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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.3 Rio de Janeiro sept./dic. 2023  Epub 03-Mayo-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79278 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

A Vivência do Adoecimento e Tratamento para Pacientes com Câncer Hematológico: uma Abordagem Psicanalítica

The Experience of Falling Ill and Treatment for Patients with Hematological Cancer: A Psychoanalytic Approach

La Experiencia de Enfermar y el Tratamiento de Pacientes con Cáncer Hematológico: un Enfoque Psicoanalítico

Fernanda Nardino* 

Psicóloga, graduada e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Especialista em Oncologia pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA).


http://orcid.org/0000-0002-8453-3941

Monica Marchese Swinerd** 

Psicóloga do Hospital de Câncer I (INCA). Doutora e Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (UERJ/RJ).


http://orcid.org/0000-0003-3540-6601

*Instituto Nacional de Câncer - INCA, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

**Instituto Nacional de Câncer - INCA, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


RESUMO

O trabalho clínico de acompanhamento de pacientes, vinculados a um Serviço de Hematologia, originou a presente pesquisa. A escuta, enquanto psicóloga residente em uma enfermaria de onco-hematologia, possibilitou o encontro com a singularidade da clínica hematológica, a qual é responsável pelo tratamento de doenças ligadas ao sangue, à medula óssea e ao sistema linfático, muitas vezes invisíveis ao olhar. Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi investigar como pacientes diagnosticados com câncer hematológico vivenciam o processo de adoecimento e tratamento oncológico. Trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória, utilizando o método clínico-qualitativo. Os participantes foram oito pacientes adultos, com diagnóstico de câncer hematológico. A coleta de dados foi feita através de entrevistas semidirigidas e de um questionário sociodemográfico. Os dados foram analisados através da análise de conteúdo, ancorando-se no referencial teórico da obra psicanalítica freudiana. Os resultados destacaram os fatores subjetivos envolvidos na vivência do adoecimento e do tratamento do câncer hematológico, os quais não coincidem e demonstraram a importância do dispositivo analítico que oferece aos sujeitos, que assim desejarem, a possibilidade de falar de seu sofrimento, apostando que o que é devastado pela doença pode ser reconstruído pela palavra.

Palavras-chave: neoplasias; hematologia; hospitalização; psicanálise.

ABSTRACT

This research was originated by the clinical work of monitoring patients linked to a Hematology Service. The listening, as a resident psychologist in an onco-hematology ward, enabled to encounter the singularity of the hematology clinic, which is responsible for treating diseases linked to blood, bone marrow, and lymphatic system, often invisible to the eye. Thus, the purpose of this study was to investigate how patients diagnosed with hematologic cancer experience the process of falling ill and undergoing oncologic treatment. This is a descriptive and exploratory research, which uses the clinical-qualitative method. The participants were eight adult patients diagnosed with hematological cancer. Data collection was performed through semi-structured interviews and a sociodemographic questionnaire. The data was analyzed through content analysis, anchored in the theoretical framework of Freudian psychoanalytic work. The results highlighted the subjective factors involved in the experience of falling ill and the treatment of hematological cancer, which do not coincide and demonstrated the importance of the analytic device that offers individuals, who so wish, the possibility to talk about their suffering, expecting that what gets devastated by the disease can be rebuilt by words.

Keywords: neoplasms; hematology; hospitalization; psychoanalysis.

RESUMEN

El trabajo clínico de seguimiento de pacientes, vinculados a un Servicio de Hematología, dio origen a esta investigación. La escucha, como psicóloga residente en una sala de onco-hematología, permitió el encuentro con la singularidad de la clínica hematológica, responsable del tratamiento de enfermedades ligadas a la sangre, la médula ósea y el sistema linfático, en muchas ocasiones invisibles a los ojos. De esa manera, el objetivo de este estudio fue investigar cómo los pacientes diagnosticados con cáncer hematológico viven el proceso de la enfermedad y el tratamiento oncológico. Se trata de una investigación descriptiva y exploratoria, que utiliza el método clínico-cualitativo. Los participantes fueron ocho pacientes adultos con diagnóstico de cáncer hematológico. La recogida de datos fue hecha a través de entrevistas semiestructuradas y un cuestionario sociodemográfico. Los datos se analizaron mediante análisis de contenido, anclados en el marco teórico de la obra psicoanalítica de Freud. Los resultados destacaron los factores subjetivos involucrados en la vida del paciente y el tratamiento del cáncer hematológico, los cuales no coinciden y demostraron la importancia del dispositivo analítico que ofrece a los sujetos, que así lo deseen, la posibilidad de hablar de su sufrimiento, apostando que lo que es devastado por la enfermedad puede ser reconstruido por la palabra.

Palabras clave: neoplasias; hematología; hospitalización; psicoanálisis.

Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de “eu”? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado.

Clarice Lispector

O presente estudo surgiu a partir da experiência da pesquisadora enquanto psicóloga residente de um Serviço de Hematologia de uma unidade hospitalar de alta complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo tratamento de diversas doenças da área oncológica. Sabe-se que o termo “câncer” se refere a uma denominação geral para um conjunto de mais de 100 doenças malignas que têm em comum o crescimento desordenado de células que tendem a invadir tecidos e órgãos vizinhos, podendo acometer qualquer parte do corpo humano (Instituto Nacional de Câncer [INCA], 2020). Cada tipo de câncer apresenta características próprias e é objeto de tratamento de uma equipe médica especializada. Nesse tocante, destaca-se que as neoplasias malignas são classificadas em tumores sólidos e neoplasias hematológicas.

As neoplasias hematológicas são tratadas pela especialidade conhecida como onco-hematologia 1 ou hematologia oncológica e incluem as doenças ligadas ao sangue, à medula óssea e ao sistema linfático. Entre as patologias mais comuns estão as leucemias agudas e crônicas, os linfomas e mielomas múltiplos, além de síndromes mielodisplásicas. A quimioterapia é a principal terapêutica empregada, sendo que, em alguns casos, indica-se a radioterapia, assim como o transplante de células tronco hematopoiéticas (TCTH) (Câmara & Amato, 2014).

A escuta dos pacientes com câncer hematológico revelou a existência de um sofrimento da ordem de uma invisibilidade, fator que acompanha a descoberta do diagnóstico e o próprio processo de adoecimento que, no caso de algumas doenças hematológicas como as leucemias crônicas, por exemplo, não apresenta sintomas específicos, nem deixa marcas tão explícitas como os tumores sólidos, especialmente no início da doença (Oncoguia, 2022). Pontua-se, também, a falta de uma localização própria, visto que, de maneira geral, essas doenças não estão limitadas a uma única região do corpo. Diversos autores (López & Trad, 2014; Moretto, 2013; Rua, 2019; Swinerd, 2019) têm se debruçado sobre o tema do adoecimento oncológico, e apontam que a vivência do adoecimento e do tratamento oncológico pode se configurar como um momento desestruturante e de crise, tendo em vista a complexidade da patologia e os sentimentos que evoca em diferentes tempos (tempo do diagnóstico, tempo da hospitalização, tempo do tratamento, tempo das perdas, tempo da morte, tempo do paciente).

Ademais, as doenças onco-hematológicas ganham notoriedade, visto que, de maneira geral, são doenças descobertas com base em exames médicos de rotina, ou quando o sujeito procura tratamento para sintomas não específicos (perda de peso, fadiga, perda de apetite), que podem ser comuns a vários outros tipos de doenças e que, à primeira vista, parecem corresponder a algo simples (Oncoguia, 2022). Tais aspectos demonstram a complexidade da especialidade hematológica e os desafios para a confirmação diagnóstica e intervenção precoce, período que costuma demandar a hospitalização imediata do paciente (Delazeri et al., 2022).

Assim, assinala-se que as neoplasias hematológicas possuem particularidades quando comparadas aos tumores sólidos (INCA, 2020). Particularidades que marcam a subjetividade do paciente com câncer hematológico e demonstram a importância do desenvolvimento de estudos que busquem promover uma compreensão de suas vivências de adoecimento e tratamento, considerando os aspectos físicos e psíquicos. A hipótese desenvolvida neste estudo é a de que a vivência do adoecimento não coincide com o tratamento propriamente dito, ou seja, que o adoecimento supõe uma subjetivação do tratamento, apontando para uma experiência que é singular. É possível encontrar essa abordagem sobre o adoecimento e a experiência de sentir-se doente em alguns trabalhos sobre a psicanálise em hospital, que apontam para a maneira particular de elaboração de cada um diante do que se apresenta como traumático (Moretto, 2013; Rua, 2019).

A literatura existente, especialmente sobre os aspectos subjetivos dos pacientes com câncer, é vasta. No entanto, poucos estudos singularizam a especialidade hematológica (López & Trad, 2014; Nascimento et al., 2016). Em sua maioria, os estudos contemplam a especialidade da oncologia de modo abrangente. No cenário das neoplasias hematológicas, o que predomina são estudos com o público infantil (Ansolin & Oliveira, 2016), estudos com cuidadores familiares (Sá, 2002), estudos durante um período específico do tratamento, a saber, o período do transplante de medula óssea (Cabral & Pereira, 2021) e estudos que utilizam propostas metodológicas quantitativas (Delazeri et al., 2022) e relatos de experiência (Câmara & Amato, 2014).

Nesse sentido, o presente estudo promove avanços nesse campo, ao dar protagonismo aos pacientes adultos, a partir de uma proposta metodológica clínico-qualitativa que permitiu conhecer suas narrativas de vida, perpassadas pelo adoecimento e tratamento oncológico. Com isso, pretende-se contribuir para a promoção de melhorias no que tange à qualidade de vida dos pacientes, podendo fornecer elementos que auxiliem na construção de novas práticas de cuidado por parte da equipe de saúde.

Diante do exposto, o presente artigo objetivou investigar como pacientes diagnosticados com câncer hematológico vivenciam o processo de adoecimento e tratamento oncológico. Para tanto, buscou-se contemplar os efeitos subjetivos desse processo na clínica de hematologia, considerando as diferentes fases do adoecimento, desde o impacto do diagnóstico - momento em que é frequente a busca por explicações - até as repercussões do tratamento e da hospitalização. A pesquisa tomou como base os pressupostos psicanalíticos freudianos, estabelecendo a fala como um meio privilegiado para elucidar processos de ordem subjetiva e inconsciente, atrelados às questões a serem investigadas.

Método

Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, de abordagem clínico-qualitativa (Turato, 2013). A pesquisa exploratória busca novas perspectivas e interpretações sobre um tema, visando aprimorar, elucidar e transformar ideias e conceitos. Já a pesquisa descritiva envolve a descrição, o registro, a análise e a interpretação de um fenômeno em um contexto específico (Marconi & Lakatos, 2021). Além disso, a escolha pelo método clínico-qualitativo ocorreu em virtude de melhor contemplar os objetivos propostos, uma vez que esse método foi desenvolvido para ser aplicado nos settings da saúde, configurando-se como um refinamento dos métodos qualitativos tradicionais. Nesse tocante, o método clínico-qualitativo busca conhecer e interpretar as significações dos fenômenos no campo da saúde-doença, pautando-se na interdisciplinaridade, com destaque às concepções psicanalíticas básicas (Turato, 2013).

Participantes

A amostra por conveniência foi composta por oito pacientes com diagnóstico de câncer hematológico, assistidos pelo Serviço de Hematologia, de uma unidade hospitalar de alta complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo tratamento de diversas doenças da área oncológica. Os critérios de inclusão foram: sujeitos adultos (maiores de 18 anos), de ambos os sexos, internados na enfermaria de Hematologia, apontados pela equipe como cientes de seu diagnóstico de câncer hematológico, e que já tivessem passado por, no mínimo, uma internação no respectivo hospital. Foram excluídos os sujeitos que estavam sendo atendidos pela pesquisadora, além dos que apresentavam evidência de prejuízo cognitivo e/ou capacidade de fala prejudicada ou que não estivessem com condições clínicas favoráveis para a realização da entrevista.

Para delimitar o número de participantes, utilizou-se o critério de saturação da amostra. Segundo Turato (2013), o pesquisador fecha o grupo da pesquisa depois que as informações coletadas com um número de participantes começam a se repetir, sendo que novas entrevistas passam a não ter acréscimos significativos para o alcance e discussão dos objetivos propostos. A Tabela 1, construída a partir dos dados provenientes de um questionário sociodemográfico, retrata as principais características dos participantes, cujos nomes foram substituídos por nomes fictícios para preservar a confidencialidade e sigilo dos dados.

Tabela 1 Características dos participantes 

Participante Idade Raça/cor Profissão Diagnóstico Tratamentos realizados Fase de tratamento
João 35-40 Branca Comerciante LLA QT Consolidação
Ana 20-25 Amarela Vendedora LMA QT Recidiva
Igor 20-25 Branca Professor LLA QT, TMO, RT Recidiva
Antônio 45-50 Parda Pedreiro MM QT, TMO Recidiva
José 45-50 Branca Vigilante MM Cirurgia, QT,
TMO,RT
Intercorrencía
Zélia 60-65 Branca Fotógrafa LMA QT Intercorrencía
Bruno 25-30 Pardo Açougueiro LNH DGCB QT, RT Progressão da doença
Fábio 20-25 Pardo Auxiliar de tráfego LH QT Intercorrência

Nota. LLA= Leucemia Linfoide Aguda: LMA = Leucemia Mieloide Aguda; MM = Mieloma Múltiplo; LNHDGCB - Linfomanáo Hodgkin de grandes células B: LH - Linfoma de Hodgkin; QT - Quimioterapia; TMO = Transplante de Medula Ossea; RT= Radioterapia

Instrumentos

Utilizou-se um questionário sociodemográfico para a caracterização da amostra, além de entrevistas semidirigidas individuais com questões abertas, estabelecidas a partir dos seguintes eixos norteadores: a descoberta da doença; reação frente ao diagnóstico; o encontro com o adoecimento; possíveis causas e motivos pessoais atribuídos à doença; mudanças após o adoecimento; percepções do corpo atualmente; sentimentos frente à doença; preocupações, medos e frustrações; experiência do tratamento e os desafios encontrados; emoções vivenciadas durante o tratamento e o impacto decorrente; e percepção sobre a hospitalização. As questões abertas permitem ampliar as discussões e conduzem o pesquisador a uma posição de escuta, resgatando a concepção clínica. Dessa forma, esse tipo de questão torna-se pertinente à proposta da pesquisa qualitativa, pois usa apenas tópicos que favorecem a criação de um espaço para que o entrevistado exponha livremente o conteúdo da sua resposta, não se restringindo apenas às alternativas dadas pelo pesquisador (Turato, 2013).

Procedimentos

A pesquisa teve início após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição à qual está vinculada, através do CAAE: 59482222.7.0000.5274 e Parecer de número 5.514.526. Foram seguidos todos os princípios éticos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Saúde. O convite aos potenciais participantes foi realizado de forma presencial pela pesquisadora e, mediante seu consentimento de participação voluntária no estudo, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado. Posteriormente, ocorreu o preenchimento do questionário sociodemográfico e a realização das entrevistas semidirigidas individuais à beira do leito, as quais foram gravadas em áudio para que pudessem ser transcritas na íntegra e analisadas. A duração média das entrevistas foi de 56 minutos.

Análise de Dados

Os dados foram analisados através da técnica de análise de conteúdo temática proposta por Bardin (1977/2016) que contempla três etapas: pré-análise, exploração do material e análise dos dados propriamente dita. A análise de conteúdo temática consiste em ir além do estágio descritivo, fazendo discussões e inferências a partir dos dados, considerando, para além do conteúdo manifesto, o conteúdo implícito das falas. Nesse sentido, ressalta-se que a análise das entrevistas tomou como base a teoria psicanalítica de Freud que se apoia nos pilares da fala (associação livre) e da escuta (flutuante). Assim, seguindo as etapas propostas por Bardin (1977/2016), formaram-se categorias não apriorísticas, isto é, categorias que não estavam predefinidas, mas que emergiram dos dados coletados, de acordo com os critérios de repetição e relevância. As categorias deram origem a dois grandes eixos de discussão que englobam desde o momento inicial do diagnóstico, até as repercussões ao longo da trajetória de adoecimento e tratamento dos pacientes, os quais serão apresentados a seguir.

Resultados e Discussão

O Encontro com o (In)esperado: A Descoberta do Diagnóstico Onco-hematológico

As neoplasias hematológicas costumam apresentar, inicialmente, sinais de alteração corporal pouco específicos e que participam da vida cotidiana dos sujeitos (Oncoguia, 2022), descritos como “cansaço” e “dores no corpo” nas falas dos entrevistados. Como consequência, tais sinais são frequentemente interpretados como algo trivial e irrelevante. Nesse sentido, para alguns participantes, os primeiros sintomas físicos do adoecimento foram atribuídos ao momento de vida em que se encontravam, não sendo associados à suspeita de um problema que demandasse cuidados ou uma atenção especial. Como exemplo, o cansaço físico, que esteve presente na maioria das narrativas dos entrevistados, foi interpretado como resultado de uma rotina turbulenta de trabalho ou mesmo do sobrepeso: “Eu estava com um cansaço físico, só que o meu trabalho era puxado, eu quase não parava” (Ana). “A única coisa que eu tive foi realmente o cansaço. Falei, eu não estou sentindo nada além do cansaço. Ainda brinquei, é que estou gorda, estou cansada, é besteira. Mas realmente não era besteira” (Zélia).

Além disso, alguns entrevistados relataram que descobriram a doença onco-hematológica a partir do surgimento de dores que não cessavam, servindo como incentivo para que buscassem os serviços da rede de atenção à saúde, como apresentam os relatos a seguir:

Eu comecei a sentir muita dor nas pernas […] e em alguns lugares que eu ia, alguns hospitais, eles davam injeçãozinha e mandavam pra casa. Melhorava a dor e mandavam pra casa, só que a dor foi se agravando, se agravando, a ponto de eu não chegar nem a andar mais, me dava crise de dor nos ossos. O médico não tinha um diagnóstico certo e chegaram a tratar até como se fosse tuberculose nos ossos (Antônio).

Comecei a sentir muita dor no abdômen, tórax. E então eu comecei a investigar, eu ia na UPA, sendo que lá não tem os aparelhos para identificar corretamente. Então sempre davam como princípio de cálculo renal, davam antibiótico, e nunca passava (Fábio).

Os recortes citados permitem inferir que, com o intuito de acabar com o mal-estar orgânico, e motivados pela dor, os participantes procuraram atendimento médico. No entanto, encontraram dificuldades no estabelecimento do diagnóstico oncológico, ou mesmo na sua suspeita, o que acarretou em atraso no diagnóstico correto e submissão a tratamentos equivocados. Assim, reitera-se que os sinais das doenças onco-hematológicas são difíceis de serem reconhecidos de forma precoce (Nascimento et al., 2016), e podem ser confundidos com diversas doenças não malignas, conforme também apontou Igor: “na minha cidade trataram como dengue por um mês e nada resolvia, nada resolvia”.

Tais achados estão em conformidade com a pesquisa de Delazeri et al. (2022) que investigou o itinerário terapêutico de pacientes hematológicos e demonstrou a importância do diagnóstico precoce. O estudo identificou, como um dos desafios para o diagnóstico preciso dos cânceres hematológicos, a subestimação dos primeiros sinais ou sintomas, tanto por parte dos pacientes, quanto dos serviços médicos, que desvalorizavam ou confundiam os sintomas, repercutindo em um longo período de investigação diagnóstica, bem como diagnósticos incorretos. A partir disso, ressalta-se a importância do conhecimento do médico sobre os sinais e sintomas do câncer, bem como das iniciativas dos pacientes em procurar o sistema de saúde, o que acarreta em impactos importantes na sobrevida e no tratamento.

Concernente a esse último aspecto, salientam-se as valiosas contribuições da Psicanálise (Freud, 1895/1992, 1914/1992, 1923/1992, 1930/1992), ao tecer considerações a respeito das implicações subjetivas que acompanham toda perturbação orgânica, ampliando a visão do adoecer e lançando luz sobre a relação que os sujeitos estabelecem com o próprio corpo e com o processo de tratamento ao qual se submetem. Nesse sentido, destaca-se a obra O mal-estar na cultura (Freud, 1930/1992), na qual o corpo aparece como uma das fontes de sofrimento que ameaça o ser humano.

Para a Psicanálise, o corpo não se reduz ao conceito de organismo, é reconhecido como subjetivo, lugar de inscrição das marcas de experiências precoces e da história de cada sujeito (Freud, 1890/2021, 1905/1992). Ao considerar o contexto oncológico, destacam-se as inúmeras transformações corporais que ocorrem a partir do adoecimento e que podem afetar a identidade do sujeito. Com isso, demarca-se que o corpo não se limita ao orgânico e, como consequência, o sintoma para a medicina não é equivalente ao sintoma para a Psicanálise. Para a primeira, os sintomas devem ser suprimidos, já para a segunda são tomados como material de trabalho, pois correspondem a um modo de funcionamento particular do sujeito, que habita um corpo físico, mas não se restringe a ele (Swinerd, 2019).

De acordo com Fernandes (2002), há diferentes percepções dos sinais somáticos de uma doença, os quais sempre existiram, embora nem sempre sejam testemunhados pelos sujeitos. Assim, mesmo diante de doenças particularmente silenciosas, como os cânceres hematológicos, em que os sinais podem ser extremamente sutis, eles sempre ocasionam uma perturbação, ainda que essa seja mínima.

Em 1923, na obra intitulada O eu e o isso, Freud (1923/1992) postula que o eu é, primeiro e antes de tudo, um eu corporal, sensível tanto aos estímulos externos quanto internos, sendo então necessária uma operação psíquica para que o sujeito se constitua, o que só é possível pela alteridade, isto é, é necessário que alguém o retire de uma condição inicial de desamparo. Essa alteridade é fundamental para a constituição do eu, pois é o que irá marcar desde o início as primeiras experiências em um corpo ainda imaturo (Freud, 1914/1992).

Percebe-se, então, que Freud (1905/1992) subverte a lógica puramente biológica do corpo e inaugura a existência de um corpo erógeno, ou seja, um corpo pulsional. Nessa perspectiva, um mal-estar orgânico, como a dor, que incide sobre o corpo, torna-se uma fonte de sofrimento não passível de sublimação, destacando seu aspecto imperativo, na medida em que a dor adquire um papel fundamental, ao romper com o silêncio dos órgãos e relembrar ao sujeito sobre a existência de seu corpo, ou melhor, de partes do seu corpo (Leriche, 1936 como citado em Canguilhem, 2009, p.30). Para Freud (1923/1992), a experiência da dor e do adoecimento também desempenham um papel importante no acesso à representação do próprio corpo.

Por outro lado, na ausência total de sinais, a doença pode ser mais facilmente negada, uma vez que, considerar-se como potencial doente, acaba sendo um fato mais abstrato. Todavia, mesmo em situações nas quais não se encontra nenhum sintoma visível ou doloroso, alguns sujeitos descrevem um mal-estar difuso, a partir da constatação de que algo está diferente da percepção do corpo que tinham até então (Fernandes, 2002). Como exemplo, cita-se a narrativa de José a respeito do primeiro momento em que se sentiu doente, referindo ser anterior ao diagnóstico, quando afirma: “Estava fazendo uma obra para minha mãe e na hora de levantar um tijolo, começou a pesar a minha mão. Eu ainda falava, eu não estou legal, minha mão pesa agora. Antes não me dava isso”.

Assinala-se que os aspectos ocultos ou mesmo não perceptíveis das doenças onco-hematológicas, em um primeiro momento, parecem estar presentes não só nas dificuldades dos pacientes e dos profissionais de reconhecerem a enfermidade, como nos próprios nomes das principais neoplasias hematológicas, a saber: leucemias, linfomas e mielomas. Tais nomeações não apontam, a priori, para uma associação direta com o câncer, como no caso dos tumores sólidos, em que a palavra câncer fica em evidência (câncer de mama, câncer de pulmão, etc.). Pondera-se que, por vezes, esse velamento serve como uma proteção ao sujeito, diante da carga simbólica negativa da morte, da dor e do sofrimento, comumente associada ao câncer (Sontag, 2002), como exposto por João: “Quando eu estava descobrindo que era leucemia estava bom, mas quando eu descobri que era câncer (silêncio), fiquei preocupado, […] falei caramba essa doença normalmente é letal”.

Bruno e Ana também trazem suas contribuições nesse sentido: “O médico disse linfoma, mas eu nem perguntei nada no início, assumi como se fosse um resfriado. Depois, quando outro médico disse linfoma, eu perguntei o que seria? Ele falou que era um tipo de câncer, todo o mundo desaba”. (Bruno)

[…] o médico olhou os exames e falou que eu estava com um grau forte leucêmico e de início não entendi. Aí ele falou que eu estava com leucemia e eu nunca tinha ouvido falar disso, [...] quando eu entendi, pensei: ‘Eu vou morrer, então vou ficar em casa e vou morrer em casa, não quero me tratar, não quero ficar sem cabelo’ (Ana).

Assim, constata-se que é apenas em um tempo posterior que os participantes passam a compreender e associar seu diagnóstico com um tipo de câncer e que se torna possível questionar o nome técnico informado pelo médico, como no caso de Bruno e Ana. Nesse tocante, ressalta-se que, ao ouvir a palavra câncer, muitas vezes não restam dúvidas do que se trata, enquanto as demais palavras como linfoma e leucemia, por exemplo, fazem com que os participantes interroguem, a seu tempo, do que se trata.

No caso de Zélia essa descoberta não ocorreu através de um questionamento, mas ao acaso quando ouviu uma médica explicando o diagnóstico para a paciente ao lado, com quem dividia o quarto:

A médica que estava cuidando dela [paciente ao lado] não era a mesma que estava cuidando de mim. E aí eu estava quietinha quando a médica começou explicar para ela que leucemia é um câncer assim e assim. [...] tanto que quando alguém me perguntava aqui [no hospital] qual o meu câncer, eu falava: ‘Eu não tenho câncer, isso não é um câncer!’. Não gostava nem de conversar. Depois disso, eu fui entender o que era (Zélia).

Desse modo, percebe-se que a não visibilidade imediata do adoecimento, assim como a de sua nomeação, que parecem deixar algo encoberto, vão ganhando outros significados. O sujeito passa então a identificar os primeiros sintomas como sendo da doença, e depara-se com o diagnóstico de um tipo de câncer que possui nome próprio. A partir dessas novas elaborações, surgem ideias atreladas às diversas representações do câncer, sendo comum a associação com a morte e com as perdas decorrentes do tratamento, como trouxeram João e Ana.

Desde os primórdios da Psicanálise, Freud (1895/1992) procurou mostrar que a noção do a posteriori seria bastante cara para sua teoria. A complexidade desse conceito está presente na criação de vários outros conceitos ao longo de sua obra, como exemplo do próprio inconsciente (Freud, 1915a/1992) que não obedece a uma noção de continuidade temporal. Sendo assim, é somente a posteriori que o sujeito modifica as representações dos acontecimentos que vivenciou lhes atribuindo sentido, eficácia ou um efeito patogênico/traumático, o que aponta para importância de trabalhar com a escuta do singular, como se propõe a Psicanálise, incluindo a temporalidade de cada sujeito em seu processo de adoecimento.

As Perdas no Caminho: Entre Pausas e Rupturas durante o Processo de Adoecimento e de Tratamento Onco-hematológico

A experiência do adoecimento onco-hematológico faz com que o sujeito se depare com diversas situações que afetam seu funcionamento físico e psíquico. Dentre elas está o próprio tratamento, cujo início ocorre, muitas vezes, de forma concomitante com a constatação da doença e faz com que o sujeito não tenha tempo para assimilar os diversos impactos e transformações que surgem, a partir da descoberta do diagnóstico (Reis et al., 2018). Assim, a elaboração psíquica do processo de adoecimento nem sempre segue o ritmo imposto pelo tratamento. Adoecimento e tratamento ora se fundem, ora se confundem, ora destoam, mostrando encontros e desencontros, diferenças e interligações, mas, acima de tudo, apontando para uma experiência que é singular.

À vista disso, os participantes expuseram que a principal mudança trazida pelo adoecimento - atestado inicialmente pelos médicos, embora nem sempre pelos próprios pacientes - foi a inclusão de um tratamento que repercutiu em uma série de restrições e significou, sobretudo, uma paralisação na vida:

Parou tudo. Pra mim a vida parou, porque eu vou ter que viver pelo menos uns dois anos de tratamento e a vida não segue. O trabalho parou, tudo parou. Não tenho mais como fazer o que eu tinha que fazer, não posso. […] eu quero que o tratamento conclua logo, pra poder voltar à ativa, porque, por eu ser o chefe da casa, tudo depende de mim. Eu sei que o tratamento é um pouco longo, mas depois de concluído eu tenho a vida inteira pela frente. Eu estou levando, porque estou crendo que vai terminar esse ciclo e vou poder voltar à minha vida, a minha rotina normal (João).

Conforme menciona João, o período do tratamento é visto como um tempo de pausa, como se a vida ficasse em suspensão e pudesse ser retomada de onde ela parou, após a conclusão do tratamento. Ao considerar que os participantes se encontravam internados no momento da pesquisa, pode-se refletir que, para alguns, naquele momento, ainda não era possível elaborar as inúmeras perdas decorrentes da nova realidade e, para que conseguissem suportar o tratamento e a rotina hospitalar, tornou-se necessário manter certa ilusão de restabelecer seu ritmo de vida, tal qual era antes do adoecimento, como também atesta a fala de José:

Eu era o provedor da minha casa, então sua vida tudo para né? Em parte, me afetou em outras coisas porque tem que parar tudo. É um impacto, te afeta em tudo. […] Porque você vai parar a sua vida, você vai lutar contra isso aí. E até ir se organizando pra poder voltar à sua vida normal e até pra poder continuar os procedimentos que tem que fazer.

Nesse caso, infere-se que voltar à “vida normal” como exposto por João e por José implicaria na recuperação dos papéis pessoais, profissionais e sociais que outrora ocupavam e que lhes conferiam identidade. Tais falas remetem à noção de cura na medicina, caracterizada como um retorno ao estado anterior (Canguilhem, 2009). Ademais, nota-se que a própria ideia de um retorno para uma “vida normal” demonstra as limitações e privações que a doença e o tratamento impõem não só na vida profissional dos sujeitos como também nas suas demais atividades cotidianas.

A doença modifica a vida dos sujeitos, ao implicar em restrições e perdas de diferentes ordens, as quais assinalam que não se trata somente de uma pausa, mas principalmente de uma ruptura, pois nem o ambiente, nem as funções sociais e as capacidades físicas serão exatamente as mesmas, o que aponta para o impossível de ser retomado, enquanto um ponto onde se parou. Além disso, as rupturas são evidenciadas nas próprias narrativas dos participantes, a partir da concepção de um antes e um depois que inauguram um marco no tempo do sujeito e inscrevem a doença em seu psiquismo: “Antes eu tinha uma rotina de trabalho, de família, de amigos e depois tudo mudou. Não estou trabalhando mais, dificilmente consigo ver meus amigos. Minha vida se limita só do portão da minha casa pra dentro” (Bruno).

Antes eu saía, eu trabalhava, eu passeava, cuidava de todo mundo, era minha vida. E agora eu não posso mais. Acabou tudo, não tenho mais tudo isso. O negócio é ali no quarto, fico no quarto. Às vezes eu quero comprar as coisas, mas não vou ao mercado sozinha, porque eu não aguento, fico cansada. Eu achei que eu era forte. Todo mundo achou, tanto que me chamavam de mandona, de sargentão, porque eu resolvia tudo. E acabou, não tem mais a poderosa, não tem mais a mandona, a que resolve tudo (Zélia).

Através dos recortes acima, nota-se que o adoecimento e o tratamento trazem como condição, ainda que momentânea, a dependência e a restrição de liberdade. Nesse processo, as perdas incluem não só a perda de um corpo saudável, como também a perda de atividades habituais e de lazer, da condição física, dos ideais de invulnerabilidade do corpo, dos laços, das fantasias e referências identitárias que constituem o sujeito e a partir das quais ele se localiza na vida.

O sujeito defronta-se com limites na medida em que não pode mais decidir sozinho sua rotina e fica subordinado às exigências do tratamento. Entende-se que esse momento remete a uma condição anterior marcada pelo infantil, a saber, a dependência de um outro para suprir as necessidades básicas como alimentação, locomoção e higiene. O que nos faz indagar sobre a hospitalização como um período que remete o sujeito a um estado inicial marcado pela experiência do desamparo. Nesse tocante, a narrativa de Zélia demonstra a passagem de uma identificação enquanto pessoa ativa que era “forte”, “poderosa”, “cuidava de todo mundo” e “resolvia tudo” para uma identidade passiva, de alguém que demanda cuidados e não consegue mais ir ao mercado sozinha. Assim, verifica-se que a forma de se relacionar com familiares e amigos é modificada, bem como a visão a respeito do corpo e da própria identidade, instaurando-se um novo ritmo de vida.

Segundo López e Trad (2014) que analisaram as experiências de pacientes com leucemia mieloide crônica, desenvolvendo a hipótese de que a chegada da doença representa uma ruptura biográfica, o ritmo atual já não é o mesmo da vida cotidiana antiga que trazia sentido à existência do sujeito. Nos relatos dos participantes do estudo dos autores supracitados, o “antes” foi reconhecido como o tempo da vida ativa, tanto no campo do trabalho quanto das relações familiares e sociais, estabelecendo certos modos de “ser” e de “viver”. Já o “depois” foi caracterizado através das diferenças com relação às rotinas, capacidades, incertezas e limitações. Assim, entende-se a doença como um evento disruptivo, tendo em vista que interrompe o cotidiano de vida do paciente e suas perspectivas futuras.

Para Igor, a questão da ruptura fica evidente mediante a concepção de mundos paralelos:

São mundos paralelos. O tratamento é muito ingrato. Você está em um mundo em que a vida está acontecendo, tá fluindo e de uma hora pra outra de um dia pro outro sua vida mudou e você está em um mundo totalmente paralelo, um mundo estranho e desconhecido, medonho, obscuro. […] É muito drástica essa troca de realidade. As internações também são pesadas, até porque eu sou uma pessoa muito ativa e aqui você fica parado e seu corpo também, você quer fazer coisas, e seu corpo não corresponde, sua imunidade está baixa, então você acha que pode fazer alguma coisa, e não pode.

Nascimento et al. (2016) definem o adoecer como um estado de privação, de perda subjetiva e objetiva de si e dos demais objetos de amor e gratificação. Assim sendo, questiona-se que vida é essa que o sujeito vivencia durante o seu processo de adoecimento e de tratamento? Os relatos colhidos parecem trazer notícias de uma vida amputada de liberdade, com alterações abruptas. Uma vida na qual passam a existir dois mundos paralelos, sendo um mundo “normal” onde a vida acontece e outro, o mundo da doença, que acarreta um encontro - do diagnóstico ao tratamento - com o estranho, com o sombrio, com o desconhecido, inclusive do ambiente hospitalar.

No momento em que adoece, especialmente no contexto das neoplasias hematológicas, é comum que o sujeito se depare com a hospitalização, em virtude da baixa imunidade, do comprometimento sistêmico, ou da realização do tratamento quimioterápico. Dito de outra forma, a internação hospitalar torna-se uma modalidade de tratamento necessária em muitos casos. No entanto, ela não ocorre sem consequências para o sujeito, pois leva ao isolamento de seu meio social e representa uma ruptura de suas atividades cotidianas (Reis et al., 2018). Além disso, durante o período em que fica hospitalizado, o paciente está exposto a diversos riscos que podem torná-lo mais vulnerável ao sofrimento, como o contato com outros pacientes que possuem a mesma doença em estágios mais avançados ou mesmo que falecem:

Todos os pacientes entendiam o que eu estava passando. E pra mim alguns não eram amigos só, eram como irmãos. Como o Davi (silêncio). E ele morreu. E aquilo fez um mal tão grande pra mim, sofri tanto que eu cheguei a ter febre, fizeram hemocultura, fizeram tudo. Não encontraram nada. Era uma febre que pra mim foi emocional. Porque ele era assim muito importante pra mim. E pensei que eu seria o próximo (Antônio).

Desse modo, ao mesmo tempo em que pontua que os amigos que fez durante o tratamento foram muito importantes, Antônio destaca os desafios do encontro com a possibilidade da própria finitude, a partir da morte desse amigo, com quem criou um vínculo significativo e identificações. Freud (1915b/1992) declara que a guerra provoca uma mudança de atitude dos homens diante da morte. A doença, assim como a guerra, também pode provocar essa mudança, ao romper a natureza do que se tinha como suposto na vida cotidiana. Nesse cenário torna-se comum a visão do câncer como um inimigo que precisa ser combatido (Sontag, 2002), trazendo efeitos tão devastadores que podem ser comparados aos efeitos de uma guerra: “Te afeta em tudo. […] Porque você vai parar a sua vida, para lutar [grifo nosso] contra isso aí.” (José). “Tem que lidar com o emocional, com as dores no corpo, com as mudanças, com a morte de pessoas queridas. Então, são muitas coisas, é muito pesado. Cada hora é uma bomba [grifo nosso] diferente” (Igor).

Evidenciam-se, desse modo, as múltiplas perdas com as quais os sujeitos se deparam cotidianamente. Tais perdas levam à destituição da ilusão de imortalidade, demonstrando a importância do processo de luto, para que o adoecimento e as mudanças decorrentes dele, incluindo o tratamento, sejam integrados ao psiquismo. O luto é caracterizado como uma reação natural à perda de um objeto que foi investido libidinalmente, incluindo não só perdas relacionadas à morte propriamente dita, como também a perda de um ideal, abstração, e demais perdas subjetivas (Freud, 1917/1992). O luto enquanto trabalho de elaboração das perdas é um processo doloroso e ao mesmo tempo dinâmico que viabiliza (re)construções e (re)significações diante das rupturas que ocorrem na vida do sujeito.

Nesse cenário, a aposta da Psicanálise é justamente a oferta de uma escuta advertida, isto é, de que há um saber (do lado do sujeito) que advirá no encontro do profissional com o paciente. Assim, é fundamental que o sujeito tenha um espaço de fala onde possa trabalhar na reconstrução de um novo corpo e, consequentemente, uma nova identidade na qual se reconheça. Espaço esse onde o que é devastado pela doença possa ser reconstruído pela palavra. Dito de outro modo, aposta-se que encontrar alguém que possa escutar essa experiência, sustentando a posição de sujeito deste ser que sofre, favorece a construção de pontes entre o mundo da saúde e o mundo da doença. Como consequência, permite-se que o sujeito passe do processo de luto para o processo de luta pela vida possível (Moretto, 2013). Para tanto, é preciso uma mudança de posição do sujeito frente às perdas, através da invenção de saídas criativas e singulares para o seu sofrimento.

Considerações Finais

O ciclo da vida humana é atravessado por uma série de acontecimentos: nascimento, crescimento, reprodução e morte. Os eventos esperados compreendem essa sucessão de etapas que transcorre da infância à velhice. Entretanto, a vida também traz como possibilidade o encontro com o (in)esperado, que pode interromper esse ciclo. A exemplo disso, está o adoecimento. O adoecimento traz como consequência a inclusão do tratamento na vida do sujeito, implicando em perdas e restrições de diferentes ordens.

Assim, ocorrem rupturas no cotidiano dos sujeitos que se depararam com privações de potencialidades do ser, como a perda de autonomia e de funcionalidade que trazem à tona sua fragilidade e vulnerabilidade. O corpo passa a ser permeado de histórias e de marcas que revelam perdas, dores e medos e fazem com que o paciente se confronte com os limites impostos pelo registro do real. O adoecimento, e em especial a presença de dor, presentifica o corpo de modo radical, colocando-o em cena.

No caso do adoecimento onco-hematológico, verificam-se particularidades que vão desde a invisibilidade inicial do adoecimento e a falta de uma localização específica no próprio corpo, que podem dificultar para que o paciente se reconheça enquanto doente, até as repercussões de uma nomenclatura que não abrange o termo câncer e fornece certa proteção diante dos estigmas comumente associados à doença. Além disso, as narrativas dos entrevistados apontaram que o significado atribuído ao câncer hematológico está ligado às experiências de vida e à subjetividade de cada um, de modo que adoecimento e tratamento oncológico não coincidem. Estar informado sobre o diagnóstico não garante uma apropriação subjetiva do mesmo, é preciso integrar a vivência do adoecimento e do tratamento ao psiquismo, construindo um sentido para ela, passando da vivência em si, para o relato dela.

Dessa forma, salienta-se que ainda que o tratamento possa ser o mesmo, seguindo o mesmo protocolo, para diferentes pacientes, a dor e o sofrimento são sempre únicos para cada sujeito e o que cada um faz com essa vivência é o que torna o adoecimento uma experiência singular. À vista disso, assinala-se a importância do dispositivo analítico que aposta no reestabelecimento da implicação subjetiva do sujeito e oferece àqueles que assim desejarem, cada um a seu tempo, a possibilidade de falar de seu sofrimento, permitindo que o real se inscreva de um outro modo.

Freud (1913/1992), que construiu a Psicanálise como um novo ramo do conhecimento, e ao mesmo tempo um novo método terapêutico, aponta que as palavras são a ferramenta essencial de trabalho do psicanalista (Freud, 1890/2021). Com isso, a Psicanálise vem se ocupar, justamente, deste lugar de escuta do sujeito, apostando que no ato de falar, um saber se constrói para o paciente sobre aquela vivência particular.

O presente estudo não teve a pretensão de esgotar a temática do adoecimento onco-hematológico, mas revelar o que é essa experiência para cada um, a partir de uma enunciação particular. As limitações encontradas foram a restrição do campo de pesquisa a uma unidade hospitalar e a heterogeneidade da amostra, quanto as diferentes fases do tratamento, devido à dificuldade de selecionar pacientes elegíveis que estivessem em condições físicas e psicológicas favoráveis para participar da pesquisa. Como desdobramentos, sugere-se ampliar o número de pesquisas em diferentes centros de atenção oncológica, com foco em uma fase específica do tratamento ou comparando essas fases.

Notas

1 Para fins deste estudo e, considerando a literatura acerca da temática, serão adotadas como sinônimos as nomenclaturas "doenças onco-hematológicas", "cânceres hematológicos" e "neoplasias hematológicas", com vistas a diferenciar as doenças hematológicas de modo geral (ex: anemia) das doenças malignas dentro da área oncológica (ex: leucemias).

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Recebido: 02 de Março de 2023; Revisado: 14 de Julho de 2023; Aceito: 26 de Julho de 2023

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