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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.2 Rio de Janeiro mayo/ago. 2023  Epub 03-Mayo-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.77711 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

Terapia Centrada na Pessoa e Processo de Reorganização da Autoimagem e Autoestima: Pesquisa-Ação

Person-Centered Therapy and the Reorganizing Self-Image and Self-Esteem Process: Action Research

Terapia No Dirigida y el Proceso de Reorganización de la Autoimagen y la Autoestima: Investigación-Acción

Maria Clara Silva Lima* 

Graduada e Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Federal da Bahia. Professora da Faculdade Independente do Nordeste.


http://orcid.org/0000-0003-4236-3849

Paulo Coelho Castelo Branco** 

Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC e do Programa de Mestrado em Psicologia da Saúde da UFBA.


http://orcid.org/0000-0003-4071-3411

*Universidade Federal da Bahia - UFBA, Vitória da Conquista, BA, Brasil

**Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, CE, Brasil


RESUMO

Este artigo objetivou compreender o processo terapêutico proporcionado por uma prática interventiva de curta-duração centrada em pessoas com problemas de autoimagem corporal e autoestima. Seguindo um delineamento metodológico qualitativo, a pesquisa e as intervenções terapêuticas aconteceram sob a influência do desenho de pesquisa-ação. Trabalhou-se com as seguintes etapas: planejamento do processo terapêutico à luz das condições necessárias e suficientes para mudança de personalidade e as fases do processo terapêutico; desenvolvimento da prática de ajuda; monitoramento da ação a partir da supervisão, revisão dos atendimentos e entrevistas semiestruturadas com os participantes; análise fenomenológica empírica dos impactos afetivos da terapia a partir da perspectiva dos clientes atendidos; entendimento disso a partir do referencial rogeriano. Foram elaborados e discutidos os seguintes eixos temáticos relacionados ao processo terapêutico: fatores que levaram à busca por ajuda psicológica e constituíram a atmosfera terapêutica; significação negativa da experiência corporal; significação real da experiência de autoestima em relação ao corpo; mudanças de atitudes em relação à percepção de si e ao autocuidado. Concluiu-se que a terapia centrada na pessoa produziu impactos afetivos significativos que ajudaram esses clientes a lidar com suas experiências de imagem corporal e autoestima.

Palavras-chave: Carl Rogers; imagem corporal; pesquisa-ação; personalidade; terapia centrada no cliente.

ABSTRACT

This article aimed to understand the therapeutic process provided by a short-term interventional practice centered on people with body self-esteem and self-image problems. Following a qualitative methodological design, the research and therapeutic interventions took place under the influence of the action research design. The following stages were used: planning the therapeutic process in light of the necessary and sufficient conditions for personality change and the therapeutic process phases; development of aid practice; action monitoring based on supervision, service review and semi-structured interviews with the participants; empirical phenomenological analysis of the affective impacts of therapy from the perspective of the clients assisted; understanding of this from the Rogerian framework. The following thematic axes related to the therapeutic process were elaborated and discussed: factors that led to the search for psychological help and constituted the therapeutic atmosphere; negative meaning of bodily experience; real meaning of the self-esteem experience in relation to the body; changes in attitudes towards self-perception and self-care. It was concluded that person-centered therapy produces significant affective impacts that helped these clients to deal with their body image and self-esteem experiences.

Keywords: Carl Rogers; body image; action research; personality; client centered therapy.

RESUMEN

Este articulo tuvo como objetivo comprender el proceso terapéutico proporcionado por una práctica intervencionista de corta duración centrada en personas con problemas de autoimagen corporal y autoestima. Siguiendo un diseño metodológico cualitativo, la investigación y las intervenciones terapéuticas se desarrollaron bajo la investigación-acción. Se trabajó con los siguientes pasos: planificación del proceso terapéutico a la luz de las condiciones necesarias y suficientes para el cambio de personalidad y las fases del proceso terapéutico; desarrollo de prácticas de ayuda; seguimiento de la acción basado en la supervisión, revisión del servicio y entrevistas semiestructuradas con los participantes; análisis fenomenológico empírico de los impactos afectivos de la terapia desde la perspectiva de los clientes atendidos; comprensión de esto desde el referencial rogeriano. Fueron elaborados los siguientes ejes: factores que llevaron a búsqueda de ayuda psicológica y constituyen una atmósfera terapéutica; significado negativo de la experiencia corporal; significación real de la experiencia de la autoestima en relación con el cuerpo; cambios en las actitudes en relación con la autopercepción y autocuidado. Se concluyó que la terapia centrada en la persona produjo impactos afectivos significativos que ayudaron a estos clientes a lidiar con sus experiencias de imagen corporal y autoestima.

Palabras clave: Carl Rogers; imagen corporal; investigación-acción; personalidad; terapia no dirigid.

Carl Rogers foi pioneiro em pesquisas clínicas sobre os fenômenos do aconselhamento psicológico e da psicoterapia. Ao longo de sua carreira como pesquisador desenvolveu, junto com seus alunos e colaboradores, diversos procedimentos interventivos deixando um legado relacionado ao aconselhamento psicológico não-diretivo, a psicoterapia centrada no cliente, a grupos de encontro e a educação centrada no aluno (Castelo Branco, 2022a). É possível observar que o método interventivo clínico rogeriano estipulava que uma relação com boa estrutura de aconselhamento psicológico, cujo o foco era a readaptação (Rogers, 1942/2005), não diferia de um processo de psicoterapia, cujo objetivo era a reorganização da personalidade (Rogers, 1951/1992), diminuindo as fronteiras entre os serviços de aconselhamento psicológico e psicoterapia (Scorsolini-Comin, 2014), a partir do desenvolvimento de um método não-diretivo e centrado no cliente, ulteriormente nomeado como abordagem centrada na pessoa.

Destarte, Rogers elaborou um programa de investigações clínicas nas universidades de Chicago e Wisconsin em que empregou diversos estudos sobre variados fenômenos concernentes à relação psicoterapêutica, a formação-atuação do terapeuta, a efetividade do método sobre a mudança de personalidade, os efeitos disso na experiência do cliente, o desenvolvimento e a adaptação de vários instrumentos de medida e avaliação psicológica segundo o referencial centrado no cliente (Castelo Branco, 2022a). Para tanto, testou a validade dos seus pressupostos teóricos e condutas práticas a partir de um delineamento quase-experimental de pesquisa clínica (Grummon, 1954; Gendlin & Rogers, 1967).

Ressalta-se que Adrian Van Kaam (1959/2018), um pastor, pesquisador e terapeuta vinculado ao movimento da Psicologia Humanista, em seu doutorado na Case Western Reserve University desenvolveu uma proposta metodológica fenomenológica empírica sobre a experiência de realmente se sentir compreendido empaticamente. Ele chegou a visitar o programa de pesquisas coordenado por Rogers na Universidade de Chicago, tendo-o em sua banca de doutorado e como supervisor de pós-doutorado (Muto & Martin, 2009). A partir disso, Rogers (1985) conheceu e foi simpático ao emprego do método fenomenológico empírico e de outras estratégias de pesquisa qualitativa para tornar a Psicologia Humanista mais rigorosa na compreensão de diversos tipos de experiências e avaliação de suas práticas.

Observa-se que as pesquisas e intervenções desenvolvidas por Rogers e sua equipe, inicialmente, enfocaram a reorganização de personalidade de um modo geral; posteriormente, focalizaram problemas de esquizofrenia. Após isso, Rogers passou a se dedicar ao desenvolvimento de práticas grupais e educacionais que não mais, necessariamente, objetivavam a reorganização da personalidade (Castelo Branco, 2022a). Apesar disso, diversas pesquisas se propuseram a investigar e desenvolver a prática clínica rogeriana sobre outros tipos de demandas relacionadas a personalidade e problemas de saúde mental (Joseph, 2018).

Dentre as várias possibilidades de investigação e intervenção, consideramos as demandas relacionadas a problemas de imagem corporal e autoestima. Em uma leitura rogeriana, ambos os fenômenos podem ser entendidos como uma expressão perceptiva voltada para o corpo-próprio e os valores estimados a ele a partir do que se simboliza da experiência de si. Quando essas experiências são deformadas (distorcidas), interceptadas (negadas) ou fixas (em uma rigidez perceptual) incorrem problemas vividos em termos de tensões que aludem desacordos entre a experiência, o que se simbolizada dela, o que é representado na estrutura do self e é expresso (Rogers, 1959/1977).

Estudos recentes demonstram que problemas de imagem corporal e autoestima estão inter-relacionados, estão circunscritos a desorganizações de personalidade e são uma questão de saúde mental que merecem atenção, pesquisas e intervenções (Alen & Walter, 2016; Kling et al., 2019). Logo, este fenômeno é possível de ser estudado, a partir de intervenções baseadas na psicoterapia rogeriana (Humboldt & Leal, 2013), aqui operacionalizada sob a alcunha geral de terapia centrada na pessoa para indicar que empregamos a Psicologia Humanista de Rogers reconhecendo todos os seus aportes e fases de pensamento sem anular um em relação ao outro.

Em específico, Rogers (1957/2020, 1959/1977) entendeu a mudança ou a reorganização da personalidade, a partir de um processo terapêutico de contato e tomada de consciência sobre experiências consideradas conflitantes e ameaçadoras ao quadro de referência interno e valores atribuídos a si mesmo. Esse quadro passa a ser examinado e (re)simbolizado (re-significado) a partir das experiências organísmicas diretas (sentidos), gerando uma maior integração consigo, receptividade ao que se percebe e sente, menos conflito interno e novos direcionamentos e comportamentos.

A partir desse panorama, perguntou-se: como a prática clínica rogeriana pode afetar a experiência de pessoas com problemas relacionados às demandas de baixa autoestima e de imagem corporal? Este estudo objetivou compreender o processo terapêutico proporcionado por uma prática interventiva centrada em pessoas com problemas de autoimagem corporal e autoestima atendidas em um serviço de terapia de curta duração. Para tanto, organiza e investiga a intervenção em um desenho qualitativo de pesquisa-ação que usa o método fenomenológico empírico para compreender os seus impactos a partir das experiências dos clientes atendidos e o que os terapeutas-pesquisadores entenderam disso.

Método

Seguindo um delineamento metodológico qualitativo, o estudo foi organizado e inspirado pelo desenho da pesquisa-ação (Tripp, 2005) e pela proposição de pesquisa-ação sobre práticas humanistas centradas na pessoa proposta por Castelo Branco (2022b), como uma alternativa ao delineamento quase-experimental desenvolvido por Rogers. Salienta-se que nossa estratégia consistiu em investigar o processo de uma prática centrada na pessoa pela oscilação sistemática entre uma ação e a investigação do que ela proporcionou aos clientes que tinham problemas de autoimagem e autoestima. Em específico, frisamos que não intencionamos aprimorar a prática da terapia centrada na pessoa, mas qualitativamente buscamos investigar o que ela produz em clientes com esse tipo de demanda, em termos de processo terapêutico e impactos afetivos que possibilitam reorganizações de personalidade, em relação aos elementos em tela.

Nesse sentido, trabalhou-se com as seguintes etapas (Castelo Branco, 2022b): planejamento do processo terapêutico; desenvolvimento da prática de ajuda; monitoramento das intervenções a partir de supervisões, revisão dos atendimentos e entrevistas com os participantes; compreensão fenomenológica dos impactos afetivos da terapia a partir da perspectiva dos clientes atendidos; discussão do processo à luz do referencial rogeriano.

As intervenções e a pesquisa ocorreram entre fevereiro e julho de 2021 em um consultório clínico situado no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) de uma universidade pública federal. O processo de escolha dos participantes ocorreu por critério intencional e envolveu a análise de prontuários de pessoas que já haviam sido triadas no SPA e apresentaram queixas relacionadas à autoestima e autoimagem, ou insatisfação corporal. Para seleção dos participantes foram utilizados como descritores no documento os termos “autoestima”, “imagem” e “corpo”. Dos 49 prontuários de triagem obtidos, em 14 deles apareceram um ou mais descritores específicos. Após uma leitura seletiva para encontrar queixas relacionadas a problemas de imagem corporal e autoestima, foram selecionados 5 prontuários. Após contato telefônico, 4 participantes, com idade entre 20-25 anos, aceitaram participar da pesquisa/intervenção, três do gênero feminino e um do masculino. Em um encontro pré-terapêutico, eles assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e um Termo de Assentimento Livre e Esclarecido.

No recorte da terapia centrada na pessoa, que interessa aos terapeutas-pesquisadores, para a realização da intervenção relacionada às demandas de autoestima e autoimagem dos clientes selecionados foram sustentadas as 6 condições necessárias e suficientes para a mudança de personalidade (Rogers, 1957/2020), a saber: que terapeuta e cliente estejam em contato psicológico; que o cliente experimente um estado de incongruência; que o terapeuta experiencie um estado de congruência, consideração positiva incondicional e compreensão empática pelo cliente; que este perceba que a comunicação do terapeuta expresse um grau mínimo de consideração positiva incondicional e compreensão empática.

Considerando as diversas elaborações de Rogers (1942/2005, 1951/1992, 1959/1977, 1961/2009) sobre o processo terapêutico na clínica, ressaltamos que optamos por operar pela linha de entendimento sobre as fases do processo terapêutico no aconselhamento não-diretivo (Rogers, 1942/2005), por ajuizarmos que ele descreve melhor o processo terapêutico em uma relação de curta-duração. Assim, em síntese, as fases 1 e 2 se referem ao estabelecimento da atmosfera e do contrato terapêutico em que o cliente percebe que o espaço e tempo são destinados a ele. A fase 3 concerne ao estimulo das expressões do cliente em relação ao problema; a 4 implica o aceite, reconhecimento e esclarecimento dos sentimentos considerados negativos pelo cliente; a 5 é a consideração das emoções e percepções consideradas positivas pelo cliente. Na fase 6, o cliente passa a ter maior entendimento do que está acontecendo e começa a gerar insights (mudança na percepção e entendimento sobre a situação-problema). Na fase 7, acontece uma alta na compreensão, aceitação e apreensão por parte do cliente. Nas fases 8 e 9, as mudanças começam a ser experienciadas dentro e fora da relação terapêutica. Na fase 10, o cliente se autoriza a experienciar mudanças fora da relação; por vezes, ele não terá um manejo adequado e trará isso de volta para a terapia precisando recapitular outras fases. Na fase 11, o medo de fazer escolhas diminui e a autoconfiança aumenta, havendo menos receio e mais independência em relação ao terapeuta. Na última fase, terapeuta e cliente entram em comum acordo sobre a necessidade de término da relação.

O processo terapêutico sustentado pelas mencionadas condições ocorreu em cinco sessões para cada cliente, cada uma com frequência semanal e de duração de uma hora. Todos os atendimentos foram realizados em data e horário previamente agendados. Embora existisse a possibilidade de renovação do processo para mais cinco sessões, não houve necessidade.

Com base na sugestão da proposição de pesquisa-ação de Castelo Branco (2022b), a coleta e análise dos dados ocorreram inspiradas no método fenomenológico empírico de Giorgi (1997/2008). Considerando esse método como descritivo de um processo de comunicação do vivido no campo da saúde mental (Maeder et al., 2019), ele foi utilizado para compreender a percepção do usuário sobre a relação, o processo terapêutico e o modo como a intervenção afetou sua autoestima e autoimagem.

Assim, após o fim do processo terapêutico, em outro momento de encontro, foi realizada uma entrevista que empregou um roteiro semiestruturado composto por perguntas baseadas na teoria da personalidade de Rogers (1951/1992, 1959/1977) e sobre a percepção de si, da relação terapêutica, do processo clínico e do efeito da intervenção sobre sua autoimagem e autoestima. O mencionado roteiro, estrategicamente, serviu para gerar variados direcionamentos da consciência sobre elementos perceptivos e afetivos relacionados a si e ao processo terapêutico. As seguintes perguntas foram feitas para cada cliente: o que o levou a buscar ajuda psicológica? Como você via o seu corpo antes de se submeter ao processo terapêutico? Como você lidava com isso? Baseado nas vivências das consultas psicológicas, como você percebe que a terapia o afetou? Como o processo afetou sua percepção de imagem corporal? Como o processo te afetou em relação a sua autoestima? Agora, como você descreveria suas atitudes com relação a si mesmo? Como você pretende lidar consigo daqui para frente? No momento da entrevista, a suspensão fenomenológica das experiências pessoais e teóricas dos pesquisadores foi o primeiro passo para buscar chegar à compreensão da vivência terapêutica de cada participante segundo o seu referencial (Giorgi, 1997/2008). As repostas foram gravadas.

O material gravado foi transcrito para leitura por via de outra suspensão fenomenológica das experiências pessoais e teóricas dos pesquisadores para compreender o processo clínico como se fosse o primeiro acesso a temática. Ao final de cada leitura foi feita uma síntese geral do que foi percebido por parte dos pesquisadores. Após isso, voltou-se ao material transcrito, analisando-o e evidenciando suas unidades de significação. Por conseguinte, examinou-se essas unidades através da técnica de variação livre e imaginária, que na acepção Giorgiana, consistiu em reexaminar as unidades apreendidas nas transcrições, identificando os significados comuns para compor categorias. Por fim, assumiu-se um posicionamento que retomou o que havia sido suspenso, desenvolvendo eixos relacionados à temática abordada (Giorgi, 1997/2008).

A discussão desses eixos foi fundamentada pela Psicologia Humanista de Rogers, implicando o entendimento dos pesquisadores sobre o processo terapêutico e os seus impactos na reorganização da imagem corporal e autoestima dos clientes atendidos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CAAE n. 40230120.3.0000.5556, Parecer: 4.489.866).

Resultados

A partir da leitura geral das entrevistas transcritas, obtivemos a seguinte síntese geral: a questão da insatisfação corporal está visivelmente atrelada ao problema de autoestima carregado por todos os clientes atendidos. O diferencial está na forma como cada um se manifesta e como uma baixa autoestima é resultado de situações que produzem inseguranças em diversos âmbitos durante a vida e desencadeiam problemas com o corpo. A tensão acontece quando os clientes vivenciam formas corporais tidas como ideais. Ou seja, além de se sentirem insuficientes e inseguros acabam se sentindo inadequados por não conseguirem corresponder ao esperado socialmente. A percepção dos clientes se concentra nessas insuficiências, muitas vezes generalistas, fazendo-os perder o foco nos valores que são seus ou lhes fazem sentido. A forma de agir não corresponde ao que sente ou pensa e idealizações tomam conta da experiência. A ressignificação da autoimagem e autoestima consiste em trazer todas as questões para a realidade particular dos clientes para que tenham consciência do que lhes pertence.

Após essa síntese, com base no mapeamento e divisão das unidades de significação apreendidas da fala de cada cliente (C) atendido, organizamos quatro eixos temáticos, a saber: fatores que levaram à busca por ajuda psicológica e constituíram a atmosfera terapêutica; significação negativa da experiência corporal; significação real da experiência de autoestima em relação ao corpo; mudanças de atitudes em relação à percepção de si e ao autocuidado. Discutimos eles a seguir.

Discussão

Fatores que Levaram à Busca por Ajuda Psicológica e Constituíram a Atmosfera Terapêutica

Este primeiro eixo se refere aos fenômenos clínicos que envolvem os momentos iniciais de um processo de aconselhamento psicoterapêutico em que os primeiros laços clínicos são estabelecidos, desde os primeiros contatos com cada cliente, na realização do convite e esclarecimentos sobre o projeto, até o primeiro contato clínico de fato.

Existe um momento em que o indivíduo reconhece em si a necessidade de busca por ajuda. É quando ele assume sua autorresponsabilidade, ainda que a princípio possa negar de forma específica o que está se passando. Por exemplo: “Eu me sentia horrível e me mutilava. Apesar de achar que dava conta sozinho, não sabia o motivo disso e o que fazer. Fui atrás de ajuda” (C4).

É bastante comum, segundo Rogers (1961/2009), que o cliente ao chegar em busca de ajuda esteja distante da sua experiência real e se encontre em um estágio de fixidez, em um lugar em que não consegue se comunicar verdadeiramente sobre si e se volta mais para assuntos exteriores. É como se o indivíduo tivesse pouco ou nenhum reconhecimento do fluxo de sua vida afetiva, não está vivendo de acordo com o presente e a construção das suas experiências está sendo determinada por acontecimentos passados. Isso pouco lhe permite se conectar com o presente, tendendo ao hábito de conceber os seus problemas como externos a si, como se fossem independentes de sua experiência. Não podemos esquecer que muitas vezes são os acontecimentos ou fatos aparentemente ou a priori “insignificantes” que costumam provocar ou desencadear um processo terapêutico satisfatório que gera autocompreensão e que convoca o sujeito a se responsabilizar por ele mesmo (Rogers, 1942/2005). Por exemplo:

Eu sabia que estava num estado muito crítico, que precisava de ajuda. Minha irmã me incentivou bastante a ir atrás de um psicólogo. Ela ficava o tempo todo falando no meu ouvido: “vai ao psicólogo”. Cancelei a faculdade e fiquei seis meses na minha cidade. Durante todo esse tempo, eu vivenciei um período de depressão mais profundo e crítico. Nesse momento de muita baixa autoestima não saía de casa para nada (C3).

Os fatores tensionais provocados por uma situação-problema levam à busca de ajuda e indicam a consulta psicológica (Rogers, 1942/2005). Estes envolvem um estado de incongruência, que revela a discrepância entre a experiência real do organismo e a imagem ideal que o indivíduo construiu de si por toda a vida, o que o leva a um estado de desorganização interna. Quando percebida em relação aos fatores que a geram, essa discrepância é conhecida como ansiedade; quando esses fatores não são perceptivamente discriminados, essa tensão é vivida como um estado de angústia ou vulnerabilidade (Rogers, 1957/2020, 1959/1977). Por exemplo, eis uma manifestação de ansiedade “(...) eu sei porque eu sou gorda, mas não consigo emagrecer apesar de querer isso logo (C1)”; e uma expressão de angústia: “mesmo emagrecendo não me acho bonita e o continuo feia... não sei de onde vem isso” (C3).

Por conta de veiculação a modelos e valores de si mesmo tidos como ideais, é comum começar a existir uma busca por uma figura imagética ideal (Rogers, 1959/1977, p. 164-165), o que leva as pessoas a se afastarem cada vez mais do seu corpo real e começarem a acreditar cada vez com mais força que para estarem inseridos em uma sociedade atual é preciso que a sua imagem corporal esteja de acordo com os padrões estabelecidos, o que tende a gerar uma insatisfação com o corpo, acarretando abalos na autoestima de forma geral, já que é como se precisasse se sentir bem visto para poder estar em posição de segurança. A partir de uma leitura rogeriana, nos momentos que se iniciam o processo terapêutico, o sujeito traz suas queixas revelando o seu estado de vulnerabilidade, implicando em um estado de desorganização da personalidade. Aqui o cliente não consegue articular com consciência e com simbolizações autênticas o que vivencia como uma situação que gera problema e o afeta (Rogers, 1951/1992).

Quando o cliente começa a entender que a construção da atmosfera terapêutica é para possibilitá-lo entrar em contato com as suas experiências e tensões acerca do problema que o leva à clínica (Kinget, 1959/1977), começa a se perceber como proprietário das suas experiências e que os conteúdos que traz como queixas relacionadas a coisas externas começam a fazer sentido pessoal, as queixas vão se transformando em demandas (Rogers, 1942/2005). É quando percebe que ele próprio consegue visualizar o que se passa em seu campo perceptivo e sabe que é possível enfrentar seus objetos de queixa, neste caso o próprio corpo e a valorização disso, não mais fugindo do enfrentamento do problema e não mais o colocando em uma posição alheia a si. Ao entrar em contato com sua demanda, o sujeito conscientemente se volta para seus próprios elementos afetivos e cognitivos os quais têm gerado sua tensão, e a busca por autorrealização faz com que o cliente se abra com mais frequência à essa experiência real que compõe o seu self (Rogers 1959/1977), manifesto pela imagem corporal e autoestima.

Significação Negativa da Experiência Corporal

O segundo eixo foi elaborado com a intenção de verificar quais seriam as queixas iniciais trazidas pelos clientes atendidos. Durante as transcrições das entrevistas foi possível notar que algumas falas tinham características comuns facilitando assim o reconhecimento destes momentos e agrupamento do sentido que trazem. Por exemplo: “A parte que eu via e não gostava, eu mutilava. Antes era cortando, depois passou a ser me batendo, ficando roxa a ponto de eu não saber se a marca era causada por mim ou por uma força externa” (C1).

Pensar as formas de experienciar o corpo nos remete ao conceito de experiência de si (imagem de si/imagem do eu) que Rogers (1959/1977) aborda. Segundo ele, o conceito que define a experiência de si é entendido como parte fundamental que integra a personalidade e se constitui em conjunto com os seguintes termos: organismo, avaliação organísmica, campo perceptual (ou campo experiencial/fenomenológico), tendência atualizante, congruência e incongruência, que estão envolvidos na construção e organização das experiências que o indivíduo faz na formação do conceito da imagem de si durante a vida além de compor os elementos constitutivos do que chamamos de self real e self ideal.

De acordo com Rogers (1959/1977), são os sentimentos, as crenças e os valores do indivíduo que se constituem em sua expressão de vida abrangendo toda sua dimensão interior e exterior. A imagem de si é constituída por todos os acontecimentos do campo fenomenológico e que são reconhecidos pelo indivíduo como parte do seu eu, pois a configuração de suas experiências é estruturada nas relações do eu com os outros, com o ambiente em que vive e com os valores atribuídos pelas suas distintas percepções. É esse o processo de fluxo contínuo, indicado como experiência de si, o qual Rogers (1959/1977) afirma que “(...) serve para designar a configuração experiencial composta de percepções relativas ao eu, as relações do eu como o outro, com o meio e com a vida em geral, assim como os valores que o indivíduo atribui a estas diversas percepções” (p. 165).

Rogers (1951/1992) traz uma concepção de que, desde bebê, a pessoa, em sua fase inicial de interação social, inicia a construção de conceitos próprios e a partir do momento em que começa a entender o que se passa em seu entorno. Aprende a observar e a avaliar o seu self, a partir da percepção dos outros, a todo instante e a partir de comentários, elogios e críticas feitos na convivência. Assim, esses elementos passam a fazer parte do campo perceptivo do bebê, bem como tudo o que envolve ele próprio e ao ambiente em que está inserido.

Nessa fase seminal da vida já pode ocorrer o desenvolvimento de distorções da forma de simbolizar experiências, o que favorece a possibilidade do desenvolvimento de desajustes psicológicos futuros. Na criança, ao apresentar algum comportamento que apesar de ser satisfatório para si, mas que provoca repreensão por parte dos pais ou algum adulto de referência, gera uma distorção da simbolização da experiência que está sendo vivida, e tem como resultado a negação consciente de algo satisfatório e a distorção do que é simbolizado por esses pais/adultos. Segundo Rogers (1951/1992), “As reações sensoriais e viscerais primárias são ignoradas ou não tem permissão de para vir à consciência, exceto de forma distorcida” (p. 569). Neste caso, parte do conceito de self passa a ser baseado em simbolizações distorcidas. Ao pensamos o corpo e suas experiências é possível entender que a negação da experiência corporal se dá a partir desses desajustamentos que envolvem uma tensão que nega a experiência real do corpo. Por exemplo:

Eu me via como uma pessoa insatisfeita de forma geral com meu corpo na questão da magreza. Me olhava no espelho e me via uma pessoa desarmônica. No sentido de ver as coisas como se fosse tudo torto. No sentido de sempre tá com uma imperfeição ali ou aqui. De não me sentir uma pessoa desejada, de olhar para mim mesmo e falar assim: “eu nunca me desejaria”. No sentido também de pensar nas outras pessoas, de como olhariam para mim. Se eu não consigo ver nada de atraente em mim, então porque alguém então veria? (C3).

A estrutura do self se configura por uma organização própria de percepções que o sujeito tem de si, do outro, e do ambiente em que está inserido que estão ou podem estar acessíveis à consciência (disponíveis à consciência em forma de figura ou fundo), e as qualidades de valor relacionadas a cada elemento junto com sua associação à experiências sendo percebidas existindo no presente, passado ou como possibilidades futuras (Rogers, 1951/1992).

A experiência vivida pelo organismo é um fato empírico, pois se trata de uma manifestação orgânica através da experiência. Porém, a forma de simbolizar esses pensamentos e desejos estão sob o controle do self de forma que este pode impedir que se torne parte da consciência (Rogers, 1951/1992). Por exemplo: “Por mais que me dissessem que eu estava bem e me achavam bonita, eu tenho muita barriga e não acreditava. Achava que estavam mentindo, pois não era o que via” (C2). Ou seja, mesmo que haja uma experiência orgânica real é possível que não haja uma simbolização, ou que esta seja distorcida se essa representação de maneira adequada seja algo incoerente com o conceito determinado pelo self. Assim, a estrutura do self não permite que uma percepção que esteja em desacordo com ela não faça parte das simbolizações reais do indivíduo. Isso seria a negação na experiência, que é o momento em que o self considera uma experiência como ameaçadora e a impede de entrar na consciência, de forma que o indivíduo não tenha consciência desse processo automático (Rogers, 1959/1977). Ou seja, aparentemente e mesmo de forma inconsciente, o indivíduo tem a capacidade de discriminar estímulos ameaçadores ou não e reagir de acordo a isso. Existe, inclusive, a possibilidade de negação de experiências as quais o indivíduo nunca teve consciência, levando-se em consideração que “A maior parte dos modos de comportamento adotados pelo organismo são os que apresentam coerência com os conceitos de self” (Rogers, 1951/1992, p. 576).

Significação Real da Experiência de Autoestima em Relação ao Corpo

A passagem para o terceiro eixo conta com falas transcritas em que os clientes passam a reconhecer outras formas de visualização de si. Aqui, começam a se olharem e se perceberem de forma menos idealizada, levando em consideração suas histórias e reconhecendo suas experiências reais como próprias. As falas a seguir, exemplificam estas novas formas de olhar para si.

Eu passei a ver um lado mais positivo, porque comecei a ter um cuidado maior comigo mesma, que antes não tinha. Tanto que eu comecei a fazer as mudanças que tinha planejado, que estava planejando fazer. Comecei a fazer isso, realmente, depois que a gente começou a conversar na clínica. O fato de eu ter falado sobre isso, está me libertando, estou conversando com meu corpo e também com a minha mente (C1).

Comecei a ter um cuidado maior comigo, conversando com o meu corpo e minha mente de modo a me conhecer por mim (C2).

Já estou me acostumando mais comigo, me percebendo em outro olhar (C3).

Me sinto e percebo agora em equilíbrio, conciliado comigo (C4).

Analisando as teorias rogerianas, da personalidade e do comportamento (Rogers, 1951/1992) e das condições necessárias e suficientes para uma mudança terapêutica de personalidade (Rogers, 1957/2020), é possível notar um destaque do citado autor para dois conceitos importantes e que fazem parte do desenvolvimento de qualquer indivíduo, são eles: a necessidade de consideração positiva e a necessidade de autoconsideração. Ambas as necessidades são aprendidas e começam a se desenvolver quando o sujeito é bebê e se relaciona com o mundo em função da recepção e demonstração da consideração positiva alheia.

A necessidade de autoestima é inerente a todo ser humano. Seu processo inicia-se na infância e vai amadurecendo de forma contínua (Rogers, 1959/1977). Conforme as demonstrações de consideração positiva, todo afeto e cuidado recebido pelo bebê influencia no desenvolvimento de sua autoestima. Este é um dos principais pressupostos da abordagem rogeriana, pois é possível perceber que uma autoestima bem elaborada dá ao sujeito condições de uma participação mais ativa e potencializadora no ambiente em que está inserido. Autoestima, aqui, é considerada como uma capacidade de consideração positiva com o próprio self-real, e a busca pela satisfação de suas necessidades de maneira congruente para que a personalidade deste indivíduo não se constitua de forma que apreenda uma imagem distorcida de si (Rogers, 1959/1977). Por exemplo:

São vários fatores. Às vezes eu estou me sentindo bem em relação a um aspecto do meu corpo e de mim, mas meio que todos os outros fatores me deixam mal. Então é complicado, você tem que conseguir conciliar tudo isso de uma forma equilibrada, para que a autoestima fique bem você precisa estar bem com as outras áreas também, né? Mesmo que fosse uma questão mínima, eu tenho inúmeros problemas, mas se às vezes eu consigo perceber uma coisa de um outro olhar, de um outro ponto de vista, isso eu acho que já valeu muito a pena. Isso foi algo que mudou em mim (C3).

Rogers (1951/1992) notou a partir da realização das suas pesquisas que “as atitudes em relação ao self como um objeto percebido alteram-se materialmente” (p.160) e, conforme o processo terapêutico bem-sucedido progride, há uma tendência de aumento de percepções positivas nas referências e nas atitudes relativas ao self, bem como, a tendência a um decréscimo de percepções negativas, referências e nas atitudes relativas ao self. Ou seja, nas fases iniciais da terapia, as referências ao self tendem a ser expressas de forma negativa, e no decorrer até a conclusão do processo terapêutico as expressões neutras ou positivas vão surgindo. É neste sentido que se percebe que o indivíduo tende a caminhar durante a terapia para uma situação de aceitação do self , para um lugar em que começa a perceber a si mesmo de forma real e como pessoa de valor, que possui seus próprios sentimentos, percebe seus padrões como baseados em suas próprias experiências pessoais e sociais e não nas atitudes, experiências, julgamentos e desejos alheios. Além do reconhecimento da percepção o indivíduo passa a se sentir confortável quando passa a agir de acordo com essas percepções reais.

Mudanças de Atitudes em Relação à Percepção de Si e ao Autocuidado

O quarto e último eixo foi desenvolvido a partir de respostas sobre perspectivas de atitudes futuras com relação a si mesmo, após as práticas agora conscientes do olhar para dentro. As falas que seguem representam algo que sugere o início de uma reestruturação da personalidade após as intervenções realizadas com cada cliente.

Eu quero continuar nesse processo de tentar me sentir melhor, de fazer alguma coisa pra me sentir melhor. Não sei se vai ser possível, se eu vou alcançar (...) porque se eu estou vivendo isso aqui, pelo menos vou buscar tentar fazer alguma coisa para tentar me sentir melhor. Se vai dar certo realmente, é com o tempo. Mas é isso, acho que eu quero continuar nesse processo de busca, de autoconhecimento, ver no que dá (C3).

Acho que vai ser bem diferente de como era antes. Acho que eu vou me sentir mais segura (...), a atitude de não me julgar. Porque eu nunca me questionava e acreditava no julgamento. Eu mesma me julgava (...) eu fazia o questionamento quando eu era gorda. E eu me perguntei: “será que eu sou gorda mesmo? Será que eu sou o que as pessoas falam?”. Não acho mais que eu sou isso. Eu sou o que sou, e não o que as pessoas falam de mim. E acabei mais me ligando em mim. E aprendi a me questionar porque antes eu não me questionava. E comecei a fazer isso há pouco tempo. Logo quando eu comecei a vir para cá (C4).

Considera-se que um processo terapêutico verdadeiro, segundo Rogers (1959/1977), necessita que o terapeuta tenha tido a capacidade de estar profundamente apropriado da relação com o seu cliente, de forma que este esteja além da visão de indivíduo como um objeto de investigação. O terapeuta precisa deixar claro para o cliente que tem plena confiança nele e no seu processo de crescimento pessoal, pois sabe que ele carrega consigo um valor interno incondicional, e que sua disponibilidade como profissional diz respeito a busca da compreensão das experiências do cliente junto a ele de maneira empática.

O cliente, por sua vez, sente os efeitos do processo terapêutico à medida que começa a experimentar o que chamamos de funcionamento pleno da personalidade (Rogers, 1959/1977). Aqui, ele passa a se entregar de forma genuína às suas experiências a partir do sentimento de consideração incondicional expressa pelo psicoterapeuta. Na segurança dessa relação, o cliente passa a se permitir verdadeiramente experimentar plenamente a significação das suas experiências, pois a este acesso ainda havia barreiras. À medida que permite a vivência com intensidade a simbolização destas experiências começa a aprender sobre si, a descobrir sobre seu verdadeiro “eu”, percebe que não precisa temer suas próprias experiências e que pode acolhê-las como uma parte de si, como possibilidade de vivência, descoberta e transformação pessoal.

Quando o cliente se sente seguro e está vivendo o calor da relação terapêutica sente que existe uma estima por parte do profissional, então não existirão condições outras para que os momentos cruciais da terapia aconteçam. O que é chamado de momento de mudança terapêutica de personalidade são os vários momentos de reconhecimento por parte do cliente de algo que até então estava sendo negado à consciência ou aparecia de forma distorcida, mas que agora não é mais uma ameaça ao self e está sendo completamente compreendido e sentido pelo sujeito como um todo. É um momento de integração. Segundo Rogers (1961/2009), estes momentos são cruciais para uma mudança na personalidade em que a pessoa passa a se aceitar de uma forma mais clara em relação ao que sente e se permite sentir, adquirindo uma nova visão de si, do outro e do mundo, e se lançado para novas experiências.

Imagina-se que um indivíduo que vive um processo terapêutico bem-sucedido esteja aberto às suas experiências. Antes, tinha a atitude de defesa como uma reação imediata do organismo às experiências que eram consideradas incompatíveis com a imagem ideal do self, como forma de agir por uma tentativa de se proteger contra os perigos de alteração de imagem de si mesmo. De forma contrária, está a liberação da atitude de abertura a qualquer excitante (interno ou externo), que demonstra a disponibilidade para a entrada na consciência de forma totalitária do que é experimentado pelo sujeito. Está aí a permissão e a vivência da noção de abertura à experiência (Rogers, 1959/1977).

O indivíduo percebe cada vez mais que é capaz de utilizar seu organismo para sentir da melhor forma possível sua situação existencial interior e exterior. Já não tem, ou tem menos medo de confiar no seu organismo, não porque este é infalível e vai sempre acertar, mas porque agora está completamente aberto a lidar com as consequências dos seus comportamentos, inclusive de forma a corrigi-los se assim necessário. O sujeito está se tornando um organismo que funciona plenamente e “(...) devido à consciência de si mesmo que corre livremente na e através da sua experiência torna-se uma pessoa com um funcionamento mais pleno” (Rogers, 1961/2009, p. 219). Por exemplo:

Eu acho que se eu fizesse do jeito que as pessoas querem, seria meio cruel comigo mesma, que aí não seria no meu tempo, no meu ritmo. Eu acho que fazendo as coisas do meu jeito, no meu tempo, no meu ritmo, eu acho que é bem melhor. Eu sinto, realmente, que está tudo interligado com aquele passado que eu não falava. E depois de eu ter falado já... já abri as portas, já estou atravessando essas portas de pouquinho em pouquinho, porque eu ainda sinto medo do que eu vou encontrar, mas os poucos que eu estou encontrando, eu já estou gostando (C1).

O processo da gente mudou isso que eu te falei de melhorar um pouco mais. E... não é o outro, sou eu. Eu posso me sentir bem comigo mesma; se eu não me sentir, não é o que o outro vai pensar sobre mim... é como eu vou me sentir (C2).

Estar disponível à experiência demonstra a capacidade de vivenciar a fluidez que caracteriza a própria forma de funcionamento. A imagem de si está sempre em mudança e o indivíduo aceita que faz parte de um processo agora consciente, e se disponibiliza a novas adaptações e aprendizagens que também são constantes e que dizem respeito à estrutura desta experiência. Esse processo gera um novo modo de organização, agora mutável e flexível da personalidade. Logo, “(...) os traços mais constantes da personalidade consistiriam precisamente em um estado de abertura à experiência e em um esforço flexível e equilibrado para satisfazer as necessidades presentes nas condições dadas” (Rogers, 1959/1977, p. 262).

Considerações Finais

Este estudo investigou o processo terapêutico proporcionado por uma prática interventiva de curta-duração centrada em pessoas com problemas de autoimagem corporal e baixa autoestima, de modo a compreender o processo terapêutico ocasionado pela relação clínica segundo as experiências dos clientes e os entendimentos dos terapeutas-pesquisadores.

Ponderando sobre o que foi apreendido nas falas dos clientes atendidos através das entrevistas realizadas e da análise fenomenológica empreendida, juntamente com o que foi discutido à luz do referencial rogeriano, foi possível chegar a uma reflexão sobre os impactos da intervenção nestas pessoas. O processo de reorganização da personalidade que ocorre durante todo o processo de psicoterapia e após o seu término bem-sucedido acontece a partir do momento que o cliente se sente aceito tal como é. Os afetos demonstrados pelos clientes atendidos, à princípio, aparecem de forma impessoal e com o tempo passaram a fazer parte da experiência imediata, mesmo os sentimentos que anteriormente eram rejeitados agora são plenamente reconhecidos pelo indivíduo. O processo é contínuo e passa de um momento de fixidez, em que o indivíduo é incapaz de simbolizar conscientemente, para um ponto de referência interior mais aceito na busca de significações mais autênticas. O processo trata, também, de uma alteração na forma em como o sujeito deseja se comunicar e ser reconhecido. Passa de um conceito de rigidez para significações mais fluidas e maleáveis da experiência. O indivíduo agora se relaciona de outra maneira com seus problemas, de maneira subjetiva e há um desejo de mudança, consciente de que a responsabilidade é sua. Assim, o cliente consegue se expressar (pensar e agir) a partir da sua experiência o que faz sentido ao seu eu, tornando-se um processo em si e integrado em sua transformação. Deste modo, conclui-se que a terapia centrada nas pessoas atendidas produziu impactos afetivos significativos que lhes possibilitaram reorganizações da personalidade. Logo, o processo clínico ajudou cada cliente a lidar com suas experiências de imagem corporal e autoestima.

Destarte, espera-se que essa pesquisa forneça substratos teóricos e metodológicos para pesquisas interventivas sobre outros fenômenos que interessam a Psicologia Humanista de base rogeriana. Como limite da pesquisa, indicamos que ela ocorreu em um processo de curta duração. A oferta de um serviço com mais sessões poderia prover outros resultados, assim como o mapeamento das intervenções a partir da perspectiva do terapeuta. Sugerimos futuras investigações nesse sentido.

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Recebido: 21 de Agosto de 2022; Revisado: 24 de Maio de 2023; Aceito: 30 de Maio de 2023

Endereço para correspondência Maria Clara Silva Lima Rua Hormindo Barros, 58, Candeias, Vitória da Conquista - BA, Brasil. CEP 45029-094, Endereço eletrônico: mariacsl12@gmail.com

Paulo Coelho Castelo Branco Rua Vicente de Castro Filho, 1540 apto 801, Luciano Cavalcante, Fortaleza - CE, Brasil. CEP 60813-540, Endereço eletrônico: pauloccbranco@gmail.com

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