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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versión On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.spe Rio de Janeiro 2021
https://doi.org/10.12957/epp.2021.64031
Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2021.64031
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
Intersecções entre Gênero, Raça e Pobreza na vida de Mulheres no Nordeste do Brasil
Vilkiane Natercia Malherme Barbosa*; James Ferreira Moura Júnior**
Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, CE, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
A análise interseccional dos marcadores de raça, classe, gênero tem sido uma importante ferramenta ética e metodológica para a compreensão das condições de opressão vividas pelas pessoas em situação de pobreza. Reconhece-se que esses marcadores podem gerar tanto opressões como processos de resistências que afetam seus modos de vida. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar os impactos das intersecções do gênero, da raça, e da pobreza no modo de vida das mulheres de uma comunidade no Nordeste do Brasil. A proposta foi realizada a partir de uma perspectiva qualitativa, com entrevistas semi-estruturadas com sete mulheres pretas. Elas são moradoras de uma comunidade em situação de pobrezas em cidade com menos de 30 mil habitantes. Foi realizada análise de conteúdo do material produzido. Identificou-se que as estruturas macrossociais patriarcais, classistas e racistas exercem influência sobre os modos de vida destas mulheres. Como consequências, observou-se a existência de trajetórias de violências e de pobreza, fomentando processos específicos de opressão, por vezes reproduzidos pelas próprias mulheres. Contudo, é relevante pontuar que estas mulheres também têm produzido dissonâncias, permitindo experimentar resistências e novas formas de agenciamentos para a produção de novos modos de vida que desvelam possibilidade de enfrentamento destas mazelas sociais.
Palavras-chave: interseccionalidade, gênero, raça, pobreza.
Intersections between Gender, Race and Poverty in Women in the Northeast of Brazil
ABSTRACT
The intersectional analysis of markers of race, class and gender has been an important ethical and methodological tool for understanding the conditions of oppression experienced by people in poverty. It is recognized that these markers can generate both oppression and resistance processes that affect their lifestyle. Thus, the objective is to analyze the impacts of gender, race, and poverty intersections on the lifestyle of women in a community in the Northeast of Brazil. The proposal was carried out from a qualitative perspective with semi-structured interviews with seven black women. They are residents of a poor community with less than 30,000 inhabitants. Content analysis of the material produced was carried out. It was identified that patriarchal, classist and racist macro-social structures exert an influence on the lifestyle of these women. As a consequence, the existence of trajectories of violence and poverty was observed, fostering specific processes of oppression, sometimes also reproduced by women themselves. However, it is important to point out that these women have also produced dissonances, allowing them to experience resistance and new forms of agency to produce new lifestyle that reveal the possibility of confronting these social ailments.
Keywords: intersectionality, gender, race, poverty.
Intersecciones entre Género, Raza y Pobreza en las Mujeres del Noreste de Brasil
RESUMEN
El análisis interseccional de los marcadores de raza, classe y género ha sido un importante instrumento ético y metodológico para comprender las condiciones de opresión que experimentan las personas en situación de pobreza. Se reconoce que estos marcadores pueden generar tanto procesos de opresión como de resistencia que afectan a sus formas de vida. Así, el objetivo deste estudio es analizar los impactos de las intersecciones de género, raza y pobreza en el modo de vida de las mujeres de una comunidad del noreste de Brasil. La propuesta se llevó a cabo desde una perspectiva cualitativa con entrevistas semiestructuradas a siete mujeres no blancas, residentes de una comunidad pobre. Se realizó un análisis del contenido del material producido. Se identificó que las estructuras macrosociales patriarcales, clasistas y racistas ejercen una influencia en las formas de vida de estas mujeres. Como consecuencia, se observó la existencia de trayectorias de violencia y pobreza, que fomentaban procesos específicos de opresión, a veces también reproducidos por las propias mujeres. Sin embargo, es importante señalar que estas mujeres también han producido disonancias, lo que les ha permitido experimentar resistencia y nuevas formas de agencia para producir nuevas formas de vida que revelan la posibilidad de enfrentarse a estos males sociales.
Palabras clave: interseccionalidad, género, raza, pobreza.
Sabe-se que alguns marcadores como os de raça, classe, gênero e geração, dentre outros, são fundamentais para a compreensão dos modos de vida das pessoas. Eles podem dar pistas essenciais para o entendimento dos processos psicossociais vividos e das estratégias utilizadas no enfrentamento de mazelas sociais, tais como a pobreza (Bernardino-Costa, 2015; Crenshaw, 2002). O entendimento destes marcadores vai além do reconhecimento da existência destes, e atravessa uma dimensão vivencial, à medida em que se reconhece que estes não apenas existem como se relacionam entre si, formando e afetando as identidades e modos de vida das pessoas em relação a si mesmas e às outras (Castro, Lino, Gonzaga, & Mayorga, 2017; Crenshaw, 2002).
É importante destacar que no referencial interseccional não se propõe uma análise somatória dos múltiplos marcadores de raça, classe e gênero. Propõe-se que estas análises sejam feitas de forma articulada para construir enfrentamentos as situações de opressão de forma não fragmentada, ou seja, a partir de um ponto de vista interseccional que reconheça a multiplicidade de diferenças a partir dos sistemas machistas, patriarcais, racistas que as produzem (Castro et al., 2017). Entendemos também que, embora existam diferentes possibilidades de análises interseccionais, por uma limitação metodológica achamos importante visibilizar a análise interseccional dos marcadores de gênero, pobreza multidimensional e raça. Esta última é entendida como uma construção social ideológica de viés discriminatório, sendo uma categoria de classificação social que produz estruturas desiguais na sociedade (Lima, 2015). A raça deve ser entendida a partir do viés político, com objetivo de denúncia dessa hierarquização pautada na cor, buscando, assim, a construção de uma sociedade antirracista.
As implicações psicossociais da pobreza situam as pessoas na marginalização e subalternidade, diminuindo as capacidades de agenciamento das mesmas (Moura Jr., Almeida Segundo, & Barbosa, 2019; Sen, 2010). Esta diminuição da capacidade de agência acarreta às pessoas os sentimentos de inferioridade e vergonha causados pela percepção autodepreciativa de que são culpadas pelas condições de pobrezas vividas (Comim, Bagolin, Avila, Porto, & Picolotto, 2006). Compreendemos a agência de forma interseccional, como "espaços de ação calcados em marcadores sociais da diferença e que se dão em resposta aos cenários potenciais de desigualdades com as quais os sujeitos se confrontam" (Henning, 2015, p. 117).
Comim et al. (2006) pontuam que pessoas em condições de pobrezas sofrem perdas significativas em relação aos seus modos de vida que afetam seu bem-estar subjetivo, e demonstram mais sentimentos de exclusão social do que outros grupos que não estão em situação de pobreza. Estes mesmos autores pontuam que as privações são psicológicas e materiais, pois perpassam não só as questões objetivas da pobreza, devendo incluir as injustiças sociais e as diferenças de desigualdade em oportunidades.
Estas desigualdades de agenciamento e as injustiças sociais no Brasil têm origens muito antigas, que estão na base de nossa organização social (Souza, 2017). Esta é baseada no classismo, patriarcado e racismo, e induz diferentes formas de privação e privilégios, de acordo com os marcadores sociais da diferença (Diniz & Mayorga, 2018). Assim, é importante considerar que os marcadores de raça e gênero, por exemplo, impactam em diferentes oportunidades, deixando determinados grupos em situações mais vulneráveis do que outros (Bernardino-Costa, 2015).
Neste sentido, investigar como estes marcadores, especialmente, o de gênero, é afetado pelas condições de pobrezas vividas, e como isto impacta nas relações socio comunitárias é importante para que possamos compreender os objetivos desta pesquisa. Quando pontuamos a relevância de tornar visíveis as desigualdades entre mulheres e homens, estamos partindo da concepção de que as desigualdades são processos que nos aproximam da compreensão dos mecanismos de reprodução das mesmas, como das formas de enfrentamento produzidas a partir das experiências das pessoas em posição de subalternidade (Diniz, & Mayorga, 2018).
Desta forma, apontamos que os marcadores de gênero, classe e raça tanto podem operar desigualdades, discriminações, opressões e vulnerabilidades, quanto podem operar emancipação, empoderamento e resistências, tendo a capacidade de reverberar em estratégias de agenciamento democráticos (Henning, 2015; Sen, 2010). Espinosa, Gómez Correal, Lugones e Ochoa (2017, p. 415) ressaltam a relevância de nos vermos como "sujetos articulados por las opresiones, por la necesidad de transformación y por la capacidad de tener, habitar y construir alternativas". Assim, acredita-se que visibilizar as desigualdades de gênero vividas pelas mulheres no contexto do estudo possa facilitar não apenas o reconhecimento das opressões, mas também caminhos para fomento e facilitação de estratégias de resistência.
É importante também pontuar que nos propomos a tratar das realidades em contexto comunitário de mulheres que vivem em situação de pobreza, que em sua maioria se auto identificam como pardas e pretas, e que se localiza numa região mais interiorana, do estado do Ceará, no Nordeste do Brasil. Entendendo a relevância de localizar a que mulheres nos referimos, pois, como aponta Espinosa et al. (2017), pensar a categoria mulher como universal e embasar práticas que não reconheçam as diversidades fortalece a violência e a subordinação operadas sobre as mulheres pretas, que não estão incluídas na universalidade burguesa.
Hooks (2015) pontua que as teorias feministas inicialmente não emergem da realidade da maioria das mulheres, e sim de um recorte de mulheres brancas, acadêmicas, que em seus discursos não se preocupavam em discutir as questões de classe e raça como centrais ao feminismo; pelo contrário, focalizavam seus discursos nas formas de desigualdades sexistas, que não incluem as formas de opressão sofridas pelas mulheres pretas e pobres. Tendo em vista isto, Espinosa et al. (2017) têm considerado a relevância de um feminismo decolonial que tenha como práxis a transformação das relações sociais de opressão e subordinação a que as mulheres pobres, negras e indígenas têm sofrido, especialmente, considerando o território latino americano. Pode-se, assim, fortalecer processos de libertação e afirmação das múltiplas possibilidades comuns e singulares dos modos de vida e produção de subjetividade destas mulheres.
Crenshaw (2002) aponta que as discussões no âmbito do feminismo precisam perpassar a tríade gênero, classe e raça, numa perspectiva interseccional que reconheça os processos de discriminação e exclusão a partir destes e de outros marcadores sociais das diferenças para um melhor afrontamento das distintas e múltiplas formas de opressões. Henning (2015) pontua que a interseccionalidade faz referência às discussões e reflexões sobre as diferenciações entre marcadores que, articulando-se à categoria gênero, perpassam o social.
Christensen e Jensen (2012) consideram que a interseccionalidade é capaz de capturar as complexas relações e interações entre a categoria gênero e outras diferenciações sociais no contexto sociocultural contemporâneo. Desta forma, a abordagem interseccional tem um princípio não-aditivo, pois os diferentes marcadores sociais se constituem mutuamente como formas de diferenciação social (Crenshaw, 2002). Assim, nos debruçarmos sobre a interseccionalidade entre gênero, raça e pobreza constitui uma potente possibilidade de investigação em que a discussão interseccional tem grande relevância para problematizar a estrutura social, as relações sociais e as subjetividades produzidas no cotidiano. Aqui apontamos a pobreza, pois não falamos de qualquer classe social, mas das pessoas que têm suas realidades imersas em contextos de pobreza.
Outra questão relevante acerca desta temática é o reconhecimento de que mulheres sofrem mais os efeitos da pobreza do que homens, uma vez que a organização social capitalista também está baseada no sistema patriarcal que coloca a mulher em posição de subalternidade frente ao homem (Diniz & Mayorga, 2018). Esta posição de subalternidade torna-se ainda mais perversa se esta mulher também for negra e pobre (Castro et al., 2017). Para Candau (2017), ao se discutir pobrezas na América Latina, é relevante ter a compreensão de que esta é atravessada pelo gênero, pelas etnias e pela raça, pois se reconhece que as pobrezas estão mais presentes em determinados grupos e populações. Bernardino-Costa (2015) aponta que as mulheres negras sofrem mais desigualdades e violências do que as mulheres brancas, pois a organização social brasileira, desde o período colonial, subalterniza as identidades destas mulheres.
Assim, as discussões de raça dentro deste contexto precisam ser mediadas pelas percepções de negritude e branquitude, que atravessam as produções de vida e de morte nestes contextos periféricos (Bento, 2009). Neste sentido, entendemos como interessantes as discussões suscitadas por Walsh (2017) e Espinosa et al. (2017) que, em uma construção crítica desse processo vivido no Brasil e em outros países da América Latina, vem discutindo a identidade da mulher preta reconhecendo outras produções de subjetividades conectadas com outras possibilidades de ser mulher. Especialmente quando se dialoga com a cultura ameríndia e com os contextos de desigualdades sociais, violências, e subordinações a que estão submetidas a maioria destas mulheres (Espinosa et al., 2017).
Importante considerar também que as diferenças de condições de pobrezas entre mulheres brancas e mulheres pardas e pretas é relevante. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (2019), considerando a pobreza monetária, a proporção de mulheres brancas com renda per capita inferior a US$ 5,50 PCC diários (equivalentes à 420 reais) é de 15,2%, enquanto a de mulheres pretas é de 33,5%. Assim, torna-se evidente que as desigualdades sociais afetam de maneira mais forte estas últimas. Desta maneira, embora reconheçamos os efeitos nefastos da estrutura social racista em que vivemos tem sobre pessoas pardas e pretas, independente do gênero, entendemos que sobre as mulheres as condições de vida ainda são mais perversas (Macedo, 2008).
Neste sentido, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe [CEPAL] (2016, p. 24) aponta que as mulheres tendem a sofrer mais os efeitos da pobreza porque são privadas de mais direitos do que os homens. Na "América Latina, em 2014, uma em cada três mulheres acima de 15 anos de idade que não estudavam de maneira exclusiva, não tinha renda própria, enquanto uma situação semelhante só ocorre em um em cada dez homens". Para as mulheres, isto implica menos possibilidades de acessar serviços e bens. Além disso, elas podem ser colocadas em uma posição de subalternidade e dependência financeira com mais facilidade do que homens (Romio, 2017). Isso pode ajudar a explicar a participação crescente da representação de mulheres nos domicílios mais pobres, e também a vulnerabilidade de muitas destas, que, mesmo em domicílios não pobres, caso haja alguma mudança profunda na estrutura familiar como divórcio e viuvez, tendem a estar mais vulneráveis à situação de pobreza (CEPAL, 2016).
Para Romio (2017), as mulheres historicamente têm sofrido privações econômicas, sociais, dentre outras, que têm produzido desigualdades entre homens e mulheres. Estas têm estado, mais frequentemente do que os homens, em situação de vulnerabilidade a situações de violência e pobreza, especialmente considerando as estruturais macrossociais classistas, machistas e patriarcais. A CEPAL (2016) também pontua que existem mais mulheres vivendo sem receita própria (26,8%) do que homens (15,7%) no ano de 2014. Para o IBGE (2019), em 2018 os homens ganharam em média 27,1% a mais do que as mulheres, considerando os ganhos relacionados à produção de trabalho. Embora adotemos neste trabalho uma noção mais ampliada de pobreza, estes dados nos indicam que mesmo que tomemos apenas a questão monetária, existem desigualdades entre as diferentes populações, bem como entre gêneros, que se tornam indicativos de que existem grupos mais privados de suas capacitações do que outros. Neste cenário, as mulheres são mais vulneráveis às situações de pobreza do que os homens.
Outro dado significativo é apresentado pelo IBGE (2019), quando considera o nível de instrução de homens e mulheres em relação à inserção na força de trabalho: quanto maior o nível de instrução, maior será a participação no mercado. Os dados apontam que as mulheres brasileiras estão alçando níveis de instrução maiores ao longo dos anos, enquanto os dos homens não têm crescido tanto. Entretanto, em 2018 isso não foi suficiente para garantir que elas tivessem maior participação na força de trabalho em relação aos homens. Pelo contrário, os homens tiveram um resultado de 72,0%, enquanto as mulheres tiveram o resultado de 52,9%. Isso aponta que somente a escolaridade não é suficiente para que as mulheres elevem sua força de trabalho em proporção semelhante ou maior à dos homens (IBGE, 2019).
Macedo (2008) indica que tomar o gênero como categoria de análises pode oferecer entendimentos acerca das relações entre mulheres e homens e suas vivências e representações sociais dentro de suas famílias, comunidade e sociedade como um todo, sendo uma possibilidade de resistência aos efeitos perversos na vida das mulheres ocasionado pelas desigualdades de gênero, como também, serve para percebemos as transformações nas relações de poder possibilitadas pelo crescente protagonismo social feminino. Para Castro et al. (2017), o gênero enquanto categoria de análise pode tornar visível os modos operantes do sistema e do poder patriarcal, racista e hierárquico brasileiros, que historicamente têm produzidos desigualdades entre mulheres e homens, negras(os) e brancas(os), pobres e ricos(as), além de possibilitar o seu enfrentamento. Considerando o exposto até aqui, este artigo tem como objetivo analisar os impactos das intersecções do gênero, da raça e da pobreza no modo de vida das mulheres de uma comunidade no Nordeste do Brasil.
Método
Tipo de Pesquisa
A Abordagem Qualitativa busca compreender a dimensão subjetiva da realidade. Deste modo, nesta investigação se considerou importante permitir que as participantes fossem partícipes na construção de estratégias de superação das situações de opressão e da produção compartilhada de conhecimento (Minayo, Assis, & Souza, 2005). Utilizamos o método de pesquisa-participante (Flick, 2009), que propõe uma possibilidade de pesquisar junto às pessoas em contextos comunitários, que é de onde emergem as problemáticas sociais e o problema delimitado nesta pesquisa.
Participantes e Território da Pesquisa
Sobre a localidade de realização da pesquisa, trata-se de uma cidade na região do Maciço do Baturité, no interior do Ceará, com menos de 30 mil habitantes. O bairro onde foi realizada a pesquisa tem aproximadamente 560 pessoas, e é zona urbana em relação à cidade em que se localiza. Contudo, mantém características interioranas, as relações entre a vizinhança são estreitas, mesmo porque esta se compõe, em muitos casos, por pessoas da mesma família. O bairro tem ritos e festas compartilhados, especialmente de cunho religioso, e não possui movimentos de moradores organizados, tais como associações. Porém, existem lideranças informais, mulheres em sua maioria. Há a incidência do tráfico de drogas, falta de saneamento básico e violência como intersecções estruturais da comunidade. A localidade foi escolhida em virtude de um projeto de extensão estar em andamento no território, e pelas condições de pobrezas vividas.
As participantes da pesquisa foram sete mulheres, com idades que variam de 27 a 72 anos, e vivem há dez anos ou mais no território. Entre elas, existem algumas que estão entre as primeiras pessoas a morar no bairro, e outras que moram ali desde que nasceram. Entramos em contato com as mesmas a partir de uma inserção comunitária realizada no território para identificação de lideranças comunitárias. A escolha das participantes foi feita a partir da conveniência e do procedimento "bola de neve" (snow ball) (Flick, 2009). Os critérios para participação na pesquisa foram: aceitar participar da investigação; ter idade mínima de 18 anos; viver na comunidade; e serem mulheres.
Resguardando as identidades pessoais das participantes, vamos apresentar alguns elementos de suas trajetórias que são relevantes para as discussões deste trabalho. Pontuamos que foram perguntadas informações sociodemográficas, como a raça e a idade. Neste sentido, esta apresentação tem por objetivo reconhecer e legitimar as trajetórias que fazem parte do modo de ser mulher de cada uma das participantes.
Foram dados nomes fictícios às participantes para resguardar suas identidades pessoais. A escolha dos nomes foi aleatória, não tendo relação com suas trajetórias de vida, tendo sido nomeadas em homenagem a outras mulheres com trajetórias relevantes de luta e resistência no contexto nordestino e brasileiro, sendo a grande maioria de mulheres pretas e nordestinas. Sete mulheres foram convidadas a participar desta etapa da pesquisa. A seguir, apresentamos as entrevistadas.
A primeira é Maria Firmina dos Reis, preta, tem 70 anos, seis filhos e é aposentada, vive na comunidade há pouco mais de 40 anos. A segunda é Laudelina de Campos Melo, preta, aposentada, tem 72 anos e cinco filhos – quando o último nasceu, o marido se separou dela para viver outra relação com uma mulher mais nova. A terceira é Maria Bonita, parda, tem 27 anos. É funcionária pública de uma instituição federal. A quarta mulher é Dadá, parda, tem 65 anos, três filhos, é aposentada e viúva. Vive na comunidade há mais de 30 anos, com a filha mais nova. A quinta é Elisabeth Teixeira, parda, tem 34 anos e dois filhos, e atualmente está desempregada. A sexta mulher é Esperança Garcia, preta, tem 42 anos, três filhas e é autônoma. A sétima é Margarida Alves, parda, tem 60 anos, três filhos e é aposentada.
Instrumentos de Coleta de Dados
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas a partir de perguntas abertas baseadas na análise dos resultados obtidos no estudo quantitativo, buscando a apreensão dos sentidos e experiências cotidianas relacionadas ao fenômeno em estudo e à imbricação com a fundamentação teórica, bem como no desejo de aprofundar as questões de gênero e desigualdades sociais vivenciadas por estas mulheres pretas.
A entrevista semiestruturada é uma técnica de apreensão das experiências cotidianas e dos sentidos desenvolvidos pelas entrevistadas, a partir da construção de um roteiro elaborado de forma dedutiva a partir das experiências da realidade em estudo e da fundamentação teórica deste (Flick. 2009).
Também é importante pontuar a flexibilização na elaboração deste roteiro, a fim de permitir a dinamicidade às perguntas a partir do discurso das entrevistadas (Flick, 2009). As entrevistas foram realizadas baseadas numa relação de horizontalidade, respeito e empatia para com as entrevistadas, para que estas se sentissem acolhidas e expressassem seus pontos de vista sobre a problemática estudada (Minayo, Assis, & Souza, 2005). As entrevistas foram gravadas e o material foi transcrito para fins de análise.
Análise de Dados
A análise que nos propomos tem um viés interseccional, pois leva em consideração os marcadores sociais da diferença, os contextos específicos e as relações de poder atreladas ao mesmo para a construção das reflexões analíticas (Christensen & Jesen, 2012). As informações oriundas das entrevistas foram analisadas a partir do referencial teórico da análise de conteúdo (Bardin, 2010). Esta análise tem como finalidade a interpretação baseada em inferência a partir de indicadores qualitativos e quantitativos. Bardin (2010) relata que esta análise pode ser realizada a partir de seis técnicas possíveis, e aqui nos centraremos na análise categorial.
A análise de conteúdo categorial, segundo a autora Bardin (2010), é uma das técnicas de análise de conteúdo mais utilizadas neste método. Apresenta a possibilidade de categorização a partir da análise temática que, neste trabalho, centra-se nas dimensões das categorias gênero, pobreza e raça, exploradas nas entrevistas. Esta mesma autora destaca que há a possibilidade de realizar esta análise a partir de categorias dedutivas e indutivas. Contudo, a proposta é que esta análise seja construída a partir das falas das pessoas, portanto, só utilizaremos as categorias indutivas. Na fase de codificação dos dados foi utilizado como recorte a perspectiva temática vinculada às categorias analíticas de gênero, pobreza e raça. Na fase de agregação, as categorias foram relacionadas em macro categorias ou relacionadas entre si. Também foi possível enumerar a frequências das categorias e das macro categorias utilizadas.
Procedimentos
Para a realização desta pesquisa, foi necessária a inserção no território. Esta investigação foi realizada em parceria com um projeto de extensão que atuava na comunidade. Inicialmente, foram realizadas caminhadas comunitárias para apropriação do território e fortalecimento do vínculo com a população do bairro. Tendo ao todo sete participantes, as entrevistas foram realizadas nas casas destas. Em média, cada entrevista durou de 35 a 45 minutos.
Questões Éticas da Pesquisa
Reforça-se o compromisso ético-político com as atrizes sociais envolvidas nesse processo investigativo, especialmente, considerando que o tipo de investigação aqui proposto diz respeito às trajetórias de vida destas, que se dispuseram a serem partícipes, e através da pesquisa podem ser levadas a refletir sobre si e sua realidade (Minayo, Assis, & Souza, 2005).
As participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) após explicação do propósito da pesquisa, as expectativas que se tinha das participantes, os procedimentos que seriam realizados. Também foi garantindo o sigilo e anonimato das informantes da pesquisa (Flick, 2009). Por fim, importante pontuar que o compromisso ético e social é transversal a esta pesquisa, tendo sido submetida e aprovada no Comitê de Ética da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro- Brasileira (UNILAB), sob o registro CAAE n. 89916418.2.0000.5576.
Resultados e Discussão
Spivak (2010) discorre que historicamente, no processo de colonialidade, têm existido tensões excludentes de pessoas a partir de marcadores da diferença, como a classe, raça e gênero. Este projeto colonial age em concomitância ao patriarcado e ao capitalismo, cerceando as liberdades de negras(os), pobres e mulheres, se apresentam como subalternos. Suas liberdades de emancipação humana são podadas em prol da supremacia de um outro. Uma das participantes pontua sobre as liberdades de mulheres e homens:
Aquela história de que, eu também disse, de que homem pode, homem pode beber, homem pode não sei o quê, pode sair. Acho que isso ainda é meio, meio forte. E alguns casos quando é diferente, são poucos, mas acho que ainda se predomina isso (Trecho de entrevista de Margarida Alves).
Um dos fatores que influenciam estas questões é que mulheres pretas, em comparação com mulheres brancas e homens negros e brancos, em função do racismo estrutural e da organização social desigual e capitalista, têm tido suas trajetórias profissionais mais cerceadas por processos de exploração e opressão, que lhes impõem possibilidades restritas de se dedicar à própria formação profissional (Biroli, 2018). Estas ocupam os trabalhos com menos remuneração, e são a maioria das trabalhadoras domésticas (Bernardino-Costa, 2015). Sofrem mais violações em seus direitos trabalhistas, devido às condições de subalternidade vivenciadas em trabalhos informais, mal remunerados, e com alta carga de trabalho (Souza, 2017). Isto também afeta suas disposições para a participação social, como pode ser observado a seguir:
Essa mulher aqui nunca estudou, não sabe de nada. Eu participo das coisa da igreja graças a Deus, gosto muito, graças a Deus sou católica apostólica romana com todo gosto. E aí nós faz parte de muitas coisas, dos círculos bíblicos, das legionárias de Maria, nós faz parte do apostolado do coração de Jesus, nós participa de tudo da igreja. Aí eu não sei ler nada, aí quando chega nos canto: fala Laudelina? Aí eu digo não sei falar não, fala vocês que sabem ler, que são formados. (Trecho de Entrevista da Participante Laudelina de Campos Melo).
A falta de um processo de educação formal fez com que esta entrevistada se acreditasse diminuída, incapaz de produzir conhecimento e de estar à frente de processos relevantes em seu círculo comunitário. Relata vir passando desde a infância por processos de pobreza que se agravaram após o término do casamento, como neste trecho da entrevista:
[...] vivi muito com isso. Lavei muito prato pra poder ganhar um prato de comida, eu criei seis filhos, quantos anos eu tinha quando fiquei separada de marido? 32 anos (pausa). Fiquei separada de marido com meia dúzia de filhos, eu fiz todo trabalho que tinha direito, só teve duas coisas que eu não fiz, foi graças ao meu Deus, foi me prostituir e roubar, mas o resto (risos). Pois é minha filha mas é assim, eu criei esses filhos, hoje estão todos nas casas deles, casados, meus seis filhos, três homens e três mulheres, graças a Deus, tão lá tudo numa boa, agora eu duvido você dizer quantos anos eu tenho (Trecho de Entrevista da Participante Laudelina de Campos Melo).
Segundo Biroli (2018), as mulheres, por conta da divisão social do trabalho, tornam-se mais vulneráveis com o fim do casamento com filhos, porque a organização social as colocou na responsabilidade de cuidado e proteção dos filhos. É um processo desigual, visto que os homens dedicam menos de um terço do tempo aos cuidados domésticos e de filhos (CEPAL, 2016). Eles representam cerca de 3,6% dos chefes de famílias monoparentais, enquanto as mulheres são 42,65% das chefes de famílias formadas por mulheres e seus filhos (IBGE, 2019). Vale pontuar que existem distinções entre as vivências de mulheres pretas e brancas: estas últimas, por vezes usufruindo do processo de submissão imposto às mulheres pretas quando as contratam para ocupar atividades domésticas e mal-remuneradas em seus próprios lares, não sendo possível a leitura dos dados apresentados acima sem o reconhecimento do racismo estrutural (Bernardino-Costa, 2015).
Tais estruturas encontram resistências, e uma delas é centrar a discussão de gênero em uma perspectiva de reconhecimentos das relações de desigualdades entre mulheres e homens frente à organização social (Macedo, 2008). Como, também, reconhecer as desigualdades raciais entre pessoas pretas e brancas, pois mulheres pretas apresentam vivências distintas de mulheres brancas, sendo muitas vezes, mais marcadas por processos de opressão e exploração (Espinosa et al., 2017). É possível pensar em estratégias e novos projetos subjetivos societários que afrontem as formas de opressão fomentadas (Castro et al., 2017). No trecho da fala a seguir, aparecem micro resistências que movem novos agenciamentos do ser mulher:
[...]E pra mim, assim, eu particularmente, eu busco ser totalmente o oposto do que vi, vejo e venho vivenciando durante muito tempo. Principalmente depois que a gente casa e tem muita aquela cobrança, você casa aí: "e filho?", e não sei o quê. Então, por essa cultura, eu, eu particularmente prezo o oposto, que a gente deve pensar bem, priorizar primeiro os nossos sonhos e depooiiis, essa questão da família. Não que eu seja contra, mas, eu priorizo primeiro elencar outras coisas, pra depois, se acontecer, esteja em segundo plano (Trecho de Entrevista de Maria Bonita).
Assim, embora ocorram processos de opressão e subalternidade, é relevante pontuar que há também processos de resistências interseccionais que têm afirmado, no cerne de suas ações, a visibilidade e o fortalecimento dos agenciamentos e resistências das minorias, inclusive destas mulheres, especialmente no contexto latino-americano (Walsh, 2017).
Importante também considerar o que as entrevistadas disseram sobre pobreza. Partimos de uma concepção de pobreza multidimensional, a partir das abordagens das capacitações, que parte do princípio de que as pessoas não têm o mesmo acesso a direitos básicos, como saúde, educação, seguridade social, e que isto impacta nas escolhas de vida, havendo mais privações a determinadas parcelas societárias (Sen, 2010). Reconhecemos que trabalhar a partir desta concepção amplia as nossas possibilidades de análise, pois as dimensões da pobreza têm diferentes efeitos sobre a vida cotidiana das pessoas e no contexto comunitário em estudo.
Um dos efeitos desta desigualdade social entre homens e mulheres é a diferença visível, na fala das participantes, entre o acesso que mulheres e homens têm ao estudo e ao trabalho. A maior parte das participantes reconhece que há distinções relevantes, e que os homens são privilegiados por não assumirem responsabilidades, tais como o cuidado doméstico de filhos (Macedo, 2008): "O homem tem mais, né? Às vezes a mulher começa a cuidar de família mais cedo, né? E os homens podem continuar estudando e a mulher vai cuidar dos filhos." (Trecho de Entrevista de Maria Firmina dos Reis). Este relato aponta para o reconhecimento intrínseco de que há uma divisão sexual do trabalho e que existem funções de cuidado que são deliberadamente dadas às mulheres, acarretando duplas e até triplas jornadas de trabalho (Biroli, 2018).
Outra questão acerca da responsabilização exacerbada do cuidado realizado pelas mulheres, especialmente de crianças, idosos e pessoas que precisam de cuidados integrais, é que isto as torna mais vulneráveis às implicações psicossociais da pobreza. Na maioria dos casos, estas não passam privações sozinhas (Biroli, 2018). São responsáveis pelos cuidados dos filhos, o que é comum no contexto comunitário, onde há muitas mulheres que foram abandonadas pelos seus companheiros e se tornaram mais vulneráveis economicamente falando. Boa parte já não tinha renda própria, pois o trabalho desenvolvido era não- remunerado. Com as separações, tiveram que se inserir no mercado de trabalho, e pela não- qualificação, dentre outros fatores, assumem posições de trabalhos mal remunerados por precisarem prover todo o sustento familiar (Romio, 2017). Como é possível ver na fala a seguir:
Porque a gente não cria filho com pensão sabe? Quando o homem tem consciência e paga a pensão do filho é uma ajuda, mas nenhuma mulher consegue criar um filho com uma pensão não. Então, o quer que eu acho disso, né? Eu acho assim: que graça a Deus, né? Que existe mulheres com coragem de assumir os seus filhos, que se não assumisse, seria bem diferente, né? Mesmo, né? Com problemas de emprego, mesmo ganhando pouco, né? Mas elas arregaçam as mangas, né? E consegue criar. (Trecho de Entrevista de Esperança Garcia).
Nestes cenários, também se destacam as formas de trabalho e renda que as mulheres assumem. Muitas trabalham em serviços domésticos mal remunerados, ou o sustento é conseguido a partir de trocas, como de alimentação. As mulheres, especialmente as pretas em situação de pobreza, tornam-se ainda mais expostas às vulnerabilidades, porque o trabalho que realizam é mal e/ou não remunerado e de autoconsumo (Bernardino-Costa, 2015).
É o papel da mulher, é trabalhar, procurar um trabalho. Ou é nas cozinhas, ou no mercantil quem sabe de alguma coisa, né? Quem não sabe, não tem mesmo como, é ou é a língua ou o berço, uma das duas, é o jeito que tem. Aí, porque todo mundo necessita, todo mundo tá precisando. (Trecho de Entrevista de Laudelina de Campos Melo).
A fala evidencia que há uma estrutura culturalmente criada que fomenta relações assimétricas de poder que desfavorece as mulheres. Estas são forçadas a assumir triplas jornadas de trabalho, recaindo sobre si a responsabilidade pelo âmbito doméstico familiar (Leite, Dimenstein, Dantas, Macedo, & Freitas, 2016). Como Biroli (2018, p. 51) pontua: "permanece, portanto, a necessidade de se compreenderem e enfrentarem os padrões de gênero nessas hierarquias, considerando que a produção do gênero nas relações de trabalho se faz na intersecção de ao menos três fatores: gênero, classe e raça".
Estas trajetórias são vivenciadas por gerações de mulheres da mesma família e, na maioria das vezes, iniciadas ao trabalho doméstico ainda na infância, porque cotidianamente e historicamente estas mulheres ocupam este lugar subalterno (Souza, 2017; Bernardino-Costa, 2015). Acreditamos que essas opressões não são fatores isolados e inerentes apenas a estas trajetórias, porque existem intersecções de classe, raça e gênero nos processos vividos (Hooks, 2015), fazendo com que estas trajetórias sejam comuns as mulheres pretas e pobres. Como pode ser observado nos trechos a seguir:
Porque, às vezes, por ter filhos e tudo mais, às vezes algumas mulheres acabam meio que ah, achando que isso é condição pra não fazer. Por gerações, gerações que a gente vem vendo isso. Até você ter outra visão né? Demora, meio que demora um pouco, é, as mulheres acabam meio que, primeiro, priorizando a família, os filhos, aí depois que vão pensar em si e, assim: "agora é que eu quero trabalhar, agora eu vou fazer isso, agora vou ter o meu dinheiro pra comprar as minhas coisas", mas acaba que ela ficando em segundo plano. (Trecho de Entrevista de Maria Bonita).
A partir dos relatos apresentados, é possível compreender alguns aspectos que diferenciam as situações de pobrezas de mulheres não-brancas. São contextos de muitas privações, de sujeitos que já iniciaram suas infâncias com a rápida inserção no trabalho doméstico (Bernardino-Costa, 2015). O trabalho infantil realizado por estas, por vezes, nem é reconhecido como tal, em seus relatos. Há um processo de invisibilização destes trabalhos domésticos como tal, o que é comum no contexto brasileiro, pois existe um processo de servidão relacionado a ganhos de necessidades básicas (de alimentação, roupas, moradia), que muitas vezes não são supridas pelas famílias de origem (Biroli, 2018; Macedo, 2008). Produz-se uma relação servil, onde a trabalhadora doméstica não se sente como tal, porque o trabalho realizado é como se fosse uma dívida de gratidão pelo "cuidado" prestado por quem emprega (Souza, 2017).
Outra questão que se destaca é a dependência financeira de seus cônjugues, como descrito no primeiro relato, fruto de um percurso histórico-social de outras dependências (de trabalhos domésticos, cuidado dos filhos, emocional) em que as mulheres são sobrecarregadas, especialmente as pretas, que têm menos tempo e possibilidade de se dedicarem à própria formação e carreira profissional (Biroli, 2018).
O casamento para estas mulheres pretas acaba acarretando uma jornada de trabalho não remunerado, considerado necessário para a (re)existência da família, porém muito pouco valorado socialmente (Romio, 2017). As mulheres pretas, neste contexto de vulnerabilidades, acabam então tendo menos possibilidade e tempo para o trabalho remunerado, especialmente o mais qualificado. Isso se deve ao racismo estrutural que afeta a trajetória de mulheres pretas que têm ocupado historicamente posições de subalternidade (Macedo, 2008; CEPAL, 2016). Essas estruturas estão presentes não apenas no passado destas mulheres, e de tantas outras, mas também nos tempos atuais. Por vezes, especialmente, nas condições de pobreza e trabalhos menos qualificados, as mulheres são pior remuneradas em relação aos homens (Biroli, 2018). A posição de subalternidade que as mulheres pretas ocupam nas relações de trabalho fomenta e fortalece a dominação do patriarcado (Castro et al., 2017). Um desses processos de submissão por parte de alguns homens à suas companheiras é a proibição de que estas exerçam determinadas formas de trabalho:
Aqui passa tanta gente pedindo ajuda, umas meninas novas, umas pessoas novas. Aí, a gente pergunta: "ei mulher, tem a minha filha que tá precisando de um trabalho, uma pessoa pra trabalhar"; "não, não quero não, que meu pai não deixa não", ou "meu namorado que não deixa". Oia, já pensou? O namorado não deixa e deixa ela ir pra porta de alguém pedir ajuda. (Trecho de Entrevista de Laudelina de Campos Melo).
Tais estruturas machistas, patriarcais, classistas e racistas também mobilizam efeitos entre as pessoas em condição de opressão e subordinação (Leite et al., 2016). Neste sentido, estas também reproduzem entre seus pares estes discursos. Durante o processo de entrevistas, pudemos perceber que, em alguns momentos, as mulheres reproduziram concepções machistas sobre os modos de vida das mulheres. Ao serem indagadas se existiriam mulheres "mal faladas" na comunidade, e se mulheres e homens teriam as mesmas liberdades, muitas respostas reproduziram concepções evidentemente machistas, como pode ser observado no trecho a seguir:
Primeiro, né? Ás vezes a mulher mesmo não se valoriza. Segundo, é o preconceito né? De nós, da sociedade. A gente tem muito preconceito. E além do preconceito, muitas de nós mesmo não se valoriza, né? Não são todas não, né? Mas tem algumas que realmente às vezes faz questão de demonstrar a opção, que não tem aquele cuidado, aí, infelizmente tem uns que tentam né? Cuidar da vida dos outros, né? E se tornam mal faladas, né. (Trecho de Entrevista de Esperança Garcia).
Importante considerar que a comunidade em estudo é relativamente pequena, havendo um estreitamento dos laços de vizinhança. Na dinâmica dos processos psicossociais comunitários se dá a reprodução destes discursos machistas entre as mulheres, podendo fragilizar as relações entre as mesmas. Contudo, é relevante aqui fazermos um recorte geracional, que, segundo Barreto (2009), é um dos aspectos que devem estar relacionados ao gênero, necessitando de análises interseccionais desta categoria. Há distinções relevantes entre as opiniões expressas pelas mulheres mais velhas e mais jovens. Esse conflito geracional se torna mais evidente nas questões relativas ao modo de ser mulher. Além da questão geracional, o acesso à educação também afeta estas questões, neste contexto. As entrevistadas mais jovens tinham níveis educacionais mais elevados. Entendemos que há muitas nuances que explicam o porquê destas distinções, e que se desvelaram como significativas para análises aqui apresentadas.
Acho que eu elencaria assim: que o mal falado talvez seria por isso, porque hoje algumas pessoas optaram por outra maneira de viver. Algumas pessoas criticam, porque talvez não fosse no seu tempo, não fosse daquela maneira. De repente a mulher foi criada pra ter aquela rotina, quando ela ver uma outra sendo diferente, acaba que criticando por ter assim um outro olhar: "não deveria fazer, ah, tipo se separa do marido e tá com outra pessoa, deveria aguentar, porque mulher tem que estar naquele espaço ali, casar e não sei o quê e ficar aguentando". E ainda bem que se é pra ser mal falada, que seja pra mudar a sua vida e não tá aguentando aquilo, porque é muito fácil falar, o ruim é você tá vivendo aquela situação, e se a pessoa toma essa atitude é porque com certeza ela estava passando por coisas maiores né? (Trecho de Entrevista de Maria Bonita).
Estes conflitos fazem parte da própria dinâmica comunitária e das distintas representações sociais de ser mulher, desvelando que existem perspectivas que relacionam diferentes liberdades e modos de vida e suas reverberações para o cotidiano das mulheres. Assim, os aspectos que Maria Bonita aponta são esses avanços, como a possibilidade do divórcio. Estabelecem-se outros modelos sociais para o ser mulher, recebendo críticas inclusive entre pares. Contudo, as mesmas não são capazes de barrar estas múltiplas possibilidades de vivência. Pelo contrário, há um movimento de insubordinação e resistências que tornam possíveis outras trajetórias. Perpassam também as possibilidades que o próprio tempo histórico, social, cultural e econômico vem possibilitando às mulheres das novas gerações, que gozam de mais oportunidades e possibilidades que as mulheres mais velhas não acessariam (Macedo, 2008; Romio, 2017).
Importante apontar que estes marcadores sociais também produzem resistências e agenciamentos para a mudança social (Sen, 2010; Henning, 2015). Estes movimentos de resistência às estruturas micro e macrossociais opressoras se desvelam nas falas das entrevistadas. Apresentam-se direcionamentos para abordagens psicossociais que, tomando o gênero como categoria de análise, produzem afrontamentos às desigualdades sociais (Castro et al., 2017). Uma das questões que apareceram são os movimentos de desnaturalização do papel social subalterno da mulher, possibilitando a existência de outros papéis sociais e invertendo, inclusive, a lógica machista da mulher enquanto exclusivamente cuidadora do lar.
Considerações Finais
Nesta pesquisa, reconhecemos que uma abordagem interseccional é necessária para lidar com o fenômeno da pobreza e suas relações com o gênero e a raça. Acreditamos que tomar o gênero como categoria de análise em contextos de desigualdades sociais e raciais possibilita que se compreendamos as vivências e representações sociais que as mulheres experimentam dentro desta estrutura opressora. Há o reconhecimento da feminilidade da pobreza, gerando desagregação e laços comunitários enfraquecidos entre elas. Observamos que a intensidade das violências e privações para as mulheres pretas deste estudo.
Apesar disso, compreendemos que há também processos de resistência interseccional desenvolvidos pelas mulheres da comunidade. As participantes reconhecem suas próprias trajetórias de resistência frente à pobreza como fruto de um esforço pessoal realizado, e não a partir de uma perspectiva coletiva. Dessa maneira, é necessária atuar para fortalecer essas estratégias de resistência, facilitando processos de compreensão sobre do caráter coletivo das estruturas patriarcais, classistas e racistas que incidem na vida dessas mulheres. Apontamos como limitação deste estudo a possibilidade de comparar as trajetórias de mulheres brancas em situação de pobreza na comunidade.
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Endereço para correspondência
Vilkiane Natercia Malherme Barbosa
Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFC
Área 2 do Centro de Humanidades - Bloco Didático Prof. Ícaro de Sousa Moreira
Avenida da Universidade, 2762, Benfica, Fortaleza - CE, Brasil. CEP 60020-180
Endereço eletrônico: vilkimalherme@outlook.com
James Ferreira Moura Júnior
Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFC
Área 2 do Centro de Humanidades - Bloco Didático Prof. Ícaro de Sousa Moreira
Avenida da Universidade, 2762, Benfica, Fortaleza - CE, Brasil. CEP 60020-180
Endereço eletrônico: jamesferreirajr@gmail.com
Recebido em: 18/05/2020
Reformulado em: 03/10/2020
Aceito em: 02/12/2020
Notas
* Psicóloga, graduada pela Universidade Federal do Piauí, mestre e doutoranda pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
** Professor Adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CAPES, No. Processo 8888245112/2019-01).
Agradecimento: Os autores agradecem a Rede de Estudos e Afrontamento das Pobrezas, Discriminações e Resistência (ReaPODERE) pelo apoio na coleta de dados.
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