a responsabilidade da escolha" (Lima, 2014, p. 332), optando por modos de gozar partilhados.

No ethos do funk ousadia, o principal "objeto" de consumo nos parece ser a "novinha", enquanto uma via facilitada pela cultura para se desejar. Se o ideal é o objeto de consumo, é possível, mais que tê-lo, fazer dele um semblante. E é no terreno da fantasia que o simbólico faz "semblante de real" (Santiago, 2011, p. 4). A resposta fantasmática é uma "tentativa de produzir uma suplência do objeto que tornaria possível a relação sexual" (Santos & Zeitoune, 2011, p. 94). Pois, uma vez que "a relação sexual não existe, é preciso que o sujeito a faça existir por meio de significantes, sintomas, fantasias" (Santos & Zeitoune, 2011, p. 103). Portanto, na adolescência, é necessário "reconstruir o semblante que foi rompido pela incidência do real do sexo" (Lima, 2014, p. 331). Esse Real aponta para não haver, no inconsciente, "nada que diga a um homem como se comportar com uma mulher, e a uma mulher como se comportar com um homem" (Lacadée, 2011/2012, p. 255). Essa é a inexistência da relação sexual.

Certo, não há relação sexual, "mas há gozo" (Lacadée, 2011/2012, p. 255). E o gozo procede do regime do Um, que é essencialmente solitário, "não se amarra verdadeiramente com nada do que pareça o Outro sexual" (Lacan, 1972-1973/2008, p. 137). Gozo que é passível de mediação, de tratamento, por meio de uma "estrutura ficcional" (Santiago, 2011, p. 4), qual seja, a fantasia, articulada ao sintoma. Se a inexistência da relação sexual é "a dificuldade de saber o que fazer quanto ao sexo" ou "a ausência de um saber a priori constituído sobre isso" (Stevens, 2004, p. 30), o sujeito elabora um sintoma para tentar dar conta desse Real. No caso dos MCs adolescentes, a figura da "novinha" vem tamponar esse furo estrutural de saber, como uma defesa contra o gozo, contra o Real sem lei, neutralizando o x enigmático do desejo do Outro. MC Pikachu pretende até mesmo localizar o desejo da "novinha" no pênis, a exemplo da canção "Tava no fluxo": "Tava no fluxo, avistei a novinha no grau / Sabe o que ela quer? / Pau, pau, pau, ela quer pau". Percebemos estrutura similar em "Cambalhota", também de Pikachu: "O Pikachu vai falar o que ‘as menina gosta': / de sentar na pica, / de esfregar na piroca".

Seguindo nessa esteira, discernimos três facetas diferentes — mas interligadas — sob as quais a "novinha" aparece: primeiro, como significante-mestre, S1 desprovido de sentido, caindo no vazio de significação; depois, como fetiche, na posição de falo, a partir da renegação generalizada da castração; e, por fim, como semblante de objeto a, a partir do saber (S2) sobre o sexual que se supõe nela, engendrando um mais-de-gozar, expectativa de satisfação, devido a uma suposta habilidade sexual inata da "novinha".

A primeira faceta fica evidente em "Trombei com a novinha", em que MC Pedrinho canta: "Eu trombei uma novinha / Maior de idade. / Sabe o que eu falei pra ela? / ‘Vai caindo com a buceta na piroca com vontade'". É curioso que, quando se diz de uma "novinha", a referência costuma ser a alguém com menos de dezoito anos; Pedrinho, aos 13, para se referir a uma "novinha", teria de remeter a alguém com menos de treze anos, o que já é absurdo; ainda assim, essa "novinha" é "maior de idade". Caímos, claramente, no sem sentido, por uma vertigem semântica; a "novinha", esse objeto positivado a todo o tempo, não apresenta substancialidade, desembocando num vazio de significado em sequência a um excesso de discursividade. A "novinha" funciona como S1, iniciadora de uma cadeia discursiva. O significante-mestre (S1) se situa no lugar de um imperativo de onde a cadeia parte, por exemplo, no lugar de uma fala paterna superegoica, incitando ao gozo ilimitado. Como Lacan (1975-1976/2007, p. 64) enfatiza: "É o sexual que mente lá dentro, ao ficar se relatando demais".

Em sua segunda faceta, a "novinha" é posta como fetiche, na posição de falo. De acordo com Safatle (2008, p. 164), "o fetichismo implica uma noção muito peculiar de ‘fixação' de objeto por não pressupor nenhum desconhecimento em relação à fragilidade da adequação do objeto escolhido ao desejo", o que vai ao encontro da primeira faceta: Pedrinho não vê problema no paradoxo etário que enuncia. Esta é uma posição perversa: "um fetiche ali onde há efetivamente uma falta"; "uma presença, portanto, ali onde é a ausência que reina" (Dufour, 2013, p. 251). Tal ausência refere-se à castração materna, cuja percepção o perverso tenta rejeitar (Freud, 1927/1996f), já que instaura o risco de sua própria castração. O menino se recusa a aceitar "que a mulher não tem pênis" (Freud, 1927/1996f, p. 156), devido à angústia de castração. O fetiche, advindo da renegação da diferença sexual, substitui o pênis da mãe, não alucinando para ela um novo pênis, mas, sim, realizando um "deslocamento de valor" (Freud, 1940[1938]/1996g, p. 295), transferindo "a importância do pênis", no caso, para a "novinha", objeto-fetiche positivado no discurso do funk a todo momento.

Por meio do fetiche, "é possível produzir um objeto que permite ao sujeito agir como se nada soubesse a respeito da verdade da castração" (Safatle, 2008, p. 165); na Verleugnung, não se trata de "recusar ou expulsar o saber sobre a castração e o vazio de objeto que ela impõe". Aqui, "saber e não saber" podem existir "conjuntamente" (Safatle, 2008, p. 165). A "novinha", então, ocupa um lugar privilegiado na economia psíquica desses sujeitos, realizando, cinicamente, a exigência de sexuação e de subjetivação do desejo. Isso porque, "se a subjetivação da falta por meio do falo coloca a inadequação de todo objeto empírico ao desejo, então nada impede o sujeito de gozar de um objeto que, de certa maneira, faz deliberadamente semblant de ser adequado, um objeto que é uma máscara" (Safatle, 2008, p. 168). Nada impede o sujeito"de usar o falo como um fetiche" (Safatle, 2008, p. 168).

Já na terceira faceta da "novinha", há uma relação curiosa com o saber (S2), como notamos em "Novinha profissional", de MC Pikachu: "Essa novinha profissional, ela senta gostoso demais. / Na hora da treta, ela sabe como é que faz"; e também em "Dom dom dom", de MC Pedrinho: "Ajoelha, se prepara e faz um boquete bom / . . . A novinha experiente já nasceu com esse dom". Os MCs parecem manter a esperança na relação sexual, supondo, na "novinha" (S1), um saber (S2), até mesmo inato, sobre o sexo. Dessa maneira, eles contornam — ou tentam evitar — o encontro com o Real traumático da inexistência desse saber. É o "suposto saber da mulher que saberia" (Lacan, 1971/2009, p. 65), o qual "esbarra num obstáculo", "porque, justamente, não se sabe nada de seu sexo, ou seja, do que é chamado falo" (p. 78). Em função do saber suposto na "novinha", ela se torna desejável, objeto-fetiche que engendra um mais-de-gozar, fazendo as vezes de objeto a ao prometer um saber que tornaria possível a relação sexual, uma satisfação que completaria a falta, buscando recuperar o "falo perdido" no "corpo feminino". "É nessa via que a mulher encarna a função de objeto a para o desejo masculino" (Santos & Zeitoune, 2011, p. 99).

Em outros momentos, o saber torna-se predicação do próprio adolescente, como em "Geometria da putaria", em que Pedrinho, imaginarizando-se falicamente, canta: "Eu sou MC Pedrinho, professor da putaria". Como também em "Cambalhota", de MC Pikachu: "O Pikachu vai falar o que ‘as menina gosta'". Ele julga saber o desejo da "novinha". Pois o encontro com a diferença sexual, gerando curiosidade, "precipita a criança no desejo de saber" (Santos & Zeitoune, 2011, p. 96), o qual faz suplência a esse encontro com a castração. Encontrando uma falha no saber, os MCs põem à vista do Outro um semblante de domínio sobre o sexual, como em "Pera Ae", na qual Pikachu lista com aparente tranquilidade os tipos de "perereca" que conhece: "Tem pererecão, tem pererequinha / Tem perereca cabeluda, tem perereca raspadinha". Esses MCs recorrem a identificações imaginárias a fim de conquistarem uma posição fálica:

Na corte amorosa, o homem faz semblante de ter o falo que não tem [e que, na verdade, deseja]. Se, para entrar na dialética fálica, o homem abre mão do que tem, no encontro com o outro sexo faz semblante de ter o que não tem [no caso, o saber fálico] (Santos & Zeitoune, 2011, p. 100, comentários nossos).

O discurso desses adolescentes, com a onipresença do pornográfico e com a repetição compulsiva do sexual, vem numa tentativa de simbolizar o Real sem sentido que irrompe na puberdade, fazer um semblante fálico e, paradoxalmente, evitar o encontro com a castração e com a inexistência da relação sexual. Para tal, há um recurso constante àmostração discursiva dos órgãos sexuais, como forma de supercompensação, mas que também é mero semblante, visto que, estritamente falando, não há "pulsão genital" (Cottet, 1988, p. 104). A genitalidade é o mito construído "para contornar o impasse da relação sexual" (Cottet, 1996, p. 13), porque não existe convergência das pulsões parciais sobre um objeto total. O genital "extrai suas forças da fantasia da criança e acha seu vetor no pré-genital" porque, em suma, "a pulsão é parcial" (Cottet, 1996, p. 13). Assim, por mais que esses MCs tentem realizar uma vetorização fálica, as pulsões parciais não deixam de se manifestar em elementos como "a grosseria, a obscenidade mesmo dos adolescentes em relação às moças" (Cottet, 1996, pp. 16-17).

Há, aqui, uma "vontade de fazer balançar um ponto do pudor feminino" (Cottet, 1996, p. 17), talvez para daí tentar extrair um saber. Justamente porque o que interessa ao perverso é "ir olhar exatamente ali onde é proibido. Ele quer ver para saber o que não se pode saber. E o que é proibido ver? Aquilo que normalmente não se mostra" (Dufour, 2013, p. 305). "É a possibilidade de ver esse lugar [...] que fascina o perverso, para produzir, aí mesmo, sobre isso que os homens não querem saber, um saber. E, ao contrário, o que interessa ao neurótico é esconder esse lugar" (pp. 308-309). Por isso a reação negativa de autoridades neuróticas como o juiz que proibiu uma apresentação de MC Pikachu sob a alegação de conteúdo pornográfico (G1, 2015b), inadequado ao adolescente. Ou como o caso de MC Pedrinho, que quase foi proibido de se apresentar em todo o território nacional (G1, 2015a). Isso porque existe, nos perversos, "uma subversão da conduta apoiada num saber-fazer, o qual está ligado a um saber, ao saber sobre a natureza das coisas, há uma embreagem direta da conduta sexual sobre o que é sua verdade, isto é, sua amoralidade" (Lacan, 1972-1973/2008, p. 93). Por isso também as reações positivas do público-alvo — enquanto composto por sujeitos pertencentes a uma economia perversa —, como bem traduziu o produtor Emerson Martins: "Eles estão cantando o que o povo quer ouvir" (Blumen, 2015b).

 

5 Era uma Vez... o Pai

A questão que nos resta é a de uma relação possível entre a boa recepção do funk ousadia por seu público-alvo — em geral, adolescentes e adultos jovens, estimulados por uma cultura da perversão comum — e o estatuto do Pai no contemporâneo. A nosso ver, a "demissão do pai", ligada à atual inconsistência do Outro, é compensada pela entrada dos sujeitos em uma perversão ordinária. Isso porque a perversão é o último anteparo contra a psicose (Dufour, 2013, p. 298). Nesse regime de "demissão do pai", falta quem possa transmitir a esses adolescentes um saber-fazer, uma pai-versão [père-version] do gozo, de modo que, inserindo-se no ethos do funk ousadia, os MCs realizam seu próprio tratamento, a fim de se fazerem um nome própriopara lidar com o gozo, criando redes de identificações imaginárias que suplenciam a função paterna.

Se a operação de reenvio da Lei a um Outro em posição de exceção — como era a figura paterna — está hoje comprometida, i.e., se não é mais possível o confronto com o pai no lugar de exceção para interditar o gozo, o sujeito tende a permanecer numa economia psíquica marcadamente materna, imersa por um gozo sem lei, desorganizado e enigmático, carecendo de nomeação e limite, conferíveis por um Nome-do-Pai. Consequentemente, o pacto perverso aparece como uma solução possível, na medida em que o perverso tenta ocupar precisamente esse lugar de exceção, colocando-se na posição do Outro para garantir seu próprio gozo (Lacan, 1960/1998c, p. 839). Assim, o perverso promove sua fundação autorreferencial, tentando escamotear o caráter barrado, castrado, do próprio sujeito ($). Essa é a verdade do mestre: ser, no fundo, impotente.

Nesse sentido, é em suplência à função paterna que se erige o discurso hipersexualizado desses adolescentes, recheado de gemidos, balbucios, interjeições sexuais e gírias, compondo uma língua de gozo. Uma vez que a função dita "do pai" é ser o "agente da articulação da linguagem" (Lacadée, 2006, p. 36), ou seja, ensinar "que a linguagem também serve para comunicar" (p. 44), e essa função, hoje, está em déficit, os MCs fazem um "retorno à alíngua materna" (Lima, 2014, p. 327), uma pré-linguagem de gemidos e balbucios, gozo puro articulado ao objeto voz, não servindo à comunicação. O trabalho simbólico do pai é deslocar o significante desse gozo "puro som" para o sentido, tranquilizando a criança em relação ao caos pulsional, ao enigmático desejo do Outro, já presente nessa voz materna, ensinando a vertente de sentido da linguagem. Nesse caso, em razão da queda do modelo tradicional de Pai, "o adolescente se encontra sem o pai que nomeia, pois nomear é estabelecer uma relação, instaurar essa relação entre o sentido e o real" do gozo (Lacadée, 2006, p. 42). O Nome-do-Pai "é o pai que dá o nome, que nomeia as coisas" (Lacadée, 2006, p. 43), mas, aqui, é o próprio sujeito que inventa "um nome ao real que lhe concerne" (Lacadée, 2006, p. 51), que cria uma maneira de se autorreferenciar, de se dar um nome próprio, tal como os MCs Pedrinho, Brinquedo, Pikachu, Tavinho, entre muitos outros, fizeram sua nomeação.

Para Lacan (1953/1998b, p. 279), é no Nome-do-Pai "que se deve reconhecer o suporte da função simbólica que . . . identifica sua pessoa com a imagem da lei". Entretanto, "o Nome-do-Pai não passa de um semblante" (Lacadée, 2006, p. 35), algo que o próprio Lacan percebe, ao afirmar que "o Pai tem tantos e tantos [nomes] que não há Um que lhe convenha, a não ser o Nome do Nome do Nome. Não há Nome que seja seu Nome-Próprio, a não ser o Nome como ex-sistência. Ou seja, a aparência [semblant] por excelência." (Lacan, 1974/2003, p. 559). O sentido mesmo, que o pai deve instalar na alíngua da criança, é "aparência"; o sentido já "indica a direção na qual ele fracassa" (Lacan, 1972-1973/2008, p. 85). Pois o gozo "só se interpela, só se evoca, só se suprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência" (p. 99). Como coloca Lacan (1971/2009, p. 18): "Não há Nome-do-Pai que seja sustentável sem o trovão, que todos sabem muito bem que é um sinal, mesmo não sabendo sinal de quê. Essa é a própria imagem do semblante". E é precisamente isto que os MCs adolescentes fazem: um "trovão", semblante fálico de saber, na busca desse saber-fazer com o mundo, desse aparelhamento do gozo pela linguagem, usando o pai como semblante.

A ficção, então, constitui um nome próprio para esses adolescentes, de modo que eles podem se referir a si mesmos em terceira pessoa, como em "Cambalhota", de MC Pikachu ("O Pikachu vai falar . . .") e em "Solta o grave", de MC Pedrinho ("O Pedrinho de volta"). Esse é um recurso para a criação de um Nome-do-Pai, suporte da função paterna, responsável pela interdição do gozo autoerótico, ou seja, gozo do próprio corpo, para realizar uma vetorização fálica. Talvez esse seja um motivo para a genitalização excessiva nas letras das canções desses adolescentes, como tentativa de fazer essa preparação para o encontro genital com o objeto fora do corpo (papel que caberia à função dita "do pai"), aqui via supercompensação. Pois o que a castração, o encontro com o pai, significa é a necessidade de "que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo" (Lacan, 1960/1998c, p. 841). Até certa medida, os adolescentes estão realizando esse trabalho, visto ser possível servir-se do pai "para poder prescindir dele". "Trata-se, nesta época, de desvalorização dos semblantes paternos, de se apoiar, certamente, em figuras paternas sem crer nelas, e vemos que para um certo número de adolescentes isso funciona" (Stevens, 2013, p. 7).

Propomos, inclusive, que isso funciona não só para os MCs, mas também para seu público-alvo, o que justifica o sucesso do funk ousadia: na ausência de um Outro consistente, esses adolescentes constituem um "pequeno mito coletivo" (Stevens, 2013, p. 10) no lugar da lei paterna. Como se o discurso hipersexualizado pudesse trazer uma estabilização aos sujeitos, escamoteando a castração e a inexistência da relação sexual, via positivação do objeto-fetiche e insistência em um gozo ilimitado, paradoxalmente suplenciando a função paterna. É uma modalidade de gozo autista — já que orbita em torno das fantasias — que faz falso laço social, visto que compõe identificações horizontais entre membros de uma comunidade de gozo, que renega a castração.

Tal rede de identificações imaginárias confere consistência ao ser desses sujeitos por meio do semblante de saber, seja aquele suposto na "novinha", na "puta" ou no próprio adolescente, seja aquele que eles tentam construir por via do semblante. É assim que o funk ousadia estabelece um saber-fazer com o gozo, aparelha a linguagem, responde à castração, à inexistência da relação sexual e ao enigma do desejo do Outro, além de constituir um "pequeno mito coletivo" — uma pai-versão do gozo, transmitindo uma versão causa do desejo, ensinando uma maneira possível, embora profundamente problemática (G1, 2015b), de se tomar uma mulher — em torno da possibilidade de um gozo sem limites, gerando uma discursividade que possibilita essas identificações horizontais entre os sujeitos. Em vez de referências a um superior, há interação imaginária entre semelhantes, sujeitos que são como reflexos especulares uns dos outros, fortalecidos pelo uso de mesmas gírias e termos para os órgãos genitais, ou pelos jogos com o segundo sentido (e.g.: em "Roça roça", de MC Brinquedo: "A novinha não me quer / Só porque eu vim da roça / Roça, roça o piru nela que ela gosta"), fazendo provocações cínicas, pois "provocar é saber que se está dizendo... aquilo que não se deve dizer" (Dufour, 2013, p. 335). O funk serve para fabricar um "corpo pornográfico" (Dufour, 2013, p. 370), que culmina no compartilhamento de um mesmo ethos, qual seja, o da ousadia, semblante identitário que esses jovens utilizam, para poderem dele prescindir.

Talvez porque a ousadia em questão seja a união especular desses sujeitos em busca de consistência via identificações imaginárias, precipitando-se, da insuficiência para a antecipação, em um semblante de saber e domínio sobre o sexual que suas idades ainda não comportam, para, juntos, darem uma resposta ao encontro com o impossível da puberdade, optando por um pacto perverso (enquanto estimulado pela cultura) e insistindo na positividade do objeto. A "novinha", eliminando a responsabilidade da escolha subjetiva e tranquilizando o não saber do adolescente, garante aos sujeitos uma semblante fálico, ajudando a compor um Nome-do-Pai com o qual aparelhar o gozo. A ousadia desses jovens consiste, enfim, no enfrentamento sintomático de uma comunidade de neuróticos tradicionais, engendrando um conflito geracional a partir dos recursos psíquicos que encontraram para lidar com suas carências, tamponando a falha/falta do Outro. Assim, o suposto saber sobre o sexual prometeria resposta ao furo da estrutura, criando um contorno ao Real pulsional em jogo na puberdade e configurando o funk ousadia como forma contemporânea de tratamento do gozo e da não relação sexual.

 

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Endereço para correspondência
Vinícius Moreira Lima
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Rua Engenheiro Paulo Fernandes, 39 apto 602, Minas Brasil, CEP 30730-180, Belo Horizonte – MG, Brasil
Endereço eletrônico: vmlima6@gmail.com

Recebido em: 04/02/2016
Aceito em: 24/08/2018

 

 

Notas

* Graduando em Psicologia na UFMG (2015-2019), pesquisador em psicanálise (Freud, Lacan, Laplanche) e filosofia (Butler, Foucault, Nietzsche). Ex-bolsista de Iniciação científica do PIBIC-CNPq (2016-2018), sob orientação da Profa. Dra. Ângela Vorcaro (UFMG). Coordenador, juntamente com o Prof. Dr. Guilherme Massara Rocha, da pesquisa "Psicanálise lacaniana e teoria queer: um debate possível?" (2017-), em andamento no Departamento de Psicologia da UFMG.
1 Neste trabalho, optamos por não analisar as cantoras adolescentes no funk, como as MCs Princesa e Plebeia, visto que as especificidades do feminino exigem formulações ulteriores que não pudemos desenvolver aqui.
2 Entendemos por ethos o conjunto de traços peculiares a um grupo, conferindo-lhe um universo de identificações possíveis — por exemplo, com uma forma de vida específica — e servindo a algum tipo de narração do eu.

 

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