Este artigo debate a influência dos saberes psicanalíticos na construção das subjetividades durante as décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos. Historiadores da psicanálise e dos saberes psi em geral observam que no período pós-Segunda Guerra Mundial, em grande parte do Ocidente, a psicanálise não só foi apropriada pela psiquiatria, como passou a atravessar os mais diversos saberes locais (Porter, 2002; Plotkin, 2009; Zaretsky, 2015). Nesta dinâmica, ideias psicanalíticas passaram a integrar esferas artísticas, publicitárias, jornalísticas, entre outras, influenciando e sendo influenciadas pela cultura de cada local onde foi apropriada. Este fenômeno tornou possível a construção de modos não apenas científicos, mas populares, de interpretações acerca da loucura e da construção das subjetividades.
Partindo desta premissa, o artigo visa discutir as especificidades dessa apropriação e seus impactos para a construção da história de pessoas comuns e de suas vidas nos Estados Unidos na segunda metade do século XX. Para isso, utilizo como fontes principais as obras de artistas underground estadunidenses que, durante os anos 1960 e 1970, inseridos num contexto da contracultura, produziram e distribuíram histórias em quadrinhos (HQs) com objetivo de contestar as normas sociais estabelecidas, a ortodoxia religiosa e o modelo de família nuclear patriarcal.
Estas histórias em quadrinhos foram criadas por um grupo de artistas em meio à atmosfera de rebeldia e contestação social dos movimentos contraculturais da década de 1960 e ficaram conhecidos como quadrinhos underground. O movimento, que se desenvolveu à margem das grandes editoras, chamou a atenção de hippies e estudantes por meio de suas revistas com temas sobre crítica social, desobediência civil e sexualidade. Descrito pelo pesquisador Hatfield (2005, p. 9) como “obsceno, selvagem e libertador, inovador, radical e (...) estritamente circunscrito”, este movimento artístico trouxe a tona histórias transgressoras que desafiavam o status quo no nível político e sociocultural.
Contudo, mais que apontar as mazelas da sociedade, estes artistas também se lançaram ao exercício de pensar e propor as balizas para o estabelecimento de uma nova civilização, menos repressora e muito mais justa e pacífica. Neste exercício, a necessidade de contruir novas formas de viver e explorar a sexualidade apresentou-se a eles como uma das principais soluções e, como demonstro neste artigo, ideias vindas da psicanálise se tornaram uma de suas principais ferramentas.
Nas páginas que se seguem, apresento ao leitor o conceito de cultura psicanalítica que serviu como o fio condutor para a análise das fontes principais. Em seguida, abordo a influência de ideias vindas da psicanálise nos movimentos contraculturais dos anos 1960 e 1970 e, consequentemente, nos quadrinhos underground. Influência esta que, como demonstro, se deu especialmente por meio da obra do filósofo Herbert Marcuse e permeou grande parte dos ideais de revolução sexual do período. Por fim, apresento algumas HQs da artista Aline Kominsky, uma das principais representantes dos quadrinhos underground e que fez parte de um importante grupo de quadrinistas feministas que se reuniu em torno de um projeto que visava denunciar não apenas as normas sociais, mas também o próprio machismo dentro do underground.
Aline Ricky Goldsmith Kominsky Crumb 1 (1948-2022) nasceu e cresceu numa comunidade em Long Island, no estado de Nova York. A artista teve contato com a contracultura ainda adolescente, quando começou a frequentar vários museus em Manhattan e a explorar o Greenwich Village, um bairro marcado pela música e pela boemia e que foi considerado um dos principais pontos de encontro da juventude rebelde dos anos 1960. Em 1971, se mudou para a Califórnia e passou a trabalhar em vários projetos de quadrinhos inserindo-se na cena underground (Pekar, 2011, p. 8) junto a quadrinistas como Art Spiegelman (1948), Trina Robbins (1938) e Robert Crumb (1943). Parte de sua obra, como demonstro neste artigo, reflete muito da cultura psicanalítica e dos ideais de revolução sexual daquele período.
A Cultura Psicanalítica
A análise aqui apresentada foi feita sob a luz do conceito de “cultura psicanalítica”, tal qual definido pelo psicanalista Sérvulo Figueira, que o define como o fenômeno no qual os sujeitos de determinada sociedade aderem a pressupostos da psicanálise, integrando-os a “quase todos os aspectos significativos da cultura” de modo a atingir um “ponto de quase-saturação” (Figueira, 1991, p. 104). A onipresença destes conceitos da psicanálise faz com que haja um “salto qualitativo” nestas ideias e sua circulação não estruturada se transforma em “cultura psicanalítica” (Figueira, 1991, p. 104). Dessa forma, noções acerca das neuroses, do inconsciente, do recalque e muitas outras popularizadas pela psicanálise passam a ser apropriadas pelas artes, pelo conhecimento acadêmico, a publicidade e, consequentemente, integram cada vez mais a visão de mundo e o vocabulário cotidiano de muitos sujeitos (Figueira, 1991).
Apesar de se tratar de um fenômeno presente em todo o Ocidente, em meados do século XX, a cultura psicanalítica se fez ainda mais expressiva nos Estados Unidos (Figueira, 1991; Porter, 2002; Zaretsky, 2015). Na arte, por exemplo, são claras as referências de ideias da psicanálise em obras estadunidenses, como nos filmes de Alfred Hitchcock ou na literatura de Sylvia Plath. Na década de 1960, o sociólogo Peter Berger chegou a observar que a maneira como as concepções psicanalíticas estavam presentes na lei, nas relações domésticas, na religião e nos mais diversos aspectos da vida naquele país, tornaram-na um “fenômeno cultural, uma maneira de compreender a natureza do homem e de ordenar a experiência humana com base nesta compreensão” (Berger, 1980, p. 12).
Nesta perspectiva, portanto, as ideias psicanalíticas deixam de ser pensadas como um objeto institucional, delineado e restrito aos meios especializados na construção dos saberes psi, e passam a integrar um todo cultural e social (Facchinetti, 2001; Marcondes, 2015; Ruperthuz Honorato, 2017).
Herbert Marcuse e a Contracultura: Uma Nova Sociedade Possível
As ideias psicanalíticas também influenciaram largamente os movimentos contraculturais das décadas de 1960 e 1970 (Roszak, 1969/1972; Cardoso, 2005) que acabaram se tornando o berço das histórias em quadrinhos underground (Rosenkranz, 2008). A contracultura estadunidense foi representada por jovens de classe média como Aline Kominsky, que repudiavam o modo de vida de seus pais por considerá-lo alienante e, por esta razão, buscaram novos valores éticos e políticos. Formada por grupos distintos e com histórias variadas - como o movimento feminista, o movimento negro, o movimento gay e outros - estes jovens reivindicaram mudanças do papel da mulher na sociedade, direitos básicos para os negros, o fim da guerra do Vietnã, entre tantas outras pautas (Cardoso, 2005).
Falamos aqui de uma geração que cresceu nos Estados Unidos em meio a um período em que a ameaça nuclear era destaque nos principais noticiários e que viu grande parte de seus amigos ser recrutada para a Guerra do Vietnã (Allyn, 2016, p. 197). Foi justamente em meio a este cenário de violência e pessimismo que muitos jovens tiveram contato com algumas das ideias psicanalíticas, especialmente por meio da obra de Herbert Marcuse (1898-1979).
Marcuse foi um filósofo e sociólogo, refugiado do nazismo alemão, que se tornou um dos grandes nomes do que se convencionou chamar de freudo-marxismo, um movimento que buscou conciliar a teoria psicanalítica às teses de Karl Marx em um projeto de transformação social (Lima, 2021). Sua filosofia se popularizou nos Estados Unidos em meados do século por apresentar uma leitura psicanalítica e, ao mesmo tempo, política da sociedade em que vivia, tecendo críticas ao conformismo, a moral estabelecida, o trabalho exploratório e o excessivo racionalismo científico de seu tempo, que se dedicava a criar armas de destruição em massa e que cobria a sociedade com a sombra da aniquilação termonuclear (Marcuse, 1955/1986).
Grande parte se sua obra se baseou nas considerações de Sigmund Freud, especialmente nas reflexões sobre a sociedade e sobre todo o processo civilizacional empreendido em suas últimas décadas de vida. Em O Mal-Estar na Civilização, de 1929, por exemplo, Freud (1929/2011) pensa a construção de toda civilização como resultado das normas, valores e tabus sociais que recalcavam ou desviavam a energia sexual dos sujeitos (as pulsões) de seu objeto de desejo e o direcionavam a outras formas de satisfação socialmente mais aceitas - como a arte e a investigação intelectual. Dessa forma, além do peso das exigências da civilização que caem como um fardo sobre os homens e mulheres, estes seriam tomados por um profundo mal-estar ao perceberem que, diante das normas e tabus culturais, grande parte de seus desejos não podem ser satisfeitos (Lima, 2010, p. 65). Além disso, a cada nova renúncia à satisfação libidinal, a insatisfação recalcada se acumula e é cada vez mais introjetada se voltando contra o eu e transformando-se em sentimento de culpa (Lima, 2010, p. 66). Logo, se é na relação entre os indivíduos promovida pela cultura que surge o sentimento de culpa, fonte de mal-estar, qualquer aspiração de felicidade em um mundo civilizado torna-se inviável (Freud, 1929/2011, p. 30).
No livro Eros e Civilização, publicado pela primeira vez em 1955, Marcuse (1955/1986) se apropria de tais ideias e elabora uma síntese na qual as mazelas da sociedade se davam tanto pela renúncia à satisfação libidinal quanto pelo excesso de trabalho alienante. Em uma reelaboração da teoria psicanalítica, Marcuse (1955/1986) afirma que a oposição entre “civilização” e o “bem-estar” da humanidade, sugerida por Freud, firma suas bases em condições historicamente situadas e que poderiam ser radicalmente transformadas. Para isso, seria necessário a elaboração de uma nova racionalidade, na qual a gratificação da libido fosse livre e mais importante que a atividade laboral, tornando possível abolir os controles repressivos da civilização.
Marcuse sugere que a moralidade civilizada teria produzido valores que se mobilizaram contra o uso do corpo como um mero meio ou instrumento de prazer, limitando a sexualidade ao ato dignificado pelo amor e tornando o corpo mais útil para a atividade laboral (Marcuse, 1955/1986). Sendo assim, a construção de novas relações de trabalho e novas formas mais livres de viver a sexualidade tornariam possível construir uma sociedade e uma civilização menos repressivas.
Sua obra se popularizou entre os estudantes nos anos 1960 e foi capaz de oferecer a muitos jovens que viviam entre toda uma atmosfera de violência e pessimismo, a crença na possibilidade de concepção de um mundo alternativo mais pacífico (Allyn, 2016). Porém, mais que isso, sua filosofia acabou se somando também aos ideais de revolução sexual 2 que circulavam nas universidades e nos espaços contraculturais, onde as cópias de seus livros passavam de mão em mão e contribuíam para a crença de que a libertação da sexualidade - ou a libertação de Eros, como se referiu Marcuse - seria o primeiro passo para transformar o mundo (Allyn, 2016, p. 196-197). Para estes jovens, o sexo se tornou um ato de libertação que, além de bom e natural, seria capaz de desafiar a corrupção e a artificialidade da sociedade estadunidense construídas pelas gerações anteriores (Bronstein, 2011).
A ideia de que quebrar o tabu da sexualidade poderia derrubar impérios de ganância e violência circulava em muitos meios naquele período. Como, por exemplo, no livro The Sex Marchers, publicado originalmente em 1968 pelos ativistas dos direitos civis e da liberdade Jefferson Poland e Sam Sloan. Na obra, os autores afirmam que "nossa capacidade de violência é um transbordamento, uma consequência natural de nossa sexualidade recalcada, nossas libidos enjauladas” (Poland & Sloan, 1968, p. 08).
Esta forma de compreender o mundo e a dinâmica psíquica e social ecoaram também nas histórias em quadrinhos underground e podem ser percebidas, não apenas em seu conteúdo político e contestador, mas na carga subjetiva de suas narrativas. Ou seja, as HQs underground devem ser compreendias também como um esforço dos autores de lidarem com as próprias neuroses. Neste sentido, além de contestarem normas e padrões sociais, tais obras assumem também um caráter terapêutico para os artistas, tornando-se uma tentativa de sublimação de seu sofrimento psíquico. Poderíamos pensar, por exemplo, a construção narrativa destes quadrinhos como um ato comparado ao método da livre associação, tido em psicanálise como aquele no qual o analisando diz tudo que lhe vem à mente, sem qualquer censura ou omissão (Roudinesco & Plon, 1998). A partir deste método, segundo os preceitos psicanalíticos, o sujeito é capaz de alcançar “os elementos que estavam em condições de liberar os afetos, as lembranças e as representações” inconscientes (Roudinesco & Plon, 1998, p. 649). Um dos principais expoentes das HQs underground estadunidenses, Robert Crumb, já havia mencionado na apresentação de uma revista que produzir aqueles quadrinhos era uma maneira de se livrar de “angústias reprimidas e recalques e todo esse tipo de coisa” (Crumb, 1969, p. 2). Aline Kominsky, por sua vez, ao falar sobre a constante presença da figura materna em suas HQs, afirmou em certa ocasião que expressar suas inseguranças por meio da arte é um meio de lidar com as angústias em relação à mãe: “É o jeito pelo qual consigo tolerar minha mãe. Criando desenhos realmente horríveis dela” 3.
Logo, é possível afirmar que os quadrinistas underground inserem sua arte no mesmo paradigma da filosofia de Herbert Marcuse, para quem a criação artística é o mais visível “retorno do recalcado” (Marcuse, 1955/1986, p. 129). Isso porque, segundo sua teoria, o fazer artístico é uma maneira de se opor às correntes da civilização e se conectar a Eros (sexualidade), de modo a construir, por meio da arte, uma realidade erótica na qual a libido possa descansar em gratificação, livre de recalque (Marcuse, 1955/1986, p. 130).
A Sexualidade nos Quadrinhos Underground
Ao ter acesso às HQs produzidas durante o movimento underground, é inevitável notar a frequência com que cenas de sexo são retratadas. Principalmente aos leitores de quadrinhos habituados a revistas do mercado convencional - como as de super-heróis ou da Disney - as constantes imagens de órgãos genitais, nudez e sexo selvagem podem causar certo espanto. Questões sobre a sexualidade deram o tom, por exemplo de grande parte das HQs da artista Aline Kominsky, que, como descreve a especialista em quadrinhos Hillary Chute, “vinculam uma gama de atividade sexual, desde o traumatizante ao prazeroso, ao cotidiano” (Chute, 2011, p. 29).
Em um artigo sobre a representação da sexualidade nos quadrinhos e jornais underground do período, a pesquisadora feminista Bailey (2002) identifica dois propósitos entre aquelas imagens de nudez e sexo que, em muitos casos, se misturavam durante a execução. O primeiro deles era usar representações gráficas ou ‘ofensivas’ de sexo para confrontar e ofender a sociedade dominante. O segundo propósito era usar o a nudez ou o sexo como um símbolo de liberdade e libertação, “buscando imagens, linguagens e atitudes que claramente transcendiam as restrições de uma sociedade repressiva” (Bailey, 2002, p. 308).
Contudo, não demorou para que o movimento dos quadrinhos underground - e a revolução sexual como um todo - fossem apropriados em termos estritamente masculinos (Bronstein, 2011, p. 65). Além do pouco espaço destinado às mulheres na produção de quadrinhos, a objetificação e hipersexualização delas no movimento acabou se tornando uma tendência entre aqueles artistas (Medeiros, 2018). Conforme ressaltou a historiadora Elena Masarah Revuelta, o sexismo no underground levou as quadrinistas do sexo feminino a estabelecerem um espaço próprio de trabalho, “onde pudessem explorar seus interesses artísticos e onde pudessem se organizar em grupos, que colocassem as mulheres, seus problemas e suas preocupações no centro de um meio caracterizado por sua masculinização histórica” (Masarah Revuelta, 2016, p. 82).
Foi assim que muitas mulheres artistas passaram a criar revistas que abordavam muitas das pautas feministas daquele momento e criticavam a misoginia da própria contracultura (Masarah Revuelta, 2016; Medeiros, 2018). Talvez a mais importante destas revistas tenha sido a Wimmen’s Comix, criada em 1972. A revista acabou atraindo um grande público e se tornando uma das mais longas antologias de quadrinhos produzidas por mulheres, tendo sido publicada até 1992, lançando, no total, cerca de dezessete edições (Medeiros, 2018, p. 92).
Aline Kominsky contribuiu para a primeira edição de Wimmen’s Comix com uma HQ de cinco páginas intitulada Goldie: a neurotic woman ou, em tradução livre, Goldie: uma mulher neurótica. A narrativa trata de uma garota chamada Goldie que, quando criança, sentia-se amada por sua carinhosa família e por seus professores, enquanto sua amizade era disputada por todos no colégio. Porém, com o tempo, algo mudou e “com a puberdade, veio a feiura e a culpa” (Kominsky, 2016, p. 39). Na figura 1 vemos a menina Goldie, ainda adolescente, tendo de lidar com as críticas de seus pais à sua aparência e com o fato de ouvi-los fazendo sexo durante a noite. A personagem passa então a evitar o próprio pai, em uma sensação de que toda a sua afeição seria de cunho sexual. Conforme ela explica na HQ: “não os culpo por me odiar. Eu sentia repulsa por meus pais, mas não podia deixar de ouvi-los à noite. A afeição do meu pai me enojava” (Kominsky, 2016, p. 40). No último quadrinho, vemos a garota se masturbando e se deixando levar pelo mal-estar por acreditar que ninguém além dela faz isso (Kominsky, 2016). Sentindo-se “sempre com tesão e culpada” (Kominsky, 2016, p. 40), a garota passou a associar seu prazer erótico à sensação de culpa:
No trecho em questão, vemos a família como uma grande fonte de neuroses para a personagem principal. Contudo, aqui os conflitos familiares acabam se agravando a partir de questões sobre a própria sexualidade da garota, de modo a lhe incutir uma sensação de culpa e vergonha. É possível perceber, em certa medida, um diálogo com algumas das ideias de Marcuse, para quem grande parte do mal-estar na civilização estaria intimamente ligado a seus modelos relacionais - especialmente os familiares -, algo que se acentua ainda mais ao pensar o modelo de família nuclear patriarcal estabelecido como ideal naquele período (Marcuse, 1955/1986, p. 80). Esta compreensão - de uma conexão entre a família nuclear e mal-estar - ecoou entre os vários movimentos da geração de 1960 e 1970 (Cardoso, 2005; Zaretsky, 2005) e, consequentemente, nos quadrinhos underground.
Na história da personagem Goldie, além de suas relações familiares, muitos outros fatores contribuem para suas neuroses durante sua vida. No enredo, mesmo após terminar os estudos e deixar a casa dos pais, a angústia permanecia na vida da personagem: “Eu finalmente saí do ensino médio e realmente me libertei. Fiquei chapada, fodi muito, bebi, engravidei e um novo tipo de auto-ódio começou” (Kominsky, 2016, p. 41). A HQ não fala sobre o destino da gravidez da personagem, mas considerando que se trata de uma HQ inspirada na própria vida da artista, podemos concluir que a criança teria sido dada para adoção, como afirma Harvey Pekar (2011, p. 8) na apresentação do livro Essa Bunch é um amor, de Aline Kominsky. Na HQ, após estes eventos, Goldie passou a acreditar que “se divertir é pecado” e que ela deveria punir-se por fazê-lo (Kominsky, 2016, p. 41). Logo, acabou se mudando para “um apartamento desprezível (...)”, onde era infeliz e vivia em péssimas condições, até que um dia conheceu alguém: “(...) encontrei um menino judeu magricela, sensível e inseguro com um emprego e me mudei para a vida dele”. (Kominsky, 2016, p. 41).
A personagem não demorou a se casar com o rapaz, mas, logo passou a se sentir “sufocada e desesperada em um cenário idílico do deserto”, além de continuar se sentindo “paranóica e com tesão” (Kominsky, 2016, p. 42). Goldie abandona seu casamento e, “em estado de desespero”, acaba se envolvendo com muitos homens em uma tentativa desesperada de evitar sua angústia: “O único alívio da dor era o prazer. Eu o persegui compulsivamente” (Kominsky, 2016, p. 42).
Com o tempo, após se envolver sexualmente com tantas pessoas, Goldie passou a sentir que tinha esgotado seu “suprimento de homens”, ou seja, a fonte de prazer que lhe evitava pensar na dor (Kominsky, 2016, p. 43). Ao se perceber sozinha, a personagem se dedica a um processo de olhar para trás e sua mente “começa a analisar os eventos passados” de sua vida. Como se trouxesse à tona as mais diversas questões recalcadas em seu inconsciente, a mente de Goldie apresenta uma espécie de relatório, no qual tanto a influência de seus pais quanto a influência de seu casamento teriam lhe trazido a este momento de sua vida (Figura 2).
Conforme seu relatório mental demonstra, até os 17 anos seus pais foram responsáveis por incutir em sua vida “elogios”, “demandas”, “lavagem cerebral” e “valores”. Neste ponto, é inegável perceber a maneira como sua reflexão se aproxima da ideia do superego que, na teoria psicanalítica, se origina a partir de uma dependência da criança em relação aos pais e, após se solidificar por meio de influências sociais e culturais, torna-se representante psíquico da moralidade estabelecida. Marcuse explora esta ideia em sua obra, demonstrando como este processo acaba gerando “o sentimento de culpabilidade e a necessidade de punição, gerada pelo desejo de transgredir estas restrições” (Marcuse, 1955/1986, p. 43), da mesma forma que ocorrera à Goldie e a tornara uma mulher consumida pela culpa.
O relatório demonstra ainda que a vida da personagem com seu marido a teria levado a questões como “dependência”, “paranóia” e “desespero” (Kominsky, 2016, p. 43). Por fim, sua mente mostra o ponto onde a garota se encontra, aos 22 anos, em um momento em que se sente cheia de incertezas e busca evitar o medo a qualquer custo (Kominsky, 2016). Após este processo de auto-reflexão, Goldie percebe que boa parte de sua vida esteve condicionada a dar prazer ao outro. É neste momento que ela decide tomar as rédeas de sua história e seguir um novo caminho: “Em vez de me odiar, fiquei indignada com todos. Algum sentimento de orgulho, há muito perdido, veio à tona. Finalmente, depois de 22 anos tentando agradar outras pessoas, decidi viver no meu próprio estilo!” (Kominsky, 2016, p. 43).
Como se observa, a história contada por Kominsky apresenta uma personagem que durante anos renunciou a seus próprios desejos buscando se enquadrar nos padrões de sua sociedade. Nesta dinâmica, ideias psicanalíticas de “recalque” e “neurose” servem à narrativa de modo a demonstrar que o fato de ter recalcado seus próprios desejos e ter usado seu corpo simplesmente como objeto de prazer para os homens, teriam feito de Goldie uma “mulher neurótica” e incapaz de ser feliz. Partindo destes conceitos para relacionar o mal-estar de Goldie à uma vida dedicada ao gozo dos homens, a HQ defende uma liberação sexual construída não apenas em termos masculinos, mas envolvendo também o prazer e a liberdade femininos. Assim, a protagonista da história só alcança sua felicidade a partir do momento em que decide se reinventar e se reconstruir de modo a pensar em uma vida em que possa se dedicar a satisfação de seus próprios desejos.
A ideia do corpo como fonte de prazer próprio é explorada também na história “Bunch se diverte sozinha”, uma HQ de duas páginas publicada por Kominsky em 1975. A história traz a personagem Bunch, também inspirada na própria artista e que protagoniza muitos de seus quadrinhos. Nesta HQ, a personagem aparece em cenas em que extrai espinhas internas, se coça, se masturba, se bronzeia e experimenta o gosto e o cheiro de alimentos ou de fluidos vindos de seu próprio corpo. Por fim, como se observa na Figura 3, adormece e, quando a luz do sol a acorda na manhã seguinte, nua em sua cama, ela recomeça seu processo de autoconhecimento corporal:
Trata-se de uma história simples sobre uma garota interagindo e explorando seu próprio corpo sem qualquer forma de censura. Em muitas de suas HQs, vemos Bunch sujeitar sua sexualidade e seu corpo à expectativas e prazeres alheios aos seus, como nas cenas em que faz sexo contra sua vontade (Kominsky Crumb, 2011, p. 13-14; 21-22) ou como na HQ “Minha banha nos separou” em que Kominsky Crumb conta uma história em que Bunch se dedica à várias dietas de emagrecimento para agradar seu namorado Herbie (Kominsky Crumb, 2011, p. 25-30). Em “Bunch se diverte sozinha”, no entanto, observamos uma ressignificação, em que a personagem toma o domínio de seu corpo de volta para si e o envolve num prazeroso processo de autoconhecimento. Mesmo a frase dita pela personagem no último quadrinho, “Meu corpo é uma fonte infinita de diversão!” (Kominsky Crumb, 2011, p. 32), revela um entendimento do corpo muito semelhante ao que Herbert Marcuse descreveu como a conversão do corpo em “objeto de catexe, uma coisa a ser desfrutada - um instrumento de prazer” (Marcuse, 1955/1986, p. 172).
Considerações Finais
As fontes analisadas neste texto refletem nuances dos projetos de libertação promovidos por alguns sujeitos ligados aos movimentos da contracultura que viram na libertação de Eros (satisfação da libido) uma alternativa para muitos dos problemas de seu tempo, como a guerra, o trabalho exploratório, etc. Tratam-se, neste sentido, de um esforço de ressignificação do corpo e da sexualidade. O corpo, outrora visto como objeto de pecado e mero instrumento de trabalho (Marcuse, 1955/1986), passava a ser descrito nas páginas dos quadrinhos underground como fonte de autoconhecimento e satisfação. A exploração da livre sexualidade passava a ser valorizada em detrimento dos tradicionais relacionamentos afetivos monogâmicos, compreendidos como caprichos baseados nas relações de posse de uma burguesia puritana.
A análise aqui apresentada nos mostra, portanto, como a obra de Aline Kominsky reflete os pressupostos dos jovens da contracultura (Allyn, 2016) e de Herbert Marcuse para quem a ressexualização do corpo seria capaz de provocar uma mudança no valor das relações libidinais e, consequentemente, contribuir para a desintegração das instituições repressoras como a família nuclear patriarcal (Marcuse, 1955/1986).
Neste sentido, a arte de Aline Kominsky nos mostra como teorias vindas da psicanálise foram apropriadas em um determinado contexto, tanto na elaboração de um exercício terapêutico quanto na luta por uma sociedade mais justa, especialmente a partir de uma ressignificação da relação do sujeito consigo mesmo e com o outro.