Este artigo retoma debates feitos durante o século XX em dois momentos históricos distintos e em contextos diferentes, mas que apresentam um aspecto central a uma configuração antidemocrática: o estabelecimento de uma fronteira política entre “nós” x “eles” por meio da consideração do “eles” como um inimigo a ser destruído, sendo esta eliminação legitimada através da caracterização do “eles” como um “perigo” para a ordem social. Caracterização que pode ser construída de maneiras diversas. Nos dois casos abordados no texto, podemos pensá-la em torno do antissemitismo (II Guerra Mundial) e da vinculação dos sujeitos à “esquerda” (ditaduras latino-americanas).
A retomada destes debates visa a apresentar reflexões e possíveis saídas formuladas pelos autores para a ordem social que estavam interpelando e, a partir disso, tecer considerações sobre alguns aspectos que contribuem para a compreensão das ofensivas antidemocráticas de hoje, considerando o fortalecimento da extrema-direita em países europeus e americanos.
Acerca do contexto da II Guerra Mundial, recorrerei à Introdução e à Conclusão do livro “A Personalidade Autoritária” - que reúne capítulos referentes a uma pesquisa feita por Adorno (2006) e outros pesquisadores de Berkeley sob o impacto do extermínio dos judeus nos campos de concentração nazista; e ao Prefácio da obra, assinado por Horkheimer (2006). Estes textos foram publicados originalmente em 1950 e republicados em 2006 no período científico Empiria. Revista de Metodología de Ciencias Sociales.
A fim de refletir sobre a produção na psicologia referente às ditaduras latino-americanas, marcadas pela tortura, assassinato e exílio dos “inimigos”, recorrerei a dois textos de Ignacio Martín-Baró. Estes textos foram publicados originalmente na década de 1980 e republicados no livro “Crítica e libertação na psicologia”, organizado por Fernando Lacerda em 2017. Trata-se de textos escritos em um momento caracterizado por um grave conflito social em El Salvador, iniciado no começo da década de 1970 e formalizado como uma Guerra Civil após o Golpe de Estado de 1979 e o assassinato do Monsenhor Romero por forças de repressão governamentais. Um dos textos é “Um psicólogo social frente à guerra civil em El Salvador” (Martin-Baró, 2017a), publicado originalmente em 1982, no qual o autor apresenta uma análise psicossocial da situação-limite de violência em El Salvador. O outro texto é “O latino-indolente: caráter ideológico do fatalismo latino-americano” (Martin-Baró, 2017b), publicado originalmente em 1987, no qual Martín-Baró discute o fatalismo como um valioso instrumento ideológico das classes dominantes por produzir nas classes oprimidas uma aceitação prática da ordem social opressiva, vendo-a como natural e não como uma construção histórica. Ademais, aborda a importância da superação do fatalismo para a luta contra a condição opressiva e violenta vivenciada pelos salvadorenhos.
Buscando apontar diálogos entre estas obras e o contexto contemporâneo, recorrerei também à teoria democrática desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que nos auxilia a refletir sobre as ofensivas da extrema-direita na atualidade, ao permitir entendê-las como construções políticas que, como quaisquer outras, visam tornar-se hegemônicas, mas que apresentam uma importante diferença em relação às estratégias políticas democráticas: o modo como delimitam a fronteira política entre “nós” e “eles”.
Neste sentido, como explicita Laclau (2013), a possibilidade da democracia depende do estabelecimento de uma fronteira política entre “nós” e “eles”, e, assim, da disputa pelo modo de construção da ordem social, a qual se institui de maneira hegemônica. Essa fronteira política entre “nós” e “eles” numa lógica política democrática caracteriza-se, como afirma Mouffe (2015), pela articulação contingente entre dois princípios paradoxais: igualdade (tradição democrática) e liberdade (tradição liberal). Essa relação paradoxal é condição para a democracia: assim, o “nós” e o “eles” precisam ser construídos como adversários legítimos e não como inimigos a ser destruídos. Do contrário, aquela relação teria sido eliminada e uma fronteira antidemocrática instituída.
A escolha pelas reflexões desenvolvidas pelos autores e pelas autoras indicadas/os acima se deve à importância de suas obras para a análise de “configurações antidemocráticas” em distintos contextos, a saber: II Guerra Mundial, ditaduras latino-americanas no século XX, fortalecimento da extrema direita na atualidade. Em que pese as distinções teóricas e epistemológicas e as conjunturas diversas (Lacerda Júnior, 2022; Jay, 2008; Mendonça & Rodrigues, 2014) das produções dos autores e as autoras focalizados/as na discussão, é importante salientar que o foco do artigo não está em explorar estas distinções teóricas e históricas, mas mobilizar suas produções para o debate de uma problemática importante em dois momentos históricos relevantes do século XX (II Guerra Mundial e ditaduras latino-americanas) e no nosso tempo presente: as configurações antidemocráticas. Especificamente, por apontarem pela distinção lógica entre configurações democráticas e antidemocráticas a partir do modo como a fronteira política entre “nós” e “eles” é delimitada na dinâmica política.
Uma característica comum aos contextos investigados e que os caracteriza como antidemocráticos: o rechaço ao “eles”, sendo os sujeitos concebidos como tais deslegitimados, tratados como inimigos. A ênfase na construção da fronteira política entre “nós” e “eles” como o aspecto de distinção entre configurações democráticas e antidemocráticas está sustentada neste texto na concepção da democracia não como um modo específico de regime político (existência dos Três Poderes, eleição através do voto, por exemplo), mas como uma lógica política de instituição da ordem social.
Consideramos o que foi produzido no passado não como “peça de museu”, mas como algo que instiga a reflexão sobre o passado e o presente, sendo essa a aposta que motiva a escrita deste texto.
A Personalidade Autoritária: O Estudo da Ideologia e o Reconhecimento do Papel das Emoções na Adesão dos Indivíduos a Construções Ideológicas
A pesquisa que deu origem ao livro A Personalidade Autoritária, publicado em 1950, foi realizada após a saída dos pesquisadores da Escola de Frankfurt da Alemanha em razão da ascensão do nazismo, na década de 1930. A pesquisa foi financiada pelo Comitê Judeu Norte-Americano, o qual desde 1944 investia no apoio a investigações sobre preconceito desenvolvidas por especialistas em sociologia e em psicologia e na promoção de lutas por direitos democráticos (Horkheimer, 2006). A pesquisa foi organizada por membros do Estudo de Opinião Pública e do Instituto de Investigação Social de Berkeley, tendo sido liderada por três pesquisadores e uma pesquisadora: Theodor Adorno, Nevitt Sanford, Daniel Levinson e Else Frenkel-Brunswik, os quais desenvolveram conjuntamente os principais conceitos do estudo e contribuíram em todos os 23 capítulos do livro (Horkheimer, 2006).
A pesquisa que deu origem ao livro começou se centrando no antissemitismo, o qual é entendido pelos autores e pela autora como estando mais relacionado a fatores relativos às pessoas que expressam o antissemitismo do que a características reais dos judeus (Horkheimer, 2006). Os pressupostos que orientaram a pesquisa foram que o antissemitismo se trata de um marco ideológico presente na sociedade e que a suscetibilidade do indivíduo a uma ideologia é dependente de suas necessidades psicológicas (entendidas, a partir da teoria freudiana, como pulsões, desejos e impulsos emocionais).
Deste modo, os pesquisadores compreendem que os indivíduos diferem em sua suscetibilidade à propaganda antidemocrática: alguns aceitariam rapidamente as ideias divulgadas, outros apenas quando parecer que as ideias foram aceitas por “todo mundo” e outros nunca as aceitariam. Assim, acreditam ser necessário estudar a ideologia ao nível desta “predisposição” dos indivíduos à propaganda antidemocrática para que se possa compreender o potencial fascista da população.
Para os pesquisadores e para a pesquisadora, as opiniões, atitudes e valores dependem das necessidades humanas e, sendo a personalidade essencialmente uma organização de necessidades, compreendem que “a personalidade pode ser considerada como um determinante das preferências ideológicas” (Adorno et al., 2006, p. 173, tradução nossa). O que não significa que a personalidade seja um determinante último, um princípio que se mantém fixo e que atua sobre o mundo circundante, uma vez que, ainda que difícil de ser modificada depois de desenvolvida, ela se constitui “sob o impacto do ambiente social e não pode isolar-se da totalidade social na qual se desenvolve” (p. 173, tradução nossa). Assim, a personalidade, segundo os pesquisadores, é um conceito que serve para explicar aquilo que é relativamente permanente, tomando-se a fixidez e a flexibilidade não como categorias mutuamente excludentes, mas como extremos de um único contínuo, ao longo do qual se encontram as características humanas. Segundo os autores, “o conceito de estrutura da personalidade é a melhor salvaguarda contra a inclinação de atribuir às tendências persistentes do indivíduo a algo ‘inato’, ‘básico’ ou ‘racial’ próprio dele” (p. 174, tradução nossa).
Ademais, Adorno et al. (2006) enfatizam que a personalidade é “uma predisposição a comportar-se mais que um comportamento em si” (p. 174, tradução nossa), pois a expressão do comportamento é dependente da situação objetiva. Desta maneira, concebem que “na determinação da ideologia e de qualquer comportamento intervêm um fator de situação e outro de personalidade, e que a ponderação cuidadosa do papel de cada um permite a construção de predições mais precisas” (p. 177, tradução nossa).
Adorno et. al. (2006) ressaltam que o estudo de A Personalidade Autoritária buscou enfatizar os fatores de personalidade, pois: a) estudos recentes na época já haviam dado atenção aos fatores de situação, principalmente à condição econômica e à pertença grupal, e deixado de lado os fatores individuais; b) o êxito do fascismo depende do apoio da massa, o qual é assegurado não apenas pela submissão temerosa, mas também pela cooperação ativa da grande maioria das pessoas. Como o fascismo, de acordo com Adorno et al. (2006), por natureza, busca favorecer apenas alguns em detrimento da maioria, precisa apelar, sobretudo, não aos interesses pessoais racionais, mas às necessidades emocionais dos indivíduos (quase sempre desejos e temores mais primitivos). Assim, pode-se supor que a propaganda fascista terá mais êxito quanto maior for o grau de potencial antidemocrático existente na grande massa de pessoas. Segundo os pesquisadores e a pesquisadora, se na Alemanha as condições econômicas e políticas poderiam ser uma razão suficiente para o triunfo do fascismo, não era em torno delas que os líderes nazistas atuaram, mas sim a partir da psicologia das massas, ativando o potencial antidemocrático da população e sufocando as mínimas fagulhas de rebelião.
Nas palavras dos autores e da autora, a investigação “se baseou na seguinte hipótese principal: que as convicções econômicas, políticas e sociais de um indivíduo quase sempre constituem uma pauta ampla e coerente, como se estivessem vinculadas por uma “mentalidade” ou “espírito”, e que esta pauta é uma expressão de tendências profundas da personalidade” (Adorno et. al., 2006, p. 169). A principal preocupação da pesquisa era com o indivíduo potencialmente fascista, “cuja estrutura é tal que o faz particularmente suscetível à propaganda antidemocrática” (p. 169). Os autores e a autora apontam que o termo “potencialmente” foi utilizado em razão de não terem estudado indivíduos declaradamente fascistas ou pertencentes a organizações fascistas reconhecidas. Lembram também que, no momento da pesquisa, o fascismo havia acabado de ser derrotado na II Guerra Mundial, de modo que não se esperava encontrar pessoas que se identificassem abertamente como fascistas.
De acordo com Adorno et. al. (2006), o fascismo era a tendência político-social que mais ameaçava as instituições democráticas. Desse modo, conhecer as “forças da personalidade que favorecem sua aceitação pode ser, em última instância, útil para combatê-la” (p. 169). Para tanto, a pesquisa centrou-se nas seguintes questões: “Se existem indivíduos fascistas potenciais, como são exatamente? Como se forma seu pensamento antidemocrático? Quais são suas forças de organização interna? Se tais pessoas existem, quais têm sido os fatores determinantes e o curso de seu desenvolvimento?” (p. 169).
Como resultado da investigação, os pesquisadores afirmam que o achado mais importante foi a descoberta de que existem padrões básicos de personalidade, apresentando os indivíduos uma mesma perspectiva em torno de uma grande variedade de temas que vão da vida pessoal (familiar, sexual, interpessoal) até às atitudes relativas à religião, a política e a temas sociais. Apontam que os indivíduos que mostram uma suscetibilidade extrema à propaganda fascista têm muito em comum, formam um conjunto mais homogêneo do que o grupo daqueles que não são preconceituosos.
Outro achado muito relevante, segundo Adorno et. al. (2006), foi a compreensão de que as medidas para combater o preconceito necessitam levar em conta a estrutura global do enfoque preconceituoso. Neste sentido, consideram, por exemplo, que, ao invés de se colocar maior ênfase na discriminação contra grupos minoritários concretos, deve-se observar fenômenos como a estereotipia, a frieza emocional, a identificação com o poder e o ânimo destrutivo, pois medidas que tratam das manifestações particulares ao invés da enfermidade em si não seriam efetivas:
Não se pode esperar que argumentos racionais tenham efeitos profundos ou duradouros sobre um fenômeno que é essencialmente irracional. Apelar à compaixão quando se trata de pessoas que experimentam um grande temor a ser identificadas com a debilidade ou com o sofrimento pode ser tão prejudicial como benéfico. Estreitar laços com membros de grupos minoritários dificilmente influenciará em pessoas que se caracterizam em grande parte por sua incapacidade para assumir experiências; e promover a simpatia por grupos ou indivíduos concretos resulta muito difícil para pessoas que realmente não gostam de ninguém. E se conseguirmos desviar a hostilidade sobre uma minoria, deveremos ser muito cuidadosos com nossa satisfação, pois sabemos que é muito provável que dirijam sua hostilidade para algum outro grupo (p. 197, tradução nossa).
Apesar disso, Adorno et. al. (2006) afirmam que não estão defendendo a redução das atividades que atuam sobre os sintomas, pois é motivo de alegria o controle de uma enfermidade, ainda que não se consiga curá-la. Para os autores e para a autora, não se deve diminuir o combate ao fascismo em nenhuma frente, porque isso aumentaria a dificuldade dos grupos perseguidos alcançarem seus direitos. Salientam que cada uma das atividades contrárias ao fascismo precisa ser pensada como um microcosmo de um programa global eficaz.
Neste sentido, apontam, por exemplo, que ainda que medidas legais contra a discriminação não resolva o fenômeno do fascismo - até mesmo porque o fascista potencial tende a encobrir suas ações antidemocráticas com uma máscara de legalidade -, a existência destas medidas legais proporciona limitações à ação do fascista potencial, as quais serão maiores quanto mais as minorias conseguirem ser mais fortes diante destas proteções. Do mesmo modo, explicitam que, uma vez que uma das características do enfoque preconceituoso é a aceitação do igual e o rechaço ao diferente, membros de minorias podem vir a adotar aparências externas dos grupos dominantes para protegerem-se e alcançarem certas vantagens em limitadas situações e por um certo período. Entretanto, além dessa conformidade comprometer os valores de diversidade cultural, a pesquisa demonstra que
a sorte final de qualquer minoria não depende principalmente do que o grupo faz. Inclusive, uma vez que o membro da minoria tenha adotado os usos da maioria, não há razão para supor que não adotará as atitudes endogrupais dominantes contra aqueles que não têm sido capazes de adaptarem-se como ele (p. 198, tradução nossa).
Em relação a estratégias que visam curar o fascismo e não apenas tratar seus sintomas, Adorno et. al. (2006) concebem que como o fascismo refere-se à estrutura interna da pessoa, deveríamos considerar as técnicas psicológicas de modificação da personalidade. Entretanto, consideram que a psicoterapia individual é extremamente limitada, tanto em termos do tempo e da pouca quantidade de terapeutas dispostos a atuar sobre este fenômeno, quanto em termos de que os principais traços dos etnocêntricos são considerados na prática médica como de difícil cura.
Outra estratégia seria a construção de intervenções no cuidado com as crianças, introduzindo influências positivas na vida do indivíduo como uma relação dos pais com os filhos norteadas pelo carinho e pelo tratamento das crianças como pessoas. Mas aqui também os pesquisadores apontam uma limitação: seria provavelmente impossível que pais etnocêntricos atuassem desta maneira mesmo diante de recomendações prescritas.
Assim, concluem que
não podemos conseguir a modificação da estrutura potencialmente fascista por meios exclusivamente psicológicos. A tarefa é similar à da eliminação da neurose, da delinquência, do nacionalismo. Todos são produtos da organização global da sociedade e somente podem ser modificados com a mudança da sociedade. Não é missão dos psicólogos dizer como deve ocorrer tais mudanças, isso requer o esforço de todos os cientistas sociais. O que insistimos é que os psicólogos tenham voz nos conselhos ou foros onde se trate do problema e se programe ações. Acreditamos que a compreensão científica da sociedade deve incluir o estudo dos efeitos que esta produz nas pessoas, e que as reformas sociais, inclusive as amplas e radicais, podem chegar a ser, ainda que desejáveis, ineficazes para mudar a estrutura da personalidade preconceituosa. Para mudar o potencial fascista ou, ao menos, para contê-lo, deve-se produzir um aumento na capacidade das pessoas para ver a si mesmas e para ser elas mesmas. Isso não pode ser alcançado com manipulação (...) podemos afirmar que o fascismo é algo que se impõe às pessoas, que vai contra seus interesses fundamentais e que quando as pessoas tomam plena consciência de si mesmas e de sua situação são capazes de comportarem-se em termos realistas. (...). Ainda que não se defenda a ideia de que a perspectiva psicológica seja uma garantia para compreender a sociedade, existe uma grande evidencia de que as pessoas com maiores dificuldades para enfrentarem-se a si mesmas têm também maior incapacidade para compreender o funcionamento do mundo. A resistência à observação de si e a resistência a compreender os fatos sociais são, na realidade, a mesma coisa. Aqui é onde a psicologia pode jogar seu papel mais importante. As técnicas para vencer a resistência, desenvolvidas sobretudo no campo da psicoterapia individual, podem ser melhoradas e adaptadas para serem utilizadas em grupo e, inclusive, em grande escala. Admitimos que tais técnicas serão muito pouco eficazes com os etnocêntricos extremos, mas temos de recordar que a maioria da população não se encontra nos extremos, e sim, segundo nossa terminologia, em posições “médias”. (Adorno et. al., 2006, p. 200, tradução nossa, grifo nosso).
Reconhecendo o papel das emoções na adesão dos sujeitos a construções ideológicas e, portanto, nos modos de pensar sobre o ser humano e a sociedade em um contexto histórico específico, os autores ressaltam que o apelo à emoção não deve estar reduzido à propaganda fascista: também deve fazer parte da propaganda democrática: “Se o medo e a destruição são as principais forças emocionais do fascismo, eros pertence primeiramente à democracia” (p. 200, tradução nossa).
Martín-Baró: O Transbordamento da Violência, a Polarização Social e o Ambiente Generalizado de Mentira
Em relação aos textos de Martín-Baró, foram escritos no contexto em que “El Salvador [vivia] uma situação-limite: mais de trinta mil mortos e meio milhão de refugiados em um país com apenas cinco milhões de habitantes (Martín-Baró, 2017a, p. 233-234). Apesar desta condição de sofrimento, Martin-Baró (2017a; 2017b) afirma que a guerra civil possibilitou que boa parte da população rompesse com os esquemas fatalistas tradicionais, caracterizados pela compreensão do sistema social como um destino fatal ou uma vontade de Deus, reconhecendo-o como uma possibilidade histórica dentre outras.
Na análise da situação de El Salvador, Martín-Baró (2017a) destaca três aspectos: o transbordamento da violência, a polarização social e o ambiente generalizado de mentira. Em relação ao primeiro aspecto, segundo o autor, a compreensão da gravidade da violência vivida em El Salvador dependia de se observar a articulação entre as ações violentas e a dose de crueldade que as acompanhava. As ações das forças policiais eram marcadas pela tortura e pela prática de esquartejamento e exibicionismo dos cadáveres das pessoas torturadas, sendo, não mais apenas o assassinato, mas a forma cruel de matar a estratégia utilizada para “introduzir o temor coercivo necessário para manter, ao menos, o vestígio de uma ordem social (Martín-Baró, 2017a, p. 239).
Considerando este aspecto do transbordamento da violência, Martín-Baró (2017a) nos apresenta as seguintes questões:
O que significa toda essa violência? Como se chegou até aqui? Como é possível que pessoas que até ontem eram pacíficas, religiosas e, aparentemente razoáveis, estão envolvidas nessa macabra dança sanguinária? Como explicar que associações respeitáveis e que, até mesmo, apelam a valores cristãos e democráticos demandem histericamente das Forças Armadas um banho de sangue ainda mais amplo e generalizado? (p. 235, grifo nosso).
Segundo o autor, há que se considerar três pressupostos e três fatores constitutivos da violência. Os pressupostos são: a) há muitas formas de violência e entre elas podem existir diferenças importantes; b) a violência tem um caráter histórico e é impossível entendê-la fora do contexto social em que é produzida; c) não basta conhecer as raízes originais da violência para sermos capaz de detê-la após ela já ter sido colocada em marcha, pois ela apresenta uma autonomia em relação a suas raízes.
Quanto aos fatores constitutivos, Martín-Baró (2017a) destaca os seguintes:
A) Um fundo ideológico: a violência remete a uma realidade social configurada por interesses de classe, a partir dos quais se criam valores e racionalizações para justificá-la e para diferenciar o que é ou não violento. Nesse sentido, segundo o autor, que podemos falar da existência de uma violência institucionalizada na América Latina e que a desvalorização da vítima já é parte da sua dinâmica.
B) Um contexto possibilitador do desencadeamento e da execução da violência: a institucionalização de normas e rotinas como o fortalecimento dos corpos armados, a multiplicação dos instrumentos mortíferos, a distribuição de guardas por todos os lugares favorece o aumento das taxas de violência.
C) A equação pessoal: o ato de violência carrega as marcas de seu perpetrador, as quais podem remeter-se a tendências reprimidas ou frustradas, a comportamentos reforçados, a traços patológicos e sádicos. Mas também, diante da naturalização da violência, as marcas do perpetrador podem estar vinculadas, remetendo-se à Hannah Arendt, a uma ação técnica, profissional, realizada metodicamente como algo comum e cotidiano. Diante da legitimação da violência pelo poder estabelecido, “até as pessoas mais pacíficas aceitam a inevitabilidade da violência, inclusive, para acabar com a violência” (Martín-Baró, 2017a, p. 239).
O segundo aspecto ressaltado por Martín-Baró (2017a) em sua análise sobre a situação-limite na qual se encontrava El Salvador é a polarização social. O autor aborda essa discussão a partir da teoria realista do conflito social de Muzafer Sherif, segundo a qual “o conflito de interesse gera e agudiza a oposição entre o endogrupo e o exogrupo, entre ‘nós’ e ‘eles’, além de provocar uma mudança no clima social e na estrutura interna dos grupos” (p. 240). Para Martín-Baró (2017a), a causa última e principal do conflito em El Salvador tratava-se da incompatibilidade de interesses materiais. Incompatibilidade que podia ser demonstrada pela tomada de consciência pelas classes dominadas, famintas e exploradas de que a origem de seus problemas não estava num destino fatal decidido por Deus, mas na opressiva exploração das oligarquias que possuíam luxos que competiam com as elites de Nova York, Paris ou São Francisco.
Esta dicotomização da realidade entre ‘nós’ e ‘eles’, amigos e inimigos, segundo Martín-Baró (2017a), influenciou a evolução do conflito, pois, ao mesmo tempo em que a divisão entre nós e eles fortalece o vínculo entre os ‘amigos’, ela empobrece o horizonte existencial. A categorização do outro como inimigo fez desaparecer, segundo o autor, as normas implícitas de interação social em El Salvador, já não mais se podendo assumir na convivência cotidiana que o outro diz a verdade.
Apesar da teoria realista do conflito social auxiliar na compreensão da situação salvadorenha, Martin-Baró (2017a) aponta que dois elementos escapam a este modelo: os setores não envolvidos na polarização, ainda que afetados pelo conflito; e os fatores que determinam a evolução do conflito. Em relação ao primeiro aspecto, segundo Martin-Baró (2017a), a inexistência de um símbolo expressivo que permitisse uma clara diferenciação entre os campos em disputa no conflito fez com que setores, sobretudo da pequena burguesia (classes médias), tivessem dificuldades para tomar partido: por um lado, o vínculo empregatício e o estilo de vida uniam a classe média aos interesses da burguesia dominante; por outro lado, o não pertencimento da primeira à segunda possibilitava àquela adotar interesses do proletariado.
Quanto ao segundo aspecto, de acordo com o modelo de Sherif, o fim do conflito seria o controle ou a aniquilação de um dos adversários pelo outro. Entretanto, segundo Martín-Baró (2017a) era difícil predizer para onde evoluiria o conflito, pois os conflitos tendem a se tornar autônomos em relação a suas causas originárias. Assim, para resolver o conflito não basta saber o que o produziu, o que dificulta a orientação da prática política.
O terceiro dado importante a se considerar na análise da situação salvadorenha, segundo Martín-Baró (2017a), é o ambiente generalizado de mentira. Vivia-se, segundo o autor, um tenso clima de mentira coletiva tanto no nível grupal quanto no nível individual. A oligarquia salvadorenha exercia um ferrenho controle dos meios de comunicação massivos, apresentando praticamente uma única e exclusiva imagem dos fatos nacionais e internacionais, a qual favorecia seus interesses. O mais dilacerante dessa imposição de uma visão particular dos fatos, segundo Martín-Baró (2017a), não é a falsificação dos fatos, mas a desqualificação dos opositores e das vítimas, sempre culpabilizados nos comunicados oficiais: “se alguém foi aprisionado ou se alguém foi morto pelas forças da ordem pública, o foi porque era subversivo, porque era terrorista ou porque era um inimigo da sociedade” (p. 245).
Segundo Martin-Baró (2017a), é preciso questionar a razão do uso sistemático da calúnia nos comunicados oficiais, não sendo possível explicá-lo pela dissonância cognitiva, pois se trata de um processo institucionalizado e não de uma resposta individual. Também não basta recorrer ao caráter propagandístico, pois seria necessário explicar por que a propaganda recorre ao mecanismo caluniador e não a outros. Segundo o autor, a estratégia caluniosa revela um problema moral que envolve a condenação implícita da ação realizada e também a necessidade estrutural do regime autoritário de realizar ações condenáveis e ocultar sua responsabilidade, atribuindo-a aos “inimigos da pátria”, aos “maus salvadorenhos”. Trata-se da doutrina da ‘segurança nacional’, “segundo a qual a bondade ou maldade dos fatos é definida unicamente pela conveniência do sistema estabelecido” (p. 245).
No contexto de mentira institucionalizada se produz a mentira individual como postura sistemática, pois “é necessário ocultar os próprios valores e as próprias opiniões. (...). As verdadeiras referências se estabelecem nas vinculações clandestinas e nas fidelidades secretas. Assim, milhares de salvadorenhos [foram] obrigados a manter uma dupla personalidade” (Martín-Baró, 2017a, p. 246).
No quadro vivenciado em El Salvador, caracterizado por uma situação-limite de conflito irredutível entre grupos que se constituem a partir da negação do outro, segundo Martín-Baró (2017a), era “inútil buscar um acerto entre as partes que [deixasse] intacta a totalidade que possibilita[va] e configura[va] as partes” (p. 246-247). Além disso, ele aponta que a compreensão desta situação obrigava qualquer cientista social a revisar seu conhecimento e suas opções humanas. Neste sentido, pergunta: “como pode a Psicologia Social evitar os imperativos do poder dominante e dar uma contribuição substancial à solução do atual conflito?” (p. 247). Ao que responde de duas maneiras:
a) Contribuindo para esclarecer a consciência coletiva. Ainda que o conhecimento das causas do conflito não seja suficiente para sua resolução, segundo o autor, ele auxilia na desconstrução do discurso ideológico que oculta e justifica a violência, explicitando os mecanismos de legitimação da opressão e da repressão.
b) Auxiliando na configuração de um novo “senso comum”. A violência institucionalizada rompeu com as bases da convivência social, mas uma nova consciência coletiva, de acordo com o autor, começava a surgir como prelúdio de uma nova ordem social, que partia da experiência de sofrimento prolongado do povo. Experiência que era nova não pelo o que tinha de doloroso, mas pelo o que tinha de libertador, de luta criadora, orientada pela consciência dos motivos pelos quais o povo era assassinado, pela busca de uma sociedade fundada na justiça e na solidariedade.
Laclau e Mouffe: O Fortalecimento da Extrema-direita e a Construção de um Populismo de Esquerda no Contexto Contemporâneo
Mouffe (2018) apresenta uma análise política sobre o fortalecimento de partidos de extrema-direita na Europa na conjuntura contemporânea e a defesa de construção de uma estratégia populista de esquerda que recupere e aprofunde os ideais de igualdade e de soberania popular importantes para a lógica democrática. Apesar do foco da autora ser a Europa, contexto que apresenta particularidades em relação ao latino-americano, a análise construída pela autora e as possíveis saídas apresentadas para combater o fortalecimento da extrema-direita são também úteis para reflexões sobre o contexto contemporâneo latino-americano.
Importante frisar que o populismo nos trabalhos de Laclau (2013) e de Mouffe (2018) não é concebido nem como uma ideologia específica, nem como um regime político, nem de maneira pejorativa (como se observa em concepções que opõem o populismo a uma concepção racional de política, definindo-o em termos de ausências do que seria esperado numa ação política propriamente dita: “vagueza”, “imprecisão”, “pobreza intelectual”, “transitório”, “manipulador”). O populismo é concebido como “um modo de fazer política que pode adotar diversas formas ideológicas em função do momento e do lugar, e que é compatível com uma variedade de marcos institucionais” (Mouffe, 2018, p.25, tradução nossa). Ou seja, como uma lógica política, sob uma fundamentação teórica discursiva e antiessencialista.
Segundo Laclau (2013), o populismo se estrutura a partir da articulação entre demandas sociais heterogêneas presentes em uma ordem social específica, que se constroem como equivalentes através do antagonismo a um adversário comum, instituindo uma fronteira política entre “nós” e “eles” e afirmando um projeto de sociedade alternativo à ordem social até então sedimentada. Projeto nomeado por um significante, concebido por Laclau (2013) como “significante vazio”, que, ao mesmo tempo que é parte da cadeia discursiva, representa a heterogeneidade das demandas sociais equivalentes que constituem essa cadeia (Laclau, 2013). A articulação entre as demandas sociais é uma construção e não uma unidade estabelecida a priori. Assim, os limites entre as demandas que o significante vazio irá abranger ou excluir ficarão borrados e sujeitos a permanente contestação, sendo a lógica populista sempre imprecisa e flutuante e não caracterizada por uma fixidez discursiva. Segundo Laclau (2013) não há nada de pejorativo nisso, mas se trata de uma lógica política que “tenta operar numa realidade social que, em larga escala, é heterogênea e flutuante” (p. 183).
Segundo Mouffe (2015), a distinção entre nós e eles é a condição de possibilidade de formação de identidades políticas e essa relação sempre pode se tornar um espaço de antagonismo, isto é, uma relação amigo e inimigo. Entretanto, uma das tarefas da política democrática é reconhecer a dimensão antagônica do conflito, mas, ao memo tempo, transformar o antagonismo em agonismo. O que significa estabelecer uma relação entre nós e eles em que, embora reconheçam “que não existe nenhuma solução racional para o conflito entre eles, ainda assim reconhecem a legitimidade de seus oponentes” (p. 19).
De acordo com Mouffe (2018), “como consequência da hegemonia neoliberal [emergente nos países ocidentais nos anos 1980], a tensão agonista entre os princípios liberais e os democráticos - constitutiva da democracia - foi eliminada” (p. 30, tradução nossa). A “democracia” foi reduzida ao componente liberal - eleições livres e defesa dos direitos humanos - tendo os princípios de igualdade e de soberania popular sido abolidos, fazendo desaparecer os espaços agonistas nos quais se fazia possível a disputa entre projetos de sociedade.
A construção desse contexto, nomeado por ela de “pós-democracia”, foi marcada pela aceitação de partidos social-democrata - sob o pretexto da “modernização” exigida pela globalização - dos ditames do capitalismo financeiro e dos limites que ele impõe às intervenções do Estado e às políticas redistributivas. Essa aceitação proporcionou uma dificuldade dos cidadãos em reconhecer a disputa entre alternativas “reais” de sociedade entre esquerda e direita. O que se passou a ter foi a alternância entre partidos de centro-direita e partidos de centro-esquerda e a deslegitimação de qualquer alternativa à globalização neoliberal através da caracterização pejorativa delas como extremistas ou populistas. A política foi apresentada como uma mera questão de administração da ordem estabelecida, sendo o poder do povo (soberania popular), um dos pilares fundamentais do ideal democrático, eliminado (Mouffe, 2018).
Junto a isso, as políticas de austeridade impostas aos governos após a crise de 2008 acarretaram a pauperização e precarização da classe média, contribuindo para eliminar o ideal democrático de defesa da igualdade. Ao mesmo tempo, diante de seus efeitos drásticos, a crise serviu para questionar os princípios do consenso estabelecido ao redor do projeto hegemônico neoliberal. Assim, movimentos de direita, alguns já existentes desde a década de 1990 (Frente Nacional, na França, por exemplo), e de esquerda (os “movimentos das praças”, por exemplo) passaram a se apresentar como possibilidades de resistência à crise vivida pelas pessoas.
Os partidos populistas de direita, segundo Mouffe (2018), conseguiram articular várias demandas sociais, incluindo insatisfações que seriam possíveis de serem satisfeitas em torno de uma resposta progressista. De acordo com a autora, classificar os partidos populistas de direita de neofascistas ou de extrema direita ou atribuir a adesão das pessoas a eles à falta de educação delas é um modo conveniente para as forças de centro-esquerda não reconhecerem sua responsabilidade na promoção do populismo de direita.
Segundo Mouffe (2018), os partidos social-democratas, que em muitos países tiveram papel importante na implementação de políticas neoliberais, são incapazes de compreender este momento populista. A alternativa para conter os partidos populistas de direita é construir um movimento populista de esquerda que articule a heterogeneidade de demandas sociais orientando-as até objetivos mais igualitários. A diferença entre o populismo de direita e o populismo de esquerda “reside na composição do ‘nós’ e em como se define o adversário, isto é, o ‘eles’” (p. 38, tradução nossa).
Os populistas de direita transformam a soberania popular em soberania nacional (reservada aos verdadeiros nacionais) e rompem com o princípio da igualdade, construindo um ‘povo’ que exclui inúmeras categorias, entendidas como perigo à identidade do ‘nós’ e à nação. Ademais, ao não assinalarem as forças neoliberais como adversárias do povo, não constroem resistência à pós-democracia, podendo produzir formas nacionalistas autoritárias de neoliberalismo, limitando drasticamente os valores democráticos.
O populismo de esquerda, ao contrário, busca construir um ‘povo’ que visa recuperar a democracia. O que significa fortalecer o princípio da igualdade na lógica democrática, a qual se fundamenta na manutenção do paradoxo entre este princípio e o princípio da liberdade. A ênfase na dimensão igualitária da democracia constitui, segundo Mouffe (2018), uma arma poderosa na luta hegemônica para a criação de um novo sentido comum.
O Passado e o Presente: Três Aspectos Relevantes para a Compreensão das Ofensivas Antidemocráticas na Atualidade
Considerando as principais questões colocadas em “A Personalidade Autoritária” e nos textos de Martín-Baró, um primeiro ponto a se ressaltar na compreensão sobre as configurações antidemocráticas é a importância de uma perspectiva psicopolítica de análise.
Adorno et. al. (2006), ao enfocarem o estudo da ideologia ao nível da predisposição para a ação, tomando a personalidade como um determinante das preferencias ideológicas dos sujeitos, apontam para o rompimento com a dicotomia entre estrutura e agência na análise da dinâmica social. Neste sentido que a pergunta sobre “como se forma o pensamento antidemocrático” em A Personalidade Autoritária não é respondida a partir da atribuição de essências ao indivíduo ou ao sistema, mas através dos modos em que as relações sociais são estabelecidas em um contexto histórico específico, não sendo possível conceber a construção da personalidade de forma isolada da totalidade social na qual ela se desenvolve. De tal forma que, como explicitam os autores e a autora, “não podemos conseguir a modificação da estrutura potencialmente fascista por meios exclusivamente psicológicos” (Adorno et. al., 2006, p. 200, tradução nossa). A resposta ao fenômeno do fascismo depende também da mudança da sociedade, da construção de relações sociais que possibilitem o aumento da capacidade das pessoas refletirem sobre si mesmas e sobre o funcionamento da sociedade. Ao reconhecerem que a “resistência à observação de si e a resistência a compreender os fatos sociais são, na realidade, a mesma coisa” (p. 200, tradução nossa) que os autores advertem que a psicologia pode jogar seu papel mais importante.
Em relação à Martin-Baró, o caráter psicopolítico de sua análise pode ser localizado no destaque dado por ele à historicidade do fenômeno da violência, que, assim como no caso de A Personalidade Autoritária, auxilia-nos a problematizar a dicotomia entre estrutura e agência, estando as raízes da ação violenta não numa essência individual ou estrutural, mas no modo em que se constrói as relações sociais, nas quais “o homem se faz pessoa ao se converter em ser social” (Martín-Baró, 2017a, p. 238). Neste sentido, é fundamental salientar a configuração ideológica que justifica a violência, sua institucionalização em normas e rotinas, e os efeitos da legitimação da violência pelo poder estabelecido na construção de uma mentalidade que foi capaz de tornar possível que mesmo pessoas até então pacíficas, religiosas e, aparentemente razoáveis, se envolvessem na macabra dança sanguinária que caracterizava a situação de El Salvador.
A análise psicopolítica é fundamental também para a compreensão das ofensivas da extrema direita hoje, investigando-as como estratégias políticas que visam constituir uma comunidade política através da hegemonização de discursos que legitimam determinados modos de ser como desprezíveis, que compreendem o “outro” como inimigo a ser morto, metafórica e/ou literalmente. Neste sentido, saliento a relevância da utilização de abordagens pós-fundacionalistas contemporâneas, como a Teoria Democrática desenvolvida por Laclau e por Mouffe. Teoria que enfoca a ordem social não como estruturada por determinantes últimos, mas como contingente e precária, construída hegemonicamente através da sedimentação de um modo de nomeação da realidade. Da mesma maneira, a subjetividade não é entendida como expressão direta de posições objetivas ocupadas pelo indivíduo na ordem social, e sim constituída a partir da identificação dos sujeitos com discursos presentes no contexto em que vivem.
Partindo desta compreensão, duas perguntas são fundamentais para o entendimento da instituição de uma determinada comunidade política: que demandas sociais se encontram presentes na sociedade em que vivemos? Como elas têm se articulado na construção de discursos sobre a ordem social?
A investigação sobre estas perguntas nos permite delimitar as insatisfações presentes em nossa sociedade e problematizarmos os horizontes políticos que têm sido construídos em termos da expansão ou negação da lógica democrática. Condições que nos possibilitam refletir, por exemplo, sobre a capacidade do campo “progressista” brasileiro de articular discursivamente demandas democráticas presentes na atualidade.
Deste modo, concordando com Mouffe (2018):
Não nego que existem pessoas que sentem gosto em defender valores reacionários, entretanto, estou persuadida de que muitos se sentem atraídos [pelos partidos de direita] porque sentem que são os únicos que se preocupam com seus problemas. Penso que se se utiliza uma linguagem diferente, muitos poderiam experimentar sua situação de um modo distinto e unir-se à luta progressista (p. 37, tradução nossa).
Como a política também é o campo das paixões, é importante retomarmos a colocação dos pesquisadores de A Personalidade Autoritária que a emoção não deve estar reduzida ao discurso fascista, devendo também ser parte do discurso democrático, o qual, ao invés de assentado no medo e na destruição, tem eros como força primordial.
No reconhecimento das paixões, na medida em que “A história do sujeito é a história de suas identificações” (Mouffe, 2018, p. 97, tradução nossa), não existindo nenhuma identidade oculta a ser resgatada, e sim identificações a serem construídas, Mouffe (2018) afirma que
Para fazermos eco dos problemas que as pessoas enfrentam em sua vida diária, devemos começar pelo lugar onde estão situadas e como se sentem, e oferecê-las uma visão de futuro que as encha de esperança, ao invés de aniquilá-las no registro da denúncia (p. 102, tradução nossa).
O segundo ponto a se ressaltar a partir das obras investigadas que contribui para a compreensão das ofensivas antidemocráticas é a configuração das fronteiras políticas entre nós e eles. Neste aspecto é importante ressaltarmos: a) a colocação de Adorno et. al. (2006) de que o antissemitismo está mais relacionado a fatores relativos às pessoas que o expressam do que a características reais dos judeus, sendo uma característica do enfoque preconceituoso a aceitação do igual e o rechaço ao diferente; b) a compreensão de Martín-Baró (2017a) sobre o aspecto da polarização social no conflito presente em El Salvador, demonstrando que, sob a dicotomização da realidade em amigos x inimigos, a categorização do outro como inimigo faz desaparecer as normas implícitas de interação social, não sendo possível mais assumir na convivência cotidiana que o outro diz a verdade.
A proposta teórica de Laclau e de Mouffe nos permite aprofundar este aspecto ao conceber que a constituição de qualquer ordem social é dependente da construção de um “nós” a partir da diferenciação com um “eles”, pois tanto os sujeitos como a sociedade se constituem pela negatividade, uma vez que não há nenhum sentido último que determine o que sejam. Nesta medida, toda ordem social é uma ordem hegemônica, de modo que as relações de poder são constitutivas da sociedade, sendo “uma ilusão acreditar no advento de uma sociedade da qual o antagonismo tivesse sido erradicado” (Mouffe, 2015, p. 15).
Entretanto, sendo a pluralidade de modos de vida um elemento central à democracia moderna e a ampliação dos sujeitos e de demandas historicamente excluídas na esfera pública uma condição para a expansão da democracia, para Mouffe (2015), uma ordem social democrática, diferentemente de uma ordem social antidemocrática, implica o reconhecimento do outro não como um inimigo a ser destruído, mas como um adversário.
Nesta medida, uma pergunta que contribui para o entendimento das ofensivas da extrema direita em nosso tempo é como as fronteiras entre nós e eles têm sido estabelecidas hoje tanto em nível nacional quanto em nível internacional? Esta pergunta complementa a questão anterior sobre que demandas se encontram presentes em nossa sociedade e como elas têm se articulado na construção de discursos sobre a ordem social. Questionamentos que nos permitem problematizar as políticas que têm sido construídas nos países concebidos como democráticos em termos de como têm ou não rechaçado determinadas formas de vida e a quem pretendem beneficiar. Assim, poderemos promover discussões sobre como se tem contribuído para a radicalização da democracia ou para o fortalecimento da extrema-direita.
Segundo Adorno et. al. (2006), o fascismo, por natureza, busca favorecer apenas alguns em detrimento da maioria. A pergunta sobre a construção da fronteira política nas situações de ofensiva da extrema direita pode ampliar a capacidade das pessoas refletirem sobre si mesmas e, assim, sobre a realidade social ao visibilizar as demandas que estes discursos buscam satisfazer e as que continuarão insatisfeitas ou se tornarão insatisfeitas sob o horizonte político antidemocrático. Reflexão que pode contribuir para o enfraquecimento de identificações de sujeitos com este horizonte, e, assim, para a articulação de suas insatisfações com outros discursos presentes na sociedade em que vivem.
Um terceiro ponto a se considerar na reflexão sobre nosso tempo, a partir das obras debatidas no texto, é o papel da mentira generalizada na ordem social antidemocrática. Como nos aponta Martín-Baró, a mentira é utilizada para a desqualificação dos opositores e para a legitimação das ações condenáveis do governo. Neste caso, fica-nos o alerta para o que temos vivido no Brasil em relação à disseminação de mentiras (“fake news”) e ao descrédito de instituições e de investigações científicas. O uso da mentira tem servido para deslegitimar adversários e para transformar o campo do debate em uma diferenciação moral entre “pessoas de bem” e “pessoas do mal”. Algo observado, por exemplo, na discussão sobre o uso da urna eletrônica no processo eleitoral de 2022, quando fake news foram utilizadas para identificar os contrários ao uso da urna como paladinos da transparência necessária à democracia e os defensores do uso da urna como aqueles que deliberadamente desejavam fraudar o processo eleitoral. Também podemos considerar o uso de mentiras por parte de representantes do governo Bolsonaro para descredibilizar a ciência, transformando, por exemplo, recomendações científicas para a prevenção e combate da pandemia da COVID-19 em ações contra a liberdade individual. Mentiras que constroem práticas sociais, inclusive, contrárias às instituições democráticas e à própria preservação da vida do indivíduo e dos outros.
Para finalizar, partindo da compreensão que a história não é um processo automático que progride em linha reta ou em espiral, como se fosse resultado das “leis da história” (Benjamim, 1987; Laclau & Mouffe, 2015), no tempo em que vivemos, caracterizado pelo fortalecimento da extrema direita no Brasil e em outros países, faz-se importante sermos otimistas críticos: reconhecermos que ainda que não haja nenhuma garantia que construiremos sociedades mais igualitárias e justas, é possível seguirmos na defesa da radicalização da democracia, pois toda ordem social é possível de ser alterada, uma vez que foi construída contingencialmente e hegemonicamente na disputa com outras alternativas de sociedade.